Introdução
O desporto impregna as nossas vidas. Praticamos desporto,
vestimos desportivamente, utilizamos um vocabulário recheado de termos
desportivos, absorvemos o desporto que nos é divulgado pela comunicação social,
comentamos e emitimos opiniões sobre o mesmo. Entranhou-se sem se estranhar!
Poucas vezes pensamos o desporto. Propalamos aos quatro
ventos que o mesmo tem funções educativas, formativas e culturais – e
sentimo-nos ufanos disso – mas esquecemo-nos que o mesmo também possui outras
faces. Talvez porque seja politicamente correcto ignorar ou esconder as mesmas.
Os sinais estavam aí desde a década de 70 de século passado… por aqui estão e
persistimos na recusa de os querermos ver.
É necessário desconstruirmos e desmistificarmos o desporto
para termos consciência do que consumimos. A sociedade de consumo (comprar,
usar e deitar fora) evoluiu, refinando-se para uma sociedade do consumismo
(comprar, não usar e deitar fora). As modificações que se verificam no desporto
acompanharam essa evolução, são avassaladoras e desenvolvem-se a um ritmo
alucinante. Tão alucinante que a nossa capacidade de análise não consegue
acompanhar esse ritmo. Ninguém pensaria, há uns simples 10 anos que skateboarding, sport climbing, surfing e
breaking – assim mesmo, com
designação inglesa – seriam modalidades que viessem a fazer parte do programa
dos J. O. (Paris 2024). Ou que, também por exemplo, os e-Sports tentariam também fazer parte do mesmo programa…
A crença de que o desporto possui valores e virtudes e que é
um espaço de construção de valores assim como de construção do carácter dos
seres humanos já não possui raízes sedimentadas. Nem que é um palco da ética.
Ou um pedestal da moral. Acreditarmos que, ao entrarmos por um lado do
desporto, nos submetemos a um processo mágico e que saímos pelo outro lado
completamente virtuosos não é uma utopia, é uma falácia. O desporto por si só
não é a solução para o sedentarismo, a obesidade, a hiperactividade, a
indisciplina ou a falta de concentração de crianças e jovens tal como começa a
revelar fracturas em relação à solução de problemas ligados à saúde mental, ao
desemprego, à apaziguação de conflitos ou à solução de confrontos. O desporto
transformou-se num objecto, e como tal, passível de mercantilização. Sujeito a
uma economia de mercado.
E temos de estar atentos a esta realidade. E até tentarmos
ver mais longe. O que não é difícil se, como disse Bernardo de Chartres (1130-1160),
se estivermos sobre ombros de gigantes.
E alguns desses gigantes levaram-nos a isso mesmo: a ver mais
longe.
Subimos primeiramente sobre os ombros de Melo de Carvalho[1],
em 1985, quando procurámos compreender as suas questões: “Que significados tem o espectáculo numa sociedade de consumo que é a
nossa? Que papel desempenha a intervenção do dinheiro em toda a estrutura
desportiva? Porquê e ao serviço de quem é montado o espectáculo?” Reparemos
que as mesmas ainda hoje são actuais… como ainda é actual para além da
violência no desporto outras violências tais como o acentuado abandono da
prática desportiva entre os 14 e os 16 anos, o doping e a prática precoce da especialização desportiva, como o
próprio refere. E foi este gigante que reforçou o facto de o ser biológico
determinar o psíquico mas apenas pela mediação decisiva do social… assim como
nos alertou para o facto de ser no processo educativo e cultural que se deve
procurar a resolução dos problemas da violência no desporto – não é só o
sistema desportivo que está em causa, mas também a totalidade da dinâmica
social que o determina.
Olímpio Coelho[2],
logo no ano seguinte, e em relação à actividade dos agentes desportivos,
dizia-nos que não é a deficiente preparação técnica destes que leva ao
insucesso no que se refere à sua acção e objectivos, mas sim a sua deficiente
preparação psicopedagógica.
Aos ombros deste autor equacionávamos o papel do treinador
porque (e citamos) “ – antes de se
prepararem atletas preparam-se pessoas; –
os praticantes, principalmente crianças e jovens são facilmente influenciados
pelos adultos nos seus hábitos, atitudes e comportamentos; – a componente psicopedagógica é
indispensável a uma efectiva formação dos praticantes; – as características que devem ‘marcar’ os praticantes adultos de nível
só se ‘constroem’ durante o período da respectiva formação e com uma
intervenção psicopedagógica adequada e correcta.”
O treinador enquanto professor, o treinador enquanto
educador, pelo menos nos escalões de formação, transporta uma grande
responsabilidade. Em princípio influencia pela positiva aqueles que orienta.
Mas nesse mesmo ano, sobre os ombros de Jorge Bento[3],
começámos a dar conta que poderia não ser bem assim e que algo poderia não
correr bem. São dele estas palavras numa obra também consagrada à
psicopedagogia: o professor e o educador “podem
fomentar fortemente o desenvolvimento harmonioso da personalidade dos seus
alunos. Mas podem também, em certas circunstâncias, cometer erros e favorecer
tendências de desenvolvimento que se converterão mais tarde em grandes
problemas.”
No entanto a educação, a formação e a cultura deixaram de
estar unicamente nas mãos de treinadores, de professores e de educadores. Os mass media e outras entidades entraram
em jogo e “as mudanças tecnológicas,
sócio-culturais e políticas ocasionaram um retrocesso nítido das possibilidades
institucionais e intencionais de influência educativa das crianças e jovens, a
par (e por efeito) da multiplicação das instâncias, mais ou menos anónimas e
contraditórias, de educação e socialização.”[4]
E questionava Jorge Bento então por que motivo as concorrentes educativas
(televisão, jornais, rádio, cinema, vida social, igrejas, instituição militar,
partidos políticos, clubes, locais de recreação) não agiam de acordo com as máximas
pedagógicas tradicionais. Era precisamente Jorge Bento[5]
que nos dava a resposta: “porque agem de
acordo com as leis do mercado! A sua ideia não é produzir aquilo que é bom
segundo critérios pedagógicos, mas sim produzir aquilo que se deixa vender e
consumir optimamente.”
Dez
anos depois, em 1996, estávamos sobre os ombros de Gustavo Pires[6]
para constatarmos que “poderemos
dizer que existem sete idiomas universais: o dinheiro, a política, a arte, o
sexo, a droga, a corrupção e o desporto. O desporto reúne todos eles”.
Com ele descobrimos que o competidor faz os resultados, os recordes, mas é a
comunicação social que faz o ídolo. Porque “o
desporto, as suas modalidades, áreas e sectores organizacionais, valem em
função da mediatização que forem capazes de gerar e de gerir. Dos espaços
escrito, oral, televisionado e/ou presencial que forem capazes de animar. O
valor, cada vez é mais evidente, vale na razão directa das suas potencialidades
mediáticas.” Era o colocar o dedo na ferida…
E não parávamos de subir aos ombros de gigantes. Não já para
tratar do treinador ou da comunicação social, mas para tratar do competidor, do
desportista – o sujeito da acção. Era o momento de subirmos para os ombros de
Manuel Sérgio[7]
pois era ele que nos interrogava: “Em
plena sociedade capitalista, o que é a prostituição senão corpos que se
entregam, na procura exclusiva de dinheiro? E não é o atleta de alta competição um
trabalhador que vende ao Clube a que pertence a sua força de trabalho? E não é,
ele também, humilhado e ofendido, quando se põe em risco a sua saúde, através
de anestesias locais, que escondem, por poucas horas, lesões ósseas e
musculares, de alguma gravidade?”
Os sinais estavam aí, todos aí, para não recuarmos ainda mais.
Os alertas já aí estavam. E Jorge Bento[8]
veio, para que subíssemos mais uma vez nos seus ombros, trazer-nos a
constatação de que “num contexto de
relativismo ético e legal, os princípios políticos e interventores mediáticos
surgem apostados em cantar as virtudes da versão prevalecente do mercado, em
branquear as suas perversões e esconder que os danos colaterais são calculados,
programados, e produzidos de modo absolutamente objectivo, frio e racional.”
Não adianta atribuirmos ao desporto mais funções que aquelas
que ele consegue assumir. Não adianta petrificarmo-nos em crenças que já
esboroaram há muito. Adianta, isso sim, tentarmos explicar o desporto através
dos seus efeitos. Dos seus efeitos na sociedade e dos seus efeitos no
indivíduo. Porque o desporto, que não nasceu para dar lucro, hoje se encontra
mais submetido a interesses económicos e políticos do que a interesses
desportivos. E principalmente tenhamos também presente as outras faces
(obscuras) do desporto. Conheçamo-las. Denunciemo-las. Porque estamos a chegar
a um ponto de não regresso.
O desconhecimento dessas faces não significa inocência… e só
a denúncia dessas faces nos redime. Como nos disse Graham Greene[9]
“é extraordinário o sentimento de
inocência que acompanha o pecado. (…)
E quando amamos o nosso pecado, em verdade estamos condenados.”
Respiramos desporto… e este tornou-se um fenómeno global, um
facto social total (utilizando a terminologia de Marcel Mauss) mas são
necessários contributos para compreendermos o fenómeno… ou, talvez mais do que
isso, para o desconstruirmos. A presente obra, produto de setenta artigos
publicados no jornal «A Bola» online
na sua rubrica Espaço Universidade, desde Agosto de 2018 e apresentados por
ordem cronológica dentro de cada capítulo, isso pretende. E pretende também ser
uma modesta homenagem aos gigantes atrás citados – Melo de Carvalho, Olímpio
Coelho, Jorge Olímpio Bento, Gustavo Pires e Manuel Sérgio pelo rasgar de horizontes.
Alguns desses artigos foram actualizados, outros ligeiramente adaptados para
uma leitura mais agradável. Esperamos que tenham aceitação por parte dos leitores...
1. Da hipocrisia no
desporto…
16.08.2018
As pinturas rupestres de mãos, impressões positivas ou
negativas, datadas entre 28 e 40 mil anos, quer sejam as mais antigas as de La
Pasiega, de Chauvet ou da ilha
de Sulawesi, transformaram o ser humano em espectador. O desporto transformou esse
mesmo ser humano em espectador-consumidor.
Hannah Arendt[10]
dizia-nos que a excelência – areté –
necessitava da presença dos outros, de um público formal. Em
1936 já Hitler tinha percebido isso ao fazer transportar a tocha olímpica de
Olímpia para Berlim, quando a televisão dava os seus primeiros passos na
divulgação das imagens de uns Jogos Olímpicos…
Mas
os atletas também perceberam que a existência desse público formal poderia
servir para passar as suas mensagens. Tommie Smith e John Carlos, ao fazerem a
saudação típica dos Black Panthers no pódio, foram talvez dos primeiros a
demonstrarem isso nos Jogos Olímpicos de 1968, no México.
No
Mundial de futebol de 2018, na partida entre a Suíça e a Sérvia, que a primeira
venceu por 2-1, Xherdan Shaquiri e Granit Xhaka, autores dos golos da Suíça, comemoraram
os mesmos fazendo um gesto, com as mãos cruzadas, aludindo à águia de duas
cabeças da Albânia. Disse-se que provocaram os adeptos sérvios… Contextualizemos:
Xhaka é filho de pais albaneses de origem kosovar ao passo que Shaqiri é mesmo
kosovar… e sabemos que a Sérvia não reconhece a independência do Kosovo. A FIFA, solícita, abriu um inquérito e multou os dois
jogadores suíços em 8,7 mil euros. Curioso a FIFA também sancionar jogadores
que chamem «macaco» a um adversário considerando isso racismo e não sancionar
um jogador por injuriar a mãe de um árbitro ou de um adversário porque
esses termos fazem parte da linguagem do futebol… Hipocrisia ponto um!
Em 1999 a Nike pagou 500 mil dólares à União Ciclista Internacional para encobrir uma análise positiva de Lance Armstrong[11]… No entanto, a mesma Nike, em Outubro de 2012, ano em que Armstrong perde os seus 7 títulos do Tour, emite um comunicado onde expressa ter sido enganada por Armstrong durante mais de uma década e que a mesma “não tolera o uso de drogas ilegais que melhorem o desempenho desportivo”. Hipocrisia ponto dois!
E
se o desporto criou o espectador-consumidor, a entrada da publicidade em jogo
neste levou a alterações profundas no espectáculo. O que significa alterações
profundas no desporto.
Antes
da era Armstrong, alguém na Europa conhecia os US Postal? Ou deles tinha ouvido
falar? Não, foi ele que lhes deu visibilidade, foi ele que os publicitou
durante todos os anos em que os carregou às costas. Mas o Estado
norte-americano pretende reaver de Lance Armstrong – como se só ele fosse
patrocinado e não toda a equipa – a quantia de 85 milhões de euros por sentir-se
defraudado pelo patrocínio abonado pelos US Postal entre 2000 e 2004… com juros
referentes a 13 anos… Hipocrisia ponto três!
Um
dos últimos casos onde poderemos detectar essa hipocrisia passou-se na América
do Sul (Dezembro de 2018): a equipa feminina do Atlético Huila, da Colômbia,
conquistou a Taça Libertadores, mas o prémio (55 mil dólares) vai para… a
equipa masculina que milita na Primeira Divisão da liga colombiana!
Se
o consumo do desporto pelo espectador e a publicidade provocaram mutações no
desporto, a intromissão da política no mesmo maior alteração veio a provocar. O
atentado ocorrido nos J. O. de Munique, em 1972, e os boicotes aos J. O. de
1980, em Moscovo, e aos de 1984, em Los Angeles, disso são provas.
Desde
2017, muitos desportistas, principalmente de futebol americano, nos Estados
Unidos, ajoelhavam-se durante a entoação do seu hino como forma de protesto em
relação às políticas daquele país. Donald Trump pronunciou-se: “a primeira vez que se ajoelharem devem ser
expulsos do jogo, à segunda devem ser proibidos de jogar durante a temporada e
ficar sem salário”. Era a força da política sobre o desporto a sobrepor-se
à capacidade do mesmo resistir à intromissão da mesma. Exemplo disso é o caso
do jogador da NFL Colin Kaepernick que se viu no desemprego por ser um dos
contestatários iniciais. E mesmo quando a NFL se colocou a o seu lado a
situação persistiu… pelo menos até 2020.
A
hipocrisia institucional encontra-se também no desporto a partir do momento em
que o movimento associativo começou a ser regido por imposição legal… da
política. Exemplo concreto reside no actual Regime Jurídico das Federações
Desportivas, pois o mesmo pode determinar que uma associação ou um clube com
2000 federados esteja representada(o) numa Assembleia Geral de uma qualquer
federação apenas por um ou dois delegados… ou até não ter nenhum por não ter
conseguido eleger ninguém. No entanto, é possível uma congénere com 300
federados ter dois, três ou mesmo quatro delegados nessa reunião magna desde
que ocupassem um lugar elegível numa lista… É o que acontece quando um RJFD é
feito para o futebol mas aplicado a todas as outras modalidades.
No
campo da hipocrisia situacional poderemos ir desde a fraude nos resultados
competitivos até à utilização de meios ilícitos… para não termos de falar na
exploração infantil ou na corrupção.
Em
1997, no Tour de France, Richard
Virenque pagou quinze mil euros a Ian Ulrich para que este o deixasse vencer a
etapa de Courchevel, enquanto em 1999 Jérome Chiotti (apanhado pelo doping em
1996) pagou sete mil e quinhentos euros a Miguel Martinez, companheiro de fuga,
para lhe comprar o título de campeão de França em BTT…
As
pressões a que estão sujeitos os competidores para atingirem certos resultados,
as pressões a que são sujeitos não só pelas entidades patronais e pelos
treinadores mas também pelos sponsors,
levam a situações em que são triturados para benefício de alguns poucos. Nada
mais hipócrita do que isto! A evolução de uma actividade praticada como ócio e
que acaba por degenerar numa mercantilização a isso leva. Esse é um dos sinais
deste desporto pós-moderno.
“Uma vozearia rebentara no solar. Voltaram
para trás a toda a pressa e tornaram a espreitar pela janela. Sim, eclodira uma
violenta altercação. Havia gritos, murros na mesa, olhares ferozes de
desconfiança, desmentidos irados. A origem do tumulto parecia residir no facto
de Napoleão e o Sr. Bonifácio terem jogado simultaneamente dois ases de
espadas. Doze vozes gritavam, furiosas, e todas se assemelhavam. Era agora
evidente o que sucedera aos rostos dos porcos. Os animais diante da janela
olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos
porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.”
Assim termina George Orwell o seu «A Quinta dos Animais»[12].
Assim se encontra o desporto… refém do espectador-consumidor, da publicidade,
da política e da hipocrisia.
2. Silly season: quatro
apontamentos
05.09.2018
1. Eduardo Galeano no seu livro «Futebol: sol e sombra»[13] perguntava-nos quantos teatros estão metidos no teatro do
futebol…
Após o jogo entre o Boavista e o Porto, realizado a 6 de Maio de
2006, foi instaurado um processo sumaríssimo ao jogador Ricardo Silva, do
Boavista, sendo este acusado de ter agredido com uma cotovelada o portista
Anderson. A época desportiva terminou vindo-se a conhecer só em Outubro, 5
meses depois, a decisão da Comissão Disciplinar da Liga: suspensão de um jogo
para o agressor. Ficou assim o Boavista impedido de contar com o mesmo para o
primeiro confronto perante o Nacional na época de 2007/2008. O comportamento do
jogador foi sancionado mas só teve reflexos no campeonato seguinte…
Em
Itália, o Parma acedeu à Série A na época 2017/2018, mas no último jogo da
Série B, contra o Spezia, um dos seus jogadores pretendeu influenciar o
resultado, tendo enviado mensagens a um dos adversários tentando convencê-lo a
não dar o seu melhor nessa partida. Resultado: o mesmo foi suspenso por dois
jogos e foi-lhe aplicada uma multa de 20 mil euros… e o Parma foi penalizado
iniciando a época seguinte com cinco pontos negativos. Mais um caso ocorrido
numa época e numa série, com reflexos na época seguinte e numa outra série…
Teria o Parma subido se o ilícito tivesse sido sancionado do mesmo modo na
época respectiva? Não!
E
o mesmo Eduardo Galeano dizia-nos que “a
moral do mercado, que é, no nosso tempo, a moral vigente, autoriza todas as
chaves do sucesso, mesmo as que tenham a forma de um pé de cabra”.
2.
O COI estabeleceu que, para os Jogos Olímpicos da Juventude de Buenos Aires
2018, cada país poderia apenas participar com uma selecção, por género (uma
equipa masculina ou uma equipa feminina), nas modalidades colectivas que
integram o respetivo quadro competitivo – e são quatro as modalidades. O COP
definiu como critério prioritário que se mais do que uma modalidade estivesse
qualificada, participariam duas modalidades e não apenas uma única,
garantindo uma maior diversidade da
representação nacional. Acontece que apenas se apuraram para participar as
selecções de Portugal de Andebol de Praia (feminina e masculina) e de Futsal feminina.
Curioso é o facto de «género» ser um critério de apuramento…
Foram assim escolhidas as selecções de Portugal de Andebol de
Praia masculina e de Futsal feminina, ficando de fora a selecção feminina de
Andebol de Praia.
Entretanto, Carlos Resende, treinador de andebol do Benfica e pai
de uma das jogadoras desta última, veio a terreiro afirmar (DN, 14.08.2018) que
“a FIFA ou a UEFA é que decidiram. Isto
do Futsal masculino não se qualificar é uma falácia, porque também se apuraram
e depois houve ordens para que fosse retirada a candidatura”.
E
o mesmo Galeano dizia-nos que “o futebol
profissional é intocável porque é popular. «Os dirigentes roubam para nós»,
dizem, e acreditam, os adeptos”.
3. Inês Henriques e Nélson Évora venceram, respectivamente,
as provas de 50Km Marcha e de Triplo Salto, no Campeonato Europeu de Atletismo
de 2018. Ambos se revelaram os melhores da Europa, a primeira aos 38 e o
segundo aos 34 anos.
“Somos
porque ganhamos”, disse-nos Eduardo Galeano. “Se perdemos deixamos de ser”, disse-nos o mesmo Galeano…
As excepções vão dando a ideia que tudo está bem!
Numa comitiva com 35 atletas para 2 medalhas de ouro (é pouco mas é ouro,
exulta-se!) Portugal ficou-se por um 11º lugar no medalheiro e 94,3% dos mesmos
não chegaram ao pódio nem perto dele ficaram…
“Todos os
sucessos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis” dizia Pangloss a
Cândido (sim, o Cândido de «Cândido e o Optimismo» de Voltaire[14]), ao que este retorquia: “tudo isso está certo, mas é preciso cultivar a nossa horta”.
Cultivemos pois a nossa horta: como a temos cultivado até aqui, ou de maneira
diferente…
4.
E apesar do mesmo Eduardo Galeano nos ter dito que os ideólogos amam a
humanidade mas desprezam as pessoas, Tiago Brandão Rodrigues, ministro
português responsável pelo desporto, veio declarar que “não é obviamente necessário ter a mesma profundidade de conhecimento
quando estamos a treinar jogadores num escalão de iniciados do que quando
estamos com equipas seniores”… Pois não, nem é obviamente necessário ter a mesma
profundidade pedagógica…
3. Valores: evolução ou
degenerescência?
24.09.2018
Na Piscina Oceânica de Oeiras deparamo-nos com um painel onde se
afirma que a prática da Vela “procura
aprofundar valores de cidadania, companheirismo, amizade, tolerância, confiança
e auto-estima em cada um dos participantes”.
É mais que comum no Karate recorrer-se a cinco máximas, afirmando-se que a prática do mesmo
aperfeiçoa o carácter (1), cultiva a sinceridade (2), incentiva o desenvolvimento
do esforço (3), fomenta o respeito pelo próximo
recorrendo à etiqueta (4) e promove o autocontrolo (5).
Não há modalidade desportiva que não alarde a
existência de valores no seu seio durante a fase de formação dos seus
praticantes.
E se podemos estabelecer uma comparação entre a
ontogénese e a filogénese da motricidade do ser humano, também nos deparamos
com um paralelismo entre a evolução axiológica do desportista e a evolução dos
valores do e no desporto…
Se na fase de iniciação e formação do praticante
o modelo pedagógico pretende inculcar valores no mesmo, o
objectivo principal do desporto até à primeira grande guerra mundial
era a moral e a educação.
Na
fase da especialização do desportista o resultado começa a ser sobrevalorizado,
isto é, sobrepõe-se a qualquer um outro valor - treina-se e compete-se com
vista a um determinado resultado tendo-se em conta o espectador que assiste ao
evento. Foi após a primeira grande guerra mundial que começou a emergir no desporto
o objectivo espectáculo.
Quando
o desportista se encontra na fase de rendimento, a vitória é a única coisa que
conta, tentando-se alcançá-la por vezes sem se olhar a meios. O desportista
começa a estar sujeito já não só ao seu desempenho mas também a pressões
exteriores e o desporto metamorfoseia-se dado que o desportista tem de
satisfazer o treinador, o clube, o patrocinador… Compara-se à fase do desporto
moderno em que “ganhar não é o mais importante,
é a única coisa que importa!” (como referiu Vince Lombardi) e muitas vezes, para além da
vitória, importante é também o recorde. Foi a partir da década de 80 que o
desporto começou a ser mais uma indústria geradora de comércio e de
comunicação.
Por
fim chega-se à fase da profissionalização. O desportista é peça de uma
engrenagem da qual já não se consegue libertar e, por isso mesmo, tem de fazer
parte da mesma. Estamos então no desporto pós-moderno: tudo se quantifica, tudo
se negoceia, tudo é mercantilizado. Entram em cena no desporto nesta etapa os mass media, a alta tecnologia, a publicidade,
o direito, a economia e a política.
Parece
assim haver em toda esta evolução uma degeneração de valores… Se no primeiro
caso se pode considerar essa degeneração como adaptação a um sistema em
constante mudança, no segundo existe um processo intencional e planeado onde as
disputas de poder acabam por programar mudanças de comportamento.
Como
refere Mihir Bose[15], “o desporto adquiriu uma filosofia antes de
ter sido adequadamente organizado e, em grande medida, o principal problema do
desporto moderno é esse choque entre sua filosofia do século XIX e o
subsequente desenvolvimento de muitos jogos, já que eles tiveram que reagir a
um diferente, e em constante mutação, mundo.”
As consequências dos acontecimentos acima referidos
levam em primeira instância a uma reprodução. Em segunda instância levam a uma
inovação, ou a constantes inovações, onde uma análise abrangente das mesmas nos
remete para aquilo a que Jack D. Forbes[16]
chamou de “patologia uética” – o
desprezo pelo ser humano, a exploração do trabalho de outrem em função de
objectivos ou lucros privados. Poderemos dizer pois que a patologia uética
invadiu o desporto.
A reprodução torna-se então madre dessa inovação.
Tolstoi[17]
dá-nos um exemplo muito concreto em “A morte de Ivan Ilitch”, quando a
personagem principal, juiz, é atendido pelo médico: “Ivan IIich foi-se. Passou-se tudo como ele esperava, e como sempre se
passa. Longa espera, ares solenes e doutorais, bem conhecidos dele – porque
fazia o mesmo no tribunal –, auscultação, as perguntas do costume, exigindo
certas respostas antecipadamente determinadas e evidentemente inúteis, um ar
importante que queria dizer: não tem mais que nos obedecer e nós arranjaremos
tudo; estamos fartos de saber, sem dúvida possível, como as coisas se arranjam,
sempre da mesma maneira, seja qual for o paciente. Tudo se passava exactamente
como no tribunal. Tal como ele representava no tribunal diante dos acusados, o
célebre doutor representava ali diante dele.”
A questão não são os que representam, porque aproveitando-se
destes outros ditarão novas leis, gerirão novos destinos, administrarão novas
organizações ou novas instituições. A questão coloca-se perante aqueles que não
abandonando a sua zona de conforto permitem que surjam, para além dos danos
centrais consentidos, danos colaterais.
Mihir Bose[18]
salienta ainda que o desporto transformou-se num gigante económico que se
tornou muito maior do que ele – mais do que um meio de passar o tempo, de se
exercitar ou de ter um pretexto para uma aposta. Essa transformação levou a uma
degenerescência dos valores do e no desporto.
4. Kant e Freud
explicam o desporto
16.10.2018
O Código de Ética Desportiva (2014, Lisboa, IPDJ) diz-nos que
“o Espírito Desportivo deve ser vivido por todos os agentes,
elementos-chave no exemplo a dar aos mais jovens. Deve ser concretizado dentro
e fora da competição desportiva, devendo nortear a sua prática e constituir a
‘espinha dorsal’ da mesma.”
Entende-se assim o espírito desportivo como algo não só
inerente aos intervenientes directos na competição mas também em relação a
todos os envolventes.
Os
associados dos clubes pagam as suas quotas, os espectadores compram o seu
bilhete e enchem os estádios – aplaudem, gritam, pululam… e, por vezes,
insultam (insultam-se) ou agridem (agridem-se). Os competidores, cumprindo as
regras ou não, procuram alcançar sempre a vitória - por vezes utilizando
instrumentalmente meios ilícitos. Os dirigentes gerem as organizações para as
quais foram eleitos com métodos e estratégias diferentes uns dos outros – uns
mais válidos, outros nem tanto. Os árbitros… os treinadores… a análise poderia
ser extensa!
Tudo
isto será uma questão de educação? Uma questão de cultura? Uma questão de
ética? Uma questão de “espírito desportivo”?
Bem…
quando se prevarica não é de certeza uma questão de “espírito desportivo” – ou
talvez seja… mas mais de falta dele. Ao evocar-se o espírito desportivo seria
bom reflectir-se se na docência existe um “espírito pedagógico”, se na medicina
existe um “espírito médico”, se na arquitectura existe um ”espírito artístico”…
e por aí fora. A existirem são muito menos evocados.
Noutra
obra[19] demonstrei
a bivalência do desporto… urge agora debruçarmo-nos um pouco sobre as origens
(algumas) dessa mesma bivalência.
Com
Immanuel Kant[20]
aprendemos que “a educação é o problema
maior e mais difícil que pode ser proposto ao homem”. A educação visa
formar indivíduos autónomos, emancipados e com uma identidade própria de modo a
adaptarem-se a uma sociedade, a uma cultura, onde se inserem, mas apresenta-nos
uma antinomia: “como cultivar a liberdade
pela coacção?” – pergunta-nos Kant. E é este mesmo filósofo que nos diz que
a educação concilia, através de uma legítima coacção, “a submissão [do indivíduo] com a faculdade de servir-se da sua vontade”.
É
através deste antagonismo que se forma o ser humano, construindo-se um
indivíduo com propensões altruístas e sociáveis mas simultaneamente com
tendências egoístas e desintegradoras. Resume Kant numa outra obra esta ideia a
um termo: “insociável-sociabilidade”…
António
Damásio[21]
deixou-nos a ideia que o comportamento altruísta é passível de ser treinado e
praticado na sociedade. Mas diz-nos também que existe a alternativa contrária.
Não há garantias que sendo treinado e praticado na sociedade resulte sempre, “mas existe como recurso humano consciente,
presente através da educação”.
Encarando-se
o desporto como um meio educacional durante os períodos de iniciação e de
formação, também o mesmo não consegue fugir a esta antinomia. Os valores que se
pretendem inculcar no jovem praticante, tais como a cooperação, a amizade, a
tolerância, a justiça ou a equidade esbarram com o individualismo, o egoísmo, a
tentação da vitória a qualquer preço, a competição exacerbada.
Foi
Kant que nos mostrou que a educação se torna no uso livre da razão moral
dependendo dela que o indivíduo saiba utilizar a sua vontade pessoal e agir
livremente. Mas a antinomia presente naquela leva a que a coacção passe a ser
uma auto-coacção conduzindo o indivíduo a agir livremente mas em conformidade
com o dever, ou seja, resistindo a tendências menos civilizacionais.
Encontramos
o mesmo tipo de raciocínio em Sigmund Freud[22]:
“as duas premências, a que se volta para
a felicidade pessoal e a que se dirige para a união com os outros seres
humanos, devem lutar entre si em todo o indivíduo, e assim também os dois
processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa
oposição hostil um com o outro e disputar-se mutuamente a posse do terreno.”
Nestes
dois autores – o filósofo e o psicanalista – verificamos que é através de uma
adaptação cultural que o homem acede à humanidade na sua plenitude (não se
trata tanto de discutir o inato e o adquirido), tanto na sua evolução
filogénica como ontogénica. Essa adaptação cultural pressupõe no indivíduo
tendências altruístas e sociabilizantes mas também egoísta e desintegradoras.
Vale a pena demorarmo-nos um pouco mais numa
outra obra de Freud[23]: “(…) cada indivíduo é virtualmente um
inimigo da civilização, apesar de ter que reconhecer o seu geral interesse
humano. Dá-se, com efeito, o facto singular de que os homens, não obstante,
ser-lhes impossível existir no isolamento, sentem como um peso intolerável os
sacrifícios que a civilização lhes impõe para tornar possível a vida em comum.
Assim, pois, a cultura há-de ser defendida contra o indivíduo, e a esta defesa
respondem todos os seus mandamentos, organizações e instituições.”
A
ética do desporto, cada vez mais ventilada diariamente, tem conseguido dar ao
desporto um outro rumo? Pensamos que não e até Freud ao analisar o mal-estar na
civilização já dizia que a ética deveria ser considerada como uma tentativa
terapêutica… A presença de comportamentos exemplares no desporto tal como a
existência de comportamentos reprováveis é uma realidade porque “tanto em nós como nos demais, encontramos
sempre lado a lado uma solicitude pelos outros e motivos egoístas”[24].
Tal
como a velha história contada pelos índios sobre os dois lobos dentro de nós… E
quando o neto pergunta “– Qual o lobo que vence?” o velho índio responde: “– Aquele que tu
alimentas!”
5. Os mitos
reinantes no desporto
12.11.2018
É atribuída a
Joseph Goebbels a frase “uma mentira repetida
mil vezes torna-se verdade”. Sendo um mito uma narrativa para explicar
factos ou fenómenos que a ciência não explica de modo plausível ou inequívoco e
que o cidadão comum não conhece na sua profundidade, vamos denominar “mito”
essa “verdade” de que nos falava o Ministro da Propaganda da Alemanha nazi
entre 1933 e 1945.
Ser
o desporto um meio que fomenta a construção da personalidade ou do carácter do
praticante tem sido um dos mitos sempre apresentado relevando-se a sua
positividade. Mas a fraude, o utilizar todos e quaisquer meios para alcançar a
vitória, a corrupção e o uso de substâncias dopantes mostram-nos que o desporto
não constrói o carácter de um desportista, antes revela-o.
Qualidades
como a persistência, a iniciativa e a autoconfiança não são somente específicas
do desporto e não são só treinadas no e através do desporto. Que elas possam
ser treinadas no desporto e depois automaticamente transferidas e aplicadas em
outras esferas da vida carece de confirmação. Peter Arnold[25] dizia-nos
que “esta última perspectiva é
seguramente uma das ingénuas e infundadas no relacionamento entre o desporto e
o desenvolvimento do carácter.”
Quando
Kant nos deixou o seu imperativo categórico – age de tal modo que a tua vontade
possa considerar-se a si mesma como constituindo uma lei universal por meio da
sua máxima – estava longe de prever que esse “meio de formação” está para o desporto tal como o gato de Schrödinger está para a mecânica quântica: vivo e
morto ao mesmo tempo.
O
facto de inúmeros desportistas se profissionalizarem aos 12 ou aos 14 anos,
exacerbando-se assim o espírito da competição porque sujeitos a enormes
pressões e exigências demonstra estarmos na presença de algo camuflado: a
exploração infantil no desporto. Poderá nestas idades e nestas condições o
desporto contribuir para a formação do carácter destes desportistas?
Temos como um dado adquirido que o desporto promove valores –
mais um mito. Não temos dúvidas que o desporto promove valores, mas também
promove contra-valores. Tomarmos consciência da existência desses
contra-valores, sabermos identifica-los e reconhecermos que estes são
obstáculos que se opõem à promoção de verdadeiros valores é tarefa urgente e
necessária.
O
mito da saúde no desporto é outro daqueles que constantemente vem a lume. O
desporto dá saúde, diz-se, mas… a morbilidade e o abandono de carreiras
desportivas precocemente, a morte súbita em plena prática desportiva, as
inúmeras mortes de desportistas não explicadas e um sem número de suicídios no
desporto mostram-nos o contrário. Gustav Caroll[26]
pergunta por que motivo teremos de aceitar a ilusão da associação
entre o desporto e a saúde, a confusão voluntária entre jogo e rivalidade,
exercício e competição? E interroga-nos ainda sobre o facto de se encorajar
este masoquismo que enche os hospitais e faz prosperar as clínicas do desporto…
Manuel Sérgio[27] diz-nos
que “ninguém faz este desporto para
ter saúde; fá-lo porque tem saúde”. Posição essa corroborada por Jorge
Bento[28] quando
afirma que “o alto rendimento não se inspira na ideia de fomentar a saúde;
mas isso não o autoriza a atentar deliberadamente contra ela.”
O
mito da igualdade de oportunidades dos participantes no desporto também costuma
estar sempre presente dado que o espaço onde este desenvolve as suas
actividades assim como as normas que regem as mesmas são comuns. Mas este mito
ignora as desigualdades de condições desses mesmos atletas – condições
individuais diferentes (genéticas, anatómicas, fisiológicas ou psíquicas),
diferentes condições de treino (metodologias de treino, infraestruturas
desportivas, competências de treinadores e restante staff, apoios económicos) e
até díspares condições de participação no momento (tempo) – esse sim – comum a
todos os competidores (onde todos os antecedentes atrás assinalados emergem).
Sendo um mito algo que justifica uma crença comum,
verificamos que o desporto está cheio deles e ele próprio deles necessita…
porque os mitos resolvem as nossas próprias contradições: podemos justificar o
«real» pelo «desejável». E podemos incorporá-los nas nossas vivências, tal como
nos explicava Kafka[29]
numa das suas metáforas: “Os leopardos invadiram o
templo e beberam o vinho dos vasos sagrados. Esse incidente repetiu-se com
frequência. Por fim, chegou a calcular-se de antemão a hora exacta do
aparecimento das feras. E a invasão dos leopardos foi incorporada no ritual.”
6. Do “fair-play”… ou do “enganem-me que eu
gosto”!
26.12.2018
Fala-se de futebol, pensando-se
que se está a falar de desporto. Fala-se em ética no desporto quando se deveria
estar a falar de moral no desporto. Fala-se de fair-play em qualquer situação nem que seja somente no mero
cumprimento do regulamentado… Utilizam-se indiscriminadamente no desporto meia
dúzia de termos que se foram banalizando acabando-se por se perder o seu real
significado. Um problema de semântica ou um problema de conhecimento? Ou ainda,
um problema de manipulação?
Tanto
a comunicação social como o público consumidor de desporto acabam vítimas de um
espectáculo apresentado por profissionais em que os valores da cultura
desportiva original há muito se esfumaram, criando-se assim um círculo vicioso.
Um dos termos mais generalizados é “fair-play”…
aquilo que se exige ao desporto mas que não se exige no dia a dia-a-dia da
sociedade ou da política…
A
noção de fair-play encontra-se
relacionada com omissões nas regras e regulamentos ou com situações em que o
agente desportivo – competidor, treinador ou outro – busca uma certa equidade,
procurando o mesmo adaptar essa omissão existente à situação do momento,
pretendendo aplicar um critério de justiça e igualdade, sendo esse fair-play um comportamento intimamente
ligado aos valores do referido agente e que são moral e culturalmente
relevantes perante a sociedade e que a mesma legitima.
Falacioso
o título “Peruanos
e dinamarqueses dão show de fair-play nas redes sociais – Federações de ambos
os países deixam o exemplo” (Record, 30.05.2018)…
Intitular
uma notícia ou um artigo, tal como se pode ver na internet (12.12.2018), com a frase “Um fair-play brutal: Dínamo de
Kiev dá a mão ao Shaktar e deixa Paulo Fonseca emocionado” porque um clube cede
o seu campo a outro nada tem a ver com fair-play…
poderá ter a ver com cortesia e com bom relacionamento entre clubes…
Tal como o
facto do judoca
egípcio Islam El Shehaby, que se recusou a cumprimentar o adversário, Or
Sasson, de nacionalidade
israelita, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro nada ter a ver com ausência de
fair-play, mas sim com a formação do
competidor e com a sua falta de respeito pelo adversário.
A própria FIFA colabora neste erro ao chamar «regra
do fair-play» ao critério que desempatou o Japão e o Senegal no grupo H no Mundial
de futebol de 2018. Os japoneses acabaram por passar para a segunda posição do
grupo, à frente dos senegaleses, por estes terem mais dois cartões amarelos
atribuídos que os nipónicos. Este aspecto organizacional, legal e regulamentar
nada tem a ver com a noção de fair-play…
O comissário Iúri Rodrigues, num artigo
intitulado “A pirotecnia verbal e literal é o que mais preocupa” (O Jogo,
25.11.2018, p. 33), ao abordar a problemática dos comentadores desportivos – “gurus da informação” segundo as suas
palavras – sobre os mesmos afirma que “há
falta de fair play, quere-se ganhar a todo o custo e julgam que estão
legitimados a criar ambientes de intimidação.” Mais um uso incorrecto do
termo fair-play, porque o que existe
é falta de princípios…
Não é uma questão de fair-play ajudar ou socorrer um adversário num momento de lesão.
Este é um acontecimento – que muito aparece na história do desporto –
relacionado com a solidariedade entre seres humanos.
O
fair-play é um comportamento, logo
algo visível, determinado por valores. Está intimamente ligado à acção de um
qualquer agente desportivo ao prescindir de algo que lhe é favorável para repor
uma situação. O agente abdica assim de uma situação vantajosa em prol da
reposição da veracidade dos factos.
Num jogo de futebol em 2005, Miroslav
Klose, então atacante do Werder Bremen, avisou o árbitro de que este tinha
marcado uma grande penalidade inexistente favorável à sua equipa, pelo que o
árbitro anulou a sua decisão. Em 2012, desta vez ao serviço da Lazio, Klose
marcou um golo com a mão, o árbitro validou-o mas a seguir o próprio jogador
deu conhecimento ao mesmo da ocorrência, voltando este atrás com a sua decisão.
Fair-play declarado!
Mas
existe também o reverso da medalha. Em Novembro de 2009, no França-Irlanda de
apuramento para o Mundial de 2010 na África do Sul, Thierry Henry joga
deliberadamente com a sua mão esquerda a bola e Gallas marca de cabeça, sendo o
golo validado pelo árbitro… e a França apura-se. Após o jogo Henry declarou: “Sim, houve mão, mas eu não sou o árbitro.”
Em Junho de 2010, em jogo de apuramento para o mesmo Mundial, mas com outros
intervenientes (Alemanha e Inglaterra), Frank Lampard remata à baliza, a bola
bate na trave, ressalta para o chão transpondo a linha de golo, e Manuel Neuer,
agarrando a bola coloca-a de novo em jogo. Nada sancionado… Mais tarde, diria
Neuer: “Tentei não reagir ao árbitro,
concentrando-me apenas no que estava a acontecer. Dei-me conta de que estava
para lá da linha e penso que o facto de eu ter sido tão rápido enganou o
árbitro, fazendo-o pensar que não estava.”
Muitos
exemplos conhecidos de jogadores que propositadamente falham a marcação de
grandes penalidades poderão ser confrontados com um dilema. Isto porque, no
desporto pós-moderno, o jogador é pago pela entidade patronal para marcar
golos… e não para ser honesto.
No
final de 2018 vieram a terreiro duas notícias coincidentes no tempo e no
ocorrido. A primeira, sobre a segunda jornada da 2.ª fase do Campeonato
Distrital de Infantis, entre o Aljustrel e o Alvito. A equipa visitante alinhou
somente com 6 jogadores (futebol de 7), pelo que o Aljustrelense, por sua
iniciativa e sem que qualquer regulamento o obrigasse, fez alinhar também a sua
equipa com menos um jogador. A segunda, acerca do jogo de futsal entre
as equipas de iniciados do Vitória de Santarém e do Sport Clube Ferreira do
Zêzere – escalões de formação – em que esta segunda equipa só se pode apenas
apresentar com 4 elementos. Os escalabitanos entenderam então fazer alinhar a
sua equipa também só com 4 jogadores. Seriam estas situações semelhantes – e
sim, demonstrativas de fair-play –
possíveis no futebol profissional?
Exijamos e
pratiquemos o fair-play na vida
diária, na convivência com os nossos semelhantes, mas exijamos também que não
nos tentem enganar com a utilização indiscriminada desse termo no desporto.
7. Da violência
30.01.2019
O mês de Janeiro de 2019 apresentou-nos
o facto de uma jovem árbitra ter sido agredida à cabeçada e com cuspidelas por
um treinador num encontro de infantis em futsal entre o CPCD e o Povoense.
Apresentou-nos também as agressões entre adeptos, alguns deles pais, durante
um jogo de iniciados, entre Real Sport Clube e o Despertar de
Beja, disputado em Massamá. E mostrou-nos ainda a agressão do treinador do Anadia ao treinador do
Loures no final do encontro de futebol entre estas duas equipas e referente à série C do Campeonato de Portugal.
Em
comum aos dois primeiros acontecimentos a ocorrência dos mesmos em jogos de
escalões de formação… Comum ao primeiro e ao último o facto de serem
considerados comportamentos de violência no desporto, enquanto o segundo tem de
ser tipificado como violência associada ao desporto.
Ao
longo da filogénese da espécie humana verificamos a presença constante de duas
características: a competição e a violência. Constatamo-las da caça ao desporto
moderno, do circo romano ao desporto olímpico.
Inicialmente
tudo por causa de uma questão de sobrevivência, posteriormente numa codificação
que pretende substituir a guerra. Mas se nos primórdios o homem reagia a uma
ameaça súbita com a fuga ou com o ataque, actualmente os métodos refinaram-se.
As garras transformaram-se em unhas e os crimes de sangue foram substituídos
pelos crimes de colarinho branco. E isto porque o homem foi criando regras e
regulamentos para viver em sociedade e porque foi criando códigos para a justiça
ser igualmente aplicada, tendo os indivíduos de respeitar as leis por medo de
sanções ou de serem reprovados moralmente pelos seus pares e por se sentirem
culpados à posteriori da sua
desobediência a esses códigos.
A predisposição genética para o comportamento
violento, os valores morais do indivíduo e a sua aprendizagem social determinam
a maior ou menor propensão para o ocorrer da violência, despoletada pela
situação. São as características desta situação, que depende da actividade em
que se insere, do grupo de intervenientes e do espaço em que ocorre, que são
muitas vezes preponderantes para determinar a ocorrência de um comportamento de
violência. Verifica-se esta premissa nos três casos acima apresentados.
Mas parece que a serotonina e a dopamina desempenham
também um papel importante na ocorrência destes comportamentos. Não podemos
então olhar só para o social, temos de olhar também para o biológico. Se o
papel desempenhado pelo indivíduo no momento é determinante, tal como o seu status, não é menos importante a sua
herança genética e os processos químicos que se desenvolvem no seu organismo.
O primata civilizado é então vítima (produto) de
transmissões ao longo de um processo evolutivo tal como de circunstâncias do
momento. E se, através da razão, não salva
as suas circunstâncias, não se salva a si mesmo (como nos disse Ortega y
Gasset).
No livro «O Desporto
debaixo de fogo – entre valores e perversidades»[30] podemos encontrar um
capítulo dedicado à violência durante a prática desportiva, no treino e na
competição, onde podemos constatar que a
violência no desporto não é mais do que o reflexo da violência na própria
sociedade e onde também podemos verificar que a violência no desporto se pode
reflectir na violência na própria sociedade. Segundo vários especialistas de
Ciências do Desporto são aí dissecadas as causas dos comportamentos de
violência no desporto e apresentados inúmeros exemplos que mostram diferentes
tipologias dos mesmos.
Para Patrick Laure e Marc Falcoz[31] a violência é facilmente
olhada como um factor que contribui para se superar, para chegar mais alto e
para se transcender, e “longe de ser um benefício para o desenvolvimento do
indivíduo, ou de restabelecer a sua integridade física ou moral, esta forma de
«violência» ser-lhe-á ao contrário benéfica.” Atletas, competidores ou desportistas desejosos de
alcançar a vitória mesmo que não seja a qualquer preço estão submetidos à
condição de poderem recorrer a comportamentos de violência porque o desporto
não existe sem a vitória e sem a derrota. Mais o estão quando a pretendem
alcançar sem olhar a meios. Treinadores bem formados e interessados em formar
seres humanos estão sujeitos ao mesmo.
Treinadores interessados só em ganhar,
aniquilar e destruir de certeza que recorrerão à violência…
Gustavo Pires e António Cunha[32]
dizem-nos que a ética da competição desportiva vive na necessidade de gerir um
paradoxo de extraordinária complexidade: “se,
por um lado, a agressividade competitiva não pode disparar para níveis incontroláveis,
sob pena de o desporto deixar de ser uma atividade positiva do ponto de vista
educativo, económico, político e social, por outro lado, qualquer tentativa
para erradicar a agressividade subjacente ao jogo competitivo poderá deturpar a
essência da pratica desportiva enquanto espaço de confronto sem o qual o
desporto deixa de usufruir das condições da sua existência.”
É esta ética da competição desportiva que terá de
dar prioridade à razão sobre o sentimento, que terá de dar primazia à reflexão sobre
a emoção. Só ela separa o homem do animal. E o homem terá de dar prioridade a
esta ética no e do desporto.
Será possível um desporto sem violência? A resposta
é declaradamente NÃO!
O criador da sociobiologia, Eduard O. Wilson[33],
diz-nos que “somos governados por emoções
inscritas no nosso ADN por acontecimentos pré-históricos pouco conhecidos e
apenas parcialmente compreendidos”. Daí os comportamentos de violência
reactiva… E continua afirmando que “entretanto,
profundamente confusos, fomos catapultados para uma época técnico-científica
que pode, com o tempo, adequar-se bem a dar instruções a robôs, mas não aos
valores e sentimentos antigos que nos mantêm indelevelmente humanos”. Por
isso mesmo neste desporto pós-moderno, essencialmente técnico-científico a
todos os níveis, extremamente mercantilizado, se recorre a comportamentos de
violência instrumental…
Poderia haver um desporto sem violência? Claro que
poderia, poderia mas não seria a mesma coisa!
8. Da morte súbita
22.03.2019
Fábio Mendes, jogador de futsal do Centro Social de São João,
faleceu durante o jogo com o Portimonense no início de Março de 2019. Segundo
veiculou a comunicação social, foi vítima de um ataque cardíaco fulminante.
Três dias depois somos confrontados com a notícia de que Kenneth To, nadador vencedor de uma medalha de prata pela Austrália nos
Mundiais de 2013, morreu aos 26 anos depois de se ter sentido indisposto
durante um treino, na Florida, nos Estados Unidos.
Chamam-lhe a “síndroma da morte súbita”
e reside no nosso imaginário como que acontecendo só de vez em quando no
desporto, pois “o desporto dá saúde” e os desportistas são dos seres humanos
mais bem controlados e vigiados medicamente.
Recordemo-nos
que em Junho de 2003, em directo na televisão, Marc-Vivien Foé, jogador
camaronês, morreu em campo aos 28 anos, quando alinhava pela selecção do seu
país, na Taça das Confederações, no jogo contra a Colômbia. Talvez o primeiro
grande caso porque foi possível a milhões de espectadores confrontarem-se pela primeira
vez, em cima do acontecimento, com esta realidade transmitida em tempo real.
O caso mais mediático em Portugal,
também porque transmitido em directo pela televisão, foi o de Miklós Fehér,
jogador do Benfica, em Janeiro de 2004, em pleno estádio do Guimarães.
A comunicação social, solícita numa
retrospectiva, logo repescou o caso de Pavão, jogador do Porto, falecido
durante a partida entre este clube e o Setúbal em Dezembro de 1973. E logo
tivemos a oportunidade de ver a circular algo parecido com o «entre este caso e
o de Fehér nada se passou».
Ora, antes do caso de Pavão, embora
menos divulgados, podemos registar as mortes dos
futebolistas Rico do Varzim, Mário Ventura do Leixões, Lemos do Marinhense e
João Pedro do Vilanovense.
Entre
Dezembro de 1973 (Pavão) e Janeiro de 2004 (Fehér) faleceram entre nós durante
a prática desportiva – treino ou competição – pelo menos 15 futebolistas, 3
basquetebolistas e 3 ciclistas. Depois de Fehér muitos outros casos semelhantes
aconteceram em Portugal…
Parecem
ser casos a mais, alguns dos quais ocorrendo mesmo com crianças, numa
actividade que se diz promover a saúde… até porque o próprio Comité Olímpico
Internacional registou de 1966 a 2004 a ocorrência de 1101 mortes súbitas. A
média é de 292 casos anuais…
Na
síndroma da morte súbita o
coração não suporta o intenso esforço físico a que é submetido e a morte é
causada por uma paragem cardíaca. Este desfecho fulminante é a primeira
manifestação de uma doença de que não se tem conhecimento, a qual é muitas
vezes congénita e indetectável nos exames convencionais – dizem os
especialistas… diz a comunidade médica.
O
relatório da autópsia de Fehér apontava para uma hipertrofia cardíaca moderada
como causa da morte deste futebolista.
Mas
para além das causas das mortes, imperativo era serem estudadas e divulgadas as
origens dessas causas, pois para cada caso o importante seria não ter voltado a
acontecer.
E
não só as causas mas as suas origens por que motivo?
Porque
enquanto a causa explica o facto, a sua origem explica um processo como afirma André
Comte-Sponville[34]. Porque
se um condutor se despista e morre a causa pode ser o excesso de velocidade mas
a origem dessa causa pode ter sido o facto de ele ter perdido o seu emprego
antes de iniciar essa sua viagem… Porque se um indivíduo se suicida com um tiro
na cabeça a causa da sua morte pode ser a falência do cérebro mas a origem
dessa causa pode ter sido uma discussão conjugal…
E
2021 começou para nós da pior maneira: o futebolista Alex Apolinário, de 24 anos, caiu inanimado no jogo entre o Alverca e o
União de Almeirim a 3 de Janeiro sofrendo uma paragem cardio-respiratória,
vindo a falecer quatro dias depois e Paulo Diamantino, basquetebolista
internacional português do Mirandela Basket Clube com 35 anos, morreu a 8 de
Janeiro em pleno jogo com o Juventude Pacense… Para não se ficar por aqui,
perdemos Alfredo Quintana, de 32 anos, guarda-redes de andebol do Porto e da
selecção nacional logo no final de Fevereiro. Mais três casos para confirmar a
regra!
9. Do riso e da loucura
02.04.2019
Em 1967 Guy Debord publicou «A Sociedade do Espetáculo»[35],
uma análise mais económica, filosófica e histórica do que cultural. Uma obra em que o autor declara que “o espetáculo é a ideologia por
excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer
sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O
espetáculo é, materialmente, «a expressão da separação e do afastamento entre o
homem e o homem».” Nitidamente uma obra em que o espetáculo é dissecado numa óptica
das relações de produção e não centrada no espectador. Numa das poucas vezes em
que Debord se preocupa com o espectador afirma que “a alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o
resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais
ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens
dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o
seu próprio desejo.”
Mario Vargas Llosa publicou em 2012 «A Civilização do Espetáculo»[36] mais
preocupado com a cultura do nosso tempo. Uma cultura que, no sentido
tradicional conferido ao vocábulo, talvez já tenha desaparecido (a confusão
total provocada pelo capitalismo entre preço e valor, em que este último sai
sempre prejudicado, conduz à degradação da cultura e do espírito que é a
civilização do espetáculo). Llosa chega mesmo a afirmar que “a ideia de
progresso é enganosa”…
São mais os pontos que separam estes dois livros do que
aqueles que possuem em comum. Mas complementam-se. No entanto, enquanto no
primeiro se pode constatar que o consumidor real se torna um consumidor de
ilusões, no segundo afirma-se que “nos nossos dias, os grandes jogos de futebol
servem acima de tudo, como os circos romanos, de pretexto e libertação do
irracional, de regressão do indivíduo a sua condição de parte da tribo, de peça
gregária na qual, amparado no anonimato da sua tribuna, o espectador dá rédea
solta aos seus instintos agressivos de rejeição do outro, de conquista e aniquilação
simbólicas (e às vezes até real) do adversário.”
São duas obras preocupadas com o espetáculo mas não com o
espectador. Debruçam-se sobre um mas não sobre outro.
Como espectadores rimo-nos da loucura de
certas ideias. Rimo-nos quando uma diretora executiva da Liga de Clubes nos
apresenta as suas ideias sobre as vantagens da decisão no possível
regresso da venda de álcool de baixo teor nos estádios de futebol. Rimo-nos
quando o problema não está nos desportistas, nos competidores, nos
atletas, mas em nós. Na nossa loucura, nós encorajamo-los quando aclamamos as
suas vitórias. E nós continuamos atrás do golo! E continuamos atrás do recorde!
Vamos atrás da exaltação!
Rimo-nos quando uma diretora executiva
da Liga de Clubes afirma que “a nossa mentalidade
é ainda a de ‘cerveja e tremoço’, portanto temos de dar seguimento.”
Rimo-nos e nem sequer damos conta da loucura da tentativa de perpetuação de uma
cultura escondida nestas palavras. Reprodução… diria Bourdieu! Perdemos a
possibilidade de análise, perdemos o espírito crítico e não damos conta, como
nos diz Llosa nessa mesma obra, que “o vazio
deixado pelo desaparecimento da crítica permite que, insensivelmente, a
publicidade o tenha preenchido, convertendo-se esta nos nossos dias não só em
parte constitutiva da vida cultural como no seu valor determinante.” E é
precisamente aqui que reside a grande questão: o espectador existe porque a
publicidade necessita dele. Não há espetáculo sem espectador, não há
publicidade sem espectador. Este é o eixo fulcral de todo o mecanismo. E “a
publicidade exerce um magistério decisivo nos gostos, na sensibilidade, na
imaginação e nos costumes.”[37]
O espectador tem de consumir não só o espetáculo mas também a
publicidade. Quem a paga? Não é o Clube, desiludam-se, somos nós. Não é a TV,
desiludam-se, somos nós. Porque quando compramos um perfume, não estamos só a
pagar o cheirinho… estamos a pagar a embalagem, estamos a pagar o frasco,
estamos a pagar o aspersor, estamos a pagar o rótulo, estamos a pagar os anúncios…
Temos a Liga NOS, a taça CTT, a Liga SportZone… mas já não
temos o Pavilhão Atlântico, temos o Altice Arena… já não temos Pavilhão Rosa
Mota, temos o Super Bock Arena… temos «a fome de vencer»… “portanto temos de dar seguimento.”
O próprio Comité Olímpico de Portugal
assinou um protocolo (19.02.2019) com os Vinhos da Bairrada. Ah grandes
apreciadores e consumidores dos Vinhos da Bairrada… que irão pagar o famoso
néctar, a garrafa, a rolha, o rótulo e… toda a publicidade!
Desde 2006 que a publicidade para produtos relacionados com o
tabaco foi banida na Fórmula 1 – antes era norma! Entre nós a Sagres é o
parceiro mais antigo da Federação Portuguesa de Futebol – desde 1993: “portanto temos de dar seguimento.” Ou seja: não fumemos mas bebamos!
Quando temos antevisões de jogos e
conferências de imprensa em que o que interessa não é o que os protagonistas
dizem mas sim a enorme quantidade de logotipos que proliferam nas suas costas e
que subliminarmente entram para o nosso cérebro, temos de dar seguimento a umas
bjecas, a uns tremoços e a uns caracóis… temos de dar seguimento à loucura.
E recordamo-nos aqui que Demócrito, respondendo a Hipócrates em
“Do Riso e da Loucura”[38],
quando lhe disse: “Atribuis ao meu riso
duas causas, as coisas boas e as coisas más, porém, na verdade, não me rio
senão por uma razão, do homem insensato, desprovido de rectidão, pueril em
todos os seus desígnios e que sofre, sem daí retirar benefício algum, com os
infindáveis esforços que envida, e que é impelido por imoderados desejos a
aventurar-se, até aos limites da terra e nos abismos imensos, na conquista de
prata e ouro, não cessando jamais de os alcançar, sempre afadigado em granjear
mais, a fim de não ficar na ruína.”
10. Erradicar a violência do desporto?
(I)
20.04.2019
Notícia vinda a lume e intitulada “Ministro da Educação quer
erradicar violência no Desporto” (www.sábado.pt, 17.04.2019) dá-nos conta do lançamento da campanha «Violência Zero», afirmando-se que o
governo está apostado em acabar com os casos de violência, racismo e xenofobia
nos recintos desportivos. Só faltou acrescentar-se aqui os casos de «corrupção»
e de «dopagem», já que se continuam a omitir os casos de violência sexual (sim,
porque existem no desporto!), os casos de fraude nos resultados desportivos, de
morte súbita em plena pática, de morbilidade, de exploração infantil, de mortes
inexplicadas, de suicídios no desporto…
Assegura o Ministro da Educação, que tutela o desporto, ser
esta a “janela de oportunidade ideal para
atuar com uma campanha vasta de sensibilização", frisando que "sempre que exista um caso de violência no
desporto, será um caso a mais". Mais uma campanha de sensibilização –
e por que não incluir nos currículos escolares, já que neles se despejam tantos
conteúdos, o combate à violência no desporto ou à violência associada ao
desporto?
O Decreto
Regulamentar n.º 10/2018, de 3 de outubro, cria a Autoridade
para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto, que tem como missão
assegurar a prevenção e fiscalização do cumprimento do regime jurídico do
combate aos contra-valores acima enunciados, acrescentando-se “a intolerância nos espetáculos desportivos”
de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança, prevista na Lei
n.º39/2009, de 30 de julho (repare-se, nove anos depois!). A primeira questão
que se coloca é: o que fez esta “Autoridade” até ao momento? Atente-se que no
seminário “Estados de Sítio” (Março de 2019), Magina da Silva,
superintendente-chefe da PSP, mostrou a inação dos vários agentes desportivos
até porque dos 15 adeptos proibidos de entrarem em estádios de futebol nenhum
foi proibido por ordem do IPDJ (CM, 01.04.2019, p. 36)… A segunda questão que
se coloca é: a preocupação será erradicar a violência no futebol, a violência
associada ao desporto (e não a “violência no desporto”), ou a preocupação será
a realização da final da Liga das Nações em Portugal entre os dias 5 e 9 de
junho de 2019, no Porto e em Guimarães?
Mas
regressemos ao cerne do tema! Será possível erradicar a violência do desporto e
erradicar a violência associada ao desporto? Já aqui demos uma primeira
resposta a esta interrogação no 7º artigo desta compilação, com o título “Da
violência”…
No
que se refere à primeira parte desta pergunta, a origem guerreira do desporto,
o carácter simbólico da morte em cada competição, e a agonística inerente ao
próprio desporto levam a que os praticantes por vezes utilizem uma violência
instrumental para atingirem os seus objectivos enquanto outras vezes, com o
calor da refrega, utilizem uma violência reactiva. O alcançar a vitória na
competição faz com que a violência instrumental faça parte da natureza humana.
Até porque “a ganância é inerente ao
homem”[39]. A
utilização da violência como reacção, uma resposta emocional a uma provocação, encontra-se
inscrita no código genético da humanidade. Como afirma Dolf Zillmann[40],
“não encontramos em nenhuma outra espécie
uma concepção inteiramente racional de estratégias de agressividade eficaz, nem
uma justificação moral da agressividade. Estas motivações distinguem-nos, pois,
dos outros animais.” E se, por um lado, a selecção natural da espécie
humana favoreceu a nível de grupo especialmente o altruísmo e a cooperação, por
outro lado a raiva, o ciúme e a vingança são emoções que “fazem parte dos programas instintivos já estabelecidos no hipotálamo e
noutros centros de controlo emocional dos nossos antepassados há dezenas de
milhões de anos”, na opinião do criador da sociobiologia, Edward O. Wilson[41].
Portanto,
parece-nos ser possível controlar-se (diminuir-se) tanto a violência
instrumental como a violência reactiva na prática desportiva, erradicar as
mesmas não!
Em
relação à segunda parte da mesma pergunta, quanto à violência associada ao
desporto, ela tanto pode ser diagnosticada em relação aos intervenientes
directos no espectáculo (jogadores, árbitros, treinadores, dirigentes) como em
relação aos espectadores – meros adeptos ou claques – ou ainda em relação às
forças de intervenção. E segundo Robert Sapolsky[42] “nós não odiamos a violência. Odiamos e tememos
o tipo errado de violência, aquela que ocorre no contexto errado. Porque a
violência no contexto certo é diferente.” Porque o contexto depende do
grupo em que o indivíduo se encontra inserido (simples adeptos, claque, stewards, grupo das forças da ordem) – e
o indivíduo age e reage sempre de uma maneira diferente quando inserido num
grupo como nos mostra a psicologia de massas –, depende do espaço (o campo de
jogo, as bancadas, a «gaiola», o espaço envolvente ao estádio) e depende também
do tipo de evento (um mero jogo, um derby
ou uma final). Resta saber quem define o contexto… Nós ou os outros? E quando
os outros somos nós?
Ainda
em relação à violência associada ao desporto, temos os exemplos da Inglaterra e
da Alemanha em que a redução de episódios violentos foi conquistada não só com
a aplicação de leis eficazes como com a colaboração entre as autoridades e
organizações de adeptos. No caso inglês com a Football Supporters Federation e
no caso alemão com a Unsere Kurve. E se na Suécia a Svenska Fotbollssupporterunionen (federação de adeptos) está ao mesmo nível das
autoridades – tanto governativas como futebolísticas – nas discussões sobre os
rumos a tomarem-se em relação ao futebol, em Portugal a Associação Portuguesa
de Defesa do Adepto para nada é tida ou achada. Somos lestos a copiar muito do
que de bom se faz lá fora… mas só em relação a alguns exemplos.
Se atentarmos no que nos diz Vargas Llosa[43], veremos que “nos nossos dias, os grandes jogos de futebol servem
acima de tudo, como os circos romanos, de pretexto e libertação do irracional,
de regressão do indivíduo a sua condição de parte da tribo, de peça gregária na
qual, amparado no anonimato da sua tribuna, o espectador dá rédea solta aos
seus instintos agressivos de rejeição do outro, de conquista e aniquilação
simbólicas (e às vezes até real) do adversário.” Nada mais do que «panem et
circenses»… Mas há outras varáveis que aqui poderemos – e teremos de –
contemplar: a «publicidade», os «mass media» e o próprio «espectáculo».
Panaceia, neta de Apolo, a deusa capaz de curar todos os
males e todas as enfermidades, não seria por acaso filha de Asclépio, o qual se
tornara deus da medicina. Também não será por acaso que o anúncio de uma
campanha de sensibilização que pretende “erradicar a violência do desporto” não
passe de mais uma panaceia quando se faz da publicidade a
estratégia-mor das políticas públicas…
11. Erradicar a violência do
desporto? (II)
29.04.2019
Arturo
Pérez-Reverte[44], no
diálogo entre Jaime Astarloa, o mestre de armas, e Marcelino Romero, o
professor de piano, mostra-nos as posições antagónicas de dois comuns mortais,
uma talvez mais utópica, outra talvez mais realista.
Aquele último declara:
– Sou contra qualquer tipo de violência, pessoal ou colectiva.
E o seu interlocutor contrapõe:
–
Pois eu não. Há nela tonalidades muito
subtis, garanto-lhe. Uma civilização que renuncia à possibilidade de recorrer à
violência nos seus pensamentos e acções destrói-se a si mesma. Transforma-se
num rebanho de carneiros a degolar pelo primeiro que passe. O mesmo acontece
aos homens.
A
etologia, a psicanálise, a sociologia, a psicologia social, a história e até a
filosofia mostram-nos que os comportamentos de violência são inerentes ao ser
humano… A evolução biológica não modelou por si só o homem: no campo da
ontogénese combinam-se três factores fundamentais – a estrutura genética, o
efeito social e a acção ou esforço pessoal; no campo da filogénese, o desaparecimento
dos instintos no ser humano só foi possível realizar-se porque existiu uma
compensação por parte de uma progressão paralela da tradição, da cultura, do
poder inventivo (conhecimento) do homem e porque a sociedade vai conservando o
saber adquirido… e tenta melhorar esse saber.
A
etologia mostra-nos que tanto o comportamento agressivo como o comportamento
altruísta foram pré-programados através de adaptações genéticas que se
processaram ao longo da filogénese da humanidade. Logo, não poderemos libertarmo-nos
de um ou de outro indiscriminadamente… António Damásio[45]
realça a dualidade cooperação-conflito ao afirmar que “as estratégias cooperativas fazem parte da composição biológica
homeostática dos seres humanos, o que significa que o embrião da resolução de
conflitos está presente nos grupos humanos, a par da tendência para conflitos.”
Yuval Harari[46] salienta
que a importância decisiva da cooperação a larga escala é provada à sociedade
pela História e que “o fator decisivo na
nossa conquista do mundo foi a capacidade de ligarmos o maior número de humanos
entre si.” Parece-nos assim justificar-se não ser com o incremento de novas
leis, o acrescentamento de sanções e de prémios ou o lançamento de campanhas de
sensibilização que se conseguirá «erradicar a violência do desporto». Até
porque para Damásio[47] “parece ser razoável pressupor que o
equilíbrio entre a cooperação salutar e a competição destrutiva depende, em
grande medida, da contenção civilizacional e da governação justa e democrática,
capaz de representar aqueles que estão a ser governados.”
Em
1982, a então Direcção-Geral dos Desportos lançava a «Desportos revista» (n.º
1, Jun/Jul) com carácter bimestral. Recordamo-nos da contra-capa dessa revista
onde se podia ver a silhueta de uma pomba em mancha branca estilizada segurando
nas patas uma bola com uma venda a toda a volta desta sobre um fundo
azul-claro. A legenda, em letras bem grandes, era «desporto sem violência».
Talvez uma das primeiras campanhas a serem lançadas sobre este tema…
Em
1991 foi comemorado o Ano da Ética Desportiva no nosso país.
A Comissão Europeia decidiu designar 2004
como o Ano Europeu para a Educação pelo Desporto.
A
Organização das Nações Unidas proclamou
2005 como o Ano Internacional do Desporto e da Educação Física.
Vinte
e um anos depois Portugal repete-se: 2012 acabou por ser o Ano Nacional da
Ética no Desporto.
De
todas estas campanhas, de todas estas comemorações, de todas estas
proclamações, o que resultou em termos de erradicação da violência associada ao
desporto? A resposta é «nada!». Mas só o é devido a quatro motivos (causas)
muito simples: 1º - a iliteracia sobre o assunto dos que estiveram à frente dos
destinos de todos esses eventos; 2º - o só se ter recorrido a uma tentativa de
manipulação dos consumidores do espectáculo desportivo em conluio com os mass media; 3º - o abandono de uma
análise consciente e de um espírito crítico por parte destas vítimas que se
traduziu no ignorar das mesmas; 4º - a falácia da ética no desporto.
Porque
eles desconheciam que no indivíduo mantém-se sempre “uma determinada disposição agressiva que mais facilmente virá ao de
cima numa oportunidade que se lhe ofereça, quanto mais longa for a
impossibilidade que tiver para se libertar” como nos mostra Eibl-Eibesfeldt[48].
Porque desconheciam que é impossível erradicar por completo a violência
associada ao desporto dado que, segundo este mesmo autor, “é possível uma redução de agressividade mas não a sua completa
eliminação. (…) Toda a subestimação da agressividade, com base na suposição de
ela poder ser aprendida, é da maior irresponsabilidade em face da evidência
presente.”
Os
que estiveram à frente dos destinos de todas essas campanhas, de todas essas
comemorações, olvidaram que a competição e a violência sempre acompanharam a
evolução filogénica da nossa espécie. E é preciso reconhecer, como nos diz
Castoriadis[49], “a importância dessas duas manifestações que
tanto a História como a experiência clínica confirmam quotidianamente: a
agressividade ilimitada dos seres humanos e a sua compulsividade repetitiva.”
Lopes
Marques, logo no primeiro editorial da revista acima referida, afirmava que “não há desportista ou atleta que não se
sinta um pouco técnico ou treinador, não há técnico ou treinador que não se
sinta um pouco dirigente, não há dirigente que não se sinta um pouco árbitro ou
jornalista, não há jornalista que não se sinta um pouco político, e,
finalmente, não há político que não se sinta um pouco desportista.” Ou
seja, todos nós desempenhamos diferentes papéis em contextos diferentes mesmo
que não tenhamos competências para isso. Isto acontece porque o ser humano tem
um pensamento associativo (relacionamos tudo com tudo, mesmo aquilo que não
dominamos), um pensamento generalista (tendemos imensa vezes a recorrer a um
defeito: a generalização), um pensamento categórico (utilizamos os nossos valores morais independentemente dos resultados)
e um pensamento determinista (todos os
factos são baseados em causas). Tudo se agrava quando disso não
temos consciência… e principalmente quando o sentimento e a paixão se sobrepõem
à razão.
Rui
Pereira, Professor de Direito e Presidente do Observatório de Segurança,
Criminalidade Organizada e Terrorismo em 2006 (CM, 08.01.2006, p. 12) declarava
que “nenhuma sociedade assegura a inexistência de quaisquer distúrbios e a
punição de todos os crimes. Por exemplo, o modo seguro de erradicar a violência
desportiva seria acabar com o próprio desporto.” Uma conclusão correcta mas
um raciocínio errado: o modo seguro de erradicar a violência na sociedade seria
acabar com a própria sociedade?
Não é possível erradicar a violência no desporto.
Isto porque, como referem Pires e Cunha[50],
a ética da competição desportiva vive na necessidade de gerir um paradoxo de
extraordinária complexidade: “se, por um
lado, a agressividade competitiva não pode disparar para níveis incontroláveis,
sob pena de o desporto deixar de ser uma atividade positiva do ponto de vista
educativo, económico, político e social, por outro lado, qualquer tentativa
para erradicar a agressividade subjacente ao jogo competitivo poderá deturpar a
essência da pratica desportiva enquanto espaço de confronto sem o qual o
desporto deixa de usufruir das condições da sua existência.”
Não é possível erradicar a violência associada ao
desporto. A ética – nomeadamente a ética desportiva – há muito que está
contaminada pela cultura, pelo negócio e pelo lucro. Talvez por isso mesmo
fosse conveniente saber-se quanto se vai gastar do erário público com a
campanha «Violência Zero» e que resultados produzirá a mesma. Talvez por isso
mesmo fosse conveniente os responsáveis por este país deixarem-se de discursos
de circunstância e de nos atirarem areia para os olhos (os nossos!). E que
ponham os olhos (os seus!) naquilo que se passou em Abril de 2019 no jogo NRD Ídolos da Praça – GD Alfarim, da AF Setúbal e no jogo FC Maia Lidador – EA Sporting, da AF
do Porto.
12. Semenya: o fim dos mitos do
desporto…
11.05.2019
Poderemos
sempre apresentar e discutir o desporto como uma actividade ligada a valores. Poderemos
sempre afirmar que o desporto é uma escola de virtudes e que ele contribui para
a formação do ser humano e para a sua transcendência. A utopia poderá e deverá
estar sempre presente no desporto mas temos de encarar a realidade presente no
mesmo. Que o desporto foi invadido pela mercantilização, já não temos dúvidas.
Que a expectativa de uma ética universal é uma aspiração do desporto que não
ocorre em outras áreas, como nos diz Andy Miah[51],
também já não nos deixa dúvidas. Mas quando essa ética é contaminada pelos
resultados do espectáculo (a todos os níveis) e pelo dinheiro o desporto muda
de figura.
Com
o caso Semenya assistimos ao princípio do fim de um mito do desporto: o da
igualdade de oportunidades dos desportistas.
De
facto, e já o salientámos aqui, o espaço onde desportista desenvolve as suas
actividades assim como as normas que regem as mesmas são comuns. E iguais! Mas
este mito, o mito da igualdade competitiva, ao criar entre nós uma crença fez
com que pudéssemos resolver as nossas próprias contradições: passámos a
justificar o «real» pelo «desejável». Para dar razão ao mito foram ignoradas
intencionalmente as desigualdades de condições individuais genéticas,
anatómicas, fisiológicas ou psíquicas dos desportistas, foram descartadas as
diferentes condições de treino (desde metodológicas a logísticas, desde os
recursos humanos até aos suportes económicos) e até olvidadas díspares
condições de participação no exacto momento.
Vamos
aos factos!
Facto
um – O organismo de Caster Semenya, a sul-africana duas vezes campeã olímpica
nos 800 metros, produz naturalmente testosterona acima do normal para uma
mulher, o que lhe dá uma vantagem competitiva em relação às suas adversárias.
Facto
dois – A International Association of Athletics Federations (IAAF) decidiu que todas as atletas com uma situação
hormonal idêntica teriam de se submeter a um tratamento médico para baixarem os
níveis de testosterona a fim de poderem competir.
Facto
três – Semenya, queixando-se de descriminação, recorreu ao Tribunal Arbitral do
Desporto (TAD) vendo a sua pretensão ser rejeitada.
Facto
quatro – A IAAF comunicou que “em
qualquer caso, é direito da atleta decidir (em consulta com sua equipa médica)
se deve ou não prosseguir com qualquer avaliação e/ou tratamento. Se ela decidir
não fazê-lo, ela não terá o direito de competir na classificação feminina de
qualquer Evento Restrito numa Competição Internacional. (vejam-se as cláusulas
2.5 e 2.6 dos Regulamentos). No entanto, ela ainda teria o direito de competir:
1 - na classificação feminina: a) em qualquer competição que não seja uma
Competição Internacional: em qualquer caso, sem restrição; e b) em Competições
Internacionais: em qualquer disciplina que não seja evento de pista entre 400
metros e uma milha; ou 2 - na classificação masculina: em qualquer competição
em qualquer nível, em qualquer disciplina, sem restrição; ou 3 - em qualquer
classificação 'intersex' (ou similar) que o organizador do evento possa
oferecer em qualquer competição em qualquer nível, em qualquer disciplina, sem
restrição.”
Facto
cinco – O Presidente da The World Medical Association, Dr. Leonid Eidelman,
respondendo a uma solicitação da South African Medical Association afirma: “Temos
fortes reservas quanto à validade ética desses regulamentos. Eles são baseados
em evidências fracas de um único estudo, o qual está a ser amplamente debatido
pela comunidade científica...” E ainda acrescenta: “Em
geral, é considerado antiético pelos médicos prescreverem tratamento para
testosterona endógena excessiva se a condição não for reconhecida como
patológica.”
Assim,
para além de nos parecer que existe uma discriminação em relação ao género,
parece-nos também haver uma clara violação do respeito pela dignidade da pessoa
humana, dignidade essa plasmada na Carta Olímpica. Parece-nos também haver um
forte agravo em relação ao direito à livre participação no desporto – também
contemplada na Carta Olímpica. O já referido Andy Miah[52],
conferencista em Mídia, Bioética e Cibercultura na Universidade de Paisley e
professor de Ética na Ciência e Medicina na Universidade de Glasgow, diz-nos
que “o argumento a respeito dos danos
minando a natureza do desporto afirma que algumas formas de melhora de
desempenho não são éticas porque negam uma característica essencial ou inerente
do desporto que lhe confere valor, a naturalidade.” Aqui está-se a incorrer
precisamente no retirar ao desporto essa naturalidade. E o mesmo autor confirma
que “seria injusto punir um indivíduo por
algo que ele não tem culpa. Da mesma maneira que não teria sentido
desqualificar um atleta naturalmente dotado da competição.” Nada mais
esclarecedor!
A
baixa frequência cardíaca em repouso de Miguel Induráin nunca foi obstáculo à
sua participação na Vuelta, no Tour ou no Giro. A elevada potência aeróbica de Carlos Lopes nunca foi
impeditiva para participar em Jogos Olímpicos ou em Mundiais de corta-mato. Yao
Ming, com 2,29 m de altura, sempre participou nos jogos da NBA. Será que Kyle
Korver, um californiano branco de olhos azuis (A Bola, 10.04.2019), será o
próximo a ser impedido de actuar na NBA porque na mesma militam 75% de
jogadores negros?
Por
que motivo penalizar Semenya?
Quando
o próprio Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas está contra esta
deliberação da IAAF, que conclusão poderemos tirar sobre os dirigentes desportivos
que assumiram esta posição?
Recorrendo
a Philippe Liotard[53],
sociólogo na Universidade Claude Bernard em Lyon e membro do Centro de Pesquisa
e Inovação sobre o Desporto, “a prática e
o espectáculo desportivos perpetuam o poder dos homens sobre as mulheres,
utilizando as próprias mulheres, que se envolvem, com toda a liberdade, em
atividades desportivas. A eficácia do processo de incorporação reside na sua
invisibilidade e na adesão das dominadas aos valores do sistema de dominação.”
Estaremos em presença precisamente de uma não adesão por parte de uma atleta
aos valores desse sistema…
É
portanto falacioso o argumento da «igualdade competitiva». É igualmente
falacioso afirmar-se que Semenya se encontra sujeita a um dilema ético entre essa
igualdade e a sua dignidade – e ela demonstra-o ao recorrer ao TAD, mesmo tendo
sido derrotada, e ao afirmar que não se vai retirar… mas que também não se medicará
(A Bola, 09.05.2019). O dilema ético não é de Semenya… o dilema ético foi da
IAAF.
13. Predadores(as) sexuais (I)
17.06.2019
Aos 17 anos, a 05.06.2019, Noa Pothoven morreu em sua casa em
Arnhem, depois de anos a lutar contra a depressão, a anorexia e o stress pós-traumático.
Transtornos provocados por violações de que foi vítima em criança. Apesar de
solicitada, a eutanásia não foi autorizada. Morreu, com acesso a cuidados
paliativos, depois de deixar de se alimentar e com a anuência tanto de médicos
como dos seus pais em não lhe ministrarem alimentos por via artificial. Segundo
a comunicação social, a jovem publicou o livro «Winnen of leren» (que ora é
apresentado como «Winning or losing» ora como «Winning or learning») em
novembro de 2018, onde relatou como “por
vergonha e medo” escondeu durante anos os abusos que sofreu. Nas suas
próprias palavras o seu objetivo era tornar público aquilo por que passou e
tentar quebrar o tabu em torno destas questões e dar apoio a jovens que
passavam por situações semelhantes. Uma morte que parece ter sido
consciente e bem ponderada e que, sem estarmos na posse de todos os dados, nos
parece enquadrada num suicídio de honra, o que nos aproxima da noção japonesa
de seppuku, dizendo-nos Maurice
Pinguet[54]
que “é bom e bonito aprender a vencer,
mas cedo ou tarde, em qualquer vida, por mais triunfante que o imaginemos, vem
o último momento: é preciso saber então ser vencido.
Catherine
Moyon de Baecque, abusada sexualmente pelos seus colegas masculinos da equipa
de França durante um estágio organizado pela Federação Francesa de Atletismo em
1991, também resolveu colocar em livro[55]
aquilo por que passou. Catherine relata no mesmo aquilo que sofreu, mas não só:
mostra como os responsáveis colocaram em
primeiro lugar o interesse das instituições, pois em vez de ajudarem a vítima
tentaram silenciá-la.
Uma
vintena de antigas alunas do treinador Régis de Camaret acusaram-no de
violação. Entre elas a antiga n°2 francesa, Isabelle Demongeot, que conta a sua
história no livro «Service volé»[56]. Nove
anos de abusos sexuais…
Ao contrário de Noa, Catherine, lançadora de martelo, e
Isabelle, tenista, não recorreram ao suicídio. Eventualmente, a prática do
desporto poderá ter tido aqui alguma influência… Ao ser inculcado ao praticante desportivo a ideia de esforço, de
sacrifício, a fim de se superar a si mesmo ele vai construindo o seu próprio
caminho… vai-se formando. A procura incessante da excelência, o culto do
corpo e da performance e, a superação
de si próprio, a tentativa de ultrapassar os limites são motivados pela crença
de que ser um «verdadeiro atleta» significa assumir riscos, fazer sacrifícios e
jogar o preço de ser tudo o que se pretende e poderá ser.
Habituados
a comportamentos de violência física no desporto, de violência verbal, de
violência psicológica e de violência gestual, normalmente descura-se a
violência sexual no mesmo. Ignora-se ou procura-se mesmo esconder…
Em
2009 realizou-se em França o “Étude des violences sexuelles dans le sport en
France : contextes de survenue et incidences psychologiques”[57] o
qual na altura mostrou muito do que não chega ao público nem faz notícia… e que
vale a pena consultar apesar dos seus já 10 anos!
Em
2012, a campeã americana de judo, Kayla Harrison, explicava ao New York Times[58],
precisamente antes dos J. O. de Londres, o que não era um segredo: “eu fui violada pelo meu primeiro treinador.
E isso é realmente a coisa mais difícil que eu tive que superar.”
O
poder e a dominação masculina, tanto de pares como de treinadores e até de
dirigentes serão as principais causas destes comportamentos de barbárie (veja-se
o artigo de Aline Flor[59]
intitulado “Reagiu ao assédio sexual e foi repreendida pela chefia. «Isto é um
mundo de homens»”). São casos de cultura, de educação, de respeito pelo ser
humano, já que “não é a fatalidade hereditária
que determina que os homens dominem as mulheres”, tal como nos diz Germano
da Fonseca Sacarrão[60].
Mas que não se pense que a violência sexual funciona só num sentido… ou que o
desporto é só uma escola de valores ou de virtudes…
O denominado «el mayor caso de pederastia de España»[61]
eclodiu precisamente no seio de uma modalidade que se apresenta como formadora
do carácter do indivíduo e detentora de inúmeros valores: o karate. Torres Baena, ex-campeão de
Espanha e presidente da «Federación Gran Canaria de Kárate» foi acusado de abusos a menores de 9 a 17 anos que se
prologaram durante mais de 20 anos num julgamento em que depuseram mais de 100
pessoas, 61 delas como vítimas. A 15 de Março de 2013 a «Audiencia de
Las Palmas» torna pública a sua sentença: 302 anos de prisão para Fernando
Torres Baena por se comportar como um predador sexual com os seus
alunos, 148 anos para María José González (companheira do anterior e
também treinadora) e 126 anos para Ivonne González (outra treinadora de
karate).
Será de admirar que exista violência
sexual numa actividade em que um atirador
tinha um botão instalado no punho da sua espada para fazer acender a luz do
marcador quando accionado (Boris
Onischenko nos J. O. de Montreal em 1976), em que um futebolista no
último jogo da sua carreira pela selecção do seu país agrediu um adversário com
uma cabeçada (Zidane na final do Mundial de 2006), em que o ginasta mais
medalhado de sempre afirmou que se habituou “a conseguir das mulheres aquilo que queria” (Vitaly Scherbo em
2010) ou em que uma ciclista é apanhada com um motor dissimulado na sua
bicicleta (Femke van den Driessche, no Mundial de sub-23 de Ciclocrosse de
2016)?
14. Predadores(as) sexuais (II)
03.07.2019
Em
Julho de 2017, o treinador de futsal Humberto Cunha foi condenado pelo tribunal
de S. João Novo, no Porto, a 10 anos de prisão por abusar sexualmente de quatro
menores. Em Dezembro desse mesmo ano na Polónia vieram a lume alguns casos de
abusos sexuais a várias ciclistas, sendo que algumas eram alegadamente menores.
A Confederação Brasileira de Basquetebol
em Cadeira de Rodas afastou em 2018 três atletas apuradas para a selecção
nacional - Lia Martins, Denise Eusébio e Geisa Vieira - por terem cometido um
suposto abuso sexual contra uma colega de equipa. O episódio teria ocorrido em fevereiro de 2017, e, de acordo
com o relato da vítima, após um treino da equipa Gladiadoras / Grupo de Ajuda
dos Amigos Deficientes de Indaiatuba, do interior de São Paulo, Lia, Denise,
Geisa e Gracielle Silva, então coordenadora do clube, usaram um pénis de
borracha para abusar sexualmente da colega, que foi retirada à força de sua
cadeira de rodas. O ataque foi registrado em imagens que circularam por grupos
de Whatsapp. Gracielle viria a cometer suicídio no final de maio de 2018.
Em
Janeiro de 2018 Larry Nassar, antigo médico da selecção de ginástica olímpica
dos Estados Unidos, de 54 anos, foi condenado a 175 anos de prisão por abusos sexuais cometidos contra jovens ginastas.
Barry Bennell, que treinou as equipas jovens do
Manchester City e do Stoke City, de 64 anos, foi condenado a 31 anos de prisão
por violação e abuso sexual de jovens jogadores em Liverpool, também na mesma
altura.
Em Março de 2018 o escândalo na Argentina: jovens das equipas
de formação do Independentiente prostituíam-se a troco de botas e de calções – seis indivíduos
identificados e um árbitro de futebol juntamente com o seu advogado detidos –
num caso que poderá ter afectado seis clubes da primeira divisão.
Em 2019, Khalida Popal, ex-capitã da selecção feminina afegã
de futebol, vem a terreiro reforçar aquilo que recai sobre Keramuddin Keram, o responsável
máximo do futebol no Afeganistão, acusado de ter violado e agredido várias
jogadoras da equipa feminina, e afirma que o escândalo envolve mais pessoas da
federação, incluindo treinadores.
Vitor
Rosa[62]
fala-nos das vulnerabilidades existentes no desporto, dizendo-nos que “a vulnerabilidade remete-nos para a
fragilidade da existência humana.” Mas esta vulnerabilidade também nos
remete exactamente para o lado contrário… o lado dos que se aproveitam dessa
vulnerabilidade. E aqui teremos de distinguir dois conceitos: «perversão» e «perversidade».
Ambos designam uma anomalia no comportamento, mas é preciso não os confundir
porque não têm o mesmo sentido: a perversão é um desvio comportamental de
carácter sexual. A perversidade é igualmente um desvio comportamental mas de
carácter mais intelectualizado: pressupõe um atropelamento dos valores morais e
define-se como uma prevaricação em relação a normas sociais estabelecidas. Esta
última é consciente e nela se incluem pelo menos a violência (física, gestual,
psicológica, verbal) na prática desportiva, a corrupção, a fraude, a utilização
de meios dopantes, o treino intensivo precoce (nome pomposo para camuflar a
exploração infantil) e a morbilidade entre outras. Temos estado a tratar de
perversões no desporto, mas quando Afonso de Melo e Rogério Azevedo[63]
afirmam que na antiga RDA, nos anos 80 e 90, imensas vezes foi injectada
determinada quantidade de hélio no intestino grosso de vários nadadores abordam
uma perversidade.
É
o desporto um campo propício às violências sexuais? Declaradamente sim! Tal
como muitas outras actividades embora isso não seja justificação para que elas
aconteçam.
A
relação treinador-desportista leva a uma submissão à autoridade que é
totalmente aceite e consciencializada pelos desportistas. Aquele que treina é o
que ensina, é o que faz progredir, é o que seleciona este ou aquele para
determinada competição… Entre pares, a dominação
masculina é um factor omnipresente – índice de uma cultura de virilidade
machista. Um(a) competidor(a) de alto
nível aprende a tentar superar (ou a controlar) a dor, quer seja física ou
psicológica. Uma vítima de violência sexual é capaz de “ignorar” a situação e
concentrar-se apenas nos seus objectivos desportivos fechando-se para não
comprometer os mesmos: se denuncia, a sua carreira estará acabada. Ou também
por medo, ou por vergonha…
No desporto existe uma relação muito específica com o corpo.
É óbvio que um(uma) treinador(a) terá um contato físico com seu(sua) atleta
para exemplificar as tarefas, para corrigir gestos ou posições, para
ajudá-lo(la) a alongar os músculos, avaliar o pulso, ver se ele(ela) solicita
bem cadeias musculares...
É óbvio, como nos diz Sidónio Serpa[64], que o facto de o desportista estar habituado a
correr riscos na sua prática desportiva lhe transmite uma sensação de
invencibilidade, dentro e fora do campo (daí os tantos casos de violação sexual
por parte de jogadores fora do contexto desportivo – referimo-nos apenas aos
condenados em tribunal, pois também há os absolvidos –, alguns dos quais ainda
andam pela justiça)… mas isso não
obriga o desporto – ou antes, qualquer um dos agentes desportivos – a ser
perverso… nem o autorizam! Isso não obriga, nem autoriza, qualquer agente
desportivo a ser um(uma) predador(a) sexual!
Vítor Rosa, no artigo citado, propõe que o Governo Português,
através do Instituto Português do Desporto e Juventude, promova um inquérito
nacional sobre os abusos sexuais no meio desportivo… talvez seja mais de propor
que o mesmo seja desenvolvido pela Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no
Desporto… pois não interessa só conhecer a situação mas
essencialmente instalarem-se medidas de prevenção.
Será assim tão vasta a predominância de comportamentos de
violência sexual envolvendo agentes desportivos que justifique esse
investimento? Na falta de estudos, não sabemos se é vasta ou não, mas o
investimento justifica-se nem que seja só para se evitar mais um caso.
Necessitamos desses estudos “para
explicar essas realidades, há muito ocultadas ou subestimadas por agentes
desportivos, não como «abusos lamentáveis» ou «excessos deploráveis», mas como
as próprias consequências da competição desportiva globalizada” como nos
diz Jean-Marie Brohm[65].
Sim, porque como disse Jacques Personne[66]
em 1991 (repare-se que já lá vão 28 anos), nenhuma medalha vale a saúde de uma
criança. E não vale a saúde nem física nem psíquica.
15. O espectáculo - a variável
esquecida (I)
24.07.2019
O desporto apresenta-nos situações motoras competitivas com competições
escalonadas a todos os níveis (escalões etários, género, etc.) e de diversas
formas (consoante as modalidades), e é
uma actividade codificada possuindo regras e regulamentos que se
consubstanciam num sistema
institucionalizado organizado em torno de clubes, de associações e de
federações (desde as nacionais às internacionais). É uma actividade apoiada em
gestão de organizações, em planificações, em metodologias de treino, em
estratégias, em tácticas e em técnicas onde o indivíduo (ou o colectivo a que
pertence) se procura transcender alcançando a excelência.
Mas esta excelência – «areté» no tempo dos gregos e «virtus»
no tempo dos romanos – sempre foi obrigada a ser do domínio público, onde o
indivíduo (ou a equipa) pode sobressair e distinguir-se dos outros. Como refere
Hannah Arendt[67],
“para a excelência, por definição, há
sempre a necessidade da presença dos outros, e essa presença requer um público
formal”, pelo que o desporto só é desporto quando existe o espectáculo.
Se
admitirmos que a génese do desporto se encontra na caça – o Australopithecus
africanus já era caçador e poderá ter usado paus e ossos como armas,
enquanto o Homo neanderthalensis era um hábil caçador e já caçava animais de manadas –, verificamos que “a caça apela para a cooperação, desde a
organização da expedição até à captura da caça, sem omitir a divisão das
tarefas antes e depois da captura. Por outro lado, o trabalho do indivíduo
depende em cada instante do dos companheiros” como nos diz Serge Moscovici[68],
o que pressupõe a utilização de estratégias de conjunto, pelo que constatamos que
nesta se encontram todas as variáveis que pertencem ao desporto. É a caça a
primeira actividade do homem onde surge a existência de um enquadramento com
vista à adopção de estratégias de conjunto a fim de se tomarem as melhores
decisões em relação ao fim em vista – “a
caça engloba uma cadeia complexa de acções preparadas, organizadas, colectivas,
um equipamento intelectual e técnico exigindo uma formação prévia dos
indivíduos” (id.).
E é ao começar a utilizar armadilhas na caça que o
homem começa a planificar e a desenvolver técnicas e tácticas mais complexas
tendo de se preparar antecipadamente para as aplicar – “a caça por meio de armadilhas e as técnicas anexas incluem o ataque e a
defesa numa única acção” (id.) –
e passa do fabrico do utensílio individual para o fabrico do utensílio
colectivo (a corda, a rede, a fossa ou as estacas para capturarem o animal). “O conteúdo técnico e intelectual da caça por
meio de armadilhas testemunha o facto de a caça ser autodomínio, resistência,
mas sobretudo astúcia” (id.) – e
é precisamente este último aspecto que é importante como mais-valia dos povos
caçadores, pois “transforma uma posição
de fraqueza numa posição de força e acrescenta ao aparente, o dado, a dimensão
do simulado e do construído” (id.).
Haveria outros elementos da tribo que, ao não
participarem na caça, reservavam para si um papel de observadores ou de
espectadores? Não o sabemos de fonte certa, mas a resposta provável será a
positiva, pois sabemos que o espectador nasceu no momento em que o homem
pré-histórico colocou na parede da caverna as impressões positivas e negativas
das suas mãos, conforme defende Marie-José Mondzain[69]. E se, por exemplo, as pinturas rupestres de mãos humanas nas grutas de
Chauvet possuem uma idade de cerca de 30 mil anos, elas são precisamente
de uma época em que os humanos eram caçadores-recolectores… A representação de
cenas de caça em grutas pré-históricas podem indiciar-nos um duplo espectador:
o que assistia à caçada e que admirava posteriormente a sua própria obra de
arte.
Actualmente o desporto não subsiste sem o espectáculo e, consequentemente, sem o espectador, coloque-se este no estádio, no pavilhão, na mesa do café ou no conforto do seu sofá. Muitas têm sido as variáveis estudadas no desporto, no entanto parece-nos que o espectáculo tem sido a variável esquecida.
16. O espectáculo - a variável
esquecida (II)
05.08.2019
Peter McIntosh[70]
foi talvez dos primeiros a equacionar os motivos da existência do espectáculo
desportivo ao afirmar que “não há nada de
novo no facto de competidores, treinadores, promotores e aqueles que prestam
serviços auxiliares, ganharem dinheiro no desporto. Com raras excepções, o
dinheiro ganho vem, em última instância, do espectador.” Mas esta era uma
análise de 1963, completamente diferente da realidade actual. Fazendo uma
retrospectiva histórica, este autor diz-nos que foi por volta de 1880 que
várias modalidades desportivas passaram a poder “lucrar com as entradas do público urbano” e que as mesmas,
inclusivamente o futebol e o críquete, tornaram-se “indústrias e se juntaram aos desportos já comercializados, se não
industrializados, tais como a corrida de cavalos e o boxe.”
Reservemos para um pouco mais à frente o facto de
McIntosh referir que quando William MacGregor fundou a Football League em 1888
o objectivo deste era poder proporcionar às pessoas um entretenimento regular
semelhante ao proporcionado pelo teatro e que à data da sua obra, na Inglaterra
o críquete e o futebol eram tanto desportos como indústrias de entretenimento e
floresciam, assim como o facto de logo no ano seguinte Georges Magnane[71]
ter feito uma destrinça entre estes dois espectáculos e os seus públicos:
enquanto o teatro, e mais ainda o cinema, isolavam o espectador, o espetáculo
desportivo incidia principalmente no ambiente colectivo.
E é preciso esperarmos vinte e três anos para
aparecerem duas obras abordando o tema em questão: «The Quest for Excitement»[72]
de Norbert Elias e Eric Dunning e «Sports Spectators»[73]
de Allen Guttmann.
Elias e Dunning colocam a génese do desporto moderno
no século XVIII, na caça à raposa típica da Inglaterra na época vitoriana. Se
por um lado era proibido aos caçadores caçar outros animais, não havendo
contrapartidas para eles, por outro lado era proibido aos caçadores matar a raposa,
pelo que o único objectivo desta actividade era o prazer obtido pela
participação na caçada. “Talvez a sua
característica principal fosse a tensão-excitação de um combate simulado que
envolvia esforço físico e o divertimento que este oferecia aos seres humanos
como participantes ou espectadores.”
Para estes dois autores a passagem dos passatempos a
desportos é um exemplo do avanço da civilização, avanço esse que progride
através de um «processo» não planeado orientado pela estrutura social das
configurações mas que é simultaneamente transformado por elas e em parte provém
de um aumento da pressão sobre as pessoas para exercerem um autocontrolo
próprio. Quando esse autocontrolo é inexistente por «moto próprio» a sociedade
constrói as suas próprias regras. Na maioria dos confrontos desportivos as
regras existem para manter essas práticas sob controlo. Ambos nos falam em
confrontos altamente regulamentados, exigindo esforços físicos e competência
técnica, caracterizados na sua forma de espectáculo como «desporto» e referem
que “o termo desporto nunca esteve
confinado apenas ao participante isolado: inclui sempre confrontos realizados
para satisfação dos espectadores, e o esforço físico principal tanto podia ser
dos animais como dos seres humanos.”
Na obra referida estes autores também separam o
comportamento dos públicos do teatro e do desporto – neste caso os espectadores
procuram alcançar uma excitação-tensão controlada. “Pode afirmar-se (…) que o futebol, como outras modalidades de desportos
de lazer, se apoia no equilíbrio precário entre o enfado e a violência. O drama
de um bom jogo de futebol, segundo a forma através da qual se manifesta, possui
qualquer coisa de comum com uma boa peça teatral. Aí também é construída
durante algum tempo uma agradável tensão mimética, talvez a excitação,
orientada para o clímax e, deste modo, para a resolução da tensão. Porém, uma
peça teatral é, em muitos casos, o resultado do trabalho delineado por uma
determinada pessoa, enquanto muitas formas de desporto atingiram a maturidade
no decurso de um desenvolvimento social não planeado.” Aqui se nota uma
diferença em relação à opinião de McIntosh acima apresentada e mais coincidente
com a de Magnane, também supra.
Ainda segundo os mesmos[74],
“dentro de certos limites, um tipo de
realização desportiva pode conservar as suas funções como ocupação de lazer:
quando assume a qualidade de desporto espectáculo. Considerado nesta
perspectiva, o desporto pode resultar numa agradável excitação mimética, que é
susceptível de contrabalançar as tensões, normalmente desagradáveis, das
pressões derivadas do stress inerente às sociedades, proporcionando uma forma
de restauração de energias.”
Assim, para estes dois sociólogos (Elias &
Dunning), o espetáculo desportivo surge para controlar comportamentos
(poderemos falar de um superego social?) e apresenta até a possibilidade de
catarse – “a peça fulcral da configuração
de um grupo envolvido no desporto é, sempre, a simulação de um confronto, com
as tensões por ela produzidas controladas, e, no final, com a catarse, a
libertação de tensão.”
Guttmann[75]
numa perspectiva mais histórica revela-nos que no tempo dos gladiadores, na
época romana, a maioria dos espectadores pagavam os seus lugares enquanto os
mais pobres, os plebeus, tinham bilhetes grátis (por aqui se vê que já naquela
altura esta seria uma forma ardilosa de se garantir a enchente do Coliseu). E
considera que os jogos de gladiadores “eram
verdeiros desportos, no sentido estrito apenas para aqueles que, provavelmente
uma minoria, se ofereciam, aqueles que eram atraídos pelo risco envolvido, pelo
puro amor ao combate mortal.” Os que tinham de combater sob coacção, os
escravos, para Guttmann já não entram nesta categoria…
E a grande questão que este autor nos coloca,
situando-a no seu tempo, é a seguinte: “Será
que John McEnroe e Martina Navratilova ainda jogam tanto pelo amor ao jogo como
por recompensas pecuniárias?”
17. O espectáculo - a variável
esquecida (III)
05.08.2019
A constituição do fenómeno desportivo, na sua
origem, residiu no ócio, no lazer. A sua demanda pelo associativismo, até
chegar ao profissionalismo, provocou o negócio. E o negócio não funciona sem o
espectáculo. A evolução das diferentes modalidades desportivas e do sistema
desportivo, a emergência de novos modelos, a entronização dos heróis e as suas
sucessivas hierarquias, assim como a sucessão rápida de eventos desportivos e a
criação de outros novos, devem fazer-nos reflectir sobre um desporto onde cada
vez mais há esse espectáculo e cada vez menos formação, mais negócio e menos
jogo, mais elitismo e menos participação.
Paul Yonnet[76]
realça a necessidade fundamental para o desporto-espectáculo de duas
componentes – a incerteza e a identificação. Duas componentes que não estão
presentes no espectáculo cultural. E, contrariamente a algumas posições aqui
apresentadas no artigo anterior, diz-nos que “a violência das identificações no desporto-espectáculo não é catártica,
é aditiva.”
Sendo a competição uma das características
fundamentais do desporto-espectáculo, Paul Yonnet[77]
já nos tinha alertado anteriormente para a existência de dois tipos de
competição no momento dos grandes eventos desportivos: a primeira, uma
competição mensurável, regulamentada, e que é o objecto de um resultado técnico
visível e de prémios e recompensas; a segunda, uma competição não regulamentada
em que o objectivo é o reconhecimento público. Entra-se assim na ordem dos
afectos realçando Yonnet (id.) que “ser conhecido não é o suficiente, é preciso
ser amado, admirado, profundamente, colectivamente.” Mas que não se pense que este segundo tipo de competição é
gratuito pois estão-lhe associados os contratos financeiros, os direitos de imagem,
a publicidade.
Uma questão é fundamental: para que serve o
desporto-espectáculo? O leigo responder-nos-á: para nos entretermos e nos
divertirmos (ócio). Um especialista responder-nos-á: para vender produtos
(negócio). Ora, teremos de estar cientes de que o entretenimento não produz
conhecimento como refere Byung-Chul Han[78] e de que o negócio não gera nem bens
nem obras, não cria riqueza, apenas a movimenta em determinados sentidos.
O
desporto actual já não é o deportatre latino e nele estão presentes as
situações mais exemplares mas também as mais ignóbeis, as mais perversas.
Preocupante é o facto de nele a vitória e a acumulação de riqueza terem talvez
actualmente o mais importante papel. Preocupante é já não ser tanto o
«interessa participar»...
18. O espectáculo - a variável
esquecida (IV)
22.10.2019
É com base nesta variável esquecida – o espectáculo
– que deveremos compreender o desporto com olhos de ver inserindo-a num sistema
muito poucas vezes abordado mas que permite compreendermos melhor a sua função.
Se a mais antiga referência escrita sobre uma competição data
de 776 a.C., quer se desenrolasse no ginásio, na palestra, no estádio ou no
hipódromo, em Olímpia, a mesma já implicava a presença de espectadores. Se o desporto sem competição não é desporto, também
poderemos afirmar que o desporto sem espectáculo não é desporto. Este
espectáculo evoluiu ao longo dos séculos e hoje já não é aquele que se
encontrava presente na Grécia Antiga, na época vitoriana ou na modernidade. Em
qualquer uma das épocas históricas o homem teve as suas manifestações
corporais, atléticas e desportivas utilizadas para outros fins que não a prática
ou a competição em si.
Actualmente
verificamos a existência de um fosso enorme entre a prática antiga e o desporto
pós-moderno, ao mesmo tempo que constatamos também a existência hoje em dia de
um outro fosso entre os ideais proclamados pelo desporto e a realidade
quotidiana que apresenta no espectáculo a sua face visível.
Atribuem-se
ao desporto finalidades de grandes dimensões (valores) que não correspondem em
nada à prática que é realizada quotidianamente mas que está inserida num meio
determinado pela mercantilização num sistema capitalista.
O desporto apresenta-nos um marketing com linguagens de sedução e uma publicidade com imagens
de tentação porque… o espectáculo desportivo é negócio. Não só o negócio da
venda de bilhetes, de lugares cativos, de venda de camisolas e cachecóis, dos
direitos televisivos, da transferência de jogadores, do
naming dos estádios… Repare-se que no futebol já tivemos a
Liga Sagres e a Liga Vitalis, a Liga Zon Sagres e a Liga Orangina, a Liga CTT,
NOS ou MEO, a cerveja oficial do râguebi português – a Super Bock – patrocinou
a selecção nacional designando-a por All-Bocks,
enquanto o futebol se fica pela Sagres... e pela «fome de vencer» de um grande
grupo económico onde efectuamos compras todos os dias.
Temos
as antevisões dos jogos na televisão, as entrevistas pré e pós desafios de
futebol em que se exprimem dirigentes e jogadores, muitos sem nada dizerem de
proveitoso… Estas entrevistas em directo são obrigatórias antes e depois das
transmissões dos eventos porque não se podem realizar sem apresentar alguém
(dirigente, treinador ou jogador/atleta), embora o mais importante não seja
esse alguém ou o que diz mas sim o que se encontra por detrás dele – o painel
publicitário que subliminarmente faz entrar no espírito dos telespectadores
dúzias e dúzias de logotipos e marcas. E aqui reside o grande cerne da questão:
o espectáculo desportivo é necessário para nos levar a consumir os produtos
cujas imagens são veiculadas nos painéis que circundam o campo, nos outdoors, nos painéis por detrás dos
pódios, nas costas das camisolas… tudo isso porque conscientemente não damos
conta mas o nosso cérebro capta e regista.
Graças
a quem? Graças ao desportista – ao seu corpo e também à sua mente. Abusa-se da
saúde do desportista e molda-se, formata-se, a sua mentalidade. Resumindo:
manipula-se o ser humano. Sempre com o objectivo do dinheiro. Ou de alguns
minutos em que o humano se transforma em deus – mas sempre servindo alguém, em
nome de uma imagem, em nome de uma marca, em nome de um logotipo.
Tudo isto é depois repetido até à exaustão,
expandido, mais que divulgado (sempre com as tais imagens subliminares) em três
ou quatro canais em horário nobre por pessoas que pouco ou nada pensam sobre
desporto (o que é diferente de pouco ou nada sabem de desporto). A imprensa
escrita colabora igualmente sob a forma de imagens, não havendo notícia que não
tenha a sua.
O espectáculo é um factor tão interveniente no
próprio terreno de jogo que numa partida de futebol realizada à porta fechada
há uns anos e posteriormente transmitida pela televisão mostrava-nos que quando
um golo era marcado nem os próprio jogadores festejavam.
Actualmente o espectáculo desportivo não pretende
regularizar os comportamentos em sociedade pois a teoria da válvula de escape e
a teoria catártica encontram-se realmente em desuso (comprovado já por estudos
científicos)… Governantes, executivos, decisores e dirigentes desportivos
apresentam uma maior preocupação com o direito como
sendo a forma específica mais importante e eficaz para o controle social nas
sociedades. O aumento progressivo de leis, de regulamentações, de sanções, de
comissões de estudo, análise e/ou prevenção assim o demonstram…
Jean-Marie Brohm[79],
para quem o desporto é um sub-sistema do sistema capitalista, mostra-nos que a
história do desporto se inscreve totalmente no desenvolvimento do capitalismo e
afirma mesmo que, sendo o espectáculo desportivo o ópio do povo, “o ópio é não somente a ilusão da comunidade,
mas sobretudo a comunidade da ilusão.”
Num artigo de 2013[80],
intitulado “Le spectacle sportif, une aliénation de masse”, este sociólogo
apresenta o desporto actual como sendo a principal indústria do entretenimento
e simultaneamente uma economia política real da cretinização das massas, defendendo
que uma outra mistificação, ainda mais escandalosa, é a que sugere que o
desporto é um factor de cidadania, de aproximação, de harmonia civil.
A sua pretensão é “a desconstrução do mito idealista do desporto «velho como o mundo» (dos
gregos aos nossos dias)”[81].
A teoria crítica do desporto de Brohm mostra-nos que “o espectáculo desportivo que os seus fanáticos apresentam sempre como
uma «festa», uma fonte de «felicidade», uma oportunidade de «sonhar» ou uma
«comunhão popular» é de facto - e muito mais prosaicamente - um enorme
empreendimento de despolitização e de desapropriação de si no seio de
identificações «fictícias» para com vedetas «míticas», para com dream teams
«excepcionais» ou para com «equipas emblemáticas». O espetáculo desportivo não é
mais do que um caso particular dessa alienação coletiva no consumo excessivo de
imagens, de shows, de slogans, de gadgets e de mercadorias. (…) A
mercantilização generalizada da devoção pelas estrelas das pistas e estádios
(posters, maillots e outros produtos derivados), a representação televisa
incessante de seus confrontos, ambições e decepções, a exibição de suas
fortunas e suas infidelidades conjugais, o interminável voyeurismo desportivo
tornam-se o conteúdo ideológico mediaticamente supervalorizado que suplanta
todas as outras preocupações; o vazio, o efémero, o fútil e o grotesco, o
trivial e o banal constituem então a própria realidade da uma falsa
consciência. ”
Urge tomarmos consciência para que, na realidade,
serve o espectáculo desportivo e quais as suas funções. Talvez então, a partir
daí, a realidade na nossa consciência seja outra.
19. Os mass media e a falácia dos recordes
04.11.2019
Os
que já passaram a barreira dos 60, e principalmente aqueles que passaram a dos
70, foram criados (educados) a olharem para o desporto como uma entidade
mensurável através de medidas de comprimento, medidas de tempo ou medidas de
peso.
Foi
provavelmente a partir de 1969, com o milésimo golo de Pelé, que tudo no
desporto passou a ser medido e quantificado de modo diferente. Nisso tiveram os
mass media o seu papel, nomeadamente
em relação à falácia dos recordes.
Para
se realçar a queda de um «recorde» os media
salientaram que as sete medalhas de ouro de Mark Spitz em Munique (1972) foram
destronadas pelas oito de Michael Phelps em Pequim (2008) – variável “J. O.” e
variável “ouro”. Os media proclamaram
mais um «recorde» batido por Simone Biles com 25 medalhas em detrimento das 23
de Vitaly Scherbo em mundiais de ginástica – variáveis “mundiais” e “ouro, prata
e bronze”… Mas se recorrermos às variáveis “J. O.” e “ouro” verificaremos que
Scherbo possui seis medalhas de ouro e Biles quatro…
Se
a variável for o número de cartões vermelhos no futebol por jogador Vinnie
Jones é um recordista: mais cartões na Premier League em 1995/96 e 1996/97;
mais cartões na qualificação para o Europeu de 1996. Se a variável passar a ser
o número de cartões amarelos Vinnie Jones continua a ser recordista: mais
cartões na Liga Inglesa de 1992/93. Com outras variáveis (ano e clube), Roy
Keane, do Manchester United, em 2004 possuía o «recorde» dos cartões vermelhos
ao serviço de um clube inglês. Mas se se introduzir aqui a variável «tempo»,
Vinnie Jones também detém o «recorde» do cartão amarelo mais rápido de sempre
na história do futebol aos 3 segundos de jogo. Mudando uma vez mais de
variáveis, a mais rápida apresentação de um cartão vermelho num Mundial de
futebol foi feita ao uruguaio José Batista, expulso aos 55 segundos no jogo
contra a Escócia, no México em 1986.
Se
os mass media foram buscar as 69 pole positions de Lewis Hamilton para
mostrarem que este bateu o «recorde» de Schumacher em Setembro de 2017, também
foram buscar o «recorde» de Ayrton Senna em relação a pole positions consecutivas: oito.
Correndo
atrás da variável «velocidade», os media
apresentaram-nos o «recorde» de serviço mais rápido no ténis (Samuel Groth, em
Busan, na Coreia do Sul, serviu a 263Km/h, em 2012) tal como nos mostraram o
«recorde» da velocidade máxima na Fórmula Um (Juan Pablo Montoya, 372,6Km/h, no
Circuito de Monza, em 2005). E é também através dos media que ficamos a saber que o turco Hakan Sukur tem o «recorde»
do golo mais rápido em mundiais de futebol (aos 11 segundos no jogo de
atribuição do terceiro e quarto lugar no Mundial de 2002) e que o «recorde» do
KO mais rápido do pugilismo – aos 55 segundos de combate – pertence a James
Jackson Jeffries e remonta a 1900, sendo secundado por Myke Tyson que em 2000
demorou apenas 58 segundos para atirar ao tapete Julius Francis…
Pinto
da Costa, presidente do Porto, ao fazer 80 anos em Dezembro de 2017, é o
dirigente com mais títulos de futebol no mundo e o que mais tempo possui à
frente de um clube (58 troféus, 35 anos de presidência). Nesse mesmo ano o
uruguaio Sebastián 'Loco' Abreu assinou nesse mesmo mês pelo 26.º clube da sua
carreira – o Audax Italiano, da 1ª divisão do Chile –, um novo «recorde»
mundial…
Roger
Federer era o mais velho de sempre no primeiro lugar do ranking de ténis no
início de 2018 a meio ano de completar os 37 anos, ano em que Cristiano Ronaldo
alcançou 100 golos nas provas de clubes da UEFA, mais jogos em fases finais dos
Euros (21) e melhor marcador de sempre de todas as competições da UEFA (132
golos)…
Na
1ª Taça da Liga das Nações, em 2019, Rui Patrício atingiu as 81
internacionalizações na baliza da selecção nacional à frente de Vítor Baía (80)
e Ricardo (70): mais um «recorde» glorificado pelos mass media.
Verificamos
assim que a falácia dos recordes é uma constante nos mass media, pois bastará somente escolher os parâmetros, uma ou outra
variável, e poderemos obter «recordes» de todo e qualquer feitio: o «recorde»
de espectadores, de países participantes num evento, de encontros vitoriosos
consecutivos, do participante mais velho ou mais novo, do maior número de
minutos imbatível e até o «recorde» do primeiro homem com três medalhas num só
dia (o norte-americano Caeleb Dressel nos mundiais de natação de 2017, em
Budapeste).
Manuel
Sérgio[82] disse-nos
que “raro é que a retórica dos críticos e
comentaristas não atraiçoe a verdade vivida, hipervalorizando o tratamento
quantitativo (que pode ser medido, testado, verificado, experimentado) e
resistindo ao tratamento qualitativo, onde a experiência e a compreensão
predominam. É, por natureza, uma arte presunçosa, intrometida e falseadora
confundir sempre o mais relevante com o mais mensurável.”
Vejamos
dois exemplos próximos no tempo!
O
«Record» de 25.10.2019, na página 43 apresenta o título: “Erling Haland supera
as marcas de CR7 e Messi”. Recorrendo aos jogos da Liga dos Campeões, Haland em
apenas 3 jogos chegou aos 6 golos… Messi demorou 17 jogos e CR7 precisou de 32.
Repare-se como se conseguem manobrar os números… Mas vai-se ainda mais longe
quando se diz que Haland em 10 remates marcou esses 6 golos tendo 60% de
eficácia. Sem dúvida que começamos a assistir à construção de uma nova vedeta
por parte dos media.
Três
dias depois, na página 48, o mesmo jornal titula: “Roger Federer a meia dúzia
de Connors”. Federer tem 103 títulos singulares, Connors 109. Salienta-se neste
artigo que Federer tem 4 títulos este ano (já nova variável) tal como Djokovic,
Nadal e Medvedev embora Dominic Thiem tenha 5. A seguir destaca-se que Federer
“é ainda o primeiro tenista a chegar a
pelo menos dez títulos em dois torneios de superfícies diferentes. Nadal, por
exemplo, ganhou dez ou mais títulos em três torneios diferentes (Roland Garros,
Monte Carlo e Barcelona), mas todos em terra batida.” Atente-se mais uma
vez na mudança de variáveis… Consoante o que se pretende realçar, assim se
escolhem os parâmetros.
Tudo
é quantificável no desporto. Tudo pode ser apresentado como «recorde» desde que
se escolham as variáveis que interessam para tal… A quantificação da qualidade
contribui, segundo Roland Barthes[83],
para a criação do mito: quando se reduz toda a qualidade a uma quantidade “o mito faz uma economia de inteligência: ele
compreende o real com menos custo.” E quando o real possui um custo menor
nem sequer damos conta que estamos a ser manipulados…
20. Consumir desporto
29.11.2019
O Total Sportek – um site que cobre e fornece links de
transmissão ao vivo gratuitos e informações sobre partidas para alguns dos
maiores eventos esportivos ao vivo que geralmente são transmitidos pela Sky Sports
e BT Sport – publicou um estudo que apresenta “os 25 desportos mais populares
do Mundo”[84].
Para tal foram selecionados treze parâmetros sob os quais
foram analisadas várias modalidades:
o
Audiências globais e público-alvo
o
Números de audiência televisivos
o
Número de ligas profissionais em todo o
mundo
o
Valores de direitos televisivos
o
Valores de contratos de patrocínios
o
Salário médio de atletas na liga
principal
o
Maior competição e número de países
representados
o
Presença nas redes sociais
o
Destaque nos meios de comunicação
(sites, TV)
o
Relevância ao longo do ano
o
Domínio regional
o Igualdade de gênero
Acessibilidade ao público em geral em todo o mundo
Não é o resultado deste estudo que nos preocupa – o
qual será facilmente consultado na internet
– mas sim os critérios adoptados para se procurar o resultado investigado. São
parâmetros de pendor declaradamente económico, com base na apresentação de um
produto como espectáculo. Um espectáculo que depende essencialmente de
dinheiro. De dinheiro da televisão, de dinheiro dos patrocinadores, de dinheiro
do merchandising, de dinheiro da
publicidade e, em última instância, de dinheiro do consumidor.
Não se atendeu aos critérios “maior número de
praticantes por modalidade” ou “modalidade que mais valores fomenta” por
exemplo. As vertentes social e cultural são minimamente tidas em conta.
Se dúvidas ainda haveria sobre o negócio existente à
volta de toda e qualquer modalidade, a escolha destes parâmetros eliminam-nas.
Já não são a vitória e o recorde as
principais especificidades do desporto pós-moderno, mas sim o lucro…
Facto
que é demonstrado por um simples exemplo: logo após os Jogos Olímpicos de
Inverno em 2018, onde 2 atletas «limpos» da Rússia, a competirem sob a bandeira
do COI, foram apanhados nas malhas do doping, um entendimento entre Thomas
Bach, presidente do COI, e Igor Levitin, ex-ministro dos Transportes e
representante de Putin na Coreia do Sul, revelou o seguinte: Moscovo pagou a
quantia de 15 milhões de dólares a título de contributo para a luta contra o
doping e retirou o recurso apresentado no TAS relativamente ao levantador de
pesos Alexander Krushelnitsky, que teve de devolver a medalha de bronze… e a
Rússia foi readmitida pelo COI nos Jogos Olímpicos! Vão-se os valores, fique o d’argent!
Num
país – o nosso país – com mais espectadores (incluindo telespectadores) que
praticantes desportivos na base, o consumismo impera. E isto verifica-se porque
o espectador continua atrás do golo, continua atrás do recorde, continua a
perseguir o herói e continua atrás da exaltação.
Mas
isto acontece porque o consumidor o procura ou porque lhe é oferecido?
21. Discursos sobre o desporto (I)
23.01.2020
Assistimos
nos dias de hoje a vários discursos sobre o desporto consoante a sua
proveniência. Mas estes discursos, venham de onde vierem, acabaram por se
banalizar. E talvez a maior banalização a que assistimos é aquela que confere
ao desporto um carácter formativo e educativo, impregnada de valores morais e
éticos… produto de crenças que se encontram enraizadas na nossa sociedade.
Poderemos apontar essencialmente
para a constatação quatro tipos fundamentais de discurso sobre o desporto:
1 – o discurso dos investigadores
e especialistas em Ciências do Desporto;
2 – o discurso dos intervenientes
directos no próprio sistema desportivo (os agentes desportivos – principalmente
treinadores e jogadores);
3 – o discurso dos consumidores do
espectáculo desportivo e dos receptores daquilo que é divulgado nos mass media desportivos;
4
– e, por fim, o próprio discurso destes últimos.
Os
especialistas em Ciências do Desporto procuram causas do fenómeno – e dos
fenómenos – desportivo, procuram explicações para o mesmo assim como tentam
também elaborar prescrições no seu âmbito. São especialistas desde a Psicologia
do Desporto à Metodologia de Treino, desde a Gestão Desportiva ao Alto
Rendimento, desde a Sociologia do Desporto à Nutrição, desde a Pedagogia do
Desporto à Ergonomia, desde a Traumatologia à Gestão da Formação Desportiva,
desde a Ética Desportiva à Medicina Desportiva ou ao Direito do Desporto.
Investigam,
procuram analisar, descrever e compreender as várias componentes do desporto,
tentando por vezes também, dependendo das variáveis consideradas, predizer e
até controlar algumas das mesmas, fundamentando as suas conclusões. Investigam,
procuram analisar, descrever e compreender o desporto na sua totalidade. Também
aqui tanto encontramos a raposa como o ouriço de Arquíloco (século VII a. C.): "a raposa sabe muitas
coisas, mas o ouriço sabe uma coisa importante". Uns vêem a árvore,
outros vêem a floresta. Difícil é ver-se a árvore e a floresta. Mas tanto uns
como outros têm como missão fundamental divulgar as suas conclusões.
E
se em relação aos especialistas em Ciências do Desporto muita investigação é
produzida e publicada, nomeadamente em termos de percepções sobre ética e sobre
valores, encontram-se praticamente ausentes das investigações as perversidades
no desporto (excepção talvez para os estudos sobre doping, agressão e
violência) – não só a corrupção, mas também a morte súbita na prática desportiva,
a morbilidade, o treino intensivo precoce, a fraude desportiva, o racismo e a
xenofobia, o suicídio de desportistas ou o próprio terrorismo que se abate
sobre os mesmos.
Investigam-se
imensos parâmetros em Ciências do Desporto, mas o que é feito da
sociomotricidade? E dos planos socio-afectivo e relacional?... Será mais
importante investigar as virtudes e os valores do desporto do que os
contra-valores do mesmo? Será mais relevante pesquisar sobre o espírito desportivo, sobre a ética, sobre a
moral ou sobre valores nesta actividade do que pesquisar sobre as perversidades
existentes no desporto?
O
discurso dos agentes desportivos baseia-se nos resultados que alcançam ou não
nas próprias provas, pouco justificando os métodos que utilizam, fazendo referência,
no entanto, por vezes, ao espectáculo que produzem.
São
discursos de circunstância. São discursos sempre proferidos à frente de um
painel cheio de logotipos de patrocinadores a fim de nos impulsionarem ao
consumo daquelas marcas. Muitas vezes são discursos vazios de significado:
“vamos deixar tudo em campo para ganhar” antes do jogo e “fizemos o melhor que
pudemos” ou “fomos os melhores em campo” depois do jogo são os chavões mais
utilizados – realçando muitas vezes neste último caso a vitória moral que não a
efectiva. “Venho para trabalhar“ e “prometo dar tudo ao clube” são os clichés mais comuns das novas
aquisições. Treinadores e jogadores apresentam um discurso corrompido pelo “killer instinct”, pelo “amor à
camisola”, pela “verdade desportiva” e pelo “fair-play”. A obrigatoriedade das entrevistas de antevisão do jogo
e as entrevistas rápidas no pós-jogo a isso obrigam.
Eduardo Galeano, em “Futebol: sol
e sombra”[85] dá-nos
um exemplo paradigmático:
”Antes do jogo, os cronistas formulam as suas perguntas desconcertantes:
– Dispostos a ganhar?
E obtêm respostas assombrosas:
– Faremos tudo o que for possível
para obter a vitória.”
Treinadores
e jogadores, os principais sujeitos do desporto, ignoram muitas vezes no seu
discurso as suas competências técnicas e tácticas, mas também as suas
competências pedagógicas, éticas e deontológicas. É enorme a diferença de
discurso entre um treinador dos escalões de formação e um treinador de uma
equipa profissional… Disso não nos apercebemos porque os primeiros não são
mediatizados, ao invés dos segundos. É enorme a diferença de discurso entre
jogador amador e um profissional. Disso não nos apercebemos porque, como nos
diz Galeano na mesma obra, o jogador “que
tinha começado a jogar pelo prazer de jogar, nas ruas de terra batida nos
subúrbios, joga agora nos estádios e tem a obrigação de ganhar ou ganhar.”
Não
poderemos ignorar aqui também os dirigentes desportivos e os agentes de
jogadores, apesar de não intervirem directamente no espectáculo desportivo.
São
estes intervenientes diretos no desporto os responsáveis pelas maiores e pelo
maior número de perversidades – nunca abordadas nos seus discursos a não ser
quando chegam à barra dos tribunais, desportivos ou cíveis. Poderemos apontar
como (alguns) exemplos Ben Johnson,
Marion Jones e Alberto Salazar (atletismo), Tonya Harding (patinagem
artística), Marco Pantani e Lance Armstrong (ciclismo), Torres Baena (karate) e
os dirigentes Bernard Tapie, Juan Antonio Samaranch, Michel Platini e Joseph
Blatter.
22. Discursos sobre o desporto (II)
31.01.2020
Passamos
de seguida para o discurso dos consumidores do espectáculo desportivo e dos
receptores daquilo que é divulgado nos e pelos mass media desportivos e para o próprio discurso destes últimos.
Os
consumidores do espectáculo desportivo, quer sejam espectadores in loco, quer sejam receptores do que é
veiculado pelos mass media, em
directo ou em diferido (TV ou imprensa), fundam o seu discurso num fenómeno de
identificação com o clube ou com a modalidade e de posterior oposição em
relação ao adversário. Mais preocupante quando fundam esse discurso em razões
emotivas que à posteriori se
transformam em fundamentalismos… É o discurso da paixão e não o discurso da
razão. É o discurso inflamado e não o discurso ponderado. É o discurso faccioso
e não o discurso isento. É o discurso da reprodução e não o discurso da crítica
ou da análise. É o discurso alterado e não o discurso sereno. É um discurso de
opressão, um discurso de amarras…
Têm
opiniões sobre tudo e sobre todos mesmo que não consigam explicar os
fundamentos das mesmas. Têm opiniões sobre tudo e sobre todos mesmo que não
saibam do que estão a falar. É um discurso muitas vezes reprodutivo daquilo que
escolheram – ou lhes fizeram escolher – para seguir na comunicação social.
Souness,
nos tempos em que treinava o Benfica, em 1997/98, chegou a afirmar que “em Portugal todos os burros falam de futebol”,
referindo-se aos comentários que eram dirigidos à sua actividade profissional e
ao desempenho dos profissionais da equipa que orientava. Não deixava de,
alegoricamente, ter razão... Mas Souness esqueceu-se de dizer que para esses
burros falarem de futebol alguém ou algum meio lhes tinha metido na cabeça
ideias sobre o futebol…
Os
mass media, ou parte deles, procuram
relatar factos e acontecimentos, apesar de esse relato não poder fugir a uma
certa subjectividade e interpretação do seu relator, o que o torna parcial e
arbitrário. E se parte desses media
ainda procura… a outra parte elabora e propaga o discurso que tem de ser
construído para vender.
A
27 de Janeiro a Espanha acabava de vencer o Europeu de andebol. Tragicamente,
um helicóptero com nove pessoas despenhava-se nos Estados Unidos. A imprensa do
país vizinho – «Marca», «Mundo Deportivo» e «As» – ocupavam as suas capas com
fotos a tamanho inteiro de Kobe Bryant. Os três principais jornais desportivos
do nosso país retratavam o nosso futebol, o nosso futebol e o nosso futebol…
Como
nos dizia Humberto Eco[86] “os mass media, colocados dentro de um
circuito comercial, estão sujeitos à «lei da oferta e da procura». Dão ao
público, portanto, somente o que ele quer, ou, o que é pior, seguindo as leis
de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação persuasiva da
publicidade, sugerem ao público o que este deve desejar.” Assistimos então
na TV a transmissões futebolísticas com as imagens de quatro ecrãs num ecrã só
em que não se vislumbram imagens do jogo jogado (mas tão só do seu envolvente)
e onde este é relatado com essas imagens em fundo – é a rádio visual. Alain
Woodrow[87]
explica-nos que a imagem é insolente e pervertida pelo dinheiro e “é assim que todos os media, sob o jugo da
imagem, se deixam pouco a pouco desviar do seu objectivo – informar – para se
tornarem, por sua vez, manipuladores.” Transmite-se em cima do
acontecimento (é o “chegar primeiro”) e transforma-se o espectador num voyeur desencadeando nele emoções e
retirando-lhe a possibilidade de parar um pouco para analisar a mensagem recebida
(é o “formar o desinformado”) ao invés de procurar informar bem e correctamente
através da imagem real do acontecimento mesmo que em directo (ou até em
diferido) com a particularidade de nessas imagens passar publicidade
encapotada. É esse o principal objectivo destas transmissões. Departamentos de marketing e de comunicação estudam e
aplicam estas técnicas o que indica que não são ingénuas essas transmissões.
Essa publicidade em primeiro lugar seduz e em segundo lugar leva ao consumo:
uma forma camuflada de manipulação. E, na realidade, quem a paga é o consumidor
final do produto publicitado – o espectador.
Assistimos
depois a um sem número de programa de debate transformados em autênticos reality shows os quais revelam por vezes
uma certa tendência para influenciar ou manipular a opinião dos consumidores
através dos opinion makers e/ou dos influencers. O jornalista Daniel
Deusdado (JN de 21.07.2011) diz-nos exactamente que “fazer jornalismo é produzir influência na opinião pública.” São
mesas redondas, são debates, são programas sobre futebol e não sobre desporto,
pois se perguntássemos a esses comentadores (normalmente um por cada um dos
três “grandes clubes”) por que motivo uma baliza de futebol tem as dimensões
que tem, qual a altura a que se encontra colocado um aro de uma tabela de
basquetebol, quantas armas tem a esgrima ou quantos buracos existem num campo
de golfe provavelmente (quase de certeza!) não saberiam responder. Nas palavras
de Alain Woodrow[88], numa
obra posterior, afirma que “os limites do
abjecto são os do valor comercial do sórdido. E a merda vende-se bem.”
O
consumo assíduo destes tipos de programa, para os quais nem sequer existe um
espírito selectivo ou um espírito crítico, condena o espectador passivo ao
obscurantismo. E é sempre mais fácil dominar uma pessoa criada neste meio
ambiente…
E
na internet, redes sociais incluídas,
a divulgação de factos deturpados (há quem lhe chame fake news) é bem notória. Como disse o jornalista Luís Freitas Lobo[89]
sobre a modalidade mais mediatizada “há
algo que o futebol actual consagrou através do impacto da internet e das redes
sociais: a verdade vende menos. A mentira é um produto lucrativo.”
Se tivermos em linha de conta
toda a evolução do desporto e todo o conhecimento sobre este, reparamos que as
crenças no mesmo – ou antes, nas suas finalidades – existentes desde o tempo do
amadorismo e do «amor à camisola» ainda hoje se mantêm (o que é verificável
pela linguagem utilizada pelos consumidores do desporto – o desporto forma, é um
meio educativo, transmite valores, o desporto promove a saúde), quando esse
«amor à camisola» se traduz actualmente por uma actividade onde a busca do
lucro e da vitória é cada vez mais explícita. Consequência disto, no desporto,
é a excepção ter-se tornado regra, ou seja, as perversidades sucederam, por
evolução do desporto, a um estado ético onde existiam valores, estando estes
agora cada vez mais ausentes.
23. Sobre a formação de treinadores
02.02.2020
"Toda
a instituição passa por três estágios - utilidade, privilégio e
abuso."
François
Chateaubriand (1768-1848)
Não chega aprender com quem sabe. Tem de se aprender com quem
sabe ensinar, com quem sabe fazer e, principalmente, com quem sabe fazer ser! E
não é por decreto que quem presumivelmente terá de saber, saber fazer e saber
fazer ser passará a ter competências pedagógicas, competências formativas!
É demais conhecida a frase de Maquiavel: “os homens são tão simples e submetem-se a
tal ponto às suas necessidades presentes que aquele que engana encontrará
sempre alguém que se deixe enganar.”
Isto
porque, à semelhança da formação de treinadores, um dia destes poderá ser
promulgada uma lei em que para se pintar com lápis de cor seja preciso fazer um
curso. Sim, porque um afia-lápis possui uma lâmina e, sendo um objecto
potencialmente cortante, é preciso evitar acidentes e é preciso evitar que essa
lâmina seja usada com outros fins... Para além disso, um lápis bem afiado pode
ser uma arma mortal (não sabiam? Claro que sabiam!!!). 12 lápis de cor são 12 armas!!!
E agora, vamos afiar o lápis amarelo e pintar com o amarelo...
Logo,
só pessoas devidamente credenciadas (terão de fazer um curso e, para isso,
pagar uma inscrição no mesmo) poderão afiar e pintar com lápis de cor. Claro
que só poderá ministrar esse curso uma empresa devidamente certificada...
Depois de terem frequentado esse curso, depois de terem feito um estágio e
terem sido aprovadas terão de pagar a “licença de utilização” dos lápis de cor
e dos apara-lápis... E agora, vamos afiar o lápis azul e pintar com o azul...
Mas
atenção: nos três meses seguintes terá de se frequentar uma acção de formação
(e lá temos de novo os €, as £ ou os US$) sobre os diferentes modelos e
utilizações dos apara-lápis consoante o diâmetro dos lápis... E nos seis meses
posteriores uma acção de formação sobre contornos e preenchimentos (mais uma
vez os €, as £ ou os US$)… E nove meses depois outra acção de formação (outra
vez os €, as £ ou os US$) sobre a sobreposição e a mistura de cores
com os referidos lápis. Adivinhem agora quem vai dar essa formação! Claro, a
tal empresa certificada, a qual irá cobrar inscrições para a acção de formação
aos utilizadores dos apara-lápis e dos lápis de cor... E agora, vamos afiar
todos os lápis e pintar com os lápis todos...
O
resultado dependerá, como diz o povo, do pintor. O pintor que pintou Ana também
pintou Leonor. Se a Ana é a mais bela, a culpa é do pintor.
Há
no entanto, aqui, um pormenor importante: aqueles que já são artistas, aqueles
que já têm obra exposta, publicada e/ou vendida – e um quadro pintado com lápis
de cor pode ser uma bela obra de arte – não terão de frequentar o referido
curso, pois poder-lhes-á ser homologada a referida habilitação – mas nada os
ilibará de pagarem na mesma uma taxa (sempre os €, as £ ou os US$) .
Mas
ser um bom pintor não implica ser um bom professor de pintura com lápis de cor.
E nada os impedirá de serem como o pintor que pintou Ana e Leonor… ou de
formarem novos pintores como este último.
24. Ainda a formação
de treinadores
18.03.2020
Tem sido constante ultimamente notícia o facto de treinadores
exercerem estas funções sem terem o curso de treinadores exigido por lei,
argumentando-se com os seus resultados ou o seu currículo. No entanto, a um bom
condutor não lhe é permitido conduzir na via pública sem carta de condução…
Recorrendo a ex-jogadores, o currículo de Paulo Futre como
jogador é excepcional mas Paulo Futre não tem currículo como treinador.
Paulo Futre é um daqueles génios da bola que teve a
felicidade de, depois de ter deixado de jogar, ter tido alguém que, em Espanha,
lhe tenha dado a mão. Teve a felicidade de não ser um daqueles três em cada
cinco futebolistas com salários superiores a 140 mil euros por mês que terminam
a sua carreira falidos, ou acabam nesta situação em apenas cinco anos (sim, é
um estudo realizado em Inglaterra com 30 mil jogadores). É uma pessoa que
provavelmente aufere de rendimentos daquilo que escreve nas suas crónicas
semanais num diário desportivo e que de certeza aufere de rendimentos
provenientes de publicidade televisiva – o que não é extensivo a todos os
ex-jogadores excepcionais.
Paulo Futre é uma das pessoas que defende que um jogador
internacional, com uma carreira relevante, e exactamente por ter sido isso,
possa ser automaticamente um treinador. Como se o facto de ser um bom jogador
desse origem automaticamente a um bom treinador… mesmo sem ter competências a
nível de metodologia de treino, de fisiologia do esforço, de pedagogia do
desporto, de… (a lista seria longa, muito longa). Um bom jogador pode não ser
por natureza um bom condutor de homens, e aí esvai-se toda a sua capacidade
técnica, todo o seu rendimento, toda a sua percepção táctica. Trazemos de novo
aqui Olímpio Coelho[90]:
“alguns responsáveis falham na sua acção
e objectivos por deficiente preparação técnica mas a maior parte dos insucessos
devem-se a uma deficiente preparação psicopedagógica.”
Ao invés, um bom treinador pode nem sempre ter sido um jogador
de relevo. O futebol está cheio destes exemplos. Alguns entre nós, outros lá
fora. Neste lote poderemos incluir José Mourinho e Jorge Jesus. Estes, para
além de revelarem competências técnicas e pedagógicas revelam também
competências de planeamento, de gestão, de execução, de avaliação e
competências de liderança. A maior parte destas não foram adquiridas no relvado
enquanto jogadores.
Claro que também há jogadores excelentes que são excelentes
treinadores. Josep Guardiola é um
deles…
Ter sido um bom jogador e ter um currículo de relevo não
capacita ninguém a orientar treinos e a obter bons resultados. Há uma linha bem
definida entre o que é e o que faz um jogador e as funções do treinador. Mesmo
que esse treinador de encontre rodeado de terapeutas, de nutricionistas, de
“preparadores físicos”, de treinadores adjuntos disto e daquilo.
Um bom jogador não é necessariamente um bom treinador. A
prova provada é exactamente confirmada pelo próprio Paulo Futre na sua coluna
de opinião de 8 de Março de 2020, na página 13 do «Record», quando afirma: “quando estiver com um médico de Medicina
Desportiva vou perguntar-lhe por que razão um profissional de futebol canhoto,
por muito que treine o pé direito, não consegue ganhar potência no remate.”
Um jogador de eleição não sabe isto mas um treinador sabe.
Esperemos que quem tutela a formação de treinadores de facto
não embandeire por essa via – a de transformar óptimos jogadores em treinadores
por decreto.
Ignorar este assunto não fará desaparecer o problema.
25. O antes e o
depois
29.03.2020
Tivemos a felicidade de ver Garrincha transformar um pequeno
guardanapo num latifúndio, segundo as palavras de Armando Nogueira (completaram-se
10 anos sobre o falecimento deste em 29 de Março de 2020)…
Fomos felizes por termos tido a oportunidade de termos visto
uma nota dez ser atribuída a Nadia Comaneci, por termos tido a possibilidade de
assistirmos aos desempenhos de Ayrton Senna e de Michael Schumaker e por termos
visto Michael Jordan suspenso no ar (I
believe I can fly).
Yelena Isinbayeva, Usain Bolt e Michale Phelps, fizeram-nos
delirar… tal como a final do Campeonato Europeu de futebol de 2016.
Josep Guardiola e os mind games de José Mourinho
mostraram-nos que nem só da taktiké
dos gregos vive o futebol…
E poderíamos também considerarmo-nos felizes por termos sido
contemporâneos de Livramento, Agostinho, Eusébio, Damas, Carlos Lopes, Rosa
Mota, Fernando Chalana, Manuela Machado, Aurora Cunha, Jorge Fonseca, Telma
Monteiro e tantos outros…
Foi preciso um ser minúsculo, na fronteira entre o ser vivo e
o ser não-vivo, para transformar o nosso status
de espectador… e se nada será como dantes, talvez tudo passe a ser como dantes
tomando novas qualidades como diria Camões.
Foi preciso um ser minúsculo para o futebol dar conta que não
poderia existir sem os espectadores, para as televisões descobrirem que não
poderiam passar sem os comentadores desportivos e as suas guerras, para a
imprensa desportiva dar conta que começava a ter falta de sensacionalismo. Foi
preciso esse ser minúsculo para receitas de publicidade, direitos de imagem e
de direitos televisivos no futebol decaírem… Em «A Bola» (28.03.2020) num
artigo com o título “o vírus contou a verdade ao futebol”, Jorge Valdano –
outro génio com quem convivemos – dizia-nos que “o coronavírus arrebatou a atenção, a preocupação e os heróis. Os
aplausos foram dos estádios para as varandas.”
Foi preciso o aparecimento do mesmo, o seu alastramento e a
declaração de pandemia para o COI se aperceber que não domina tudo, que não se
move impunemente entre grandes cifras, que não dita as regras…
Muito se afirma que nada será como dantes após esta fase,
após esta época que atravessamos, que o desporto a isso não escapará e
aponta-se para uma grande evolução para formas “desportivas” em que
predominarão as ancas no sofá e o comando na mão. Morreu o rei, viva a rainha,
quer seja a Playstation quer seja a Xbox. Disso foi exemplo o facto de o Braga
ter “transferido” o seu jogo com o Santa Clara para a Playstation e ter convidado
o público a assistir através da internet
– de um lado Diogo Salomão, do outro Ricardo Horta. A Liga Portuguesa de
Futebol pegou nesta ideia e reproduziu a jornada anterior através de duelos
individuais de FIFA20, à semelhança do que já havia sido anunciado em Espanha e
Itália.
Os e-Sports vieram
para ficar. Definitivamente! Mesmo sem a componente «movimento» que é parte
integrante do desporto. O lançamento de um livro, entretanto adiado, pelo
Comité Olímpico de Portugal, intitulado «e-Sports: O desporto em mudança?» irá
levantar uma ponta do véu. A outra ponta do véu já está levantada: em Espanha,
os prémios monetários e as audiências online
(o Bétis – Sevilha, organizado por estes clubes há duas semanas teve 62 mil
espectadores nas plataformas digitais) mostraram-se surpreendentes.
A Allianz, a Red Bull, os
M&Ms e a Kia deitaram mãos à obra e não deixaram os créditos por mãos
alheias. A publicidade e as mensagens subliminares continuarão a marcar
presença nesta nova forma «desportiva» e continuaremos a ser manipulados como
consumidores.
Mas os mesmos não estarão isentos, para além destes, de outros
perigos. O doping, a fraude e a
corrupção poderão marcar presença, tal como a própria exploração infantil e até
o suicídio, a violência, a morbilidade ou a morte súbita. Recordamo-nos que em
2005, um casal na Coreia do Sul deixou morrer acidentalmente o seu filho à fome
porque, curiosamente, estavam completamente absortos num jogo em que tinham de
cuidar de uma criança virtual. Em 2007, na China, um homem morreu depois de
jogar 50 horas seguidas World of Warcraft.
Em 2012, em Taiwan, um homem de 23 anos foi encontrado morto num cybercoffe após ter jogado durante 10
horas seguidas imediatamente depois de ter terminado um longo turno no seu
trabalho.
As novas qualidades de que nos falava o poeta
continuarão enfermas e submetidas ao capital. Novas virtudes (?), velhos
vícios!
26. Iremos ficar
todos bem?
05.04.2020
“Vamos ficar todos bem”
talvez seja a frase mais proferida nestes últimos tempos e deu origem a uma
corrente solidária iniciada em Itália e que já se espalhou por todo o mundo. A
ideia foi ocupar as crianças desafiando-as a fazer um desenho com um arco-íris
como um voto de confiança no futuro nesta época de quarentena. Ao entrar no meu
prédio vejo arcos-íris nas janelas do mesmo… Da minha janela vejo um arco-íris
numa varanda de um prédio em frente…Um crédito para a esperança, uma expressão
de uma crença.
Em relação ao desporto, e dado que serão essas crianças que
daqui a dez ou quinze anos serão os actores principais do mesmo, a grande
questão é transformar essa afirmação numa interrogação: iremos todos ficar bem?
E, consequentemente, dar-lhe resposta…
Quando 14 clubes de andebol propuseram à sua federação que o
Campeonato Nacional encerrasse nesse momento acabando a época sem campeão
(2020), quando no voleibol 12 clubes preferiram dar o Campeonato como terminado
mesmo que isso significasse não se entregar a título, o futebol ainda continuava
a discutir quem seria – e de que modo – o campeão nacional, as
operadoras de telecomunicações que patrocinavam os clubes da Primeira Liga
recusavam-se a pagar antecipadamente os jogos que ainda não se tinham realizado
e a UEFA (preocupada em completar os 17 jogos da Champions em falta nem que
estes se tivessem de realizar todos sem público) e a FIFA tentam correr atrás
do prejuízo.
Para sabermos se iremos ficar todos bem teremos de estar por
cá e termos todos condições de saúde. A primeira variável a ter-se em conta é a
sobrevivência. E aqui dependemos não só de nós como também dos outros. Tal como
os outros dependem de mim. Vítor Serpa deu em «A Bola» (04.04.2020) uma
lição enorme na 1ª pessoa... que passou despercebida a muitos: "E nós que, na área do jornalismo desportivo,
estamos tão habituados e deformar a verdadeira dimensão das coisas, chamando
herói a quem é apenas talentoso, enaltecendo de glórias e de títulos de
adjetivação excessiva quem nos ajuda ao prazer do ócio, devemos cair na
realidade e perceber, enfim, que herói é quem oferece a vida para salvar a vida
dos outros."
A segunda variável será a variável económica: se os jogadores
do Barcelona decidiram uma redução de 70% nos seus ordenados para que o clube
continuasse a pagar os ordenados na íntegra dos seus funcionários, bancos e
empresas com lucros no ano passado deveriam seguir este exemplo e empregar
parte dos mesmos no combate a esta pandemia. Se eu ficar desempregado, ou se o
meu salário for reduzido, deixo de comprar o jornal; se não compro o jornal o
quiosque fecha; sem quiosque e sem venda de jornais não se fazem reportagens
nem se redigem, editam ou imprimem notícias; sem imprensa escrita não se vende
tinta nem papel, param as rotativas e encerra a gráfica; não sendo necessário
papel os madeireiros não vendem eucaliptos; não se abatendo eucaliptos não se
comercializam motosserras e a linha de montagem cessa na indústria … mas o dono
do quiosque continua a ter de pagar o arrendamento do mesmo, o jornalista têm
de continuar a alimentar-se e a vestir-se, o madeireiro tem de pagar o empréstimo
da sua habitação e os operários fabris… … É esta bola de neve que é preciso
entender e que convém interromper num qualquer ponto.
E se iremos ficar bem, ou não, depende também de muitas
ilusões que grassam agora. Teremos de estar atentos a sucessivas manobras de
manipulação – e não, não nos referimos aqui pura e simplesmente à publicidade,
à desinformação ou às fake news. Em tempos de confinação, constatamos muitos
preocupados com a saúde corporal mas poucos com
a saúde mental… Cerca de 22,9% dos portugueses adultos sofre de uma perturbação
psiquiátrica – 4%
da população apresenta uma perturbação mental grave, 11,6% uma perturbação de
gravidade moderada e 7,3% uma perturbação de gravidade ligeira (dados da Sociedade
Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental). Portugal é o segundo país com a mais elevada
taxa de prevalência de doenças psiquiátricas da Europa, sendo apenas
ultrapassado pela Irlanda do Norte (23,1%).
Dispararam os apresentadores – em
público ou em privado – através de várias plataformas na internet de actividades dirigidas ao bem-estar do corpo, na maior
parte das vezes mascaradas de treino”. Tal não foi acompanhado do lançamento de
actividades dirigidas ao bem-estar mental… Mas o treino pressupõe uma
componente física, uma componente técnica, uma componente táctica e
obrigatoriamente uma interacção presencial entre o treinador e o treinando que
provém até de uma componente sócio-motora. Ora, numa transmissão à distância
onde não há a possibilidade de corrigir o gesto técnico ou de encadear acções
com a participação de vários intervenientes, quando muito poderemos falar em
exercício físico, quer este esteja disfarçado de alguma forma artística ou de
alguma forma jogada – ou então chamemos-lhe apenas actividade ocupacional. Para
uma espécie socialmente dependente, tal como a nossa é, são actividades de
facto benéficas para diminuírem o isolamento social e ocupar e promover a
integração principalmente dos mais novos, mas tenhamos consciência do que de facto
são e não daquilo que desejaríamos que fossem.
Iremos todos ficar bem? Se
ultrapassarmos as vicissitudes sanitárias, se melhorarmos as condições de saúde, se recuperarmos os índices económicos e
se dermos conta do que fazemos com o que fizeram de nós (na esteira de Sartre),
não temos a menor dúvida que a resposta será afirmativa mas “devemos
cair na realidade”. Poderá ter um travo amargo
mas, sim, iremos todos ficar bem! Ou pelo menos alguns…
27. Viagens do corpo (I)
03.05.2020
Os japoneses possuem um provérbio, on kochi shin, que se poderá traduzir
por "desenvolver novas ideias baseadas no estudo do
passado."
Este passado tem de ser revisitado como uma ponte
para o futuro, ponte essa que passa pelo presente. Não se trata de prevermos o
futuro mas de precavermos esse futuro.
E no passado, quer se tenha descido das árvores para
a planície, como defende a teoria da savana, quer se tenha vivido num ambiente mais ou menos pantanoso, como defende a teoria do
símio aquático, certo é que a evolução nos fez chegar ao bipedismo e a uma
postura erecta.
Ao longo da filogénese da espécie humana talvez tenham sido
estas as mudanças, que duraram milhões de anos, mais significativas.
A perda da oponibilidade do polegar no pé implicou a
ausência da capacidade de preensão nos membros inferiores, o tamanho dos dedos
reduziu-se, sendo o dedo grande particularmente robusto e participando, tal
como os restantes, na função de sustentação.
Podemos constatar hoje que o pé humano tem um arco
longitudinal idêntico ao dos outros grandes símios vivos, mas é único quanto ao
arco transversal (na zona distal do metatarso, a mais próxima da ligação com as
falanges), devido aos ligamentos e aos ossos do tarso que suportam
antigraviticamente o peso corpo. É este arco transversal que possibilita que o
homem possa criar o grau de tensão muscular adequado e necessário ao
desequilíbrio que lhe permite transferir o peso do corpo para a frente
deslocando um dos pés, e a seguir o outro, mudando a sua base de sustentação e
originando a marcha. Esta é a grande vantagem do homem em relação aos outros
primatas. Não é por acaso que todos os movimentos de mudança de direcção usando
o trem inferior no Karate-do (pelo menos no estilo Goju-Ryu de Okinawa) se
fazem sobre este arco: possibilitam um maior equilíbrio, uma maior
estabilidade, tal como uma maior pressão dos dedos do pé no chão durante a
mudança de lugar do calcanhar.
Com o bipedismo verificou-se o encurtamento e o
fortalecimento dos ossos do metatarso, sendo os exteriores mais robustos
(justificando como o peso do corpo na marcha passa do calcanhar para o bordo
externo do pé, seguidamente para o terço ântero-interior e, por fim, para o
dedo grande do mesmo).
Torna-se fácil dar conta da diferença de tamanho no
homem entre os membros superiores e os membros inferiores, sendo estes mais
longos.
Paleoantropólogos e biólogos dir-nos-ão se foram as
pernas que aumentaram ou os braços que diminuíram. Sem dúvidas o facto de o
bipedismo ter libertado os membros superiores para transportar os mais novos,
para melhor conseguir alimentos, para reagir mais rapidamente a potenciais
perigos, para fabrico e utilização de instrumentos e para mais eficazmente
enfrentar mudanças ambientais... e ter possibilitado o cruzamento (pronação), e
não só o paralelismo (supinação), do par formado pelo rádio e cúbito no
antebraço.
A pélvis foi-se alargando e perdendo altura,
proporcionando um melhor rendimento aos glúteos que activam as pernas,
permitindo uma melhor transição do centro de gravidade do corpo de modo a que a
vertical que passa pelo mesmo caísse sempre dentro da sua base de sustentação.
Enquanto no chimpanzé os fémures são paralelos, no
caso do Autralopithecus afarensis
(extinto aproximadamente há cerca de 2.9 milhões de anos) estes já se tornam
oblíquos e orientados para dentro, evoluindo para que o crânio e as
articulações de ambas as tíbias se conjuguem verticalmente. O peso do corpo
passou a poder ser assim transferido directamente para a frente, evitando o
impulso que os chimpanzés dão de uma perna para a outra quando se deslocam.
A caixa torácica hominídea foi sofrendo um
achatamento no plano frontal, tal como uma maior amplitude lateral. A omoplata
deixou de se situar lateralmente e evoluiu para a zona posterior do tórax
aproximando-se da coluna vertebral, a clavícula alongou-se e robusteceu-se e o
esterno tornou-se maior e mais forte.
As colunas cervical e lombar foram-se reduzindo,
passando a apresentar a coluna vertebral quatro curvaturas flexíveis que permitiram
a estabilização vertical.
O crânio reposicionou-se, modificando-se a posição
do foramen magnum, que se situa agora
sob o crânio, deixando a coluna vertebral de se alinhar obliquamente com o mesmo
e apoiando-se aquele nesta.
Quanto às modificações cranianas basta-nos referir o
aumento da capacidade do crânio pois há uma diferença de tamanho do cérebro
entre o Autralopithecus afarensis (400-500 cm³) e o Homo sapiens (1.200-1.400 cm³) assim
como a diminuição do prognatismo e consequentes modificações odontológicas.
Um último apontamento em relação à estatura: se o Homo
habilis (2.4 a 1.6 milhões de anos) tinha uma pequena estatura, cerca de
1.52 m, a altura média de um ser humano europeu situa-se actualmente entre os
1.73 m e os 1.78m.
Para se perceber perfeitamente a nossa filogénese seria bom
não se esquecer que a evolução humana, assim como a de qualquer outro ser vivo,
foi um processo complexo e não um processo linear[91]…
Mas enquanto ao longo da mesma o corpo hominídeo se foi
modificando como resultado de uma evolução condicionada pela natureza,
adaptando-se, actualmente as modificações do e no corpo humano resultam de uma
resposta ao ambiente criado pela sua própria espécie.
28. Viagens do corpo (II)
14.05.2020
O número global de pessoas que sofriam de obesidade em 1995
cifrava-se em 20 milhões. Cinco anos depois esse número passou para 30 milhões.
De imediato o nosso raciocínio é conduzido para a ingestão excessiva dos
hidratos de carbono e para os hábitos de vida não saudáveis. Mas será só isso?
Regressemos um pouco atrás! O corpo dos
caçadores-recolectores operava essencialmente em função da marcha. As suas
posições de descanso eram a agachada ou a deitada. A partir do momento em o
homem se sedentarizou, a posição agachada foi sendo progressivamente
substituída pela posição sentada: numa pedra, num tronco de árvore, num banco,
numa cadeira, num sofá… A partir desse momento e com a dedicação à agricultura
toda a alimentação do homem se modificou (o que provocou também mudificações a
nível de mandíbula e dentição) reflectindo-se nas funções do próprio corpo e na
anatomia do mesmo. Vários estudos demonstraram que foi decrescendo a densidade
óssea dos humanos: do caçador mesolítico passando pelo agricultor neolítico até
chegar ao trabalhador moderno. Os ossos foram ficando mais esguios e porosos[92]…
O sedentarismo originou o enfraquecimento progressivo dos
flexores do quadril, dos músculos isquiotibiais, dos glúteos e dos abdominais
que provocaram a actual inclinação pélvica anterior com as consequentes
lordoses a originarem cifoses correctivas. O desalinhamento da coluna
reflectiu-se nos discos inter-vertebrais e respectivas hérnias discais. Nos
nossos dias mais de 80% da população mundial sofre de dores lombares e/ou
dorsais.
Na civilização grega o trabalho sedentário deu origem ao
exercício físico como forma de compensação para umas classes, enquanto para
outras o aumento do tempo de lazer deu origem aos jogos, ao espectáculo e ao
divertimento. Daí o desporto seguiu o seu curso, até aos dias
de hoje, onde o movimento e a competição
(a todos os níveis, designando vencedores e vencidos) estão presentes, sendo uma actividade codificada (com
regras e regulamentos) e estando
integrado num sistema institucionalizado (organizado em torno de clubes
e federações). Já ninguém ignora que hoje em dia o desporto é uma actividade
que movimenta milhões de euros e mesmo aqueles que se pautavam por um desporto
com fins formativos e educativos mudaram o seu discurso reconhecendo que o
desporto (ou seja o que for a que se chame desporto) está onde estiver o dinheiro.
Poucas são as excepções.
O
corpo humano, feito para a marcha, começou então a ser trabalhado no desporto
ao mesmo tempo que a grande maioria das profissões se exercia sentada numa
cadeira. O tempo de ócio, ocupado desportivamente, ao ar livre, em ginásios ou clubes,
passou posteriormente a ser ocupado em casa (vídeo-games e streaming) sendo necessária
uma cadeira ou um sofá.
Surgem
os e-Sports onde os competidores –
sentados em cadeiras que por mais ergonómicas que sejam, sofrem de maleitas
físicas e posturais (para além da pouca mobilidade, de experiências de
esgotamento emocional, isolamento social e compulsividade) – se colocam em
frente a um monitor durante 6 a 10 horas por dia. Enchem-se pavilhões
desportivos durante horas e horas com espectadores sentados a verem, lá em
baixo, minusculamente, os intervenientes diretos a competirem, quedando-se a
olhar para gigantescos ecrãs electrónicos para acompanharem em tempo real a
acção dos mesmos.
Tenta-se
novas reformulações do conceito de desporto com o Comité Olímpico Internacional
a admitir, em 2017, considerar os e-Sports
uma actividade desportiva[93].
Ano em que se forma em Portugal a Federação Portuguesa do Desporto Eletrónico
com mais de vinte clubes, onde, curiosamente, só cinco possuem nome português e
em que, na Cidade do Futebol se organiza o Allianz
Challenge, no qual participaram milhares de jogadores…
Que
influência poderão ter estas actividades nas posturas corporais e nas
modificações do corpo humano? Que alterações biomecânicas sofrerá o mesmo? Que
impactos na saúde? Talvez não sejam precisos milhares de anos para chegarmos a
conclusões…
29. Vítimas do desporto
17.05.2020
O
mito do fomentar a saúde é uma das bandeiras do desporto. O cliché “o desporto dá saúde” é mais que
conhecido… mas nada há de mais errado! O desporto tritura o competidor, levando
este a aceitar riscos e a conviver com a dor, assim como o leva a interiorizar
poder superar os limites do seu desempenho, porque, para além de vencer ou de
ganhar dinheiro, é motivado pela crença de que ser um “verdadeiro atleta”
implica assumir riscos para a sua própria saúde, fazer sacrifícios e jogar o
preço de ser tudo aquilo que quiser alcançar.
Em
Março de 2007, no Congresso denominado
«Morte Súbita no Desporto» realizado em Lisboa, Gomes Pereira, médico do
Sporting e professor universitário, teve a oportunidade de afirmar que “o
treino é uma agressão. A alta competição pode ter contornos prejudiciais para
os atletas.” Nesse mesmo evento foi secundado por Rui Miller, médico do
Belenenses e também professor universitário, que declarou que “a
alta competição é extremamente prejudicial para o atleta.”
Num comentário ao meu artigo anterior (em «A Bola» online) colocaram esta questão: “E qual é a percentagem de desportistas com
maleitas ósseas e articulares graves por terem feito desporto?” Não me é
possível responder taxativamente a esta questão por dificuldades estatísticas
mas mesmo que fosse 0,002% passaria a ser 100% se fosse com o referido
comentador… ou com um filho seu… ou com o seu melhor amigo…
Mas vou tentar responder a esta questão com alguns exemplos.
Roger
Riviére, ciclista francês, 24 anos, 1960; Yelena Mukhina, ginasta soviética, 20
anos, 1980; Dennis Byrd, jogador de futebol americano, 26 anos, 1992; Reggie
Brown, 23 anos, também jogador de futebol americano, 1997; Sang Lan, ginasta
chinesa, 17 anos, 1998; Takuma Aoki, motociclista, piloto oficial da Honda, 24
anos, 1998; Charles Manosalva, chileno, salto com vara no desporto escolar, 16
anos, 2002; Kira Gruenberg, austríaca, saltadora com vara, 22 anos, 2015. O que
há de comum entre estes desportistas? Exactamente o mesmo que têm em comum com
Tiago Sousa: em Janeiro de 2005 este atleta de tumbling do Lisboa
Ginásio Clube, aos 20 anos, contraiu uma lesão na coluna durante um treino
ficando paraplégico.
Se
a estes casos juntarmos o do piloto inglês de BMX Stephen Murray, de 27 anos,
ou o caso de Kevin Everett, jogador dos Buffalo Bills, de 25 anos, que em 2007
ficaram ambos tetraplégicos, poderemos dizer que em 55 anos são “apenas” 11
casos… mas estes são “apenas” os que conhecemos!
Estes
são casos extremos. Mas há aqueles que sujeitos a pressões de marcas, de
patrocinadores, de dirigentes e até de treinadores se tornam vítimas do
desporto. As sobrecargas de treino, o esforço repetitivo, os abandonos precoces
da carreira de desportista e as lesões vitalícias estão aí à vista de toda a
gente. E não estamos a falar de acidentes ou de casos de morte súbita…
Situações
confirmadas por Pat Lafontaine, Eric Lindros e Mike Modano no hóquei no gelo na
NHL, por Patrik Sjoberg no atletismo ou Charles Barkley no basquetebol, ou no
futebol por Van Basten, Brian Laudrup, Vítor Martins, Eusébio e Mantorras…
Aliás, o futebol é fértil nestes casos. Basta recordarmo-nos que em 2002 o
inglês Matt Holmes (30 anos) e o croata Igor Stimac (35 anos) ficaram impedidos
de praticar futebol, tal como em 2003 o norueguês Alf-Inge Haland (30 anos) ou em 2006 o
irlandês Roy Keane (35 anos). O brasileiro Leandro Machado, também colocou fim
à sua carreira aos 32 anos em 2008, devido a tendinites crónicas nos dois
joelhos e em 2009 o argentino Juan Pablo Sorín, de 33 anos, disse adeus ao
futebol também na sequência de sucessivas lesões.
Numa
pesquisa realizada entre os anos de 1992 e 1995 nos EUA, envolvendo 680 mil
atletas, os desportos onde mais lesões graves se verificam durante um ano são a
luta livre (38,2%), seguida do voleibol (29,9%), da ginástica (20,6%), do
basquetebol (19,2%), do futebol (13,8%), do atletismo (7,2%), da natação (5,4%)
e, por fim, da esgrima (4,7%).
No
boxe, Muhammad Ali aos 42 anos (1984) apresentava sérios transtornos cerebrais
e sintomas de doença de Parkinson, provável consequência dos golpes recebidos
ao longo dos 25 anos da sua carreira.
Em
1998 Carl Lewis aos 37 anos sofria de artroses e revelava fortes dores a andar,
afirmando os médicos que a sua coluna vertebral parecia a de um homem de 60
anos, e Mike Powell, o homem que derrubou o mítico recorde de Bob Beamon no
salto em comprimento, anunciou o abandonou das pistas com 35 anos devido a
lesão nos adutores.
Cris
Pringle, jogador de críquete neozelandês, retirou-se também em 1998, com 30
anos, devido a uma lesão num tornozelo.
A
lançadora de dardo alemã Karen Forkel, acabou com a competição em 2000 devido a
uma lesão num ombro aos 30 anos.
No
basebol, Mark McGuire, batedor dos St. Louis Cardinal, com um recorde pessoal
de 71 home runs, decidiu pôr um ponto
final na sua carreira em 2001 devido a sucessivas lesões, aos 38 anos.
O recordista mundial do dardo, Jan Zelezny, da
República Checa, termina um percurso com mais de 20 anos em 2006, por já não
poder suportar as dores no tendão de aquiles – tinha 40 anos.
Aos
27 anos, Sebastian Deisler terminou a sua carreira em 2007 por não conseguir
suportar as sucessivas lesões. O internacional alemão, jogador do Bayern de
Munique, foi operado cinco vezes ao joelho direito e em duas ocasiões teve de
receber tratamento psiquiátrico. Segundo palavras suas “… os últimos anos foram um suplício. Já não jogava futebol com alegria.”
Em
2008, aos 33 anos, Maurice Greene, antigo recordista, campeão olímpico e
mundial dos 100m, retirou-se da competição também devido a lesões. Afirmou na
altura: “Já não consigo suportar a
batalha mental de tentar regressar das lesões. O desgaste psicológico é imenso
e uma pessoa fica deprimida.”
Yao
Ming, o gigante chinês da NBA, com lesões que ameaçavam tornar-se crónicas e
limitativas após ter sido operado a uma fractura no pé esquerdo retirou-se do
basquetebol em finais de 2011.
Em
2012 é a vez de Ticha Penicheiro, a mais conceituada basquetebolista
portuguesa, abandonar o desporto. Um dia após completar os 38 anos revela: “Ganhei tendinites crónicas nos tendões de
Aquiles e é-me difícil correr. Quando acordo, para sair da cama estou a sofrer.
Nunca na carreira tinha levado uma injeção ou infiltração e nos últimos 12
meses levei dez (!) para jogar.”
A tenista chinesa Na Li, vencedora do Roland Garros de 2011 e
do Australian Open de 2014, aos 32 anos revelou: "Depois de quatro cirurgias nos joelhos e centenas de injecções semanais
para aliviar a dor, meu corpo implora-me para parar!" e abandonou os courts…
Aos 35 anos, após quase dois anos de afastamento das provas,
Naide Gomes não resistiu a lesões crónicas que a impediam de competir e
anunciou o seu afastamento das pistas em Março de 2015.
Em 2016, a antiga número um do mundo do ténis, a sérvia Ana
Ivanovic, aos 29 anos terminou a carreira devido
às várias lesões contraídas durante a mesma. O italiano Dario Scuderi, futebolista
de 19 anos, termina nesse ano uma carreira que mal tinha começado, pois durante
um jogo sofre o rompimento duplo dos ligamentos cruzados do joelho, lesão no
ligamento do tornozelo e no menisco.
O esquiador suíço Sandro Viletta, medalha de ouro nos J. O.
de Inverno de 2014, abandona a alta competição em 2018, com 32 anos, dadas as
lesões que o afectavam num joelho.
Já em 2020 o hoquista espanhol do Benfica Albert Casanovas
anunciou deixar de jogar, com 35 anos, devido a fortes dores nas costas. No
futebol saliente-se a despedida dos relvados de Václav Kadlec aos 27 anos
devido a um problema num dos joelhos. Também Viktor Ahn, patinador russo de velocidade de pista curta no gelo, seis vezes medalha de ouro olímpico, colocou um ponto final na carreira aos
34 anos por causa de várias lesões: “Devido
à dor contínua no joelho, à recuperação após tratamento e à reabilitação muito
longa depois das competições, é muito difícil treinar no máximo”…
Tornozelos, joelhos, anca e coluna vertebral são as
articulações mais atingidas. Lesões consecutivas e irreparáveis
transformaram-se em lesões vitalícias e deram origem às vítimas do desporto.
Gabinetes médicos, hospitais e clínicas desportivas ou de reabilitação têm
nelas os seus melhores clientes. O desporto assim o exige[94].
30. Suicídios no desporto
27.05.2020
A
22 de maio de 2020 fomos confrontados com
as notícias de que o futebolista sérvio de 38
anos Miljan Mrdakovic, que alinhou pelo
Guimarães em 2007/2008, e de que a japonesa Hana Kimura, Pro Wrestler de 22 anos, teriam
cometido suicídio. Ventila-se que o primeiro caso poderá ter acontecido devido
a uma depressão do jogador, enquanto o segundo poderá ter origem em online
bullying.
De imediato nos vem à memória os nomes do
antigo guarda-redes do Benfica, Robert Enke (suicídio em Novembro de 2009, aos
32 anos), e a do ciclista Marco Pantani (suicídio em Fevereiro de 2004, aos 34
anos)… e colocam-se também de imediato as questões: serão frequentes os
suicídios entre os desportistas? Quais as causas prováveis dos suicídios
conhecidos?
No
ano do suicídio de Robert Enke demos conta também também das mortes semelhantes
de Christophe Dupouey (campeão do mundo de BTT em 1998), de Mike Whitmarsh (vice-campeão olímpico de voleibol em
1996) e do futebolista brasileiro Marcelo Moço, do ASK Bruck/Leitha, que aos 30
anos foi encontrado enforcado no sótão da casa onde vivia. Ainda em 2009 o
ciclista belga Dimitri de Fauw pôs termo à vida aos 28 anos.
Não
conseguimos saber se serão frequentes os suicídios entre os desportistas, mas
quase que poderemos dizer que são mais do que aqueles que imaginamos ou até
daqueles que chegam ao nosso conhecimento através da comunicação social.
O
mais antigo suicídio de um desportista que temos conhecimento remonta a 1886 e
refere-se ao cavaleiro James Archer. Em 134 anos muito aconteceu… Recordamo-nos
entre outros, por terem nomes sonantes devido aos seus desempenhos, de Abdón
Porte (futebol), de Luís Ocaña (ciclismo), de Sandor Kocsis (futebol), de
Melvin Turpin (basquetebol), de Antonio Pettigrew (atletismo), da judoka
austríaca Cláudia Heill e do andebolista sérvio Novak Boskovic.
Devido
à sua tenra idade realçamos o suicídio do halterofilista russo Igor Tepikin, de
15 anos, ocorrido em Moscovo, em 2012… e da snowboarder
britânica Ellie Soutter em 2018, nos Alpes Franceses, no dia em que completava
18 anos…
Entre
nós registamos os suicídios do nadador
Rui Abreu (este ocorrido nos Estados Unidos em 1982), assim como do ciclista
Gonçalo Amorim em Santarém e de um cavaleiro francês na Herdade da Comporta,
ambos em 2012.
A
grande maioria destes suicídios é provocada por estados depressivos e de
ansiedade, os quais são resultado da pressão colocada em cima dos desportistas,
pela sua ânsia de ganharem ou atingirem bons resultados competitivos e pelas
exigências de um desporto sujeito ao mercantilismo, a patrocinadores, a
dirigentes e treinadores sem escrúpulos, ao uso da imagem e ao consumismo. A
máquina desportiva (ao contrário do que muitos parafraseiam) não se compadece
com a formação dos desportistas, com a sua maturação, a sua sociabilização e a
sua adaptação. Mas o competidor também tem a sua quota parte das
responsabilidades ao tentar alcançar os maiores feitos a qualquer preço, ao
querer ultrapassar o inultrapassável – os seus próprios limites –, ao arriscar
a sua saúde e a sua vida, e a correr atrás da fama, da glória e do dinheiro. E
não, não estão sozinhos nesta corrida: nós temos também as nossas responsabilidades
ao aclamá-los, ao incentivá-los, ao continuarmos a correr atrás da vitória, do
recorde, da exaltação e do herói.
Muitos
destes factos ocorrem nas cercanias de outros fenómenos: o treino intensivo
precoce, o doping e o terminar de uma carreira…
O
médico Jean-Pierre Mondénard[95]
mostrou-nos em 1998 que dos 677 ciclistas franceses que participaram na Volta à
França num espaço de 51 anos (de 1947 a 1998), 77 faleceram prematuramente
(serão só 11%, dirão alguns!), e destes 30 morreram de cancro, 18 de doenças
vasculares, 19 em acidentes de viação e 5 suicidaram-se. Estes últimos são só
6,5%, dirão alguns…
Mas
no desporto o suicídio não atinge só os principais intervenientes. Em 2011, na
Alemanha, o árbitro Babak Rafati tentou cometer suicídio horas antes do
encontro entre o Colónia e o Mainz. Em 2012 o treinador russo da equipa
feminina de voleibol, Sergey Ovchinnikov, de 43 anos, consumou o suicídio. E só mais um exemplo: Robert Follis, treinador de MMA,
cometeu suicídio em 2017.
Resultado
diferente tiveram aqueles que escaparam aos seus impulsos ou que não sucumbiram
à depressão. Michael Phelps reconheceu ter pensado em suicidar-se logo após os
J. O. de Londres em 2012. Em 2015 o futebolista Emmanuel Adebayor
confessou já ter pensado em cometer suicídio em várias ocasiões, tal como em
2016 Ronda Rousey também admitiu que chegou a ponderar o suicídio após a
derrota por KO frente a Holly Holm…
Infelizmente em Julho de 2020 uma nova tragédia: Ekaterina
Alexandrovskaia, campeã mundial de juniores em
patinagem artística de 2017, com 20 anos,
lança-se de um 6º andar em Moscovo. O desfazer da parceria com Harley Windsor
parece estar na origem do trágico desenlace…
Urge estudar esta problemática[96].
Urge proteger a saúde e a vida de competidores seja qual for a sua modalidade,
a sua idade ou o seu estatuto desportivo. Urge modificar comportamentos e criar
condições para que estes exemplos não se repitam. É urgente que o desporto o
permita. E o possibilite!
31. Dois livros, duas medidas!
06.07.2020
Em
2007 tivemos a oportunidade de ver publicado o livro intitulado «Em defesa do
desporto – mutações e valores em conflito»[97]
com Jorge Olímpio Bento e José Manuel Constantino como coordenadores e
patrocinado pelo Comité Olímpico de Portugal. Prefaciado pelo então Presidente
do COP, José Vicente de Moura, podemos ler no mesmo que os autores dos
diferentes textos “não se limitam a acrescentar um tijolo ao muro do
conhecimento” porque “eles derrubam-no e estabelecem uma nova fasquia quanto
aos moldes modernos de o entender.” É um livro com o contributo de autores de
várias áreas as quais possuem conexões com o desporto: educação física,
pedagogia, direito, psicologia, ética, economia, medicina, estética, saúde
pública, jornalismo, antropologia, sociologia e até literatura moderna.
Numa
análise sopre o desporto moderno, esta obra coloca no lugar a actividade
física, a educação física e o desporto, assim como os valores deste último, mas
também equaciona o papel do espectáculo desportivo, o papel do dinheiro no
desporto e as várias profissões que gravitam em torno do mesmo. Realce-se a
demonstração (J. O. Bento) de o desporto ser “uma prótese para uma infinitude de insuficiências e deficiências que
nos limitam e apoucam. É uma réstia de esperança!”. Aborda também os
prováveis efeitos sobre o desporto do avanço do conhecimento genético e dos
meios de comunicação social, tal como aborda o alto rendimento e o papel do
desporto na escola e no turismo. Um facto importante que este livro nos
apresenta é o de o desporto possuir o seu “próprio Direito” (J. M. Meirim). É
um livro que não esquece o desporto para todos, a performance e a excelência
desportiva mas que também nos alerta (T. Marinho): “sejamos conscientes dos nossos limites, mas não nos limitemos a aceitar
que não é possível irmos mais longe, sermos mais altos e sentirmo-nos mais
fortes.”
Aqui
poderemos ver que o desporto foi evoluindo ao longo dos tempos e que nesta
altura, em 2007, mesmo entre nós, ele já se encontrava num outro patamar muito
diferente do século passado, ao ponto de se afirmar (F. Tenreiro) que “nos países mais desenvolvidos a ética é
promovida e defendida porque é um bem valorizado económica e socialmente. O
mercado da ética do desporto português não existe.”
E
assim verificamos que de um desporto em que o objectivo principal era a moral e
a educação, se passa progressivamente para um desporto virado para o objectivo
espectáculo. Posteriormente, com a profissionalização da maioria dos intervenientes
directos no desporto e com a panóplia de actividades da mais diversa índole
envolventes do mesmo, com a entrada em cena dos mass media e, posteriormente da tecnologia, passamos a um desporto
pós-moderno.
Aquilo
que inicialmente era uma actividade que servia de fruição para uns enquanto
outros se distraiam assistindo, para ocupar os tempos livres e que possuía um
carácter formativo acaba por se transformar numa actividade económica ao redor
da qual proliferam inúmeras outras actividades. Do ócio, através da sua própria
negação, passa-se ao negócio…
Treze
anos depois, agora, temos a oportunidade de assistir à publicação de «e-Sports:
o desporto em mudança?»[98],
uma outra colectânea de textos tendo como coordenadores José Manuel Constantino
e Maria Machado e também patrocinada pelo COP e com prefácio do seu Presidente.
Embora seja uma obra específica sobre os e-Sports,
debruça-se sobre o conceito de desporto tal como sobre o fenómeno digital e
reflecte a posição de um vasto inúmero de autores associados às Ciências do
Desporto. Desde aqueles que, e segundo diferentes perspectivas, parecem
peremptoriamente afirmar que «os e-Sports são desporto» aos que pretendem uma
nova definição do conceito de desporto e a inclusão dos e-Sports na mesma, encontramos ainda aqueles que se interrogam
sobre a questão (P. Martins, J. Lameiras e A. B. Ramires, assim como M. J.
Andrade), numa posição mais ou menos expectante. Duarte Araújo é o único autor
a escrever claramente que “quando se
discute se e-sport está contido no conceito de desporto, a resposta tem de ser
negativa.” No pólo oposto Alexandre Mestre não tem dúvidas: os e-Sports são desporto.
Neste
livro revela-se a evolução dos e-Sports,
o crescimento progressivo de jogadores e espectadores, assim como o elevado
volume de negócios envolvido nos mesmos e os pontos da sua inclusão como
desporto assim como os seus pontos positivos.
No
entanto também são denunciados “incidentes
comuns que decorrem na generalidade dos desportos (como a manipulação de
competições desportivas, o doping e a corrupção)”, os quais “acrescentam problemas particulares derivados
da natureza digital dos desportos eletrónicos” (J. P. Almeida e J.
Gonçalves) e também somos alertados (A. Neto e R. Magalhães) para o facto de
que “os mecanismos de estimulação
cerebral associados ao jogo são similares aos provocados por uma dose de
cocaína (por ativação de neurotransmissores – por exemplo a dopamina).” A
discussão do tema e a investigação são necessárias (J. Lameiras e A. B.
Ramires) “quando a dita ‘prática’ destes
jogadores contempla, muitas vezes, a permanência entre 6-10 h dia em frente a
um monitor, e para além das questões físicas e posturais, as experiências de
‘burnout’ emocional, de compromisso das competências sociais e consequente isolamento
social, de desenvolvimento de patologias de adição em idades muito jovens entre
muitos outros compromissos do foro da qualidade dos afetos e da estruturação de
uma personalidade iminentemente saudável precisam, por isso, ser colocadas no
centro das atenções.”
Em
2017 o Comité Olímpico Internacional anunciou a possibilidade dos e-Sports integrarem a família olímpica –
e não terá sido com o intuito formativo que o fez, dado ser uma empresa (uma big empresa) com lucros significativos.
Se
no livro publicado em 2007 Vicente de Moura dizia que era “imperativo não fazer cedências à moda e ter a coragem de ir além dela”,
no livro mais recente Pedro Sequeira e António Lopes dizem-nos que os e-Sports “já passaram claramente a fase em que foram considerados apenas uma moda”
pelo que eles mesmos “darão lugar a uma
nova redefinição do conceito de desporto e consequente inclusão dos e-Sports na
sua família.” Acrescentaríamos nós que o dinheiro mandaria muito nesta nova
redefinição…
E
após lermos ambos os livros, estamos em condições de responder à questão
colocada por Vicente de Moura no primeiro: “qual
é afinal o paradigma de organização e de desenvolvimento desportivo que não
vislumbramos e de que carecemos, que balize o nosso tempo?” Dirigentes,
políticos e empresários há muito que o perceberam: numa política neoliberal que
mercantiliza o desporto, a explosão das novas tecnologias e a integração destas
neste, animada por uma sede ilimitada de lucro, utiliza o desportista em seu
proveito próprio. E parece-nos que também estamos em condições de poder
responder a José Manuel Constantino, Presidente do COP, no prefácio do segundo
livro, quando afirma que é necessário “indagar
se é possível ao desporto continuar a invocar o seu valor educativo, a sua
dimensão cultural e a sua importância na saúde pública e ‘simultaneamente’
acolher práticas cuja dimensão salutogénica começa a ser questionada pelas mais
importantes instâncias científicas internacionais”…
De facto, como disse Ortega y Gasset, que nos foi trazido por
Vítor Serpa no «Em defesa do desporto», nós “temos o dever de pressentir o novo”!
32. Abuso da Escola, exploração
infantil!
21.07.2020
Foi
noticiado em «A Bola» (04.07.2020) que iria ser criado através do presidente da
Federação Portuguesa de Futebol o programa “FPF na Escola” para promover o
futebol entre as crianças dos 6 aos 10 anos, desenvolvendo um dia aberto em
cada escola básica do 1º ciclo, em parceria com clubes locais e com a
colaboração de ex-internacionais portugueses. Ficou só por explicar se este dia
aberto será por ano lectivo, por período ou por semana. Neste último caso não
nos parece – mas também será só isso – que haja tantos ex-internacionais que
possam apadrinhar este programa… ou que os que a ele aderirem possuam
competências pedagógicas para tal…
A
Escola sempre foi uma fonte de receita fácil dada a existência de um público
numeroso e localizado: eram os espectáculos de teatro, eram as apresentações de
cúpulas celestiais dentro de um insuflável, era a apresentação de robôs ou de
dinossauros telecomandados, era a apresentação de livros, era a fotografia dos
alunos, eram as exposições disto e daquilo… Agora parece que as escolas se
transformaram – ou virão a transformar – em locais onde “olheiros” poderão
recrutar mão de obra fácil para o futuro ou onde uma organização poderá
aumentar, quase que ficticiamente, o seu número de elementos integrantes
(chamemos- lhes assim!)… Esta é uma primeira questão e prende-se com o uso (ou
o abuso!) da escola.
Uma
segunda questão leva-nos a dois conceitos que circulam por aí: a «detecção de
talentos» e o «treino intensivo precoce». O
desenvolvimento motor da criança integra vários domínios: o afetivo, o social,
o cognitivo e, claro está, o motor – aquele “motor” que é visível dado que os
anteriores domínios o não são. Detectar talentos em tenras idades e treiná-los
para quê? A resposta só poderá ser uma: para futuramente alimentarem o
espectáculo e promoverem a venda de produtos – encontramos clubes, estádios e
desportistas sempre ligados a marcas ou a logos – a um público consumista.
Os programas desportivos na Escola (e recordamo-nos de dois
recentes, um ligado a patins, outro a bicicletas), deveriam estar mais
preocupados (assim como as entidades que os gerem) com a riqueza das
actividades motoras que permitem à criança desenvolver a cooperação, manifestar
sentimentos, enriquecer a sua compreensão do relacionamento eu/outro, a sua
integração no grupo e polir o seu comportamento. E perguntarão agora: então e
os períodos sensíveis para a evolução das capacidades motoras (recordamo-nos de
Grosser, assim como de Martin, no início dos anos 80 do século passado)?
Responderemos com duas perguntas: por que motivo tanta preocupação com as
capacidades condicionais e tão pouca com as coordenativas? Ou com as psico-cognitivas
dinâmicas?
Professores, treinadores e pais esquecem-se ou desconhecem
(ou fazem por desconhecer) que o desporto actual necessita instrumentalizar as
crianças desde cedo. Numa primeira etapa com campanhas de sensibilização, com
captação de jogadores, com capacidade de motivação e com oferta de recompensas.
Numa segunda etapa torna-se necessário manobrar para que elas interiorizem
desde cedo o sacrifício pelo jogo, que se habituem ao «no pain no gain», que se esforcem para atingir resultados nem que
seja a qualquer preço (sim, incluindo a fraude, o doping e a corrupção), que
aceitem correr riscos e que sejam adeptas da inexistência de limites. Por
último, são aliciadas com transferências para clubes de topo, com altos
ordenados, com patrocínios fantásticos, com a publicidade e com a venda de
direitos de imagem. O problema não reside nos que se esquecem ou desconhecem, o
problema reside nos que sabem disso e isso praticam – dos que se servem do
desporto! É assim que se constrói a carne para canhão que depois entrará numa
enorme máquina ao serviço do capital para após o final de carreira muitos
intervenientes ingressarem na mendicidade ou na venda de troféus ganhos durante
o percurso (a história do desporto está cheia destes exemplos).
A exploração infantil no desporto é um tema tabu, apesar dos
alertas entre nós pelo menos de Jorge Araújo, Mário Moniz Pereira, Paula
Brito, Teotónio Lima, Olímpio Bento, José Manuel Meirim e Gustavo Pires. Aqui
ao lado, em Espanha, Emilio Calderón fez acesas denúncias. Jacques Villiaumey e
Jacques Personne, em França, foram ainda muito mais incisivos.
E
embora o documentário “Athlete A” se foque nos abusos
sexuais ocorridos na USA Gymnastics,
assim como nas situações de protecção corporativista de vários dirigentes, podemos
ver nas entrelinhas toda a exploração infantil existente nesta modalidade.
Nádia
Comaneci foi campeã da Europa aos 13 anos e campeã olímpica aos 14, em Montreal
(1976), enquanto Maria Sharapova fez a sua estreia no circuito profissional de
ténis em 2001, com apenas 14 anos, em Indian Wells… Em 2008 Thomas Daley foi
medalha de ouro na prova de salto de plataforma de
Conseguiremos
imaginar o que foi e como foi a vida destas crianças?
Submetidas
a treinos bi-diários (ou até mais), com elevadas cargas horárias, com treinos
de enorme volume e/ou intensidade, não sobra tempo a estas crianças para serem
crianças. E os exemplos não estão só na ginástica, no ténis ou nos saltos para
a água. Eles abundam na natação, no atletismo, no futebol…
Se
em 2003 tínhamos Tyanna Madsen, uma criança com 6 anos e 28 quilos de peso, a
fazer o levantamento de um peso com 46 quilogramas, em 2020 temos Rory van
Ulft, com 7 anos, a fazer levantamentos até 80 quilogramas.
Que
infância teve Nicolás Millán que aos 14 anos (2006) se estreou na equipa
principal de futebol do Colo-Colo, ou Iker Muniain (2007) que com a mesma idade
foi chamado à equipa principal do Atlético de Bilbao, ou ainda Maurício
Baldivieso (2009) que jogou os últimos 10 minutos do encontro entre o La Paz e
o Aurora da I Liga da Bolívia aos 12 anos?
A
futebolização da Escola é perigosa. É perigosa por causa da apropriação do
futebol assim como da Escola e porque para além de instrumentalizar crianças –
relembramos que são crianças dos 6 aos 10 anos – instrumentaliza a própria
instituição.
33. Medalheiros: a
falácia dos números
19.08.2020
Realizar-se-ão os Jogos Olímpicos de 2020 em 2021? Ainda não
o sabemos. Sabemos no entanto que Portugal terá uma comitiva de cerca de 70
a 80 atletas. Previsões de há um ano estimavam duas medalhas e doze diplomas
(lugares entre o quarto e oitavo lugar).
No
Rio de Janeiro, em 2016, tivemos 92 atletas (18 eram de futebol). O “projecto” incluía 12 “atletas com
potencial de medalha” (aos quais se juntava a selecção de futebol)… Portugal
regressou apenas com uma medalha de bronze!
Embora não servindo o medalheiro de uns Jogos Olímpicos como
medida da cultura desportiva de um país – já que o COI não
reconhece a existência de um quadro de medalhas porque isso criaria uma
competição entre países, alegando que não é esse o objetivo dos J. O. – certo é que a comunicação social, nessas alturas, apresenta
sempre esses quadros e induz-nos a essa leitura quando nos deveria conduzir
para uma análise que se centrasse na razão entre o
nosso número de participantes e número de lugares no pódio... correlacionando
esta razão com as verbas despendidas para formar os presentes! E talvez fazê-lo
também em relação ao número de habitantes do país. Só colocando todas estas
variáveis a interagirem entre si poderemos ter uma noção fiável da nossa
cultura desportiva. Não sendo assim, o medalheiro só nos mostra a falácia dos
números…
Mas o medalheiro é importante – principalmente quando há
muitos e bons resultados – para vender a ideia de que o país está bem e de
saúde a nível desportivo… quando esses resultados não acontecem o medalheiro
cai no esquecimento ou até é escondido. Por vezes até há quem meça com ele o
índice da cultura desportiva do país quando o deveria medir por valores mas
também por contra-valores, por normas e pelo seu cumprimento mas também pela sua
violação, por símbolos e pelo seu enaltecimento (ou não!) e, por fim, por
crenças, quer sejam elas positivas ou negativas.
Vejamos
um exemplo concreto: no Campeonato da Europa de Atletismo de 2018, em Berlim,
Portugal participou com 37 atletas tendo conseguido duas medalhas de ouro (Inês
Henriques e Nelson Évora). Um 11º lugar no medalheiro... (28 países medalhados,
50 participantes, ou seja, na metade superior da tabela). No entanto, daremos
conta que a Grécia, com o mesmo número de participantes, obteve um 6º lugar no
medalheiro graças a 3 medalhas de ouro, 2 de prata e 1 de bronze. Dos países
com um número de atletas mais próximo daquele da comitiva portuguesa, 35, só a
Hungria ficou depois de Portugal (26º lugar apenas com 1 medalha de bronze),
dado que a Bélgica com 3 medalhas de ouro, 2 de prata e 1 de bronze alcançou um
5º lugar. Até a Noruega, com 33 atletas (menos atletas que Portugal), ficou à
frente do nosso país: 8º lugar com 3 medalhas de ouro, 1 de prata e 1 de bronze
(mais pódios que Portugal).
É
este o exercício que faz prova de uma literacia desportiva: a razão entre o número de participantes e o número de
medalhas obtido.
É
necessário um medalheiro? Vai sendo preciso na sociedade actual… dado o sistema
económico vigente e a mercantilização do desporto. Jean-Marie Brohm[99],
já em 1993, nos mostrava que “o desporto
actual é um subsistema do sistema capitalista do qual ele refracta todos os
princípios de funcionamento, todas as tendências, todas as contradições.” É
necessário um medalheiro para se manter a reprodução!
Por
que motivos? Porque é necessário para os dominantes continuarem a dominar que
se forjem os juízos de valor mais sobre os resultados que sobre os processos…
Brohm mostra-nos exactamente isso na sua última obra, «Le Sport-Spectacle de
Compétiton»[100].
Um país em que os seus habitantes são dos que menos exercício
físico fazem a nível europeu não pode ter um elevado índice de cultura
desportiva. Quando o desporto revela o que de pior possui o ser humano, em vez
de mostrar o seu melhor ou de contribuir para a sua formação, essa montra serve
uma certa reprodução e em nada melhora o índice de cultura desportiva do país.
Não é só o público que deveria saber ler e interpretar as classificações.
Dirigentes e responsáveis, quer sejam de clubes, de federações ou até mesmo do
Governo, também o deveriam saber.
Tal
como naquele conto oriental em que certo Mestre varria o chão quando um monge
lhe perguntou: “Sendo vós o sábio e santo
Mestre, dizei-me como se acumula tanto lixo em seu quintal?” Respondeu-lhe
o Mestre, apontando para o quintal: “O
lixo vem lá de fora.”
34. E de repente
descobriram… a formação!
21.09.2020
A pandemia (proveniente do grego
«de todo o povo» – restará agora definir o que é «o povo»), com todas as suas
restrições, os seus confinamentos, os seus distanciamentos, levou à descoberta
de realidades que andavam ou escondidas ou ignoradas.
Temas como “a função educativa do desporto” ou “o carácter
educativo do desporto” ou “os valores do desporto” regressaram à ribalta. Clichés como “o desporto é muito mais
que saúde, bem-estar e lazer, o desporto é educação” voltam ao nosso quotidiano
na tentativa de demover governantes – aqueles que dizem “não temos conhecimento
de nenhum clube que tenha fechado portas” – a recolocarem o público nos
estádios (recolocado que está na Fórmula Um), a permitirem que as escolas de
formação de futebol dêem continuidade ao seu métier, a autorizarem a reabertura de academias e ginásios e a
consentirem a prática dos desportos de contacto – não aquele contacto das
comemorações do golo do futebol, mas aquele contacto de oposição, de luta, de
combate.
Resta discernirmos se esta preocupação se prende de facto com
a formação do carácter do ser humano, com a transmissão de valores positivos,
com a saúde dos jovens praticantes (não só corporal mas também com a sua saúde
social, emocional e mental), se se
prende com o desenvolvimento psico e sociomotor da criança, do atleta, do
jogador, do desportista, se se relaciona com o aperfeiçoamento do gesto técnico
e da preparação táctica com vista à competição, ou se esta preocupação revela
outros contornos.
Na página online
«fairplay.pt» Francisco Isaac propõe o seguinte exercício matemático “fácil para compreender e perceber o impacto
económico e social usando o rugby como exemplo: imaginemos que 50% dos atletas
jovens (entre os 6 e 18 anos) deixam de estar ligados à modalidade, perdendo-se
quase 3000 inscritos num só ano. Se cada inscrito pagar 350€ ao seu clube – uma
média geral para o que os emblemas nacionais aplicam no acto de inscrição no
início de época – dá-se uma perda imediata de 1.050,000€ (sim, leram bem… 1
milhão de euros), que significa um buraco na
saúde orçamental dos clubes e por conseguinte da federação.”
E Francisco Isaac continua o seu exercício: “O mais grave desta matemática é a seguinte
equação adicional, que passa pelo abandono de jogadores e a perda total de inteiras
gerações, pois mesmo que alguns atletas permaneçam, estes não podem competir e
pôr em prova as suas capacidades, sendo testados até ao limite em termos de
durabilidade mental para aguentar treinos de distanciamento durante uma época
inteira (quando nas actividades escolares vão andar sempre lado-a-lado com os
seus colegas…). Se avançarmos três ou quatro anos no tempo, abrem-se
consecutivas falhas nas equipas de formação seja nos sub-8/10/12/14/16/18 e seniores, colocando o rugby português no
limiar de um abismo que será impossível de evitar. A qualidade individual
e de jogo vai cair abruptamente, o rugby (e qualquer outra modalidade afectada
pelas “recomendações” da DGS) vai sofrer um retrocesso quase sem precedentes e
o apoio estatal será quase zero, independentemente da cor política ou partido
que esteja no seu poder (quando actualmente já o é) – desde Março até Agosto de
2020 só por uma vez o primeiro-ministro de Portugal falou sobre a situação
desportiva portuguesa.”
Desta análise de uma modalidade, e que poderemos extrapolar
para muitas outras, retiramos duas ilacções. A primeira, económica. A segunda,
social. Seria uma análise completa se da mesma conseguíssemos tirar mais uma
ilacção, que passaria necessariamente por ser do foro pedagógico...
Em relação à primeira, recorre-se aos parâmetros educativos
do desporto e aos seus valores formativos para se garantir uma subsistência
monetária. Releva a fonte de rendimentos de clubes, academias e ginásios, com o
subsequente suporte de patrocinadores (em suma, o negócio!).
Em relação à segunda, continua-se a propalar as virtudes da
prática desportiva mas o objectivo final é o da competição-espectáculo (que não
deixa também de ser económico) a qual nada tem a ver com essas virtudes.
Olvida-se no entanto, aqui, o papel do treinador dos escalões
de formação (as suas competências pedagógicas) e a sua subsistência em termos
salariais. E se a grande maioria das modalidades competitivas vive para o
resultado, se muitas crianças e jovens há a treinar de uma forma desmesurada
(treino intensivo precoce), percebe-se a preocupação dos treinadores em termos
da sua visibilidade através dos troféus para além do seu ganha-pão. Mas existem
modalidades (ou sectores de algumas modalidades) em que a formação é
exactamente isso: o desenvolvimento harmonioso do ser humano e o seu
apetrechamento de capacidades de resposta a diferentes situações, de esquemas
de comportamentos e respectiva associação entre eles. É precisamente nestas que
o treinador mais para trás fica, mais ignorado é, quer seja por falta de
interacção com os seus colegas dado não se enquadrar num quadro competitivo
quer seja pela inexistência – ou inoperância – de estruturas associativas que o
possam representar. Encerram-se assim, principalmente, academias e ginásios
devido às restrições impostas.
E torna-se irrelevante que o desporto seja incluído na versão
final da Visão Estratégica para o Plano de Recuperação de Portugal 2020-2030,
apresentado por António Costa Silva. A preocupação somente com desportos
náuticos, eventos e estágios internacionais apontados como estratégicos nesse
plano só nos mostra o desrespeito pela formação e o acabar com a base da
pirâmide, o que implicará que daqui a uns tempos não haja topo. Quando a própria máquina mercantilizada e
mercantilizadora é ignorada, mais facilmente são triturados os seus
intervenientes directos. Quando a máquina está de tal maneira bem oleada, não é
um grão de areia – nem um penedo – que a irá fazer emperrar!
A pandemia (a tal «de todo o povo») leva-nos a um estado de “saber e não saber, ter uma noção de absoluta
veracidade enquanto se dizem mentiras cuidadosamente elaboradas, defender
simultaneamente duas opiniões que se anulam reciprocamente, sabendo-as
contraditórias e acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar
a moral ao mesmo tempo que se reclama a moral (…).” Mil novecentos e
oitenta e quatro. George Orwell[101].
Quase quatro décadas de atraso… em relação ao previsto!
35. A panaceia dos
recordes!
12.11.2020
Um estudo realizado em 2008 por Mark W. Denny[102],
da Stanford
University, usando três modelos matemáticos, estimava os
tempos limites do ser humano masculino e feminino, para as várias distâncias
das provas de atletismo (excepto para os 3.000, 5.000 e 10.000 metros femininos).
É o único estudo científico predictivo que conhecemos
(podendo no entanto existir outros) em que, recorrendo a várias variáveis, limites de
velocidades absolutos são definíveis e dos quais os actuais recordes se aproximam
dos máximos previstos.
Nenhum dos
tempos estimados foi até ao momento alcançado… excepto o da maratona. No mesmo apresentava-se a possibilidade de se estabelecer como
recorde humano masculino para a maratona o tempo de 2h 00m 47s. Sensivelmente há um ano (12.10.2019) Eliud Kipchoge
estabeleceu um máximo, em Viena, embora não homologado oficialmente, de um
tempo para a maratona inferior a duas horas: 1h 59m 40s.
Para além do facto de Kipchoge ser um atleta excepcional –
provavelmente seria o único, actualmente, a conseguir esse tempo – este tempo
foi possível devido a várias circunstâncias também excepcionais: correu
atrás de um carro que para além de funcionar como corta-vento marcava o tempo
ideal no piso através de laser (pacemaker); teve a ajuda de mais de 4 dezenas
de lebres por turnos; o percurso foi feito em quatro vezes num circuito plano
de cerca de um pouco mais de 9Km com um desnível máximo de 2,4 metros; a data
do evento foi marcada por meteorologistas que determinaram o momento ideal da
prova para garantir que nesse dia o vento iria estar a menos de 14 quilómetros
por horas, que a temperatura estaria entre os 10 e 12 graus e que a humidade
estaria a menos de 70%; por último, a utilização de sapatilhas estudadas e
construídas de propósito para o efeito utilizando placas de carbono por uma
marca desportiva que patrocinou a prova.
Este
tempo não vem colocar em causa o estudo de Denny dado que o mesmo foi obtido em
condições ideais e não com as condições normais de uma competição – sem se
retirar o devido valor a Kipchoge, antes pelo
contrário. As experiências de “laboratório” mostram até onde o ser humano pode
chegar se optimizadas todas as variáveis enquanto a realidade competitiva é
muito diferente e provavelmente até com mais variáveis a terem de ser
consideradas. Exactamente como quando adquirimos um automóvel novo e nas suas
especificações se expressa que consome 4,5 litros aos 100 quilómetros… e nós
nunca o conseguimos colocar a gastar esses 4,5 litros nessa distância porque é
testado em condições ideais e nós conduzimo-lo em situações normais.
Em
Valência, em Outubro de 2020, foi
organizado um evento para se baterem os recordes mundiais de 5.000 metros
femininos e 10.000 metros masculinos. Ambos os objectivos foram alcançados. Na
primeira prova Letesenbet Gidey bateu o recorde
mundial com 14m 06,65m e na segunda Joshua Cheptegei faz cair o anterior
recorde (pertença de Kenenisa Bekele com 26m 17,53s desde 2005) com 26m 11,00s
– marca que se aproxima dos 25m 03,40s estimados por Denny.
Neste último, com 6 atletas, utilizadas também duas lebres na
prova feminina (apesar dos últimos 2.000 metros um solo de eleição de Gidey) e seis lebres na prova masculina, a qual
contava com oito atletas. Ainda em comum o uso da wavelight technology, as luzes junto à corda, azuis à
frente e logo a seguir verdes, que marcavam o ritmo ideal da corrida para se
bater o recorde do mundo.
O
que poderemos inferir da realização destes dois eventos? 1º - A contínua
batalha do atleta a tentar chegar sempre “mais
rápido, mais alto, mais forte”. 2º - A necessidade de se realizarem
eventos próprios – o INEOS 1:59 Challenge
e o NN Valencia World Record Day –
com a finalidade específica de se baterem recordes e com condições optimizadas.
3º - Para além da utilização da “tecnologia humana” (as lebres) acrescentou-se
a utilização da última “tecnologia tecnológica” (a motivação para acompanhar o
sinal luminoso); 4º - O benefício para as grandes marcas através da
publicidade.
Os
recordes ao alimentarem-nos o ego com a consequente identificação do comum dos humanos com
os seus heróis tornam-se assim uma panaceia difundida pelos mass media. Estes precisam dos mesmos para aumentarem as audiências ou para
venderem mais, tal como as grandes marcas e grandes patrocinadores. Sem
visibilidade, a quem interessariam os recordes?
Repare-se
agora em dois recordes que fizeram notícias, um já atingido outro perseguido.
João Almeida, quando se encontrava à frente do Giro em Itália (2020), já tinha batido o recorde de Joaquim Agostinho
o qual liderou durante cinco dias a Vuelta,
em 1976. Cristiano Ronaldo, com 101 golos marcados pela selecção nacional,
encontrava-se nessa altura a oito golos do iraniano Ali Daei. No entanto
Cristiano Ronaldo irá a tempo de bater o recorde de média de golos por partida
de Ali Daei? Este atingiu uma média de 0,73 (109 golos em 149 jogos) enquanto
aquele possui uma média de 0,61 (101 golos em 165 jogos).
Sergio Ramos ao fazer o seu 177.º jogo oficial com a camisola
da seleção A espanhola, tornou-se no jogador europeu mais internacional da
história do futebol (Novembro de 2020). Mais um recorde para vir a ser batido
por CR7? Mais uma vez, sem dúvida que a questão dos recordes é uma questão
de escolha de variáveis…
O
recorde é necessário para fomentar o espectáculo. O Homo spectator necessita de alimento. Está criado o círculo
vicioso! Escolham-se as variáveis, crie-se o recorde! Mas interroguemo-nos, tal
como nos interrogava Marie-José Mondzain[103]:
“Quem é este homem espectador que está em
vias de se transformar numa partícula elementar de uma massa designada
«público», num certo ambiente tecnológico, industrial e financeiro?”
36. Factos e
interpretações!
12.11.2020
Num dos módulos do último Curso de Formação de Treinadores de
Karate, em que tive a honra de actuar como formador, explorava eu a axiologia e
as variáveis sócio-culturais desta modalidade fundamentado em vários factos
quando um formando me interpelou: “Por
que motivo o professor apresenta sempre os casos relativos ao desporto pela negativa?”
Respondi-lhe em três passos: o primeiro, irónico, porque para falar bem do
desporto já cá havia muita gente; o segundo, baseado em António Damásio, o qual
na sua penúltima obra[104]
nos diz que para se saber o que uma coisa é teremos de saber o que ela não é (a
citação correcta é: “Para explicar bem o
que uma coisa é, convém deixar claro o que a coisa não é.”); o terceiro,
elucidando-o que não apresento os casos pela negativa, antes apresento aqueles
que menos são conhecidos tanto dos treinadores como dos desportistas e do
público em geral – são factos, independentemente das interpretações –, dado que
se fala muito em ética no desporto e em valores do desporto mas o resto fica na
penumbra e, embora seja normal abordarem-se casos de corrupção, de violência e
de doping no desporto, muito fica por apresentar ou por esclarecer em relação
às restantes perversidades no desporto. E elas existem…
Mas por que motivos se coloca, e bem, uma questão destas num
módulo de Formação de Treinadores que aborda normas, símbolos, valores (éticos,
morais, sociais e individuais) e crenças? Exactamente porque o desporto tem
sido tratado de uma forma politicamente correcta. A única excepção vem de
Jean-Marie Brohm que, apesar de numa perspectiva marxista, desde a sua «Sociologie
Politique du Sport»[105]
em 1976, tem desenvolvido de uma forma perene a sua Teoria Crítica do Desporto[106].
O desporto tem sido apresentado como uma actividade educativa
e formativa imbuída de valores e de pressupostos éticos quando as suas características actuais estão acrescidas de exigências
sistemáticas de espectáculo, de interacção com os mass media, de organização através da política e da economia, da
presença do negócio, do marketing, da
tecnologia, da ciência e de um profissionalismo regulado juridicamente por
códigos laborais.
Pretende-se
que o desporto, ideologicamente, não se encontre açambarcado pelo capitalismo e
pelo mercantilismo quando, na verdade, já o está na prática. Nele, até os
humanos são transaccionáveis…
O
gosto do adepto ou do espectador pelo jogo ou pelo clube, a dedicação do
treinador e o comprometimento do desportista continuam ainda a explorar o ethos do «amor à camisola» – a paixão –,
da «verdade desportiva» – a justiça – e do «fair-play»
– a equidade. Invocam-se constantemente estes três conceitos, generalizados em clichés, sem se definirem previamente o
que são e do que se fala. E ao invocarem-se sem se definirem não poderemos
saber do que se está a falar, o que origina falsas interpretações.
O
desporto é actualmente um produto manuseado através de campanhas de marketing bem concebidas. Hoje em dia o
«amor à camisola» é vendido ao adepto sem disto ele se aperceber… e logo ele
corre à loja do seu clube a comprar a camisola (com o patrocinador nas costas),
o boné, o cachecol e a bandeira do mesmo – para além do bilhete para assistir
ao evento como espectador. Aquilo que o adepto despende para o clube pelo seu
«amor à camisola» é uma parte importante dos montantes que o financiamento do
clube proporciona a alguns. Afinal, o adepto acaba por comprar a sua própria
paixão… Mas no sentido inverso, o adepto – espectador in loco ou espectador no sofá – não absorve só o espectáculo
desportivo: ele absorve também, através de imagens subliminares, tudo aquilo a
que é exposto. E aí a publicidade faz o seu trabalho. Já não consumimos publicidade! É a publicidade que nos consome!!! E aí
somos manipulados… mesmo que tenhamos uma crença contrária!
E o espectador – tal como o próprio jogador, o treinador, o
árbitro, o jornalista, o comentador – traz à liça na sua argumentação a
«verdade desportiva» e o «fair-play».
Peça-se a qualquer um destes intervenientes no fenómeno desportivo para definir
qualquer um destes conceitos… (exercício que o próprio leitor poderá executar!)
e veja-se qual o resultado.
Como nos diz Manuel Sérgio[107]
(4), “são muitos os riscos de alienação,
no consumo do desporto, por parte do espectador pois que é tentado a fazer seus
alguns valores que o desporto altamente competitivo produz e reproduz: a
quantificação do êxito, a exaltação desmedida dos mais capazes e a hierarquização
meritocrática – valores que não têm em conta quaisquer critérios pedagógicos e
não ajudam por isso, à formação de pessoas livres e libertadoras.”
Não se trata de negar a existência de valores no desporto –
porque sim, eles existem e estão aí inúmeros factos para os demonstrar. Os
valores podem e devem ser apresentados através dos contra-valores e a ética ser
apresentada através do seu inverso, mas realcemos que a função formativa do
desporto – formação do carácter, inculcação de valores tais como a disciplina,
a perseverança, a cooperação, a justiça – está só presente na fase inicial da
práctica do indivíduo. Passada esta, o desporto deixa de ser apenas para
desportistas e passa a ser só para vencedores.
Será a transparência de métodos e de actuação uma pertença do
desporto?
Por que motivos tantos suicídios provocados por condições
existentes no desporto? Sim, porque são mais do que imaginamos…
Quais as causas – ou as origens dessas causas (este é o ponto
que, de facto, me parece ser mais relevante, embora nunca abordado!) – de tanta
morte súbita na competição? Sim, “tanta” porque a maior parte dos casos nem
sequer são divulgados ao público em geral. Estatísticas no nosso país são
desconhecidas. A própria comunidade médica parece revelar um certo desassossego
em explicar cientificamente estes casos.
As circunstâncias em que decorre o treino intensivo precoce
nas várias modalidades são explicadas em toda a sua plenitude? Até que ponto
não se trata – ou tratará mesmo? – de exploração infantil?
As fraudes cometidas intencionalmente por competidores,
treinadores, árbitros e outros agentes desportivos, não só no futebol mas
também na ginástica, no atletismo, no ciclismo, na esgrima, no ténis e em
muitas outras modalidades fazem ou não parte do desporto?
Os resultados combinados, a manipulação destes por causa das
apostas e a movimentação de altas verbas à volta dos mesmos serão variáveis
inerentes ao próprio desporto?
E o que dizer sobre os abusos sexuais no desporto? Os
detectados e os não detectados… São relatados e/ou participados todos os casos
ocorridos? São sancionados? Existem estratégias de prevenção?
No que se refere à morbilidade e às lesões permanentes dos
competidores com a consequente interrupção antecipada das suas carreiras
desportivas, há medidas para a sua diminuição? Sabemos que o risco e o acaso
fazem parte do desporto, mas o sistema desportivo acautelará os interesses e a
integridade física (e psicológica) dos desportistas?
São factos existentes, ocorridos, interpretemo-los de um modo
ou de outro. Mas o que é feito para serem evitadas ou prevenidas estas
situações e as mesmas erradicadas do desporto?
São perguntas demais para tão poucas respostas… e repare-se
que sobre corrupção, violência e doping nem sequer aqui deixo uma palavra.
É hora de deixarmos de analisar o desporto de uma forma
politicamente correcta. Temos de analisar factos, ponderar diferentes
interpretações e conjugar medidas. Já não vamos lá só com campanhas de
sensibilização nem só com o agravamento de sanções. Sejamos realistas e
tratemos de explicar o desporto através dos seus efeitos para conseguirmos
chegar a bom porto. Sim, é isso mesmo: efeitos – e-fei-tos!
37. Da apetência
pelo recurso à fraude!
04.12.2020
A ambição faz parte do ser humano. A ânsia do poder, o desejo
da vitória e do sucesso, o almejo da glória e a aspiração ao estrelato levam o
mesmo a tentar alcandorar-se ao nível dos deuses – senão tornar-se em próprio
deus como nos diz Yuval Harari[108].
O mesmo Harari que também nos diz que a ganância é inerente ao ser humano.
Razões suficientes para que quaisquer meios sirvam para alcançar os fins. Os
fins justificam então esses meios. Mas sabendo-se que o topo está lá, que é uma
realidade atingível, os meios justificam os fins a serem alcançados.
Com o cancelamento de vários eventos competitivos devido à
pandemia, as diferentes modalidades criaram competições virtuais – ciclismo, salto com vara, karate e futebol entre outras –
apresentando mesmo atletas reais a competir. Daniel Abt, piloto
oficial da Audi na Fórmula E, na Race at
home Challenge, corrida virtual de automóveis, conseguiu através de vários
artifícios fazer-se substituir por um jogador profissional de e-Sports, Lorenz Hoerzing, acabando por
se classificar em 3º lugar nesta prova. Daniel Abt foi desclassificado,
sancionado com uma coima de 10.000€ (a qual reverteria para fins sociais) e,
laboralmente foi suspenso pela própria Audi Sport. Aconteceu em Maio de 2020!
O
desporto é palco profícuo para a existência de fraudes. Apesar de presentes em
todas as modalidades, são mais frequentes no atletismo, no ciclismo, e no
futebol.
No
atletismo e no ciclismo o mais frequente é os desportistas tentarem encurtar os
percursos por outro meio, repartir a distância
por vários estafetas ou usar dorsais e chips alheios ou utilizarem outros
artifícios para diminuírem os seus tempos. Frequente também a fraude
através da utilização de prémios (ou mesmo compra monetária) a fim de alcançar
resultados mais glorificantes (etapas no ciclismo há que foram negociadas).
Se
em 1904, nos J. O. de St. Louis, depois do vencedor da maratona ser felicitado
pela filha do presidente Roosevelt, os juízes descobriram que ele tinha
cumprido parte do percurso de automóvel, em 1980 na maratona de Boston a
vencedora ao alcançar o terceiro melhor tempo da história apenas correu cerca
de 1,6 quilómetros. A sua imagem não aparece nos vídeos ou nas cerca de dez mil
fotos tiradas nos primeiros 40 quilómetros da corrida. Aconteceu!
Se
em 1904, no Tour de France, um
ciclista viajou de comboio durante uma etapa, em 2015 um outro foi desclassificado depois
de ter sido apanhado a agarrar-se a um carro na Vuelta. Também aconteceu!
Na
esgrima, conhecemos o caso do atirador que tinha um botão instalado no punho da
sua espada para, ao ser accionado, fazer acender a luz do marcador. Aconteceu nos J. O. de Montreal em 1976.
Menos
conhecido é aquele caso do membro do júri de atletismo que aproveitou uma
cerimónia protocolar realizada antes do último salto de um atleta, para medir e
registar em memória, no instrumento de medida, a marca de
Nos
Estados Unidos imensos são os casos em que jogadores de basebol utilizaram
tacos viciados. Foram revelados em 1994, em 1996, em 1997, em 2003 e em 2014
pelo menos. Aconteceram!
Nos J.O. de Sydney 2000, a medalha de ouro foi retirada à equipa
paralímpica de basquetebol de Espanha após ter sido descoberto que 10 dos 12
basquetebolistas se tinham feito passar por deficientes.
No
Mundial de judo de 2003, os adversários de um japonês queixaram-se por não
conseguirem efectuar as pegas nos combates que efectuaram com o mesmo dado que
o seu fato se encontrava impregnado com algo que tornava essa pega
escorregadia. Aconteceu!
Em
França, nesse mesmo ano, o pai de dois tenistas franceses introduzia
antidepressivos diluídos em garrafas de água dos adversários dos seus filhos
que trocava momentos antes dos jogos ou dos treinos. A morte num acidente de
viação de um jovem professor de ténis, depois de ter jogado com o filho mais
velho, em cujo corpo foi encontrada uma substância que este nunca tinha consumido,
veio revelar estas situações. Em 2006 acabou por ser condenado a oito anos de
prisão. Também aconteceu!
Em
2004 o Iraklis Clube de Salónica acusou o Akratitos de Atenas de ter juntado
uma substância às suas garrafas de água durante um jogo. Facto posteriormente
comprovado por análises laboratoriais!
Em
2007, Walter Schachener reconheceu, 25 anos depois, que existiu fraude no Mundial
de futebol de 1982. O resultado do jogo entre a Alemanha e a Áustria, foi
combinado (1-0) de modo a seguirem em frente ambas as equipas em detrimento da
Argélia. Schachener chamou-lhe fraude, Hans-Peter Briegel preferiu chamar-lhe “pacto tácito de não-agressão”.
Aconteceu!
Em
2009 na Fórmula Um e no râguebi foram conhecidos casos de fraudes, tal como em
2012 no badmínton ou em 2015 na NFL[109].
E
sobre o Mundial de 1986 – numa altura em que Diego Maradona nos deixa – muitos
abordaram o golo da «mão de Deus», nos quartos-de-final no México, entre a
Argentina e a Inglaterra – talvez não a maior fraude de sempre, mas a mais conhecida
– porque foram obrigados a abordar a genialidade do segundo golo desse
encontro. Mas essa obra-prima não elimina a fraude anterior: a mão de Maradona
chega mais alto que as mãos de Shilton e Ali Bin Nasser valida o golo. Esta a
fraude maior cometida pelo astro. Em 2005, num dos programas «La noche del 10»
– apresentado pelo próprio Maradona –, transmitido pelo canal 13 da TV
Argentina, com Pelé presente como seu convidado, Maradona afirmou que os
jogadores brasileiros tinham bebido água com calmantes, oferecida pelos
argentinos no intervalo do jogo do Mundial entre o Brasil e a Argentina, em
Itália em 1990, e ganho por estes últimos. Só ele o poderia confirmar… Dois
factos que aconteceram!
Em
Portugal também já tivemos «a mão de Vata» em 1990, na meia-final da Taça dos
Clubes Campeões Europeus entre o Benfica e o Marselha… E aqui aconteceu mais
uma fraude! E validada também!
Mas
os métodos refinam-se. E refinam-se a par da evolução da civilização e da
evolução tecnológica. Se Sorel[110]
nos dizia que a ferocidade antiga
tendia a ser substituída pela astúcia, por outro lado Foucault[111]
afirmava que havia uma passagem de uma
criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude. Assim se chega
ao «doping mecânico» em que a fraude se consubstancia na introdução de pequenos
motores com as respectivas baterias dissimulados nas bicicletas dos ciclistas.
Aconteceu com Femke van den Driessche em 2016 e com Cyril Fontaine em 2017.
A competição exacerbada potencia o recurso à fraude. A fraude
não é mais do que aquilo que Jack Lewis[112]
define como sendo o impulso básico do ser humano: “maximizar os lucros sem olhar ao impacto negativo que isso pode ter nos
parceiros.” O desporto desenvolve nos competidores, nos treinadores e nos
dirigentes – não em todos felizmente – a apetência pelo recurso à fraude. É uma
das facetas do alcançar a vitória a qualquer preço. E a fraude prolifera no
desporto mesmo que não detectada, o que não faz com que não deixe de ser
fraude. E abstemo-nos de falar em suborno monetário ou em potencialização
bioquímica do rendimento…
38. Sobre as crenças
31.12.2020
“Explicar uma coisa, é retroceder
facilmente aos seus antecedentes;
conhecer uma coisa, é prever facilmente as suas
consequências.”
(William James, 1842-1910)
A criança é irrequieta: vai para o judo. O jovem não colabora
com os colegas: vai para o basquete. O miúdo é hiperactivo: vai para o karate.
A criança tem uma má postura: vai para a natação. O petiz é indisciplinado: vai
para o aikido. O jovem é obeso: vai para o futebol. Não se mexe: vai para o
atletismo. É desatento: mais um para o karate. Afinal o desporto acaba por ser
uma clínica… devido a acreditar-se em generalidades.
Vem isto a propósito daquilo em que se acredita sobre o
desporto, estando sempre à espera de benefícios por parte deste sem nos
interrogarmos se o desporto é neutro ou se o desporto é inócuo.
E se a maioria das pessoas ainda possuem crenças positivas e
fundamentadas em relação ao desporto durante a fase de formação de jovens
desportistas (mas atenção à deformação!), essas mesmas pessoas e talvez muitas
mais possuem crenças erradas em relação ao desporto profissional qualquer que
seja a modalidade, dado o actual estado de mercantilização do mesmo.
– Mister, acredita que ainda vai a tempo de ganhar o
campeonato? - pergunta o jornalista ao treinador. – Claro que sim, temos de
acreditar sempre que estamos sempre a tempo – responde o treinador.
– Com esta sua vinda, acredita que a prestação da equipa vai
melhorar? – questiona o comentador desportivo à recente aquisição. – Sim, eu
vim para ajudar o clube e prometo trabalhar, trabalhar muito para ajudar o
clube a ser campeão. E acredito que vamos ser campeões!
Mais uma vez, a propósito de crenças de jornalistas, de
treinadores, de comentadores e de desportistas…
Vivemos desde os primórdios da nossa espécie sujeitos a
crenças. A nível social em termos de superstições, de rituais e de opinião
pública, a nível individual em termos de convicções. Nos tempos actuais essas
crenças são ainda mais instiladas na nossa consciência pelos mass media.
As crenças são opiniões formadas, interiorizadas,
provenientes da nossa educação, das nossas vivências, da nossa formação… ou são
o impulso para tendências que seguimos devido aos nossos modelos, aos líderes
em que depositamos confiança, ou graças à acção da publicidade, do marketing ou da propaganda… Está nos
manuais.
As crenças
influênciam os nossos valores, que por sua vez se reflectem nas nossas atitudes
e que se demonstram nos nossos comportamentos. Também vem nos manuais.
Somos influenciáveis e
manipuláveis, e mesmo que estejamos a isso atentos as pressões podem ser tantas
que delas não conseguimos escapar. E sem darmos conta vamos construindo as
nossas crenças, quer sejam baseadas em factos fundamentados quer nos sejam
inculcadas pela repetição da apresentação de arquétipos quer de estereótipos.
Em tempos idos havia os que
acreditavam na Santa Inquisição, hoje em dia há os que acreditam que a Terra é
plana. Havia antigamente os que acreditavam no poder absoluto e agora há os que
não acreditam na ciência. Havia os que acreditavam nos ideais da Revolução Francesa agora há os que acreditam nos reality shows. E ainda há aqueles que
acreditam que o desporto é o remédio para todos os males.
Segundo Maria Luísa Soares[113],
“submetemo-nos às crenças – como seguimos
as regras –, sobretudo a essas crenças práticas sobre as quais se funda toda
uma forma de vida e de conduta. E aqui dá-se a submissão: à regra, ao hábito, à
nossa ‘imagem do mundo’, que não é uma teoria construída por nós, mas que nos é
conatural, de certa forma herdada, pertence-nos e possui-nos, dominando-nos
inconscientemente.” Há neste pequeno conteúdo três noções fundamentais: a)
a nossa submissão àquilo em que acreditamos (porque só vemos aquilo que
queremos ver), b) a noção de fazermos nosso aquilo que nos foi inculcado por
outros (a nossa disponibilidade para sermos enganados sempre que haja alguém
com disponibilidade para nos enganar); c) a noção daquilo que nos domina
inconscientemente por não estarmos (nem sermos) preparados a equacionar a
realidade dos factos e das suas interpretações por não termos (não nos ter
sido) desenvolvido um espírito crítico.
O desporto, submetido às leis do comércio, apresenta-se
apenas como espectáculo mas os seus fins últimos são económicos ou políticos.
Basta um olhar atento sobre o mesmo e analisarmos criticamente quais os seus
efeitos na sociedade e nos indivíduos. Basta não nos esquecermos das elevadas
quantidades monetárias que movimenta e pensarmos nos interesses imobiliários
dos clubes, no naming dos estádios,
na publicidade ostentada pelos competidores, na presente nos painéis
publicitários e nas conferências de imprensa dos treinadores de futebol, nos
direitos de imagem e nos direitos televisivos. Basta interrogarmo-nos sobre o
que produz um jogador de futebol por exemplo!
Como nos diz Manuel Sérgio[114],
é necessário reorganizar os fundamentos do Desporto (e repare-se no “D”
maiúsculo) através de uma séria crítica epistemológica, lógica e axiológica. E
ética e moral, acrescentaríamos nós. De salientar que, segundo o mesmo, na
mesma obra, “o Desporto só pode concorrer
à transformação do mundo se, primeiro, se transformar a si mesmo.” Para
isso não pode ser só um promotor da quantificação do sucesso, da exaltação
exacerbada dos mais aptos ou mais capazes, ou do desportista-mercadoria, ou da
simples hierarquização meritocrática. Ou ainda do vencer a qualquer preço
– pois o que conta, na realidade, é o
resultado. Nem da subserviência ao vil metal onde só o lucro interessa. Ainda
estaremos a tempo?
No dealbar de um novo ano, já na terceira década do século
XXI, que todos nós esperamos que seja melhor que aquele que termina dadas todas
as vicissitudes por que passámos, nada melhor do que nos determos um pouco nas
palavras de Augusto Curry[115]:
“quem não critica aquilo em que crê não
lapidará as suas crenças, quem não lapida as suas crenças será servo das suas
verdades. E, se as suas verdades forem doentias, certamente será uma pessoa
doente.” Com a implícita consequência de poder fazer outros doentes…
39. Acreditem se
quiserem!
31.01.2021
Os japoneses possuem o provérbio
“pouco se aprende com a vitória, mas muito com a derrota.” Ditado que
aportuguesámos para algo parecido com “na vitória comemora-se, na derrota
aprende-se.” Diferente era a posição de Napoleão Bonaparte, o qual dizia que o vinho
na vitória era merecido, na derrota necessário…
Se os provérbios
expressam algo que vem de antanho, baseados no senso comum ou na experiência,
também dão origem a muitas crenças. Mas se por um lado quem vê caras não vê
corações, por outro a cara é o espelho da alma… ou se saber esperar é uma
virtude, quem espera desespera…
Ao pretendermos, aqui e agora, complementar o
artigo anterior (“Sobre as crenças…”), fazemos esta pequena abordagem inicial
porque nas redes sociais proliferam os aconselhamentos sempre aos outros mas
relatos na primeira pessoa são quase inexistentes. É a agenda motivacional – "Quando
pensar que chegou ao seu limite, irá descobrir que tem forças para ir mais
além!"; "O único passo entre o sonho e a realidade é a tua
atitude!"; "Nunca é tarde demais para viveres os teus sonhos!".
Inexistente algo do género “Vou mudar de mentalidade para mudar o meu
comportamento.” Ou “Não farei ao meu vizinho o que não quero que me façam a
mim.”
Acreditarmos que seremos infalíveis, que poderemos ultrapassar os
nossos limites, que conseguiremos atingir a heroicidade, é um ferrete gravado
nos desportistas a fogo desde tenras idades. Ferrete inamovível quando
ancorado, como é usual, na pedagogia da dor: “no pain, no gain” ou “a dor é o que diferencia os campeões das
pessoas comuns.” Tanto a comunicação social como as redes sociais ampliam a
formação destas crenças sem se preocuparem se são produto do nosso conhecimento
ou se, efectivamente, são confirmadas pela ciência, isto é, se são verdadeiras.
O ser humano acredita – faz fé – numa ideia em
primeira instância e só depois apresenta a justificação para essa crença. E
muitas vezes acredita só no que quer acreditar independentemente da sua
justificação ou da sua veracidade. Acreditar num conceito, numa ou outra ideia,
é um impulso intuitivo e por isso mesmo a ausência de análises, de reflexões e
de um espírito crítico geram preconceitos e vieses cognitivos. E
deveremos estar atentos porque só há influencers
porque há os influenced... ou os idioters…
Na esteira de Maria Luísa Soares[116],
“embora algumas crenças não estejam sob o
domínio da nossa vontade e nos submetamos a elas como a um conjunto de hábitos
herdados ou adquiridos mas de um modo quase instintivo, isso não significa que
não as possamos reavaliar, rever: elas não são totalmente irreversíveis e a
revisibilidade constitui, de facto, um instrumento apropriado para compreender
os diferentes tipos de crenças e as diferentes relações entre elas.”
A
crença de que “pouco se aprende com a vitória, mas muito com a derrota”, não
será só uma prerrogativa dos desportistas. Também o é dos dirigentes
desportivos e dos políticos. Que o diga Orwell[117]
quando afirmou que “o segredo da governação consiste em combinar a crença na nossa própria
infalibilidade com a capacidade de aprender com os erros cometidos.”
Recorrendo ainda a Maria Luísa Soares[118],
o desejo humano de que as opiniões coincidam com
os factos só pode ser satisfeito pelo método científico. “Só o método científico tem a prerrogativa de fazer com que as nossas
opiniões coincidam com os factos, porque não são determinadas por nenhum factor
humano, mas por uma ‘permanência externa’, algo sobre o qual o nosso pensamento
não tem qualquer efeito, algo que afecta ou pode afectar qualquer ser humano.
Essa ‘permanência externa’ garante um consenso, que ultrapassa a fronteira da
opinião meramente individual e assume o carácter objectivo da verdade pública.”
Verdade pública: uma noção que exige um acordo sobre assuntos concretos e reais
com características inteiramente independentes das nossas crenças sobre eles.
Assim, só o método científico – com a dúvida, a incerteza e a
falibilidade – poderá produzir conhecimento. Não o poderão produzir crenças
injustificadas, infundamentadas ou não apoiadas em evidências verídicas… Ainda
segundo a mesma autora[119],
“a definição clássica de conhecimento
como crença verdadeira justificada aponta para uma dupla relação do
conhecimento com a da justificação e com a da verdade.”
Se nos preocuparmos em reflectir um pouco sobre o que tem sido a
evolução da nossa sociedade somente nas últimas décadas, verificaremos que
temos sido objecto de lentas mudanças na nossa forma de vida, imperceptíveis,
às quais nos vamos acostumando ou até absorvendo sem delas darmos conta. Factos
há que nos poderiam espantar há poucos anos e que aceitamos hoje em dia porque
foram pouco a pouco sendo futilizados e hoje apenas incomodam uns poucos e
deixam muitos na mais completa indiferença.
Em nome do progresso, da sustentabilidade, da estabilidade
económica, da ciência e da tecnologia (normalmente esquece-se o lucro!), são
pressionadas e esmagadas as liberdades individuais, a dignidade, a capacidade
de raciocinar e de reflectir… e até o objectivo de viver. Estas arremetidas têm
sido efectuadas lenta mas inexoravelmente, com a permanente cumplicidade das
vítimas, submissas, acríticas, manipuladas, subservientes.
Já não há previsões para o nosso futuro desportivo e ou social e
tudo reside numa enorme incógnita. Mas se continuarmos a acreditar no infundado
só estaremos a ampliar essa incógnita.
O despejar contínuo de informações pelos mass media – que não é conhecimento –, a desinformação constante,
as fake news, o politicamente
correcto e as crenças disseminadas pelos discursos que circulam nos meios de
comunicação preenchem os cérebros daqueles que, sem uma capacidade de análise
crítica, tudo aceitam, tudo absorvem e tolhem-lhes a possibilidade de
distinguirem umas coisas de outras e toldam-lhes o raciocínio… Os mass media e as redes sociais fazem o
seu papel! Criam crenças injustificadas. Produzem
ignorância e obscurantismo. E não é “perdoai-lhes
porque não sabem o que fazem”, porque, recorrendo a Sophia de Mello Breyner[120],
eles sabem exactamente o que fazem.
“Não há impossíveis.” Não há? Não, mas há altamente
improváveis. “Ultrapassa os teus limites.” Ultrapassa? Não, os limites existem
exactamente para serem limites, para não serem ultrapassados.
Winston, a personagem principal de «Mil novecentos e oitenta e quatro»[121]
resolveu, de facto, o enigma: “se ele
pensar que paira, e se ao mesmo tempo eu pensar que o vejo pairar, então a
coisa de facto acontece.”
40. Indústria ou comércio?
04.03.2021
Sendo o desporto a única
actividade mobilizando sem interrupção a atenção dos humanos como nos diz
Robert Redeker[122], seria conveniente sabermos – ou
tentarmos saber – quais os efeitos que produz na sociedade. Daí o título deste
artigo: é o desporto uma indústria ou um comércio?
Quando,
falando sobre o futebol e a pandemia, Aleksander Ceferin, Presidente da UEFA,
nos dizia que “para ser honesto, o
futebol é provavelmente uma das indústrias mais seguras” («O Jogo»,
16.11.2020), de imediato nos vem à memória a fábula de Antoine de Bierce[123]
intitulada «A ovelha e o leão»:
“– Tu és uma besta de guerra –
disse a Ovelha ao Leão – e, no entanto, os homens andam sempre a ver se te
conseguem apanhar. A mim, uma crente na não-resistência, não me dão caça. – Não
precisam – redarguiu o filho do deserto; – podem criar-te.”
Vindo
aquela afirmação de quem vem, de imediato se começa a construir dentro de nós,
se não analisarmos friamente os conceitos e de um modo crítico, que o desporto
actual é uma indústria. Um desporto actual pós-moderno que possui todas as
características do desporto moderno, sendo estas acrescidas de exigências
sistemáticas de espectáculo, de interacção com os mass media, com a política e com a economia, da presença do
negócio, da técnica, da ciência e do profissionalismo, o qual é regulado por
mecanismos jurídicos.
Vítimas
do cartesianismo, dividimos, compartimentamos e tudo classificamos (ou
rotulamos!). Quando somos invadidos por termos como sustentabilidade,
estabilidade e crescimento, pandemia, confinamento, reinvenção, resiliência,
mitigação, novo normal, estado de emergência, lay off, apoios, linha da frente, restrições, cerco sanitário,
desemprego, infectados, internados, casos positivos, casos suspeitos, casos
confirmados, casos recuperados, óbitos… o desporto não escapa à banalização da
sua classificação. E menos escapa a tentativa de nos fazerem acomodar a certas
classificações…
Fernando
Seara também alinha por este diapasão («A Bola», 14.02.2021) quando afirmava
que “por cá, e no nosso futebol, a
incerteza é muita, a angústia financeira imensa e a não proteção da indústria
bem perturbante.” Tal como Sónia Carneiro quando também nos dizia que
dependem da Liga Portuguesa de Futebol
Profissional “clubes, jogadores,
treinadores, funcionários e toda uma indústria que tem servido de ópio e de
dinamizador para uma população portuguesa” («O Jogo», 05.04.2020) num
artigo em que apresenta o futebol como “uma
indústria tão importante para a economia do país” e em que apresenta o
facto de a mesma estar “a trabalhar no
regresso, tão importante que é para esta indústria.” Aliás, foi
precisamente Sónia Carneiro («O Jogo», 09.08.2020) que nos revelou que o
Ministro da Economia e Transição Digital, Pedro Siza Vieira, reconheceu o
futebol como indústria na conferência «O Futebol Profissional e a Economia
pós-Covid19».
Muito
basicamente começaremos por definir «indústria» como qualquer actividade que
vise a manipulação e a transformação de uma matéria-prima com vista à obtenção
de um produto que seja considerado um bem de consumo e «comércio» como toda e
qualquer actividade de troca, logo de compra e venda, de mercadorias ou de
produtos.
Será,
de facto, o desporto uma indústria? Para o ser necessita de matéria-prima, da
sua transformação e da obtenção de um produto.
Quando
Jorge Bento[124] nos
apresenta a proporção de factores pedagógico-didácticos e lógico-objectivos na
configuração da matéria de ensino em Educação Física, apresenta um valor de
cerca de 85% para os primeiros e cerca de 15% para os segundos na educação
motora no ensino pré-escolar, sendo que os primeiros vão progressivamente
diminuindo até se chegar ao ensino secundário e ao ensino superior e os
segundos vão proporcionalmente aumentando. Poderemos fazer um transfer destes valores para a fase de
formação no desporto até se chegar à alta competição, ao rendimento e/ou ao espectáculo.
Logo, poderemos considerar que temos aqui numa fase inicial uma matéria-prima
que é trabalhada, o formando, transformada mais tarde no produto final – o
desportista. Fase que vai desde o início até ao momento em que sensivelmente os
factores pedagógico-didácticos e lógico-objectivos se equilibram na ordem dos
50% (após passada a fase de formação, sensivelmente no final da fase de
pré-especialização). É o tempo em que as habilidades motoras fundamentais são
transformadas em habilidades desportivas. É o tempo em que as potencialidades
são transformadas em capacidades, em competências. Portanto, poderemos assim
considerar até aqui o desporto, na realidade, como uma indústria. E esta é uma
primeira etapa em que os efeitos do desporto se reflectem mais sobre o próprio
indivíduo.
E
a partir daqui?
A
partir daqui entraremos numa etapa em que os efeitos do desporto se reflectem
mais sobre a sociedade, influenciando-a no seu aspecto estrutural e económico. Voltando
a Redeker[125], “longe de ser um ópio que adormece, o
desporto é uma matriz de tipos humanos tanto quanto de tipos de sociedade.
Portanto, ele não é um reflexo - segundo a crença de uma sociologia monótona e
preguiçosa, o futebol refletirá a sociedade, para o bem e para o mal -, mas o
contrário: o desporto estrutura a sociedade, modela-a, força-a a si mesma a
parecer-se consigo.” É a face visível do desporto.
E
começaremos por recorrer exactamente ao título do artigo de Sónia Carneiro – “Desporto é espetáculo” («O Jogo»,
14.07.2021). Se o desporto não existe sem movimento, sem jogo, sem agonística,
sem projecto e sem instituições (modelo pentadimensional de Gustavo Pires), ele
também não existe sem espectáculo.
Começa-se
com a sponsorização do desportista,
entra em funções a publicidade, o marketing,
o merchandising, os direitos de
imagem, as contratações e os salários, as compras e vendas de jogadores, as
cláusulas de rescisão, os direitos televisivos, as SAD’s, os investimentos
imobiliários… o que vem de imediato demonstrar o fosso existente entre as duas
etapas acima referidas.
Interpretar
o desporto actual revela-nos que a importância dos resultados é mais económica
e política que desportiva e que o lucro constitui a base do seu
desenvolvimento, desenvolvimento esse que acaba por gerar novo lucro – é o
retorno do investimento –, encontrando-se o corpo do desportista mercantilizado
e submetido a uma exploração mecânica e química sendo a saúde humana
secundária, com destaque para uma subordinação deste mesmo corpo ao rendimento
com uma consequente desvalorização ética, moral e axiológica. E de novo nos vem
à lembrança Antoine de Bierce[126]:
“Um político que assistia a uma sessão da
Câmara de Comércio pediu a palavra, mas viu a sua pretensão negada com base na
alegação de nada ter a ver com o comércio. – Senhor Presidente – disse um
Membro Idoso, levantando-se: – considero a objecção infundada. Este cavalheiro
tem uma estreita e íntima relação com o comércio: ele próprio é uma mercadoria.”
O
jogador não é mercadoria só ao ser vendido e comprado pelos clubes. Temos de
ver mais longe… No final dos jogos, para aplaudir os adeptos, Neymar recebia
375 mil euros… Thiago Silva recebia pelo mesmo 33 mil euros… em 2019. O
Bournemouth cobrava 204 euros aos pais de cada criança que entrava em campo de
mão dada com um dos jogadores da sua equipa de futebol… o Everton cobrava 790
euros… também em 2019. Exemplos que falam por si!
O
desporto actual, na sua máxima expressão, tem de ser encarado como uma
actividade económica que não gera nem bens, nem obras, nem cria riqueza –
apenas a movimenta em determinados sentidos. Actualmente o desporto não é só
consumido pelo espectador em directo: passámos da época do relato radiofónico e
do jornal em papel para a época da imagem e, na sociedade actual, o desporto é
consumido não só através da TV mas também da internet. A resposta à pergunta “o que produz um jogador de
futebol?” é pertinente. Produz espectáculo (e o consumidor desloca-se ao
estádio, paga o seu bilhete, leva a sua camisola que já adquiriu
antecipadamente, compra o seu cachecol… ou fica sentado no sofá inundado por
diversos estímulos… pagando a electricidade e a internet depois de ter adquirido os necessários gadgets) e produz a necessidade do
espectador consumir os produtos cujas imagens absorve subliminarmente e expressas
na sua camisola, nos calções, os logos das marcas desportivas, nos painéis do
estádio, durante o próprio evento na TV e simultaneamente com o mesmo ou ainda
nos anúncios no intervalo da transmissão televisiva.
O
espectáculo é um argumento de peso e que tem de ser tido em conta para se
classificar o desporto como comércio com todas as consequências inerentes. Já
em 1925, Pierre de Coubertin[127]
no seu discurso de demissão do Comité Olímpico Internacional pedia para o
desporto se pôr em guarda contra o profissionalismo, pois “o organizador de espectáculos tende a corromper o atleta para melhor
satisfazer o espectador.” Mas em 1999 Juan Antonio Samaranch[128]
solta o seu grito do Ipiranga: “We said
‘yes’ to commercialization (…)”!
Por
último, e para darmos resposta à pergunta inicial, uma resposta fundamentada
que nos leve a uma verdadeira classificação desta actividade, detenhamo-nos no
que nos diz Paul Yonnet[129]
e façamos a necessária reflexão: “é
o uso do utensílio que faz a classificação da actividade, não o utensílio por
si próprio.”
Nota:
Já após a publicação deste artigo (04.03.2021), Luís Freitas Lobo, um daqueles
jornalistas que sabe analisar factos, escreve no jornal «O Jogo» de 11.04.2021
o seguinte:
"O mundo da formação é hoje um
terreno de areias movediças. Eu suspeito de tudo menos dos jogadores. A forma
como eles crescem sendo insuflados está diretamente relacionada com a sucessão
de casos de carreiras arrancadas pela raiz desde o primeiro momento em que
metem um pé no dito futebol adulto/profissional." E termina assim:
"O futebol de formação é hoje um
mundo capturado pelo negócio insensível e agiota. De forma implacável. Fim da
história."
41 . Da semântica, da ignorância e do condicionamento
04.04.2021
A
língua portuguesa é muito traiçoeira, costumamos dizer… Não, a língua
portuguesa nem é sequer traiçoeira, nós é que fazemos com que ela se torne
traiçoeira. E ao pretendermos que ela seja traiçoeira, atraiçoamo-nos… umas
vezes por questões de semântica, outras por simples e mera ignorância. Ou ainda
por sermos condicionados.
Recorre-se
como justificação à homonímia – «rematar» qualquer actividade ou tarefa, de
finalizar, concluir, e «rematar» à baliza (chutar, de shoot, o tiro finalizado
em golo) – e a tudo o que é cliché – “vamos deixar tudo em campo”, “vim para
ajudar a equipa”, “ganhamos ou… morremos”, “perdemos mas saímos de cabeça
erguida”.
Utiliza-se
indiscriminadamente vários termos por incúria, provocando um esvaziamento dos
conteúdos dos mesmos, vulgarizando-os. Dois exemplos: um deles é «fair-play» (que formas de? Em que
circunstâncias?); o outro é «verdade desportiva» (qual é de facto o seu
conteúdo?) – veja-se Dias Ferreira e Fernando Seara em «A Bola» (respectivamente
03.04.2021 e 20.03.2021). Banaliza-se a equidade e banaliza-se a justiça. Em
inúmeros artigos, textos, livros, crónicas, comentários, estes dois termos
desconceituados são utilizados sem os seus utilizadores previamente se
preocuparem em defini-los e sem explicarem de que e sobre o que estão a falar.
Seguindo uma via normal estes termos completamente inócuos são reproduzidos ao
infinito. Tal como o “no pain, no gain”, o expoente máximo da pedagogia da dor,
que nos pretende inculcar o princípio de que para
vencer é preciso sofrer!
Na
maior parte dos estudos, tal como na comunicação social, os termos «agressão» e
«violência» no domínio do desporto quase que se confundem, embora o segundo
seja mais utilizado para os actos agressivos que são mais desaprovados
socialmente… tudo o resto é «agressão». Utilizamos demasiadas vezes o verbo
«agredir» e escassas vezes o verbo «violentar».
A
ética no deporto vem muitas vezes ao de cimo quando na realidade, em vez de se
discutir esta, se deveria debater a moral no desporto.
Misturamos
conceitos como «indústria» e «comércio» de tal modo que categorizamos o futebol
profissional e todo o desporto espectáculo como indústria quando na realidade
são comércio. Há a negação do termo «comércio» por este estar mais associado ao
negócio, ao intermediário e ao lucro, em benefício do termo «indústria» (não é
por acaso que se vulgarizou a «indústria do espectáculo») dado ligar-se este
inconscientemente a um contributo para a economia, a uma promoção do
desenvolvimento e do crescimento económico (veja-se aqui o artigo “Desporto:
indústria ou comércio?” de 04.03.2021).
Por
último, a utilização mais que banalizada do termo «atitude» – “a equipa
apresentou em campo uma atitude agressiva” ou “o jogador mostrou uma atitude
determinada”.
Quando
Jorge Valdano («A Bola», 23.01.2021) diz que “o desejo de culpar fala da falta
de atitude” utiliza o termo correctamente. Já não o faz o antigo jogador do
Wolverhampton Karl Henry quando se refere ao abruptamente falecido Lee Collins
(Sky Sports online, 02.04.2021) e afirma:
“lembro-me de Lee como um jovem jogador no Wolves. Ele era um bom rapaz com uma
grande atitude.”
Qualquer
neófito em psicologia sabe que uma atitude é uma tendência interna do
indivíduo, uma propensão para. Não é visível, embora se possa medir (escalas de
Thurstone, de Likert, de Guttman ou de Osgood). O que é visível, e como tal
observável, é o comportamento do sujeito. As atitudes, tal como os valores, as
crenças e as normas são determinantes do comportamento, não são o
comportamento. Logo, não se pode – não se deve – utilizar o termo «atitude» em
detrimento de «comportamento» como forma de empolgar a acção tornando-a mais
relevante ou de a tentar branquear tornando-a mais justificável.
Acontece
que, muitas vezes, senão na maior parte das vezes, temos a convicção que
estamos a ser informados quando na verdade estamos a ser manipulados. Temos a
convicção que estamos a adquirir conhecimento quando na verdade estamos a ser
condicionados. E como nos disse Aldous Huxley[130],
“está-se de tal modo condicionado, que ninguém pode deixar de fazer o que tem a
fazer.”
42. “Liga Bwin”: que significado?
19.04.2021
No
futebol já tivemos a Liga Sagres e a Liga Vitalis, a Liga Zon Sagres e a Liga
Orangina, a Liga CTT, NOS ou MEO… O naming
dos estádios é uma realidade (quanto pagará a AXA ao S. C. de Braga pela
denominação do seu estádio?)… A cerveja oficial do râguebi português, a Super
Bock, patrocinou a selecção nacional designando-a por All-Bocks, enquanto o
futebol se fica pela Sagres... Agora temos o Altice Arena – que já foi MEO
Arena e Pavilhão Atlântico – e o Super Bock Arena que já foi Pavilhão Rosa Mota
e Palácio de Cristal…
Em
breve teremos a Liga Portugal Bwin em vez da Liga NOS, aquilo a que, em tempos
de antanho, já se chamou de Campeonato Nacional de Futebol da 1ª Divisão…
O
contrato de patrocínio com a Entain, empresa detentora da Bwin, passa por uma
verba de 7 milhões de euros por ano durante cinco épocas, um contrato muito
superior, segundo se diz, ao celebrado com a NOS nos últimos anos.
Pedro
Proença e Marcus Silva colocaram as suas assinaturas no referido contrato. Um
contrato entre uma Liga Profissional de Futebol e uma uma empresa de jogos online (e
apostas desportivas) cotada em bolsa no mercado de Londres. No discurso de
celebração do contrato, Marcus Silva disse («A Bola», 17.04.2020): “Vamos enviar uma mensagem positiva ao mercado
português: a de que chegámos para ficar e que defendemos os princípios dentro
da indústria como o jogo honesto, responsável e com o máximo de atenção pelo
cliente.” E assim o grupo Entain prevê que o mercado do jogo online em Portugal registe um
crescimento de 70% até 2023 (logo se verá nos anos seguintes), só que talvez
não seja dentro da “indústria” mas sim dentro do “comércio”… ou do “negócio”…
Mas a questão que se coloca é a seguinte: se o contrato vale
35 milhões de euros, de onde virão eles? As respostas poderão ser múltiplas,
mas chamemos a atenção apenas para alguns pormenores.
De
acordo com um estudo realizado por Daniela Vilaverde e Pedro Morgado[131],
investigadores da Escola de Medicina da
Universidade do Minho e do ICVS, bem como psiquiatras no Hospital de Braga, e
publicado em Março de 2020 na «The
Lancet Psychiatry», em 2018 o valor das «raspadinhas» vendidas em
Portugal foi de 1594 milhões de euros – são
mais de quatro milhões de euros por dia –, o que significa que cada
pessoa gastou, em média, cerca de 160 euros por ano nas lotarias instantâneas.
Em Espanha, no mesmo ano foram vendidas «raspadinhas» no valor de 627,1 milhões
de euros, o que equivale a cerca de 14 euros por pessoa e por ano.
Na sua tese de
doutoramento de 2015, de Maria João Ribeiro Kaizeler[132], concluiu que em
Portugal se consumia, em média, mais jogos de lotaria do que na Europa e no
mundo inteiro.
No nosso país
apostou-se online cerca de 15 milhões
de euros por dia em 2020 e nesse ano mais de 70 mil apostadores solicitaram
impedimento para jogar («Diário de Notícias», 02.04.2021, p. 13).
Logo, temos um
público propenso para o jogo… num país em que a taxa de pobreza ou exclusão
social se fixou nos 19,8% em 2020 e onde são precisamente estes que maior
impulsão revelam para a tentativa de ganharem dinheiro através do online.
Quando
existem dez sites de apostas desportivas
com licença para operar online em
Portugal os dados estatísticos comprovam que os
jovens entre os 18 e os 24 anos são especialmente sensíveis à adesão a sites de apostas e jogos, todos os
dias nos entram visual e acusticamente
pela casa dentro através da TV nomes como Betano, Bacanaplay, Esconline
e Placard (pelo menos!). Com imagens e sonoridades aliciantes. Com sedução. Com
promessas de enriquecimento. E da impulsão à compulsão vai apenas um pequeno
passo.
A
partir de 2020/2021 teremos essas quatro letras – b, w, i, n – a passarem a
invadir-nos de uma forma subliminar (maior quantidade de informação dividida
por um menor tempo de exposição) aos domingos e segundas-feiras (e
provavelmente até durante toda a semana). Em todos os meios de comunicação
social. Será uma forma de publicidade invisível, mas que o nosso cérebro
regista, e que, de facto, funciona criando o consumidor. E, segundo Carlos Reis[133]
os meios de comunicação social “são hoje
o coração da vida política e cultural, cabendo-lhes fixar agendas, produzir
significados, formar opiniões e construir identidades.” Em suma,
manipular-nos, acomodar-nos, submeter-nos, fazer-nos consumidores, tornar-nos
subservientes… Será de admirar depois a manipulação de resultados, ou como se
diz na colonização de que somos alvo, do match-fixing?
Regressamos
à pergunta acima: se o contrato vale 35 milhões de euros, de onde virão eles? Dos
jogadores e dos apostadores online,
não temos dúvidas!
Seria
conveniente que após termos a Liga Bwin em funcionamento (2021/2022) se
realizasse um estudo sério e honesto sobre o aumento de jogadores e/ou
apostadores através deste site, das
suas idades e dos seus recursos económic
43. Superliga: take one
25.04.2021
Os últimos tempos foram tempos de todos, desde políticos a apresentadores,
desde jornalistas a comentadores, desde treinadores a jogadores, aparecerem a
construir uma narrativa em torno da Superliga Europeia de Futebol (em desfavor
da mesma, entenda-se!). E quase todos – raras foram as excepções – construíram
uma narrativa criando um cenário arreigado de verosimilhanças e de lógicas.
Inclusivamente assistimos às chamadas manifestações dos adeptos – chamemos-lhes
«adeptos» por enquanto…
Identificam-se de imediato duas falácias: a primeira, produto do veiculado
pelos media e transmitida por
pseudo-informados, a segunda pelos que revelam falta de um conhecimento mais
profundo do fenómeno desportivo.
O melhor exemplo do funcionamento do capitalismo (liberalismo,
neoliberalismo ou coloquem-lhe o rótulo que quiserem) é exactamente o desporto.
E é à semelhança do desporto que a sociedade se coloca em marcha. Podemos
dizer, na senda de Brohm, Perelman e Redeker, que a sociedade actual é um
reflexo do desporto: são os rankings
das escolas, são as olimpíadas de toda e qualquer disciplina de ensino, é a
quantificação de infectados, de internados e de mortos com os consequentes
recordes, é a promoção por meritocracia (com a ausência real de igualdade de oportunidades, um dos mitos do desporto)…
e até os juízes (e reparemos que os árbitros de futebol ou de outra qualquer
modalidade eram os únicos juízes a ser vaiados, insultados ou mesmo agredidos)
e até os juízes, dizíamos, são agora contestados nas suas decisões abertamente
nas televisões, nos jornais, nas redes sociais, nas petições. O desporto impõe
a nossa ocupação do tempo livre, impõe a nossa maneira de vestir, de calçar, e
até somos colonizados pelo vocabulário que, linguisticamente, nos obriga a
utilizar – vejamos as novas próximas modalidades no programa dos J. O. em Paris
2024: skateboarding, sport climbing, surfing e breaking.
Tudo em prol de uma economia de mercado. E como
nos diz Anselm Jaap[134],
“a sede de dinheiro nunca pode
extinguir-se porque o dinheiro não tem como função satisfazer uma necessidade
precisa. A acumulação do valor e, portanto, do dinheiro não se esgota quando a
«fome» é saciada, parte de novo e imediatamente para um novo ciclo alargado.”
A formação de uma Superliga Europeia de Futebol
não é mais do que o arranque de uma actividade económica formada por operadores
societários que cada vez mais apostam neste comércio com base em negócios que
nem sempre são os mais transparentes. É fruto de uma ideologia que comanda o
mundo, em que aqueles que tudo possuem dominam os muitos que se julgam
remediados e os muitíssimos que nada têm. Logo, tudo normal para um grupo
bilderberguiano com parceiros como o JP Morgan e a Key Capital Partners.
Vieram a terreiro UEFA e FIFA defender os seus
pergaminhos, esquecendo-se que os grandes clubes europeus são controlados por
norte-americanos, russos, árabes, chineses, tailandeses e singapurenses, mais
interessados no lucro que nos eventuais valores do desporto (Roman Abramovich,
Chelsea; Nasser Al-Khelaïfi, Paris Saint-Germain; Sheikh
Mansour, Manchester City; Stan Kroenke,
Arsenal; Guo Guangchang, Wolverhampton; Vichai Srivaddhanaprabha,
Leicester City; Peter Lim, Valência). Mas sobre isto, nada! Sobre os dinheiros
associados aos direitos televisivos, nada! Sobre o negócio das apostas
desportivas, nada! Sobre os lucros dos intermediários nas transferências dos
jogadores, nada! Mas preocupadas com a contrafacção e venda em paralelo de
camisolas, cachecóis e bonés dos clubes… Certo é que a Superliga durou apenas
dois dias. O caricato, para não dizer a hipocrisia, vem através de Alberto Colombo
(«O Jogo», 24.04.2021), secretário-geral adjunto da Associação das Ligas
Europeias, ao afirmar que “ao longo dos
últimos dias temos assistido à união de toda a comunidade do futebol em torno
dos princípios e valores da inclusão, do mérito desportivo e solidariedade.”
O sistema de ligas fechadas proveniente dos
Estados Unidos (o arranque deu-se em 1871 com o basebol) – tal como a NFL e a
NBA – tem sido apontado como modelo para esta Superliga Europeia. Nada de mais
errado! Se nos EUA os campeonatos são disputados sempre pelas mesmas equipas,
todos com muito peso económico e grande adesão por parte do público, uma coisa
não pode ser descurada: cada uma delas possui pelo menos um patrocinador de
traquejo elevado. Se não há promoções ou descidas (ausência do mérito
desportivo), também não há critérios desportivos para a entrada de novas
equipas mas há critérios económicos e selectivos. Desse modo há a garantia de
que estas equipas terão sempre retorno financeiro dadas as autênticas máquinas
montadas ao seu redor. Representam grandes cidades e rejeitam outras
equipas da mesma cidade para não haver concorrência interna. Por ultimo, estas
ligas procuram estender-se para zonas geográficas ainda não abrangidas pelas
mesmas de modo a cobrirem o maior número de regiões dos EUA ou até mesmo do
Canadá. A Superliga Europeia de Futebol não era compatível com muitos destes
requisitos.
E quando Jorge Valdano («A Bola», 25.04.21)
pergunta se “o povo ainda manda?”
surge-nos uma terceira falácia, dado que o mesmo considera que “o povo é o único dono do futebol” e que
foi graças a manifestações de rua dos “adeptos” (continuemos a chamá-los assim)
que se impediu a continuação deste projecto. Não, o futebol já não é do povo, o
futebol é do negócio. O povo vai sendo manipulado, o povo vai-se acomodando…
Quando eram exibidos, nessas manifestações, cartazes com palavras como “fans are supporters, not customers”, a perspectiva
daqueles que os empunhavam, vítimas já de uma formatação, é exactamente aquela
que nos pretendem induzir mas, lamentando desiludi-los, na realidade são
consumidores. Consomem ingressos, consomem cachecóis, consomem camisolas,
consomem bonés e tarjas, consomem bandeiras, consomem TV, internet e electricidade, consomem publicidade que os faz ainda
consumir mais e mais e mais... logo, para o grande capital não há interesse em
apresentá-los como consumidores mas sim como adeptos. Que ninguém se iluda com
o cliché de que foram os «adeptos que
salvaram o futebol» porque, na realidade, não foram e são eles que o estão a
pagar.
Mesmo quando se aborda a questão da luta «dos pobres contra os ricos», a
questão a ser abordada deveria ser precisamente a «dos consumidores enganados
contra os ricos» ou a «dos manipulados contra o capital» – o capital precisa deles, o capital forma-os e constrói-os. Logo, a luta
«dos pobres contra os ricos» ou os «adeptos, não clientes» não deixa de ser
senão uma perpetuação daquilo que nos tem sido inculcado até agora. É a
reprodução de que nos falava Bourdieu…
Falácia também quando Daniel Oliveira
(«Expresso», 23.04.2021) afirma que “o clubismo
não é alienação, é comunidade. A racionalidade desalmada dos negócios é que
aliena as nossas paixões.” A irracionalidade desalmada do lucro é que aliena as
nossas paixões e o clubismo não passa de uma outra forma de fundamentalismo.
Independentemente das esferas económicas, políticas e/ou desportivas, assistimos
ao nascimento da Euroleague Basketboll (2000) e da International Swimming
League (2019)... ligas fechadas… e a Terra continuou a mover-se... e o capital
também! Não deixou de haver desportistas explorados, não deixou de haver casos
de morte súbita, a violência no desporto não terminou, a morbilidade dos
competidores e o fim precoce de carreiras desportivas não desapareceu,
alegadamente o doping, a corrupção e
as fraudes desportivas continuaram presentes... e continuaram – e continuam – a
necessitar do treino intensivo precoce, o tal que motiva a exploração infantil.
Não, não é necessário formar-se uma Superliga
Europeia de Futebol até porque já a teremos aí em 2024/25 dado que a UEFA
Champions League irá ter um novo formato com 36 clubes participantes. As
alterações que se aproximam irão deixar de promover a desigualdade? Deixarão de
privilegiar os clubes habituais? Repartirão mais dinheiro pelos mais pequenos?
As verbas das transmissões televisivas serão distribuídas equitativamente?
Tememos que não. De facto não será uma liga fechada, mas os maiores proventos
serão para a UEFA em vez de para os participantes...
Como nos disse Saramago, é preciso sair da ilha
para ver a ilha. É um problema de deslocação, é uma questão de nos colocarmos
noutro sistema de referência, mas se observarmos o fenómeno a partir de ambos
os sistemas compreenderemos melhor o mesmo. Deveria assim o desporto, na
esteira de Michel Foucault[135],
ser analisado a partir das técnicas e tácticas de dominação e “mostrar como são as relações efectivas de
submissão que os sujeitos constroem.”
44.
Superliga: take two
08.05.2021
O povo saiu à rua de norte a sul do país quando
centenas de milhares de pessoas se manifestaram no 1º de maio de 1974, apenas
uma semana decorrida após o 25 de Abril.
Um ano depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, exactamente um ano
depois, o povo voltou a sair à rua desta vez para a primeira votação democrática em Portugal – participação de
92% dos eleitores. Viviam-se ainda as palavras de Zeca Afonso: “o povo é quem
mais ordena”.
A 8 de Março de 2008 foi a vez de cerca de 90/100
mil professores saírem à rua na chamada 'marcha pela indignação'. Uma
Ministra da Educação conseguiu unir todos os professores…
Pensava e continua a pensar o povo que saindo à rua será ele quem
mais ordena… o que se verificou não ser verdade – veja-se o caso dos
professores – porque nunca nenhuma das grandes manifestações populares se
traduziu em benefícios para o próprio povo. Aliás, Noam Chomski[136]
mostrou como é possível controlar-se e
manipular-se o chamado «povo» através dos media.
Miguel Poiares Maduro (que passou pelo comité de
governação da FIFA) foi um dos que veio a terreiro afirmar que "quem matou a Superliga não foi a
UEFA, foram os adeptos e a intervenção política que a mobilização destes gerou" («Expresso», 23.04.2021). Pura ilusão!
João Bonzinho («A Bola», 23.04.2021) também nos
veio dizer que “o futebol e os clubes são
do povo e não de quem os comanda, mesmo que os compre, ou compre a empresa que
integra o clube.” Pura ilusão também!
As cerca de 5 mil pessoas (fãs ou arruaceiros?)
que invadiram Old Trafford no dia 2 de Maio e impediram a realização do jogo
entre o Liverpool e o Manchester United não demonstraram que são elas que
mandam no futebol. Já dias antes tinham invadido o centro de treinos como forma
de protesto contra a decisão do clube participar na Superliga Europeia. Ora, se
esta já tinha caído, por que motivo tal comportamento? Exigiam tetos salariais
para treinadores e jogadores? Exigiam limites nos valores das transferências?
Exigiam uma cota para o número de jogadores por equipa? Exigiam menos equipas
nos campeonatos? Exigiam maior tempo de recuperação para os jogadores? Exigiam
transmissões em canal aberto?
O futebol, inicialmente da burguesia, foi roubado
pelos pobres, pelos operários, para depois voltar a ser roubado, mas desta vez
pelos ricos. Depois de termos mostrado aqui em “Superliga: take one”
(26.04.2021) que fãs ou adeptos não são mais do que meros consumidores,
concluímos que o futebol já não pertence ao povo…
E quando pensávamos que estávamos sozinhos nesta cruzada, eis que aparece
Álvaro de Magalhães («O Jogo», 02.05.2021) a afirmar que viu os adeptos “todos a lutarem por algo que já perderam há
muito tempo” e a referir que, sobre o que se passou, “nada disto teve, tem ou terá que ver com adeptos, que já não têm voto
na matéria há muito tempo e são aquilo em que os transformaram: um rebanho
dócil de consumidores passivos.”
Quererem fazer-nos crer que o futebol é dos
“adeptos” ou é um puro exercício de retórica, ou desconhecimento, ou uma
tentativa de manipulação.
Aliás a UEFA, ao anunciar o alargamento da Liga dos Campeões de 32 para 36
clubes a partir de 2024/2015, onde cada equipa jogará contra outras dez equipas
adversárias com cinco jogos em casa e cinco jogos fora não estará a fazer mais
do que a montar uma Superliga dentro da própria UEFA. Logo, o problema não
estará no modelo organizacional, mas sim no controlo de um negócio que rende
milhões. Como alguém disse, a Superliga já existe e tem nome: chama-se Liga dos
Campeões. Aliás, o próprio Ceferin («A Bola»
online, 25.04.2021) veio afirmar que “não
se pode gerar menos produto e ganhar mais dinheiro ao mesmo tempo” – basta
sabermos interpretar! Quando a UEFA decidir vender os direitos de transmissão
da Liga dos Campeões a uma plataforma de streaming e quando estabelecer tectos salariais os
treinadores irão perceber que o seu papel será ministrar os treinos e orientar
jogos e os jogadores irão perceber que o seu papel será jogar e marcar golos –
e não, como aconteceu, imiscuírem-se em projectos organizacionais ou em formas
de gestão. Quando a UEFA decidir controlar os negócios dos empresários ou
agentes (ou intermediários), estes tentarão negociar as condições e sentirão
que dependem de alguém. Os adeptos, por seu turno, irão compreender finalmente
que o seu papel será o de consumidores. Estando na cauda da cadeia de
alimentação, os adeptos (ou fãs, se preferirem) darão conta então que terão de
assumir o ónus dos encargos, de todos os encargos…
A evolução mercantilista do desporto, ou o progresso do
capitalismo se quiserem, a isso levarão. Nos Estados Unidos há muito que o
modelo está em funcionamento: NFL (futebol americano), NBA (basquetebol), MLB
(basebol), NHL (hóquei no gelo) e MLS (futebol) são exemplos de ligas fechadas
altamente sponsorizadas e altamente
lucrativas. No futebol americano há 69 anos que nenhuma equipa abdica da
competição e no basquetebol o mesmo acontece, e já lá vão 67 anos. (A
propósito, constava-se que as equipas que desistissem da Superliga seriam
multadas pela mesma em 150 milhões de euros. As desistentes já foram multadas?)
Restam em aberto algumas questões para as quais não conhecemos
respostas, dado estarem mais ligadas ao foro jurídico. Qual o regime jurídico
da Superliga Europeia: era uma associação, uma empresa, ou existiam apenas
contratos estabelecidos entre os clubes iniciais? Pode a UEFA de facto castigar
os fundadores da Superliga? Podem as Federações Nacionais impedir os clubes de
participarem em ligas fechadas que nada têm a ver com as competições da UEFA (o
que já fez a Federação Italiana)? O que diz o Direito Europeu em relação à
livre concorrência no mercado? E, por último, uma outra questão: recordam-se do
nome Bosman?
45. Risco e acaso
03.06.2021
O desporto comporta o factor risco. Tal como
comporta o factor acaso. Sendo uma actividade humana, estes dois factores estão
e estarão sempre presentes no mesmo. O necessário é que nos compenetremos disso
porque só compreenderemos o desporto se reconhecermos a existência do risco e
do acaso no mesmo – e sabermos onde e quando nele interferem.
O desporto foi atingido por mais uma morte:
factor risco – neste caso, risco máximo. Jason Dupasquier, piloto luso-suíço de
apenas 19 anos, foi a vítima em MotoGP – a 26ª vítima nesta modalidade
(considerando-se MotoGP uma modalidade desportiva). Morte por acidente, tal
como tem acontecido em inúmeras outras modalidades (e separamos já aqui estas
mortes dos casos de morte súbita).
Se há modalidades em que o factor risco tem um maior peso – o
boxe, onde entre 1945 e 1995 morreram cerca de 500 pugilistas, e as Mixed
Martial Arts, em que de 1993 até 2016 morreram 14 competidores, ou a Fórmula Um
(em 40 anos, de
Mas
não se pense que quando falamos de risco estamos somente a focar esse bem
supremo que é a vida, ou que só abordamos a questão em termos de se colocar em
perigo a saúde. Risco é fazer uma opção sem se ter a certeza do resultado e
depois ter de se viver com ela. Falamos de risco quando conseguimos traduzir
uma incerteza que se pode expressar por um número recorrendo a dados empíricos.
E sendo o desporto um palco de incertezas, inúmeras vezes estas são controladas
pelo acaso.
Na
Taça das Confederações de 2017, competição intercontinental realizada na
Rússia, no jogo das meias-finais entre Portugal e o Chile chega-se ao final
deste sem golos. Parte-se para o prolongamento e aos 119 minutos Arturo Vidal
remata a bola ao poste e na recarga Martín Rodríguez acerta na trave. «Sorte»
para Rui Patrício, «azar» para os chilenos… mas se fosse na baliza contrária seria
«azar» para a selecção portuguesa... Conveniente não esquecermos que os ferros
também fazem parte do jogo.
Nas
grandes penalidades (0-3 a favor do Chile) «azar» para Quaresma, Moutinho e
Nani na marcação das mesmas e «sorte» para o guarda-redes chileno Claudio
Bravo… No final do jogo Cédric declara que nos penalties existe sempre “alguma sorte”. Errado!!! O que existe é
falta – ou não – de técnica do marcador (ou de concentração… ou de outra coisa qualquer)
e mérito – ou não, ou outra coisa qualquer – do guarda-redes. O que existe é
acaso! Bernardo Silva, sintonizado pelo mesmo diapasão, afirma também
erradamente que “os penalties estão
relacionados com a sorte”. A «sorte» ou o «azar», termos banalizados e
introduzidos de modo frequente no nosso vocabulário, são termos inventados pelo
homem para justificar os sucessos ou os fracassos em que o acaso é
determinante. O que prova a necessidade humana de constante atribuição causal…
No
futebol americano cerca de 1,5 milhões de jovens praticam esta modalidade e
todos os anos ocorrem, em média, 30 acidentes que resultam em morte, invalidez
parcial ou total e danos cerebrais irreversíveis. Segundo uma estimativa de
O desportista, o competidor, é então apresentado à sociedade
como um mártir e não como herói. Foi inculcado nele o fazer
sacrifícios pelo «jogo», o esforçar-se ao máximo para alcançar pódios tal como
atingir prémios e distinções, o aceitar riscos e jogar ou competir através da
dor e o aceitar não haver limites na perseguição dos objectivos mesmo que
utópicos, porque, para além da vitória ou do ganho pecuniário, é lapidado na
crença de que ser um «verdadeiro atleta» significa assumir riscos, fazer
sacrifícios e jogar o preço de ser tudo o que se poderá ser.
A
mercantilização do desporto transformou a sua matriz inicial e tornou-o numa
actividade em que os fins parecem justificar os meios. Como nos dizem Miguel
Nery e Carlos Neto[138],
“o aumento de competitividade, associado
à determinação económica dos objectivos, contribuiu para tornar a acção
desportiva incompatível com a ética e fair play nos níveis mais elevados de
competição”, o que fez aumentar ainda mais o risco e o acaso no desporto.
46. O Karate falará português nos J. O. de Tóquio?
06.07.2021
Tóquio
2020 aproxima-se! A estreia do Karate nos Jogos Olímpicos também se aproxima.
Uma estreia com uma presença efémera dado que o mesmo já não estará presente
nos J. O. de Paris 2024.
Antes
de respondermos à questão que encima este artigo, teremos de fazer um
enquadramento histórico a fim de se compreender toda a complexidade da mesma,
dado que a
passagem do Karate de arte marcial a desporto de combate não foi uma mutação
repentina, mas um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos
históricos e culturais) inserido em modificações sócio-culturais – há uma
progressão temporal que determina uma evolução – e pela aculturação de uma
realidade oriental na cultura ocidental – há uma difusão geográfica, espacial,
que implica um alastramento por todo o mundo. Todo este processo, um lento
passo-a-passo, originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações,
até porque as diferentes condições históricas e a disparidade das diversas
culturas criaram situações objectivas de desigualdade[139].
1º parêntesis: a
terminologia correcta é «Karate-do» ou «Karatedo». A lei do menor esforço ou
outros interesses levam-nos a falar em «Karate» (e quão importantes são esses
«interesses»…).
2º parêntesis: apesar de
associarmos o conceito de «arte marcial» a técnicas de lutas orientais, este
termo provém do nome do deus romano da guerra, Marte, e a notação escrita mais
antiga que conhecemos remonta a 1639 no livro “Pallas Armata, The Gentlemans
Armorie”, escrito por Sir James Turner, referindo-se à “arte
marcial da esgrima”. Logo, é um constructo de origem ocidental.
3º parêntesis: “O Karate
não é considerado uma das artes marciais tradicionais japonesas, apesar de
algumas vezes ser referido como tal fora do Japão. Após a Restauração Meiji
(1868) o conteúdo das artes marciais mudou enormemente, refletindo o fato de
que elas não mais deveriam ser utilizadas em combate e que já não eram de
treino exclusivo da classe guerreira. Refletindo esta nova circunstância, o
termo Bujutsu foi substituído pelo termo Budo, implicando que deveria ser
treinado mais sob princípios espirituais do que para o combate.”[140] Apontava-se
assim mais para uma codificação de técnicas e para uma forma de realização
pessoal através da acção motrícia de combate ritualizado e simbólico, sendo o
corpo do outro o objecto e objectivo da acção, e o contacto corporal
intencional, directo e um fim em si. “Depois
da Segunda Guerra Mundial, houve a necessidade de modificar certas visões das
artes marciais e (mudar) a ênfase de artes práticas com objetivo de defesa
nacional para desportos que conferem maior harmonia e universalidade.”[141]
4º parêntesis: segundo
Patrick McCarthy[142],
em 1933 o Dai Nippon Butokukai – organismo do governo nacional do Japão para as
artes marciais – lançou um repto aos mestres de Karate da altura em Okinawa a
fim de que o então denominado «Tode» ou «Karate-jutsu» fosse reconhecido
oficialmente no Japão… Pretendia-se assim não só organizar o ensino desta arte,
mas também tornar a mesma pertença original do Japão, por força de um poder
nacionalista combinado com um sentimento anti-chinês. Foram
quatro as imposições do Butokukai: desenvolver um uniforme/equipamento standard; adoptar um sistema de graduações «dan/kyu» semelhante ao de Jigoro Kano no Judo; estabelecer um programa/sistema de
ensino/avaliação; e mudar o
primeiro ideograma de «Tode» e
adicionar o sufixo «do», resultando a
palavra japonesa «Karatedo». Como se verifica, estas foram imposições
políticas. Em 1936, os mestres mais representativos de Okinawa acordaram
aceitar estas condições e assim se deu início à institucionalização do Karate.
O acto de constituição do Karate foi pois um acto político e podemos dizer que
o Karate existe só desde 1936.
A apresentação do Karate
como um desporto (a primeira competição formal aconteceu no Japão no já
distante ano de 1957 sob a égide da Japan Karate Association) levou a que se
formasse uma Federação Europeia em 1963, tendo-se realizado três anos depois o 1º Campeonato Europeu de Karate, e uma Federação
Mundial em 1970 (a WUKO, actualmente
WKF), a qual realizou o 1º Campeonato Mundial de Karate em Tóquio nesse
mesmo ano.
A World Karate Federation (WKF), a federação
internacional mais representativa da comunidade karateka – sim, porque há
outras 5 ou 6 federações internacionais – lançou uma enorme campanha (‘The K is
on the Way’ era o mote) tendente a que o Karate estivesse presente no programa
dos J. O., não conseguindo ter sucesso em relação a 2012 nem a 2016. A hora
chegou apenas para os J. O. de 2020.
Exultou-se,
dando loas, quando o Karate foi contemplado no programa dos J. O. de 2020,
atirando-se foguetes e recolhendo-se as canas. Propalaram-se virtudes e
potencialidades, glorificaram-se valores e benefícios, celebrou-se a festa e
deram-se hossanas. Realçou-se uma futura via melhor, mais atractiva, mais
dinâmica e com maiores virtualidades. Treinadores, competidores e praticantes
glorificaram a modalidade… Adeptos do Karate «puro e duro», ou em linguagem
corrente, do tradicional, descobriram a fórmula de se projectarem e adquirirem status dedicando-se à competição
arrastando para ela aqueles sobre quem tinham responsabilidades. Passaram a ser
mais relevantes os lugares no pódio e as medalhas em detrimento de uma formação
harmoniosa do indivíduo ou de uma construção do seu carácter.
Apareceram
discursos afirmando que finalmente o Karate era um desporto olímpico – quando
já o era desde 18 de Março de 1999,
desconhecendo-se esse facto ou confundindo-se «desporto olímpico» com
«modalidade constante do programa dos J. O.» – surgiram campanhas prometendo
uma maior visibilidade da modalidade, um aumento do número de praticantes nos
«dojo» (vulgo ginásio ou academia, o lugar onde se pratica a via) – esquecendo
o «do», a via, o caminho, (o tal «do» que existe no Kendo, no Judo, no Iaido,
no Aikido) a ponto de se retirar este sufixo do termo Karatedo (ou Karate-do)
mas continuando a manter o mesmo no início do termo «dojo» (o que seria do
local de treino sem um conteúdo para treinar e ser treinado???).
Não podem estes arautos dizer que não foram
alertados para o modo de seleccionação dos competidores: só haveria 80 vagas
para os karateka participantes nos J. O. – 40 vagas femininas e 40 vagas
masculinas, sendo que 60 seriam na prova de kumite
(combate) e 40 na prova de kata
(formas técnicas) – e a selecção dependeria da contabilização de pontos
conquistados num circuito mundial, o qual estabeleceria um ranking. Não seria uma escolha equitativa por países… como julgaram
muitos dos que, indocumentadamente, foram induzidos em erro.
E, exactamente para poderem participar nesse circuito, um
planeamento bem efectuado alicerçado num bom orçamento teriam de ser bem
articulados. O que se verificou? Uns competidores a movimentarem-se por um
lado, outros por outro, deixando entregue uma qualificação à última da hora em
três eventos: o Karate Premier League em Lisboa, o Campeonato Europeu
em Porec, na Croácia, e o Torneio de Qualificação Olímpica em Paris. E se alguns bons resultados
faziam alimentar alguma esperança, parece-nos que uma má gestão de recursos fizeram
ruir essa esperança. A estratégia da crença e do milagre in extremis resultaram num fracasso. Se um 7º lugar num Campeonato
Europeu entre 30 competidoras se pode classificar de bom resultado, dado se
encontrar no primeiro quarto da classificação (embora não desse apuramento para
os J. O.), o que dizer de um afastamento logo na primeira
ronda numa prova de kumite, ou de um 9° lugar em 34 ou de um outro 21° em 35? Quanto a Paris, oito
competidores deslocaram-se ao Torneio de Qualificação Olímpica – derradeira
hipótese – mas nada conseguiram… Parece-nos que os competidores se aplicaram,
se esforçaram, se comprometeram, mas algo falhou. Será objecto de análise pelas
entidades responsáveis?
E se a equipa feminina de kata de Portugal conquistou a medalha de bronze no Campeonato
Europeu, há que ter a noção de que o fez entre 12 equipas...
Há anos que constatámos que a alta competição não
se compadece com amadorismos. Continuamos a constatar…
Regressando à pergunta inicial, não, não teremos
Karate a falar português nos J. O. de Tóquio. Provavelmente a modalidade
continuará com a mesma visibilidade ou sem ela, os dojo com os mesmos praticantes e os competidores com os mesmos
resultados… os selecionadores, os árbitros e os dirigentes com as mesmas saídas
lá fora! E os treinadores cá por casa? Deitaram os foguetes e recolheram as
canas, agora calados como nunca, não se manifestam. Ahhhh, e como nos dizia
Jorge Valdano em «A Bola» (03.07.2021), embora em relação ao futebol, “antes de modificar campeonatos, há que
fortalecer o produto com treinadores corajosos. Só assim se aguentará este negócio.”
Faça-se o necessário transfer.
Mas alegremo-nos! Valéria Kumizaki e Douglas
Brose também não estarão em Tóquio. Aliás, o país irmão também não terá lá
ninguém, nem para falar português do Brasil. Vão estar 34
países nos próximos J. O. e nenhum deles falará a nossa língua. Victor Hugo disse algo parecido com isto (e citamos de
memória): “a consolação dos infelizes é
não estarem sozinhos na sua miséria”.
47. Sintomas preocupantes
03.08.2021
1
O panorama desportivo actual e todas as suas envolventes, tanto a nível
nacional como internacional, mostram-nos grandes mudanças. Umas para melhor,
dirão uns, outras para pior, dirão outros… Uns, vítimas de uma ignorância
colectiva que alastra cada vez mais, outros desassombrados por análises
conscientes e fundamentadas. Uns, louvando perspectivas axiológicas, outros,
desassossegados por inquietações éticas e morais. Alguns, mortos na ilusão de
continuarem vivos, outros não podendo fazer mais nada do que somente assistir à
morte.
E se o
desporto evolui a uma velocidade vertiginosa “num mundo em que só a mudança é imutável”[143],
há que reflectir sobre o passado (o próximo, o recente, e o afastado) e
analisá-lo para se construir um novo futuro – não o desgastado futuro todos os
dias abordado que não é mais do que o prolongamento desse passado. Para que a
história não nos continue a mostrar que nada se aprende com a história. E
analisar implica uma crítica fundamentada para que se encontrem soluções, até
porque as adaptações (mais as acomodações e menos as assimilações) tendem a ser
apreendidas como não-problemáticas e não geram um novo panorama –
mais harmonioso e saudável. Os adeptos, conscientes ou não, deliberados ou
vítimas do acaso, do «não-problematismo» acabam por se submeter ao sistema.
Vivem de clichés que acabam por se transformar em mitos. Rejeitam análises
críticas e não buscam o sucesso no diferente… São subservientes, amorfos… O
sincretismo é fácil, cómodo, mas cria patologias... A análise dá trabalho,
necessita de pesquisa, de bibliografia, de cruzamento de dados… necessita de
desmontar factos. Saber analisar é uma competência, pelos vistos, só ao alcance
de alguns.
Mas a mudança gera receios e ansiedades. A expectativa do novo – melhor ou pior – revela mais do que preocupação pelo desconhecido, mais do que temor pelas incertezas. A expectativa do novo motiva o medo e gera até o terror. E paralisa. E paralisando, o «novo-novo» só consegue «criar» reproduções, as quais proliferam tanto pelas dúvidas, pelas incógnitas e pelas patologias como pela (des)inovação de situações que, novas só na roupagem, continuam a dar pão a crentes e a crenças. Pão e circo…
2
A teoria da complexidade de Edgar Morin[144] mostra-nos como tem de ser analisado não só o desporto em si mas também a actividade de todos os agentes desportivos: “juntai a causa e o efeito, o efeito voltará sobre a causa, por retroacção, o produto será também produtor”. Demasiada preocupação em determinar as causas reduz a análise sobre os efeitos, até estes se tornarem de novo causas. O mesmo é confirmado por Peter Berger e Thomas Luckmann[145] quando nos dizem que “o produto age sobre o produtor.” E teremos de estar atentos a que se esse produto encerra valores, ele também é comercializável, logo, envolvendo enormes quantias monetárias e estando sujeito à lei da oferta e da procura, ou seja, a uma economia de mercado – com todas as suas implicações. Repare-se que os custos da preparação para os J. O. de Tóquio dos portugueses (dos presentes e do ausentes) cifram-se em 18,5 milhões de euros. “Conhecimento é um produto social e conhecimento é um factor na transformação social”[146]. A questão surge quando pseudo-conhecimento (mascarado de conhecimento), como produto, retroage sobre o produtor… O produto, ao influenciar o produtor, torna-se assim também um criador de patologias…
3
Em 2018 foi publicado entre nós um livro que passou despercebido, intitulado “A Morte da Competência”[147] (4), de Tom Nichols. Nesta obra o autor mostra-nos que as pessoas não se limitam a acreditar em «verdades» sem nexo, mas resistem ativamente a aprender só para não terem de abdicar das suas crenças, apresentando-nos o facto de todos nós termos problemas como o do viés de confirmação, “que é a tendência natural para aceitarmos apenas as provas que confirmam aquilo em que já acreditamos.” O que nos leva à velha máxima de que não adianta explicar a quem não quer compreender…
Nichols afirma que, em relação à
causa e efeito, a natureza das provas e a frequência estatística são demasiada
areia para a camioneta do senso comum. E são demasiada areia porque é sempre
mais fácil emitir uma opinião não fundamentada recorrendo a estereótipos e a
generalizações do que fazer verificações factuais, isto é, “determinar o porquê depois de se ter
confirmado o quê.”
Recorrendo ao efeito
Dunning-Kruger, Nichols apresenta-nos os motivos pelos quais as pessoas não são
capazes de aceitar as diferenças de conhecimento ou de competência. Numa época
em que nos encontramos atolados no meio de muita informação, esta não gera o
conhecimento que seria necessário. E se há uma diferença entre o perito e o
leigo, este último sente-se com as competências do primeiro dado ter a
‘internet’ à mão: “a internet junta
pseudofactos e ideias pouco amadurecidas, e depois espalha essa informação
errada e esses raciocínios débeis por todo o mundo electrónico.” E a uma
velocidade estonteante. A internet é
um ambiente que abre a porta a que sejam o marketing,
a política e as decisões fundamentais de outros leigos, e não a avaliação de
peritos, a definir os conteúdos.
Neste livro Tom Nichols mostra
como a Wikipédia é uma excelente lição sobre os limites da substituição da
competência promovida pela internet,
até porque para o leigo a Wikipédia serve perfeitamente. Nada melhor do que uma
informação instantânea que possa fazer com que uma pessoa sem opinião passe a
ter uma opinião errada. Difícil – e trabalhoso – é usar instrumentos rigorosos
como a investigação, o recurso a fontes e a verificação de factos.
Os meios de comunicação social
também não escapam a uma análise lúcida de Tom Nichols: o entretenimento, a
informação, o comentadorismo e a participação cívica são uma mistela caótica
que, mais que informar as pessoas, lhes cria a ilusão de estarem informadas.
Isto acontece porque a tecnologia se associou ao capitalismo e deu às pessoas
aquilo que elas querem, mesmo quando não é o melhor para elas. Duas conclusões
retiradas do seu texto são importantes: 1ª – a parcialidade da comunicação
social, de várias formas e sobre vários assuntos, é real; 2ª – o crescimento de
novos meios de comunicação e o declínio da confiança estão ambos intimamente
ligados à morte da competência.
Os atletas e os seus treinadores
são peritos, afirma o autor deste livro. Mas também refere que peritos numa
matéria são leigos numa outra. Fazemos aqui um parêntesis para referir que
desportistas (competidores) e treinadores não são peritos em desporto, em
gestão do desporto ou em sociologia do mesmo – logo, não são analistas do
fenómeno, a não ser para darem conferências de imprensa ou receberem troféus à
frente de painéis publicitários para que os logotipos de várias marcas inundem
subliminarmente o nosso cérebro a fim de se criar ou prolongar o consumidor. E,
recorrendo de novo à obra mencionada, os peritos não podem garantir resultados,
os peritos apenas propõem hipóteses. Contudo, não podem fazer escolhas em
relação aos valores. Nichols é peremptório ao afirmar que “os peritos não podem obrigar as pessoas a fazer refeições saudáveis ou
a praticar desporto. Não podem arrastar as pessoas para que não vejam o reality
show do momento e obrigá-las a olhar para um mapa. Não podem curar por decreto
o narcisismo das pessoas.”
O sintoma mais preocupante actualmente não é a ignorância da maior parte dos cidadãos. O mais preocupante é o orgulho nessa ignorância. A morte da competência tem origem em características intrínsecas à natureza humana segundo Nichols, mas também é o resultado inevitável da modernidade e da abundância. E do consumismo, acrescentaríamos nós…
4
Em 1948, quando Cândido de Oliveira – então treinador de futebol do Sporting – afirmou no final de um Benfica-Sporting que “somos bestiais quando ganhamos e bestas quando perdemos” estava longe de pensar que um dia estaria errado. Recorrendo tanto à comunicação social escrita como à televisionada, tanto à ‘internet’ como às redes sociais, é-nos dada a oportunidade de vermos que hoje Cândido de Oliveira não teria razão ao constatarmos como pessoas com responsabilidades no desporto (e nos meios de comunicação social) qualificam os nossos resultados, quer sejam eles em campeonatos europeus, campeonatos mundiais ou até mesmo nos J. O. que decorrem. Temos tido bons resultados! Somos bestiais mesmo quando perdemos! O que quer dizer que somos pequeninos! Continuemos a pensar pequenino…
48. Analisar os resultados dos J. O.
11.08.2021
Após a euforia
inicial, a euforia do melhor resultado de sempre de Portugal em J. O., após a
exaltação dos objectivos nos Jogos Olímpicos de Tóquio terem sido “plenamente atingidos, senão ultrapassados” *, após se terem lançado
os foguetes é necessário apanhar as canas.
"Tínhamos previsto um resultado não inferior a duas posições de pódio,
alcançámos quatro. Um resultado não inferior a 12 diplomas, alcançámos 15, nos
quais se incluem os quatro pódios” foi o mote. Para reforço acrescentou-se
que foram alcançados “três recordes
nacionais, cinco recordes pessoais, 17 melhores marcas em Jogos Olímpicos e 26
melhores classificações também em Jogos Olímpicos” conseguidos por atletas
portugueses. Alguém que falou em nome de todos os portugueses afirmou que “foram superadas todas as metas
contratualizadas e as expectativas dos portugueses.” Afirmações que dão
razão a Millôr Fernandes: “o homem é um
produto do meio. O meio é um produto do homem. O produto é um homem do meio.”
Olhando para os números a frio, a tirania desses mesmos números na
realidade aponta para o melhor resultado de sempre, mas essa mesma tirania cria
falácias. Pretendermos só analisar os resultados será redutor, pelo que teremos
de recorrer também ao destaque da filáucia de alguns competidores e à ausência
de hombridade de outros, onde poderemos também incluir treinadores e
dirigentes.
Nuns J. O. onde
desfilaram cerca de 11 mil competidores em representação de mais de 200 países,
nuns J. O. em que o COP recebeu do Estado 18,5 milhões de euros de 1 de Janeiro
de 2018 a 31 de Dezembro de 2021 para a preparação olímpica de desportistas que
estiveram presentes em Tóquio – mas também de alguns que não estiveram lá, pois
chegaram a ser 141 –, poderíamos analisar os resultados da comitiva portuguesa
analisando a classificação dos competidores em relação ao número de presentes
em cada uma das provas (rácio classificação/participantes), poderíamos analisar
esses resultados comparando-os com as medalhas ganhas por outros países com uma
população semelhante a Portugal, ou até em relação a países com PIB parecido
com o nosso (Portugal rondará o 49º posto em termos de PIB e é o 38º no Índice
de Desenvolvimento da ONU) ou ainda em relação a países com o mesmo número (ou
aproximado) de participantes nestes Jogos… alguém mais habilitado o fará!
Seguiremos uma outra linha, até porque, como dizem os japoneses, “quando um sábio aponta para o céu, o
ignorante olha para o dedo.”
As 4 medalhas
conquistadas posicionaram-nos num 56º lugar numa tabela em que apenas 86 países
foram medalhados. Logo, abaixo da metade e no limite final dos dois terços.
Ahhhh, mas participaram cerca de 200 países! Sim, aí ficamos no início do
segundo quarto…
Olhando só para o
medalheiro de todos os J. O., Portugal esteve presente em 23 Jogos antes de
Tóquio 2020. Em 11 destes Jogos teve um lugar inferior ao 56º lugar obtido nos
presentes Jogos. Nos restantes 12 a posição no medalheiro foi superior… E se o
esquecimento é próprio da sociedade, ou dos indivíduos, não é por esse motivo
que a história é reescrita…
No medalheiro
actual, Portugal está a um nível da Etiópia… abaixo da Eslovénia, Grécia,
Irlanda, Ucrânia, Bielorússia, Roménia, Eslováquia e Áustria. Longe da Bulgária,
da Bélgica, ou da Croácia, e muito longe de países como a Dinamarca, a Suécia,
a Suíça, a Espanha, a Noruega, a República Checa ou a Polónia (esqueçamos a
Itália, a Alemanha e a Grã-Bretanha). Países europeu
depois de Portugal só a Estónia, a Letónia, a Lituânia e a Finlândia. E nem
valerá a pena falar dos Países Baixos (36 medalhas, 10 de ouro) ou da Hungria
(20 medalhas, 6 de ouro), ou até daqueles que se situam nos antípodas: a Nova
Zelândia, um país com metade da nossa população, conquistou 5 vezes mais medalhas (20
medalhas, 7 de ouro).
Esta foi a
terceira maior Missão Olímpica de sempre. Noventa e dois desportistas! Não
sabemos quantos treinadores, quantos médicos/fisioterapeutas, quantos
árbitros/juízes, quantos dirigentes – sim, porque para o cômputo geral todas as
presenças implicaram despesas…
O desempenho da Missão Olímpica,
que se iniciou com desaires atrás de desaires, logo começou a ser branqueado na
comunicação social e nas redes sociais. “O
5º lugar foi o melhor 3º lugar de sempre nos J. O.” ou “o 11.º lugar a 75 centésimos da final, o terceiro melhor
resultado olímpico”
foram narrativas que nos começaram a inundar. E eram premonitórias…
“É difícil falar neste momento porque não me
preparei para um discurso de derrota. A única coisa que me cabe dizer é:
desculpa. Desculpa, Portugal!” Há, para além da imprevisibilidade do
resultado, variáveis que um(a) competidor(a) e um(a) treinador(a) não conseguem
dominar, não podem controlar. Os resultados também dependem dessas variáveis.
Por isso o acaso, por muito que muitos não o queiram admitir, está presente no
desporto. Uma desportista que fica à beira de um lugar de pódio, uma
competidora que se preparou a longo prazo para estar no seu pico de forma nos
J. O. mas porque devido exactamente a essas variáveis não consegue alcançar o
pódio, não tem que pedir desculpa a Portugal. Nem aos portugueses. Mas devido à
imprevisibilidade do resultado deveria ter preparado um discurso de derrota.
Faz parte do planeamento, principalmente quando sabemos que a este nível os
participantes são sempre solicitados no final das suas provas para prestarem declarações
à comunicação social. E o planeamento não é da sua responsabilidade. Mas a
sinceridade acima de tudo!
E se “não podemos ser esquisitos quanto à cor das
medalhas”, quando se possuem responsabilidades no campo do treino de um
competidor nos J. O., teremos mesmo de ser esquisitos quanto à cor das
medalhas, pois só uma nos interessa: a de ouro. A alta competição não se
compadece com amadorismos. Temos de deixar de ser pequeninos, tal como teremos
de deixar de ser pequeninos quando um competidor afirma que “é melhor um 10º lugar do que um 11º ou
qualquer outro.” É um competidor que está completamente errado no seu modo
de ver as coisas, o que influencia a sua prestação psicológica no desenrolar da
prova.
Mas de realçar o
atleta que reconhece o seu desaire ao afirmar “falhei no dia errado”. Falhar faz parte do desporto… haver dias
errados também. E que o erro sirva para ser corrigido para que num próximo dia
errado a falha não aconteça.
E também houve quem dissesse que “queria fazê-lo bem e não pude”. Alguém operado a um joelho a três
meses de uns J. O. nunca se poderá apresentar nestes na sua melhor forma. Que
medidas ditaram a sua presença nos mesmos? Um atleta que, vítima das suas
próprias palavras, “aprendeu com a vida”.
É de lamentar que quem nos deu tantos resultados, quem nos deu tantas alegrias,
saia do circuito olímpico pela porta pequena. Como dizem os japoneses, “quando um olho está fixo no destino, só
resta um olho para encontrar o caminho".
E felizmente que
existem atletas que são capazes de reconhecer que “estou muito bem mas nem sempre o nosso muito bem sai e se realiza no
grande momento. (…) A cabeça manda muito, o corpo manda ainda mais (…).” A
desmistificação de que a mente comanda o corpo… ou de que os limites são para
se ultrapassarem…
E felizmente
também a existência de atletas que dão conta de que “e foi aí que eu cometi a falha – e por isso sim, o erro foi da
cavaleira porque o cavalo estava perfeito.” Aqui sim, aprende-se com o
erro, mais um que serve para ser corrigido como a própria reconheceu. Recuperar de adversidades é uma coisa, quando elas foram originadas por variáveis
que estão - e sempre estiveram - fora do nosso controle. Cair voluntariamente
nessas adversidades é outra totalmente diferente!
Se uma
competidora não tem noção das possibilidades do seu rendimento isso só se
poderá dever a uma de três coisas: mau planeamento do treino com a consequente
preparação insuficiente (estratégica, física e psicológica), falta de
competências ou irresponsabilidade. Não queremos acreditar que tenha sido
alguma destas duas últimas quando uma competidora afirmou: “tinha boas adversárias na minha
eliminatória, mas não sei se dei o máximo.”
A deficiente
preparação e planeamentos deficitários de alguns competidores ficaram latentes
quando foi afirmado o seguinte: “passei
uma época muito longa, intensa e desgastante (…). Aqui, estou a pagar a fatura
de tudo isso, pois não estou no máximo das minhas capacidades físicas e mentais.”
Não são só os que são visíveis que possuem responsabilidades nos resultados dos
Jogos. Treinadores e dirigentes, apesar de na sombra, possuem tanta ou mais
responsabilidade que os mesmos. É inglório sacrificar-se carne para canhão
quando os decisores são os principais responsáveis. “Relativamente às provas, não tivemos provas. Não treinámos para isto,
estamos cá a lutar.” Ficou demonstrado que lutar não chega. Como dizem os
japoneses, “visão sem ação é um devaneio.
Ação sem visão é um pesadelo”. O desporto ignora a igualdade de condições
desses mesmos competidores – condições individuais diferentes (quer sejam de
ordem genética, anatómica, fisiológica ou psíquica), condições de treino
diferentes (no que diz respeito a metodologias, a instalações, a treinadores e
a todo o restante apoio, incluindo o económico) e até diferentes condições de
participação no momento (tempo) comum a todos os competidores (onde os
antecedentes e todos os níveis de preparação emergem tal como as variáveis de
circunstância momentâneas).
A paixão pela
pista surge “muito por causa da
adrenalina e pelo espectáculo” proporcionado. Exactamente! Desporto é
espectáculo em que se exploram os corpos e que serve para entretenimento e para
criar consumidores. Quem lucra com isso? Motivo para reflexão! (E sobre o «quem
lucra com isso», só mais uma questão, embora fora do contexto: a quem
interessou o Karate no programa destes J. O?).
E para meditarmos
sobre resultados, terminamos com uma interrogação: tem mais significado um 20º
lugar quando estão presentes 88 atletas e só 73 chegam ao fim ou um 3º lugar
entre apenas 12 concorrentes?
* Propositadamente não identificamos os autores das declarações
que transcrevemos e citamos. Leitor atento facilmente reconhecerá os que as
proferiram.
49. Da evolução do desporto
30.08.2021
O
desporto integra situações motoras
competitivas, normalmente apelidadas de técnicas e que desembocam em tácticas e
estratégias, com competições a todos os níveis (etários, geográficos,
por modalidades) designando vencedores e vencidos, comporta actividades codificadas sujeitas a regras e
regulamentos, e é estruturado e
organizado através de um sistema institucionalizado em torno de clubes,
associações, federações e grandes organizações (COI, UEFA, FIFA e muitas outras
dependendo das modalidades), apoiando-se em exigências sistemáticas de
espectáculo, de interacção com os mass
media, com a política e com a economia.
A hierarquização dos competidores
(classificações, pódios, medalheiros, campeões disto e daquilo, detentores
deste ou daquele recorde) não é mais do que a criação de um conjunto de
condições de desigualdades – o desporto descrimina. A intenção de cada
desportista (do seu treinador, dos seus dirigentes, e até das mais altas
individualidades políticas do seu país) ao desejar ser um vencedor, um campeão
ou um recordista, traduz-se, por consequência, na sua transformação de um
produtor de derrotados. E se “na vitória pouco se aprende, mas muito se
aprende com a derrota”, então teremos de reconhecer que o desporto ao criar
um maior número de derrotados que de vencedores é de facto uma actividade onde
abunda a aprendizagem… só que teremos de conhecer quais os objectivos e quais
os conteúdos dessa aprendizagem.
O desporto não
evoluiu só da cana de bambu à fibra de carbono, dos quadros
de ferro aos de alumínio e titânio e às rodas lenticulares, do cabedal ao kevlar, do algodão à licra ou ao
neopreno e ao poliuretano, da cinza ao tartã, do treino em altitude às câmaras
isobáricas, do massagista ao fisioterapeuta, do rolamento ventral ao fosbury flop, das travessas aos pitons… o desporto evoluiu também em
termos de organização, de regulamentação, de exploração de merchandising e de publicidade, de transmissões e de direitos de
imagem, mas também em termos de consciencialização dos competidores – afinal os
grandes actores, que, apesar de serem formatados como carne para canhão, se vão
lentamente libertando (alguns!) dessas amarras.
A
agressão a um cavalo nos J. O. de Tóquio por parte de uma treinadora de
pentatlo moderno – a alemã Kim Raisner –, já deu origem à modificação dos
regulamentos no que diz respeito à prova de equitação por parte da Federação Internacional
desta modalidade.
A
medalha de ouro de um karateka (o iraniano Sajad Ganjzadeh) nos mesmos J. O. por
desclassificação do seu adversário (o saudita Tareg Hamedi) na prova de combate
– segundo alguns excesso de contacto deste último, segundo outros inexistência
deliberada de protecção e «comportamento teatral» do vencedor, mas tudo
observações subjectivas – veio equacionar a modificação dos regulamentos nesta
prova.
O
debate em torno da preparação psicológica de desportistas (assim como do seu
acompanhamento) e a prevenção de situações de stress e de depressão, despoletado por Simone Biles, alertou-nos
para o facto de que algo terá de ser modificado não só na metodologia de treino
mas também em termos organizacionais a fim de evitar a exploração desses
desportistas (é urgente debelar-se o treino intensivo precoce!).
A
queda do uruguaio Maurício Moreira no contra-relógio final da Volta a Portugal
e que lhe retirou a vitória na mesma, veio colocar a nu “métodos e vícios antigos existentes no ciclismo português”
(Fernando Emílio, «A Bola», 17.08.2021).
O
anúncio da primeira Volta a Portugal feminina em bicicleta vem precisamente
demonstrar-nos também que, nos tempos que correm, algo evolui no desporto…
A
admissão de boicote à Liga Europeia de hóquei em patins por parte da Associação
Europeia de Clubes dado o modelo de 16 equipas em dois grupos ter sido
preterido em favor de um formato com 20 equipas e duas fases em que jogariam
todas entre si até à final four – com
a consequente sobrecarga para os desportistas – veio abanar modelos de
organização de competições.
A recusa
por parte de clubes espanhóis de futebol em cederem jogadores seus para
selecções sul-americanas devido à remarcação de novas datas para as provas de
qualificação para o Mundial de 2022 apresenta novos contornos no futebol. Jorge
Valdano («A Bola»,28.08.2021) pergunta: “é
mais importante a Premier League do que o Mundial?” E ele próprio dá a
resposta: “Não, é mais importante o poder
económico que o poder simbólico.”
Entre
os nossos muros, na nossa quinta, como evolui o desporto? Em que sentido? Deixamos
só alguns indicadores: 1 – Portugal não teve ninguém na maratona masculina
dos J. O. de Tóquio, o que acontece pela primeira vez desde
1968… há 53 anos… 2 – 92 competidores e 18,5 milhões de euros para 4 medalhas:
muito, pouco ou assim-assim? 3 – 33 competidores paralímpicos numa comitiva de
77 elementos… 4 – O Ministério da Educação quer o desporto escolar mais ligado
às federações desportivas… vai daí, no próximo ano lectivo, as equipas de
alunos técnica e tacticamente mais evoluídas só poderão ter tempo para treinos
se estiverem inscritas em federações desportivas…
Um
bom slogan seria «acreditem, não precisam analisar nem reflectir!».
E
porque os métodos de dopagem também evoluem, assim como os fenómenos de fraude
e de corrupção, a grande questão que deveremos colocar é a seguinte: o desporto
evolui num sentido de progresso para a humanidade e num sentido de desenvolvimento
da civilização?
Atente-se
a que dos gabinetes de relações públicas passou-se para os departamentos de marketing e por último para os
directores de comunicação… As formas de relacionamento com os consumidores do
desporto foram-se modificando… Também aqui o desporto evoluiu.
Parece-nos
que a evolução do desporto serve essencialmente o captar vitalício do
espectador para o utilizar eternamente, para o cativar de uma forma impessoal
deixando-o subjugar-se ao poder da imagem, do espectáculo e da publicidade.
Criar o desejo no espectador, torná-lo crente, fazê-lo sentir que reina nesse
domínio, que se tornou especialista em técnicas, em tácticas, em modelos de
jogo, em constituições de equipas, em analises de faltas e sanções – quando,
sem se aperceber, o desporto o está a tornar num sujeito submisso, voyeur, a fim de reforçar e melhor
desenvolver “a sua aptidão para consumir,
digerir, regurgitar e então reciclar ou substituir” como nos diz Marie-José
Mondzain[148]. E,
segundo a mesma autora, “no domínio dos
reinados, os espectadores formatados afeiçoam-se pela conivência, pelas
cumplicidades, pelos índices identitários, pela segurança das reclusões. A
verdadeira polícia é a que faz reinar o mercado quando este é o único a reinar.”
A
própria evolução do desporto encontra-se refém de uma mercantilização em que, e
segundo as leis do mercado, tudo é medido em euros ou em dólares – não tivesse
a saída de Messi do Barcelona de ser avaliada de imediato como uma perda de
receita para o clube catalão de 137 milhões de euros…
Como
disse Carl Sagan (e citamos de memória), “é
mais fácil descrever o destino que a viagem”.
50. Cooperação, competição, civilização!
24.10.2021
Em
2020 Remy Blumenfeld[149]
trouxe-nos a história do aluno que teria perguntado à antropóloga Margaret Mead
(1901-1978) qual seria o primeiro vestígio da existência da civilização humana.
A antropóloga americana teria respondido: “Um fémur com 15 mil anos encontrado numa escavação arqueológica.” E
esta ter-lhe-ia explicado que o fémur encontrado revelava indícios de se ter
partido e ter cicatrizado, o que implicava que alguém tinha cuidado daquele ser
humano, abrigando-o, alimentando-o e protegendo-o, até porque naquela altura
aquela recuperação teria demorado provavelmente seis semanas. Segundo o mesmo,
Margaret Mead teria acrescentado que, na natureza, no reino animal, a quebra de uma perna implicava a
morte. Não se poderia fugir do perigo, não se poderia beber ou procurar
comida. Ferido dessa forma, o animal seria carne para os seus
predadores. Nenhuma criatura sobreviveria a um fémur quebrado por tempo
suficiente para o osso se curar sem auxílio. Seria comida primeiro… Assim,
para a antropóloga, cooperar com alguém numa ajuda para ultrapassar dificuldades seria o ponto
de partida da civilização.
Considerando este acontecimento como o início da civilização,
é no entanto comum considerar-se a Mesopotâmia como berço da civilização
ocidental. Se a escrita aí desabrochou (por volta do ano 3200/3100 a.C.),
verificamos que entre este acontecimento e o descrito por Mead medeiam cerca de
11.000 anos. E entre o aparecimento da escrita e o relato de Mead estão
aproximadamente 5.000 anos.
A civilização, considere-se o que se considere ser o seu
início, foi (é) um processo lento e moroso que avançou (avança) passo a passo,
ponto a ponto, conto a conto… Tal como o desporto…
Se até à primeira grande guerra mundial se pode dizer que o
desporto estava preocupado com objectivos como a educação e a moral, a partir
desta a incidência passou a ser no espectáculo e, lentamente, a comunicação
social, a economia, a política e a publicidade tomaram conta deste. Durante e
após a década de 80 do século passado o desporto foi-se transformando numa
actividade que gera comércio, tornando-se ele próprio um comércio – passou-se
do ócio ao negócio.
Actualmente o desporto vive do e para o alto rendimento
recorrendo ao profissionalismo, é movido pelos mass media e pela
publicidade, exige sensacionalismo e recordes, nele tudo é quantificado,
idolatra os heróis, é determinado pela ciência e pela tecnologia e é gerido
pelo lucro, pela política e pelo direito.
Do amadorismo ao profissionalismo, do livre associativismo à
legislação actual, do jogo pelo jogo aos actuais investimentos, o desporto
saltou de paradigma em paradigma… Como? Lentamente... sem irmos tendo a
percepção de tal. A par de um processo civilizacional temos um processo do
fenómeno desportivo. Pequenas alterações vão sendo introduzidas espaçadamente
(a árvore), pequenas modificações vão-se interpenetrando e aglomerando ao fim
de algum tempo e, sem darmos conta, chegamos ao momento actual (a floresta). De
um modelo de competição sem regras chegamos a um modelo de processos de
interpenetração com normas que mostra “como
a teia de relações humanas muda quando muda a distribuição de poder.”[150]
De tal modo que já não é o desporto que é um reflexo da sociedade, mas sim a
sociedade que é a imagem do desporto!
Este avanço – processo – não foi no entanto acompanhado pela
nossa mente, pelo nosso raciocínio, e por isso mesmo ideologicamente ainda nos
encontramos agarrados a ideias que nos foram vendidas e nós comprámos (o
espírito desportivo, o espírito olímpico, o amor à camisola, a verdade
desportiva, o fair-play, a ética, os
valores) noções essas que se utilizam constantemente em discursos de
circunstância sem ninguém se preocupar em esclarecer o seu real significado
(talvez por já se encontrarem esvaziadas de sentido mas funcionando bem como cliché) quando a realidade actual é bem
diferente. Ideias que nos continuam a inculcar sob uma nova roupagem… a
roupagem da moda. E se a moda não incomoda, como diz o povo, quando a moda é
tóxica incomoda mesmo (pelo menos os mais atentos ou os mais pragmáticos).
A criação dos clubes-empresa, de que Claude Bez foi o
impulsionador em 1984, a criação das SAD’s, a acção desenvolvida por Jean-Marc
Bosman, e mais recentemente a aquisição do Newcastle por um consórcio liderado
pelo Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita isso nos mostram lá fora.
Entre nós, o mesmo nos é mostrado pela evolução desde a Lei de Bases do Sistema
Desportivo (1990) até à comercialização
centralizada dos direitos televisivos dos jogos de futebol (2021), passando
pelo Regime Jurídico das Federações Desportivas (2008) e pelo Regime
Jurídico dos Jogos e Apostas Online (2014). No desporto, hoje em dia, conta
mais o poder económico que o poder organizativo. No desporto, hoje em dia,
conta mais o lucro que o resultado desportivo. Não é por acaso que existem
gabinetes de marketing nos grandes
clubes, tal como não é por acaso os mesmos possuírem canais televisivos. Não é
só o espectáculo que vende, a publicidade também vende… e não vende só a
mercadoria, vende sonhos, vende esperança.
E, por muito que certas personagens com responsabilidades na
sociedade (e no desporto) nos tentem submeter à crença de que o futebol é uma
indústria e não um comércio, seria bom que essas mesmas personagens nos
explicassem o que é «a transparência, a integridade e a boa governança»”… até
porque os estereótipos tendem a transformar-se em mito.
Nos últimos tempos alguns autores (Harari, Damásio,
Cregan-Reid) trouxeram-nos de novo o facto de ter sido a cooperação entre seres
humanos o grande motor da civilização e não a competição. Muito menos a
competição-espectáculo… até porque, nos dizeres de Pier Vincenzo Piazza[151],
“todos os seres vivos produzem entropia
quase exclusivamente com a finalidade de sobreviverem. O homem é o único que
parece gostar de a criar ou de a aumentar apenas para se divertir.” E
acrescenta ainda este autor que “quanto
mais elevada for a entropia de um recurso, maior a sua abundância e
omnipresença.” E aí está o desporto, um recurso extenso, enorme, grandioso
(passe o pleonasmo) em abundância e em omnipresença.
A
pedagoga Maria Montessori (1870-1952) também nos disse que “as pessoas educam para a competição e esse é
o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e sermos
solidários uns com os outros, nesse dia estaremos a educar para a paz!”[152]
Mas
nós continuamos a comprar (e a acreditar) naquilo que nos vendem… a nossa
ingenuidade (ou a forma como somos manipulados) acompanha transgressões a
princípios éticos e a normas morais. E quando somos adeptos, quando nos orgulhamos
dessas transgressões então estamos de facto condenados…
Post Scriptum:
Jorge Valdano escreveu em «A Bola» (16.10.2021) o seguinte: “Há um grande engano cultural em que todos
estamos metidos e que diz no seu enunciado mais simples: a vida é uma competição
e apenas se salva o vencedor. O futebol envolveu-se nessa dinâmica como se
fosse o ‘Squid Game’, embora neste momento as vítimas sejam apenas morais.”
Provavelmente uma observação acertada… No mesmo diário, Vítor Serpa
(23.10.2021, p. 31) diz-nos que “as
mudanças no futebol, no país e no mundo são imparáveis. Não adianta ser contra,
porque elas, inevitavelmente, irão seguir o seu caminho.” Uma constatação,
provavelmente mais que correcta…
51. Do ‘show’ desportivo e da subliminaridade
09.11.2021
Quer
seja semana após semana, quer seja de quatro em quatro anos, o indivíduo é
mobilizado, é convocado, para seguir a sua paixão dando largas ao ardor e ao
arrebatamento – há quem lhe chame libertar as emoções, extravasar energias ou
procurar a excitação. São manifestações litúrgicas…
Para
tal é necessária a existência do show
desportivo. Nele se vertem paixões sem se dar
conta que as mesmas toldam a razão, não tendo a grande maioria dos apaixonados
a capacidade para controlar a simultaneidade da paixão e da razão. Muitas vezes
a paixão exacerbada resulta em fundamentalismo, um campo fértil para o
desporto.
O
espectáculo só produz entretenimento ou divertimento. Não é um bem palpável mas
é uma mercadoria que se situa mais na esfera do imaterial. E o entretenimento “é desprovido de qualquer acesso ao
conhecimento. Diverte sem aumentar o conhecimento”, como refere Byung-Chul
Han[153].
Por
seu lado, o espectáculo não existe sem o espectador. A excelência – areté no tempo
dos gregos e virtus no tempo dos
romanos – sempre foi do domínio público. A validação da acção do indivíduo na
qual pretende sobressair e distinguir-se dos outros implica que a mesma fuja à
obscuridade ou mesmo à negritude. Como nos disse Hannah Arendt[154],
“para a excelência, por definição, há
sempre a necessidade da presença dos outros, e essa presença requer um público
formal.”
O
espectador existe desde o início da humanidade, tando talvez nascido com a
contemplação das pinturas rupestres, tendo o progresso, ou a civilização,
determinado um espectáculo actual muito diferente do espectáculo da
Pré-história, mas que aí encontra as suas raízes. A evolução do ser humano
acompanhou novas formas de divertimento e este foi-se adaptando aos tempos
relativos à sua época histórica. A história do desporto, a história do
espectáculo, está registada, mas não a do espectador. É pertinente a questão
que nos coloca Marie-José Mondzain[155]:
“Será possível fazer-se uma história do
espectador sem nela anotar uma história da crença e, logo, de todas as figuras
sub-reptícias ou violentas da persuasão e da convicção?” Sem nos
preocuparmos com a resposta e quedando-nos apenas pela pergunta verificamos que
«espectador», «crença», «violência» e «persuasão» são conceitos que fazem parte
da história da humanidade e têm acompanhado o ser humano ao longo dos séculos.
A
essência mais profunda do desporto-espectáculo não reside no facto de o
desportista procurar superar-se cada vez mais, de optimizar o seu corpo, de se
tornar um herói ou um ídolo. Não reside num escalonamento, num ranking e na obtenção de um título. Não
reside na meritocracia.
A
essência mais profunda do show
desportivo assenta sim no facto do espectador poder alimentar o seu ‘ego’ com
aquilo que não consegue mas gostaria de conseguir fazer (por isso os psicólogos
falam em identificação e em projecção) vivendo, segundo o mesmo, assim,
momentos inolvidáveis. A essência mais profunda do show desportivo assenta na criação do consumidor – o adepto foi há
muito ultrapassado – tendo o comércio, o negócio, a publicidade e o merchandising tomado conta do desporto.
Por
que motivo os logotipos de grandes marcas nos equipamentos, nomes de produtos
ou de empresas nos painéis que circundam o campo, nos outdoors, nos painéis por detrás dos pódios e nas conferências de
imprensa, nas costas das camisolas, ou até em cartazes e nos bilhetes? Nós não
damos conta mas… existe a recepção de mensagens directamente pelo cérebro pela
via ocular sem o crivo crítico da consciência, mas que ficam registadas no
nosso inconsciente, como refere Flávio Calazans[156]…
e as “mensagens que pouco a pouco levam à
adesão, inconscientemente reforçando a cognição consciente gerada pela campanha
publicitária tradicional, constituem a propaganda subliminar multimídia.”
É
essa propaganda que cria o consumidor. E embora a noção de propaganda seja
diferente da de publicidade – a primeira é uma forma de transmitir ideias que procuram influenciar o
nosso comportamento enquanto a segunda é uma forma de comunicação que procura
promover perante o público um serviço ou um produto –, o objectivo é
fazer registar uma imagem no nosso cérebro a fim de modificarmos o nosso
comportamento consumista e mais tarde adquirirmos esse produto. E quando
compramos o produto, não estamos só a pagar o mesmo… estamos a pagar a própria
publicidade! O consumidor final, o tal que está na cauda da cadeia alimentar, é
o tal que tudo suporta.
Daí
o ser importante, para os promotores do espectáculo desportivo, fazer com que a
nossa mente inconsciente repare em coisas nas quais a mente consciente não
repara mas regista – as imagens subliminares.
52. A tirania dos regulamentos
22.11.2021
A
competição, ou antes, a vitória na competição, mede-se por critérios objectivos
e/ou por critérios subjectivos. É uma avaliação. Para designar vencedores e
vencidos é imprescindível essa medição. Em relação aos primeiros temos as
medidas de comprimento, de peso, de tempo, os golos ou os pontos marcados… No
que se refere aos segundos temos a atribuição de notas ou uma pontuação… Tudo
isto está plasmado em regulamentos, que muitas vezes não são éticos mas são
legais. E quando a lei está em conflito com a ética, é raro prevalecer a ética,
até porque se antes os homens necessitavam
de panis et circenses, teremos de
dizer que actualmente a necessidade se baseia no panis, argentum et circenses...
Se
concordamos em atribuir uma maior fiabilidade aos critérios objectivos porque a
isso estamos habituados – erros de percepção, enviesamento e ruído são
frequentes nos juízos subjectivos – teremos de desmistificar no entanto essa
atribuição porque nem sempre é verdadeira.
Vejamos
dois casos concretos!
Em 2007 Naide Gomes participou nos Mundiais de atletismo de Osaca.
Na sua qualificação fez um salto de
Nos Mundiais de ginástica artística all around de 2021, em Kitakyushu, Filipa Martins terminou na 7ª
posição com 52,199 pontos, muito perto da classificada em 5º lugar com 52,832
pontos. No entanto, esta ginasta na qualificação para a final obteve um 6º
lugar com uma pontuação superior à da final: 53.032 pontos. Tudo isto aconteceu
também na mesma prova, embora em etapas diferentes: eliminatórias e final. Uma
pontuação superior num antes e uma inferior num depois… mas decisiva esta
última.
Verificamos assim que os regulamentos desportivos, nas provas com
qualificações e final, permitem que um competidor que tem um melhor tempo, uma
melhor marca ou uma melhor pontuação numa eliminatória (qualificação para a
final), possa ser derrotado na final por outro competidor com um tempo ou uma
marca inferior nessa mesma prova.
Detenhamo-nos agora um pouco numa mera hipótese académica…
No ténis se um jogador vencer o primeiro set por 7-5, após empate (5-5), e se perder o segundo por 1-6 terá
de disputar um terceiro set. Se neste
último o resultado lhe for favorável por 6-4, ele será o vencedor, pois vence
dois sets e perde um. Mas se
contabilizarmos o número de jogos, verificamos que esse jogador venceu 14
enquanto o derrotado venceu 15 jogos… Por força dos regulamentos, o jogador que
ganhou o maior número de jogos acaba por ser o derrotado…
Passemos a um outro campo paralelo, o dos contratos. Porque no
desporto tudo se compra e tudo se vende, tudo é regulado pela oferta e pela
procura… no desporto tudo se negoceia (grande é o «comércio», apesar de haver
muitos – e alguns com responsabilidades educativas, organizacionais, políticas,
institucionais – que nos querem instrumentalizar fazendo-nos crer que o
desporto é uma «indústria»)… no desporto o «deus dinheiro» é dono e senhor da
mercadoria!
Em Dezembro de 2016, no
combate de Mixed Martial Arts entre Ronda Rousey
e Amanda Nunes, a primeira foi derrotada ao fim de 48 segundos. Nesse combate,
a derrota rendeu a Ronda Rousey a quantia de mais de dois milhões e quinhentos
mil euros. A vitória rendeu a Amanda Nunes cerca de dois milhões de euros. Um
provável título para este evento: quando a derrotada ganha mais do que a
vencedora! Questões de negócio… mas que marcam a diferença entre uma vitória e
uma derrota.
Numa época de mercantilização do desporto,
encontramo-nos na presença de um sistema ilusório embora não um sistema de
ideias falsas. Os actuais ideais desportivos tornam-se assim social e
politicamente eficazes, todavia os mesmos encontram-se divorciados das suas
condições sociais da emergência e da natureza da competição. Parafraseando
Ortega y Gasset, poderemos dizer que “o
maior crime está não no erro, mas na convicção das pessoas de que o errado está
certo”.
53. A competência de opinar
20.12.2021
“Perry limpou
a cerveja entornada com um guardanapo.
–
Desculpa, mas fico lixado quando os árbitros se põem a decidir quem vai ganhar
em vez de os deixarem jogar.
–
A vida é cruel e injusta, meu amigo – disse Bill. – Ninguém escapa às
injustiças da vida, nem mesmo no mundo do desporto.”[157]
Se a vida é cruel e injusta, se o mundo do desporto não
escapa às injustiças da vida, é tudo uma questão de perspectiva. Que o digam
grandes administradores desportivos, gestores de topo ou agentes de jogadores
de futebol. Principalmente estes últimos com um total pago aos mesmos em
comissões pelos clubes no ano de 2021 de 443,5 milhões de euros… mais 0,7% que
no ano anterior.
Fomos habituados a olhar para o futebol, e a falar dele, como
estando a olhar para o desporto e a dele falar. Nada de mais errado! Somos
educados futebolisticamente, somos formatados para darmos um pontapé numa bola
e julgarmos que estamos a jogar futebol, crescemos numa cultura em que
discutimos futebol estando convencidos que nos encontramos no centro de um
debate sobre desporto. E os media
possuem a sua quota-parte de responsabilidade neste assunto: na TV o futebol
ocupa as transmissões em directo, os programas com painéis de comentadores, os
noticiários… 28 de 32 páginas de um diário desportivo são preenchidas com esta
modalidade… e as restantes que nem visibilidade possuem também são as que menos
espectadores possuem ao vivo e aquelas que menos dinheiro movimentam e menos
lucro dão a certos sectores da sociedade. Filhas de deuses menores!
Gabriel Albuquerque sagrou-se campeão mundial de trampolins.
Telma Santos foi igualmente campeã mundial de badminton. Uma equipa feminina de
goalball portuguesa (SCP) também
conquistou o título de campeã do mundo. Não abriram noticiários, não vimos
entrevistas, não sabemos se foram ou irão ser condecorados pelo PR, não
receberam nenhuma bola de ouro ou qualquer outro prémio badalado na comunicação
social! Filhos de deuses menores!
Na infância, inúmeros são os brinquedos com a forma de uma
esfera. Talvez por ser o único objecto que não possui vértices e arestas e por
isso mesmo ser aquele que menos acidentes poderá suscitar com as crianças.
Talvez por ser aquele que com mais facilidade perde o seu equilíbrio estável.
Crianças que são as mais propensas para serem influenciadas por pais,
familiares e amigos para «darem um pontapé na bola»… e logo de seguida
instigadas a «serem» deste ou daquele clube (futebolístico, entenda-se!). Uma
questão hereditária e, como tal, transmissível, a qual se vai inculcando no
indivíduo.
Passa-se a seguir à fase do «jogar à bola» e depois ao querer
ser como este ou como aquele jogador de topo. Daí à escolinha de futebol é só
um passo… mas nem todos saem de lá craques. Concomitantemente vai-se formando o
espectador, vai-se cultivando a paixão, vai-se exacerbando o fanatismo – é a fase em que «os árbitros se põem a decidir quem vai ganhar».
E, como disse Denis Diderot (1713-1784), filósofo francês do iluminismo, “do fanatismo à barbárie é só um passo”…
Surge então a etapa em que a narrativa do próprio se
circunscreve ao recurso à ética, à verdade desportiva (seja lá o que isso for),
à necessidade da prevenção da violência no desporto, à luta contra o doping,à luta contra a corrupção. No
entanto olvida inúmeros outros aspectos porque só acredita naquilo em que quer
acreditar e, pior que um cego, só vê aquilo que quer ver – é a confirmação do
«viés de confirmação».
É este, em traços gerais, o deslocamento do acento tónico na
«vida do desportista», quer seja praticante ou não. Há um padrão na construção
da «cultura» desportiva do indivíduo e que revela a longo prazo a sua
iliteracia neste domínio.
É costume aferir-se o grau de desenvolvimento desportivo ou o
nível de cultura desportiva de um país pelo medalheiro nas várias modalidades
(e nos J. O.) ou pelos índices de prática desportiva e de actividade física dos
seus cidadãos. O «desenvolvimento desportivo» é um conteúdo completamente
diferente do conteúdo «cultura desportiva». O primeiro, mais abrangente, tem a
ver com instituições e formas organizativas – e, consequentemente com
resultados desportivos a nível internacional. O segundo está relacionado com
valores e com os conhecimentos que a maioria dos indivíduos possuem sobre o
fenómeno desportivo e, como tal, sobre as suas competências para emitirem
opiniões sobre o fenómeno desportivo. O problema não está no facto de possuírem
opinião… uma opinião especializada sobre um só determinado aspecto do fenómeno
desportivo ou uma opinião global e abrangente do mesmo… o problema está no
facto de só serem detentores de uma opinião superficializada, de não possuírem
uma opinião fundamentada e alicerçada no conhecimento – que normalmente não
buscam – pois seria isso que lhes poderia dar a competência de ou para
opinarem…
54. Ainda sobre a
competência de opinar
03.01.2022
Ninguém se lembraria de colocar um alcoólico a apresentar um
programa de vinhos ou a comentar as suas características e/ou propriedades.
Para isso escolheria provavelmente um enólogo ou um escanção. “Tinto ou branco? Cheio!” seria o
comentário mais badalado por um comentador cujo estado permanente fosse o de
etilizado. E por que motivo? Porque para o alcoólico qualquer vinho é bom:
tanto faz tinto como branco, o importante é que lhe tolde os sentidos e que
viva uma outra realidade.
Mas
lembram-se de colocar «comentaristas?» (sim, nem sequer são comentadores) a
debitarem as suas opiniões em programas que possuem público. E o mais curioso é
isso mesmo: eles têm quem os ouça! E quem lhes dê crédito! Porque, como firma
Alain de Botton[158],
a máquina da comunicação social contemporânea tem o poder de esmagar a nossa
capacidade para pensar com independência.
A
responsabilidade de quem os coloca a debitar opiniões superficiais sobre
assuntos mais profundos do que eles próprios imaginam deveria ser auditada.
Pior ainda quando acicatam uns contra outros… Mas o problema não reside na
existência destes «comentaristas». O problema reside no facto de terem público,
de criarem a sua própria imagem, de serem viciados no poder da comunicação. E,
segundo o mesmo Alain de Botton, eles possuem “o
poder de montar a imagem que os cidadãos acabam por ter uns dos outros; o poder
de ditar como será a nossa ideia das «outras pessoas»; o poder de inventar um
país nas nossas imaginações." Os formatadores só existem porque há os que querem ser formatados. O
problema reside no facto de os receptores destas mensagens se terem habituado a
isto e a ir absorvendo – nem sequer assimilam, dado a sua ausência de espírito
selectivo ou crítico – aquilo que lhes é impingido. A grande maioria
habituou-se, acomodou-se, torna-se moldável, submissa, amorfa, e, como nos
disse Friedrich Nietzsche[159], “os
povos só são tão enganados porque procuram sempre um enganador, isto é, um
vinho excitante para seus sentidos. Contanto que possam obter esse vinho,
contentam-se com pão de má qualidade. A embriaguez interessa-lhes mais que a
alimentação – esta é a isca com que sempre se deixam pescar! (...) Os povos
obedecem sempre e vão mais longe ainda com a condição de poderem-se embriagar!”
Mas o contrário, que é de louvar, também
existe. Quando um dos «comentaristas» com maior projecção na televisão dizia “esta vinda dos dirigentes do Flamengo a
Portugal para tentar contratar Jesus é um disparate… uma falta de respeito… não
faz sentido… é uma coisa de terceiro mundo… isto não é futebol profissional nem
gente decente…” um jornalista soube, e muito bem, contrapor: “mas o Benfica fez o mesmo para ir buscar JJ!”
Resposta comprometida a do «comentarista»: “mas
vamos ver… quer dizer… vamos lá ver.” No entanto o «comentarista» tem
audiência, tem quem o siga nas suas opiniões – é a reprodução a funcionar…
Mas não é só na TV que isto acontece!
Temos comentadores que se batem sistematicamente por apresentar o futebol como
sendo uma indústria. Um deles, numa coluna de opinião semanal que ocupa cerca
de um terço de página de um diário desportivo, chega a utilizar por três vezes
o termo «indústria» para classificar o futebol, tudo na mesma crónica. Não
admira pois que os ingénuos vão falando no futebol como uma indústria quando
tudo se trata de negócio – e este enquadra-se no comércio, não na transformação
de matéria-prima e na elaboração de um produto.
E torna-se excruciante vê-los confundir
futebol com desporto, táctica com estratégia e atitude com comportamento…
No entanto há comentadores
desassombrados. Felizmente ainda temos um comentador a dizer-nos que “a boa notícia é que, afinal, o futebol é bom
negócio. A má também.” Ou um outro a dizer-nos que “o futebol é uma actividade (chamar indústria pouco sentido faz) com
regras de monopólio (ou duopólio) básicas”. Ou ainda aquele que declara que
se queremos perceber o futebol que estudemos economia… ou que “o jogo da moda não se chama futebol, antes
populismo – até os futebolistas já sabem jogá-lo.” E também mais um outro
que nos diz que os muitos comentadores que se debruçam, a toda a hora, nos
nossos televisores, “não se cansam de
dizer que é preciso defender essa indústria, desenvolver o produto (eu sei,
parecem estagiários do Jornal de Negócios, não comentadores de futebol)”. E
também aquele que afirma que “ainda não
foi escrito o livro negro do desporto”… Espíritos lúcidos que não se deixam
toldar… seja tinto ou seja branco!
Sobre o ocorrido no Jamor entre o
Benfica e o Belenenses SAD muito foi opinado, muito foi adjectivado. Expressões
como “vergonhoso quanto indecoroso ataque
à dignidade da competição e verdade desportiva”, “atentado ao pudor”, “farsa
que envergonha o futebol português”, “vergonha
como não há memória”, “desvirtuar a verdade
desportiva” foram amplamente utilizadas sem serem fundamentadas e sem se
tentar alcançar o âmago da questão ou sugerir soluções (realcemos que temos de
distinguir três aspectos: o comentário, a análise e a crítica). E eles fazem a
opinião! Uma opinião tóxica e poluente. Todavia eles nunca assumem a posição de
não (querer) perceber que eles próprios e muitos dos seus colegas
«comentaristas», talvez a maior parte, só debitam comentários para encher
chouriços. E o chouriço, acompanhado de um copo vai sempre bem!
Para os comentadores «especialistas em
desporto» aqui ficam onze questões para responderem. E bastará acertarem apenas
em cinco. Ou então que reconheçam que apenas são (quase) comentadores só de
futebol. Ou «comentaristas»! Porque, parafraseando Abel Salazar, quem só
percebe de futebol nem de futebol percebe.
1 –
Quantas e quais as armas da esgrima?
2 – Que
relação há entre os números 732 e 244?
3 – Quem
foi a árbitra portuguesa que dirigiu uma final da Taça de Portugal?
4 –
Quantos buracos tem um campo de golfe?
5 – Um
futebolista, bom futebolista, foi indisciplinado num treino, nas vésperas de
uma prova, tendo-se mesmo dirigido ao treinador de forma insultuosa perante os
outros colegas. Deverá o treinador colocá-lo a jogar para ter uma equipa mais
forte?
6 – No ténis, em que condições o jogador que ganha o maior número de jogos pode ser o
derrotado?
7 – A que altura
se encontra o aro de um cesto de basquetebol? E quem a determinou?
8 – Na natação,
nos J. O., quantas piscinas faz um nadador na prova de 150 metros livres?
9 – No futebol, a
marca de grande penalidade situa-se a 11 ou a 11,5 metros da linha de golo?
10 – Qual o
diâmetro da trave e dos postes de uma baliza de futebol?
11 – Qual o clube
de futebol que possui no seu emblema uma raquete de ténis?
Sim, o leitor
também poderá tentar… atreva-se![160]
55. O vil metal dita a mudança!
08.01.2022
Num livro
com quase quarenta anos, de autoria de Lawrence Sanders[161],
estabelece-se um paralelo entre um cientista e um detective de homicídios.
E para
isso faz uma analogia com um homem confrontado com um animal selvagem numa
floresta e um cientista num laboratório. Na floresta, um animal selvagem
prepara-se para se atirar sobre o homem ameaçando-o de presas arreganhadas e
garras prontas. No laboratório, o cientista tem o animal, anestesiado, à sua mercê.
No seu
laboratório, o cientista preocupa-se em classificar a fera: família, género,
espécie; a sua aparência externa - a sua morfologia –, a sua constituição anatómica
e a sua fisiologia; o seu habitat
natural, os seus hábitos de alimentação, acasalamento e reprodução.
Eventualmente de que anteriores formas animais evoluíra.
Para o
homem que se encontra na floresta, ameaçado, tudo isto seria extrínseco, sem
significado algum. Tudo quanto ele conheceria seria o medo, o perigo, a ameaça,
e a sua preocupação estaria focada na sua sobrevivência.
O
detective de homicídios era o homem da floresta. O criminologista, o psicólogo
ou o sociólogo era o homem do laboratório. O homem do laboratório
interessava-se por causas. O homem da arena interessava-se por factos, pelas
provas que conseguiria descobrir e pelos acontecimentos que poderia provar.
Hoje em
dia já não é exactamente assim. Diluiu-se a fronteira entre o detective e o
criminologista e aquele tornou-se também cientista. E o homem do laboratório,
para além da investigação, tem de recorrer aos factos, à pesquisa, ao
cruzamento de dados… tem de comprovar hipóteses, tem de inferir soluções.
No
desporto também temos de recorrer a factos, a acontecimentos, a fim de testar
hipóteses e apresentar conclusões. A análise de um acontecimento terá de ter um
suporte, um fundamento, terá de se apoiar em parâmetros de análise e retornar
de novo ao acontecimento a fim de chegar a conclusões, estabelecer padrões de
conduta ou até analisar e descodificar representações sociais.
No início
do presente ano, António Simões – o jornalista, não o ex-futebolista –
trouxe-nos em «A Bola» a história de Francisco
Ferreira, o primeiro futebolista português a chegar às vinte e cinco
internacionalizações.
A 3 de Maio de 1949, o Torino perdeu frente ao Benfica por
4-3, no Estádio do Jamor, no jogo particular de despedida do então capitão da
equipa portuguesa, Francisco Ferreira. No regresso da equipa italiana a
casa, a catástrofe, a tragédia: o avião embate na Basílica de Superga…
vitimando os trinta e um ocupantes, dos quais dezoito jogadores e seis
dirigentes do Torino. A federação italiana decidiu atribuir o título ao Torino,
que na altura do acidente liderava o campeonato italiano com quatro pontos de
avanço sobre o Inter. Nas últimas quatro jornadas, o clube alinhou com a equipa
júnior, e, segundo se conta, o mesmo fizeram os seus adversários (a ser
verdade, este é um pormenor relevante comparado com o que acontece nos dias que
correm).
E António Simões («A Bola», 02.01.2022) diz-nos que Francisco Ferreira “destroçado
pela «desgraça», dos seus colhidos ganhos enviou 50 contos aos filhos dos
«amigos que a morte levou».” Solidariedade desinteressada: na altura estes
actos não faziam manchetes nos jornais, não eram visíveis na TV nem se tornavam
virais nas redes sociais!
Virgílio
Mendes, antigo futebolista do Porto que terminou a carreira em 1962, falecido
em 2009, despertou o interesse do Celta de Vigo em 1951, que lhe ofereceu 15
mil pesetas de salário por mês (uma fortuna nessa época) e um prémio de
assinatura de 500 mil pesetas. Recusou a oferta, constando-se que teria dito
mais tarde que “trocar de camisola apenas
por causa do dinheiro, se não era violentar o coração e o clube, era pelo menos
aceitar viver como um mercenário”[162].
Era o ethos do amor à camisola…
Em
Junho de 2011, David Beckham, que integrou o comité de candidatura inglês ao
Campeonato do Mundo de 2022, criticou abertamente a FIFA quando foram
conhecidas as primeiras suspeitas de corrupção na atribuição deste ao Qatar.
Uma década depois Beckham cede a sua imagem a esta prova, tornando-se
embaixador do Campeonato, contra a quantia de 177 milhões de euros («The
Guardian», 31.10.2021). Beckham, o qual teve (e nalguns casos ainda tem)
contratos com marcas como a Adidas, a
Pepsi, o whisky
Haig Club, a Emporio Armani e a Gillette. Mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades…
Para
se entender o fenómeno desportivo, para se perceberem as manchetes nos jornais, as notícias na TV e a
viralidade nas redes sociais, para se saber porque se perdeu o ethos do amor à camisola e para
entendermos a mudança dos tempos e das vontades, não basta conhecer o homem do
laboratório e o homem da floresta, o seu trabalho, o seu sentir ou o seu modo
de agir.
O
fenómeno desportivo e todo o seu peso na sociedade só poderá ser entendido se
entendermos que o vil metal dita a mudança…
Ao longo da história as entidades empregadoras sempre
apostaram em pagar o salário o mais baixo possível aos seus empregados. Isto
fazia com que os trabalhadores não tivessem capacidade para adquirirem toda a
produção. Havia excedentes… havia prejuízos… Inventaram-se então os bancos e o
crédito ao consumo. Inventou-se a publicidade. O endividamento resolveu a
situação! O fenómeno desportivo não foge a esta dinâmica: chama-se a isto
capitalismo. Lawrence Sanders dizia que “existe
um buraco do caraças entre saber e provar”…
A teoria de que o desporto é o reflexo da sociedade já não
tem suporte, porque o que acontece actualmente é exactamente o contrário. É o
desporto que molda e gere a sociedade. Esta regula-se à sua imagem. Prova disso
está no artigo de José Manuel Meirim intitulado “Um apagão” («Público»,
07.01.2022) quando, abordando a aprovação da nova lei antidopagem no desporto,
constata o seguinte: “Aí afirma-se sem
pudor que a responsabilidade do praticante desportivo é objectiva, não
dependendo a responsabilidade pela violação de norma antidopagem da prova da
intenção, culpa, negligência, ou da utilização consciente de substâncias ou
métodos proibidos por parte do praticante desportivo. Ora, tal proposição
encontra-se em flagrante contradição com um princípio fundamental do direito
sancionatório português, com suporte constitucional: o princípio da culpa.
Neste caso a ordem jurídica nacional não se apaga, sofre um apagão em nome do
combate à dopagem.”
Lawrence Sanders diria que “político era fazer as coisas certas pelas razões erradas, e as coisas
erradas pelas razões certas”.
56. E o prémio vai para…
25.01.2022
No
distante ano de 1930 a FIFA organizou o primeiro Campeonato Mundial de futebol,
no Uruguai. José Nasazzi entrou para a história, embora hoje em dia seja um
desconhecido (exceptuando historiadores e pesquisadores), ficando para a
posteridade como o melhor jogador deste Mundial.
O primeiro Campeonato Mundial de
Futsal da FIFA desenrolou-se em 1989, na então Holanda, e logo foram instituídos os prémios «bola de ouro» (Victor Hermans) e «chuteira de ouro» (László Zsadányi).
Em 2008 aparece o Prémio FIFA Luva de Ouro para o
melhor guarda-redes da prova…
A partir de 2005 a FIFA
passa a organizar o Campeonato do Mundo de Futebol de Praia. Também aqui se
realça o melhor jogador da prova, tendo nesse ano a escolha recaído no
português Madjer.
Em 2009 é instituído o Prémio FIFA Ferenc Puskás destinado a galardoar anualmente o melhor – ou
o mais espectacular – golo do ano…
Actualmente
os prémios denominados «Bola de Ouro» e «FIFA The Best» são os mais conhecidos
no mundo do futebol… Quer sejam atribuídos por jornalistas ou por treinadores e
capitães de equipa, sendo certo que os critérios para eleição destes jogadores
nunca são divulgados.
A
atribuição de todos estes prémios assenta em premissas subjectivas, já que não
é possível apresentar dados quantitativos para sustentar os mesmos. Logo,
encontram-se longe de constituir consensos, não só entre os elementos que
votam, como também entre os votados e o público. Nas semanas seguintes às suas
atribuições, a comunicação social possui assunto para dar razão ao “the show must go on”! As pessoas também!
Segundo Marc Perelman[163]
“o desporto gera um sistema de informação
único: o que importa não é o que a imprensa, a rádio ou a televisão dizem sobre
o desporto; a mensagem do desporto é o desporto. A ideologia desportiva
espalha-se pelo seu próprio canal, sem encontrar a menor resistência.”
O acto de
premiar no desporto possui as suas próprias correspondentes na sociedade: desde
o prémio em que se liga para um número que passa no rodapé da TV ao Prémio
Nobel nas diversas categorias, desde os quadros de mérito nas escolas aos
títulos de doutoramento ‘honoris causa’, desde os Óscares aos Emmys… e temos
ainda, nos anúncios televisivos, o «eleito o carro do ano» ou o azeite ou a
cerveja «premiados com a medalha de ouro».
Serge
Lebovici[164],
psiquiatra e psicanalista francês defendia que, pedagogicamente, a recompensa
é, tanto como o castigo, uma sanção. O prémio de uns dita a sanção de outros,
assim como a vitória de uns dita a derrota de outros. É a base da meritocracia.
E, nos dizeres de Daniel Markovits[165],
a meritocracia cria elites (repare-se no vértice da pirâmide desportiva) e
bloqueia a igualdade (atente-se na base da mesma).
Qualquer
recorde, qualquer título, qualquer ranking
desportivo revela uma existência finita, ou por se ter esgotado no tempo (há
campeonatos nacionais todos os anos, europeus de dois em dois anos, e
campeonatos mundiais e J. O. quadrienalmente) e se reproduzir (recomeço de uma
nova competição), ou porque o recorde pode ser ultrapassado, o título
conquistado por outro ou a hierarquia ou a classificação ser alterável. Como
diz Jean-Marie Brohm[166]
“o sistema desportivo é uma imensa
máquina de produzir o precário, o efémero, o transitório. Nada permanece
definitivo nessa rotação acelerada de ciclos competitivos, "heróis",
modas, modismos.”
O
desporto pressupõe de início a existência de condições de igualdade (pressupõe
porque essas condições são ilusórias) finalizando com uma hierarquização que
não é mais do que um conjunto de condições de desigualdade. A intenção de cada
desportista, ao desejar ser um vencedor, acaba por ser, por consequência, um
produtor de derrotados, segundo Michel Caillat[167].
Com
efeito, o desporto produz uma inegualdade de status, isto é, o princípio de toda a prática desportiva é com
efeito discriminar os competidores através de uma classificação[168].
No corrente ano a FIFA chegou ao ponto
de criar um prémio especial, atribuído a Cristiano Ronaldo por ser o jogador
com maior número de golos por seleções nacionais, após ter ultrapassado Ali
Daei que detinha há vários anos a marca de 109 golos – este sim, um prémio
atribuído com parâmetros objectivos. Mas, mais um… e especial…
Qual a função de um prémio?
Em relação a quem o recebe, tanto pode servir para o mesmo se sentir realizado
(os humildes assim o encararão) como pode servir para alimentar o seu ‘ego’ ou
aumentar o seu ‘status’.
O endeusamento de heróis é um fenómeno necessário ao desporto e à
sociedade. São realçadas as características técnicas do desportista, as suas performances, as suas exibições, as suas
vitórias e os seus recordes por uma questão económica e por uma questão de
identificação. Os prémios a isso ajudam. E até o herói se endeusa a si próprio.
Mostraram-no[169] não só
Pelé (“Nunca haverá outro Pelé. Eu nasci
para o futebol como Beethoven para a música e Miguel Ângelo para a pintura.”),
Mike Tyson (“Sou uma celebridade!”),
LeBron James (“Sou como um super-herói.
Chamem-me Homem-Basquetebol.”) mas também Cristiano Ronaldo, (“Sou rico, bonito e um grande jogador.”)
e ainda Usain Bolt (“Agora podem parar de
falar. Sou uma lenda viva.”) – e todos eles receberam os mais variados
prémios.
Em relação à entidade promotora o jogador é sempre «galardoado com o prémio»,
o “«prémio é concedido a», «atribuído a» ou ainda «conferido a». O jogador é
«distinguido com» ou «consagrado como»… Nunca se enuncia a atribuição do prémio
como se fosse algo conquistado, alcançado ou perseguido pelo jogador. Assim, a
organização que atribui o prémio autopromove-se e publicita-se sempre em
detrimento do jogador (não se atribui o prémio sem o respectivo retorno),
pormenor ínfimo, mas de peso, que passa despercebido.
Vivemos numa sociedade de prémios. Prémios para insuflar egos, para entreter incautos e para
promover beneméritos.
57. Está tudo na literatura!
07.02.2022
“As pessoas são
felizes, conseguem o que querem
e nunca querem
aquilo que não podem obter.”
(Aldous Huxley)
Está nos manuais que um programa de
desenvolvimento estratégico terá de responder às perguntas «o quê?», «como?» e
«porquê?», mas que também terá de contemplar o «por quem?», «onde?» e «quando?»
para além do «para quem?» e «para quê?». Está nos manuais que uma declaração de
intenções não é um programa, porque de boas intenções…
Que desporto teremos nos próximos quatro
anos? Quando em relação ao enorme potencial da diáspora portuguesa se pretende
“reforçar o apoio ao associativismo e aos projetos de
educação, cultura, desporto, apoio social e combate à violência de
género desenvolvidos nas comunidades” e quando se
pretende “potenciar o contributo do
desporto, concentrando a sua atuação em dois objetivos estratégicos principais:
a) afirmar Portugal no contexto desportivo internacional e b) colocar o país no
lote das quinze nações europeias com cidadãos fisicamente mais ativos, na
próxima década” não estamos a passar de uma mera declaração de intenções.
«Reforçar», «potenciar», «afirmar» e «colocar» são sintomas a prazo, logo,
semântica colocada no capítulo dos objectivos… no âmbito do que se visa (sem se
ter a certeza de) atingir…
São objectivos perfeitamente lícitos dentro de uma certa
ortodoxia. No entanto George Orwell[170]
afirmava que “a ortodoxia significa
ausência de pensamento: ausência da necessidade de pensar.” E Ernest
Hemingway[171]
dizia-nos que “vira o mundo modificar-se
tanto! Não apenas em acontecimentos, embora tivesse tomado parte em muitos
deles e observado muito gente, mas também assistira a modificações mais subtis
e recordava-se de como as pessoas eram diferentes, conforme as ocasiões.”
Bons
objectivos
não salvam a imagem por causa da mulher de César... não lhe basta parecer, tem
de ser! Não há ética que vingue sem uma estética em que se apoie e lhe dê
guarida, tal como não há estética que não pertença à ética. Não há uma
ideologia que singre sem a pragmática correspondente.
E por que
motivo? Porque, como também nos diz Eduardo Lourenço[172],
"pode discutir-se se a desordem
em que estamos mergulhados – desde a económica até à da legalidade e da ética –
releva ou não, em sentido próprio, do conceito de caos. Do que não há dúvidas é
de que o habitamos como se fosse o próprio esplendor."
Por que pensar o
futuro (só sonhos!) enquanto se descura o presente? Responde-nos
o Director de Aldous Huxley[173]:
“E é aí que está o segredo da felicidade
e da virtude: gostar daquilo que se é obrigado a fazer.”
E se é premente e salutar conhecermos esses objectivos, não é
menos preocupante o facto de não conhecermos o «como»… pois primeiramente
teremos de compreender esse «como»… até porque o Winston de Orwell dizia-nos “compreendo COMO; não compreendo PORQUÊ.”
Do mesmo modo que o Rubachov de Arthur Kloester[174]
primeiramente quis perguntar “porquê” mas decidiu perguntar “COMO?” para logo a
seguir lançar a interrogação “PORQUÊ?”
E o «porquê» traz-nos a prerrogativa
da validade e da fiabilidade daquilo que se pretende ou daquilo em que se
aposta. E ao mesmo tempo não só a sua justificação mas também a sua razão de
ser! “Se bastasse fazê-lo… depressa
ficaria terminado! Se, ao dar esse golpe, se atalhassem as consequências e o
êxito fosse seguro… lançar-me-ia de cabeça do alto do escolho da dúvida para o
mar de uma existência nova!”[175].
Se atentarmos que para alcançar estes dois grandes objetivos atrás
enunciados, a) e b), é necessário “elevar
os níveis de atividade física e desportiva da população, promovendo o desporto
escolar e os índices de bem-estar e saúde de todos os estratos etários;
continuar a promover a excelência da prática desportiva (…); impulsionar
programas de seleção (…); promover a articulação entre o sistema educativo e o
movimento desportivo; promover a conciliação do sucesso académico e desportivo
(…); criar instrumentos que garantam a atletas olímpicos e paralímpicos [certas
regalias]; promover a cooperação entre autoridades, agentes desportivos e
cidadãos, com vista a erradicar comportamentos e atitudes violentas, de
racismo, xenofobia e intolerância em contextos de prática desportiva, do
desporto de base ao desporto de alto rendimento”… muito trabalho haverá a
fazer e muitos meios a mobilizar. Mas terá de haver capacidade e competência
para isso! E atente-se que muitos são os «objectivos» (elevar, promover,
impulsionar, criar) para alcançar esses dois «objectivos»!
Sempre a corrupção, a violência, o racismo e a xenofobia no
desporto (poderemos acrescentar o doping), mas nunca a morbilidade perene, a
exploração infantil (mesclada de treino intensivo precoce), o suicídio dos
desportistas, a morte súbita, e muito menos o regime dos seguros dos
desportistas, a regulação das carreiras duais, o regime fiscal de profissionais
de desgaste rápido ou até o próprio Regime Jurídico das Federações Desportivas…
E, recorrendo de novo ao Rubachov de Kloester, “ai dos loucos e dos estetas que só perguntam como, e não porquê.”
E se se torna premente “continuar
a reabilitação do parque desportivo, (…); promover a coesão social e a
inclusão, incentivando a generalização de oportunidades de prática desportiva
em condições de igualdade, garantindo a acessibilidade a espaços desportivos
para pessoas com oportunidades reduzidas, pessoas com deficiência ou
incapacidade e grupos de risco social; promover uma estratégia integrada de
atração de organizações desportivas internacionais para a realização em
Portugal de eventos de pequena e média dimensão (estágios, torneios,
conferências) e de promoção de Portugal enquanto destino de Turismo Desportivo,
otimizando os recursos existentes e capitalizando as condições privilegiadas do
país; continuar o combate à dopagem, à manipulação de resultados ou qualquer
outra forma de perverter a verdade desportiva”, «elevar», «impulsionar» e
«promover» continuam no âmbito dos objectivos… enquanto o «continuar» pressupõe
um passado que tende a projectar-se no futuro…
Hannah Arendt[176]
traz-nos Tocqueville através de uma frase que nos faz reflectir: “Desde que o passado deixou de projectar a
sua luz sobre o futuro, a mente humana vagueia nas trevas.” O passado tem
servido sempre para ser visto como um conjunto de factos ou acontecimentos em
que nos devemos basear a fim de que os erros então cometidos sejam corrigidos e
não mais repetidos no presente ou no futuro. O passado tem servido sempre para
nos aperfeiçoarmos, para evoluirmos. Mais do que projectar a sua luz, o passado
tem sido sempre uma sombra que nos tem acompanhado, mas que progressivamente se
tem dissipado... “Uns, o medo físico
calava-os (…); outros esperavam salvar a cabeça; (…). Os melhores de entre eles
mantinham-se calados (…). Estavam emaranhados no seu próprio passado, eram
presa da teia que eles mesmo tinham tecido segundo as leis da sua própria ética
tortuosa e da sua tortuosa lógica (…)” diz-nos Kloester[177].
Que desporto teremos nos próximos quatro
anos? Um desporto em que deveria estar presente a voz do Beduno de João Aguiar[178]:
“menos ardor e mais estratégia!”.
Está tudo na literatura, alguém disse! A Oeste nada de novo… e a
Leste também não!!!
58. Continua a estar tudo na
literatura!
12.02.2022
Comentava o Cully de Irwin Shaw[179]
para o Storr, abanando a cabeça: “ – Há
muitos miúdos com talento, mas são de um estofo diferente. Não trabalham, não
treinam, não fazem sacrifícios. E, para ser franco, não os censuro. Que tenho
eu para mostrar que vale a pena? As minhas pernas têm levado tanta porrada que
preciso de vinte minutos para me levantar da cama, de manhã. Três operações aos
joelhos. – Mexeu as pernas, debaixo da mesa, e ouviu-se um ruído semelhante ao
de ossos a partirem-se. – Estás a ouvir? Às vezes olho para as medalhas e para
as taças que tenho em casa, e depois olho para as cicatrizes dos joelhos e
penso que trocaria de boa vontade. Devolveria as medalhas se levassem com elas
as cicatrizes.”
Qualquer comparação entre o descrito por Cully e
o apresentado pelo tenista Juan Martín Del Potro no passado dia 5 de Fevereiro
não será mera coincidência: “Venho a fazer demasiado esforço
para seguir em frente e o joelho está a fazer-me viver um pesadelo. Há muitos
anos que estou a tentar, muitas alternativas, tratamentos, médicos, maneiras
diferentes de tentar resolver isto, mas não consegui.” Ao anunciar a sua retirada, Del Potro revelou
ainda que o
pior era que até parado sentia dores, dormindo com dores há dois anos e meio… E
“perante a dor não há heróis, não há
heróis, pensou ele [o Winston de George Orwell[180]]
e tornou a pensar, enquanto se contorcia
no chão, agarrando-se inutilmente ao braço esquerdo dorido.”
No desporto é inculcado ao praticante
desportivo a ideia de esforço, de sacrifício, a fim de se ultrapassar a si
próprio. O «no
pain no gain» – a pedagogia da dor – ainda
se encontra muito presente no mesmo. Ser severo consigo próprio, apreciar quase
um masoquismo para se ultrapassar é uma das formas de acondicionar o
desportista e é uma das condições inerentes ao próprio desporto. Ou como diria
a Meggie de Colleen McCullough[181],
“a única coisa que podemos fazer é sofrer
a dor e dizer intimamente que valeu a pena.”
A lista dos marcados para o resto da vida pelo desporto é longa e
não é de agora: Roger Riviére, Yelena Mukhina, Dennis
Byrd, Pat Lafontaine, Patrik Sjoberg, Charles Barkley, Van Basten, Brian Laudrup,
Vítor Martins, Eusébio, Mantorras, Roy Keane, Cris Pringle, Karen Forkel, Mark
McGuire, Jan Zelezny, Sebastian
Deisler, Maurice Greene, Yao Ming, Ticha Penicheiro, Na Li, Naide Gomes… entre muitos outros! A morbilidade perene continua a
ter as suas vítimas…
Entretanto Gianni Infantino continua a sua cruzada para que a FIFA
realize os Campeonatos Mundiais de futebol de dois em dois anos... Entretanto
Infantino mudou-se com a família para o Catar – alegando a necessidade dessa
mudança para estar mais próximo da organização desse Mundial… Entretanto o
Presidente da FIFA continua a pagar os seus impostos na Suíça… Como nos diz
Shusaku Endo[182] (4), “quando há chefes incompetentes no campo de
batalha, o sangue dos guerreiros é desnecessariamente derramado.”
A FIFA, com mais de duas centenas de federações filiadas, pretende
tornar o negócio mais atraente e lucrativo em detrimento da saúde dos jogadores
e da boa vontade dos consumidores do espectáculo – que já nem adeptos são de
tal modo que se encontram subjugados pelos interesses económicos. E recorrendo
de novo a Shusaku Endo[183]
(5), estes, tal como os seus aldeões japoneses, “acreditaram demasiado tempo, os infelizes, que nasceram para viver
resignados.”
Do outro lado do mundo a China leva a cabo os Jogos Olímpicos de
Inverno… os primeiros Jogos a terem 100% de neve artificial (que impacto em termos
ambientais?), em que há tolerância zero para os protestos (onde está a
liberdade de expressão?), em que os espectadores nas bancadas são apenas os
convidados pela organização (existe o livre acesso ao espectáculo?),
desenrolando-se os mesmos mais sob o signo político e
económico do que sobre qualquer desígnio desportivo. Segundo Graham Greene[184], “a desgraça, como a devoção, também pode
converter-se em hábito.”
Em 1952, em Helsínquia, a China negou-se a comparecer aos J. O., o
que sistematicamente aconteceu até 1980, em protesto contra o reconhecimento
pelo COI de Taiwan – era o confronto entre a China Popular e a China
Nacionalista – e nos J. O. de 1956, em Melbourne, vários países organizam um
boicote, entre os quais a Espanha, a Suíça e a Holanda, uns em protesto contra
a invasão da Hungria pela União Soviética, outros por causa da crise no Suez e
da guerra entre o Egipto e Israel. Se nos Jogos Olímpicos realizados na então
URSS (1980, Moscovo) e nos organizados nos EUA (1984, Los Angeles) com os
respectivos boicotes de ambos os lados os grandes prejudicados foram os atletas
que, tendo-se preparado para ambos, em nenhum deles competiram, actualmente a
situação de discórdia assume contornos mais requintados: o boicote passa a ser
pura e simplesmente diplomático: Índia, EUA, Austrália, Canadá e Reino Unido não participaram na cerimónia de abertura dos J. O. de
Inverno Beijing 2022 apesar dos seus competidores participarem nas devidas
provas. Ernest Hemingway[185],
ao descrever a Place Conterscape, também nos afirmava que “pelas
imediações daquela praça havia duas espécies de fauna: os bêbados e os
desportistas. Os bêbados matavam a sua pobreza dessa maneira; os desportistas consumiam-na
em exercícios.”
Caricato (ou então hipocrisia pura) é a Rússia
estar impedida de participar nestes J. O., mas 212 concorrentes russos
participam debaixo da designação “ROC”, sigla de Russian Olympic Committee…
Mário de Carvalho[186]
dizia-nos que “se não existisse o
exorcista, não existia a exorcização.”
Continua a estar tudo na literatura! Por isso, não procurem saber por quem os sinos dobram, nas
palavras de John Donne no já distante ano de 1624. Eles dobram
por ti, eles dobram por vós! Eles dobram por nós!
59. Trova do vento que passa
28.02.2022
Pedimos por empréstimo a Adriano Correia de Oliveira o título para
este artigo. Porque “Pergunto ao vento
que passa / Notícias do meu país / E o vento cala a desgraça / O vento nada me
diz.”
Fevereiro de 2022 trouxe-nos a morte de um adepto do Palmeiras, no
exterior do estádio deste clube, aquando da final do Mundial de Clubes entre este
e o Chelsea, em São Paulo.
Fevereiro também nos trouxe a morte de um futebolista grego, de 21
anos, durante um jogo da 3ª divisão do futebol helénico, vítima de uma paragem
cardíaca. Tal como nos trouxe, também na Grécia, a
morte de um jovem adepto de apenas de 19 anos em confrontos ocorridos em
Salónica…
Foi também em Fevereiro que, num jogo do escalão sub-21 entre o Grupo Desportivo Sobreirense
e o União Mucifalense, da AF Lisboa, se verificaram comportamentos impensáveis
no futebol nesta faixa etária: agressões violentas, enormes desacatos e 21
expulsões – sim, vinte e uma – no final da partida, talvez um reflexo do
ocorrido entre os mais velhos no final do Porto-Sporting também neste
Fevereiro. O que nos leva a uma interrogação: quais os resultados práticos da
existência de um organismo denominado «Autoridade para a Prevenção e o
Combate à Violênia no Desporto» para além da
campanha denominada «Violência Zero» lançada em de Abril de 2019?
Foi também neste mês que se
realizaram os J. O. de Inverno em Pequim… uns jogos em que vimos uma patinadora
russa com apenas 15 anos – a quem em Dezembro tinha sido detectado o uso de doping – falhar uma medalha de ouro à
qual era a principal candidata e quedar-se num quarto lugar. Curiosas as
competências pedagógicas que a sua treinadora evidenciou no final dessa prova,
pois ao invés de tentar consolar ou apoiar a patinadora – Kamila Valieva –
revelou um comportamento completamente reprovável. Ficou célebre o “Por que paraste de lutar? Explica-me.
Porquê?” Pedagogicamente condenável! Sim, falamos de Eteri Tutberidze. Uma
produtora de talentos através de treinos que, em certos casos, vão até às 12
horas. Uma fabricante de vencedoras de medalhas de ouro através de crianças com
15 ou 16 anos mas que descarta aos 18, 19, 20 e 21. Algumas que regressam a
casa com lesões para toda a vida. Que o digam Julia Lipnitskaia, Evgenia Medvedeva,
Elizabet Tursynbaeva, Darya Usacheva ou Polina Shuboderova. Quando o treinador
se centra apenas nas preocupações inerentes aos seus próprios objectivos
pessoais, quando esses objectivos se centram na apresentação de um curriculum e na obtenção de um status elevado, quando a valência dos
factores pedagógicos é suprimida no alto rendimento em favor única e
exclusivamente dos factores lógico-objectivos, o desporto deixa de ser desporto
e passa a ser apenas arte circense. O espectáculo assim o exige! Tal como o
negócio… “O capitalismo transformou os
Jogos olímpicos em vastas operações comerciais e feiras-exposições turísticas.
Os Jogos modernos são os Jogos da mercadoria triunfante, as divindades não se
chamam mais Zeus e Hera, mas Adidas e Coca-Cola ou Philips e Toyota.” – diz-nos
Jean-Marie Brohm[187].
Sacrifiquem-se os atletas, os competidores, os desportistas, mas haja lucro
para as grandes marcas! E para o COI!
Fevereiro de 2022 trouxe-nos
a UEFA a retirar a final da Liga dos Campeões da Rússia, a qual estava prevista
para São Petersburgo. Tal como nos trouxe a FIA a cancelar o Grande Prémio da
Rússia de Fórmula Um que se iria realizar em Sochi. E como nos trouxe, do mesmo
modo, a FIJ a cancelar o Gram Slam de Judo agendado para Kazan. Este mês mostrou-nos também a UEFA a tentar uma rescisão
unilateral do vínculo com a empresa de fornecimento de gás natural Gazprom e a Polónia a rejeitar defrontar a Rússia no playoff de qualificação para o Mundial
de 2022, afirmando a Federação Polaca de Futebol que não vai participar no
"jogo de aparências"
proposto pela FIFA. Decisões tomadas por motivos políticos, por
motivos bélicos…
Fevereiro de 2022 mostra-nos
decididamente a natureza humana. Bastará reflectirmos nestes factos ocorridos e
nos contextos em que os mesmos se situam. O que é bem exemplificado no diálogo
seguinte, entre a autora de um projecto para um programa audiovisual e um
produtor televisivo[188]:
“ – Isso é tão… nojento.
– Não, sabes o que é, querida? Natureza humana.
Os olhos dela faiscavam.
– Parece-me mais baixeza e ganância.
– Exato. Foi o que eu disse. Natureza humana.
– Isso não é natureza humana! É lixo!
– Deixa-me
dizer-te uma coisa. O ser humano é apenas mais um primata. Talvez mesmo o mais
nojento e mais imbecil. Essa é a realidade. Eu sou realista. Eu não criei a
merda do jardim zoológico. Simplesmente ganho a vida à custa dele. Sabes o que
faço? Alimento os animais.”
Bastará reflectirmos… porque o vento nada nos
diz.
60. A falácia da neutralidade
17.03.2022
Se podemos considerar os J. O. de Berlim, em 1936, como a primeira grande exploração política do desporto, também teremos de considerar que foi nestes que os atletas foram talvez pela primeira vez politicamente usados. Para lá de Jesse Oewns e de Lutz Long entre outros, e como exemplo, citamos o caso do vencedor da maratona, o coreano Sohn Kee-chung, o qual teve de correr com as cores japonesas e com o nome Kitei Son dado o seu país se encontrar ocupado pelo Japão.
No México, nos J. O. de 1968, o americano Tommie Smith correu pela primeira vez os 200 metros em menos de 20 segundos. Em terceiro lugar ficou o seu compatriota John Carlos. Os três medalhados – em segundo lugar classificara-se o australiano Peter Norman – apresentaram-se no pódio com um crachá ao peito a favor dos direitos humanos. Ao iniciar-se o hino nacional, Smith e Carlos ergueram o punho fechado com uma luva preta, a saudação típica dos Black Panthers, em sinal de protesto contra as desigualdades nos direitos civis nos Estados Unidos. Smith e Carlos terão sido provavelmente os primeiros atletas a trazerem a política para o desporto.
Se o desporto é neutro ou não, ou se o deveria ser ou não, depende da perspectiva de cada um e dependerá principalmente da dimensão, do proveito, da conveniência e das necessidades de organizações, de dirigentes desportivos e de políticos. Há muito que, no desporto, um “sistema de agentes e de instituições começou a funcionar como um campo de concorrência onde se afrontam agentes com interesses específicos ligados à posição que nele ocupam”, como salienta Pierre Bourdieu[189] no seu texto intitulado “Como se pode ser desportista?”.
Os J. O. de Munique, em 1972, foram um marco na intromissão da política na competição desportiva – o boicote da grande maioria das nações africanas à participação da então Rodésia, o que motivou uma decisão repentina do COI: a expulsão da representação rodesiana do evento. Também os boicotes de ambos os lados nos Jogos Olímpicos realizados na então URSS (1980, Moscovo) e nos organizados nos EUA (1984, Los Angeles) nos mostram essa intromissão.
Quem foram os grandes prejudicados com esses boicotes? Sem dúvida os desportistas que se viram impedidos de participar em ambos os J. O., apesar de para eles se terem preparado. No entanto houve excepções por parte daqueles que conseguiram contornar a situação: como refere Olivier Villepreux[190] a sul-africana Zola Budd naturalizou-se britânica para escapar ao boicote do seu país em 1984 em troca de 280.000 dólares pagos pelo «Daily Mail» tendo as formalidades sido resolvidas em apenas dez dias...
No momento em que tanto o COI como a FIFA, a UEFA e as federações internacionais impedem os desportistas da Rússia e da Bielorrússia de participarem em diversas provas internacionais, coloca-se a questão de sabermos se esses impedimentos para além de éticos são lícitos. Que culpa têm os desportistas de terem nascido num país dirigido por este ou por aquele político e por estarem debaixo deste ou daquele regime? Os que escolheram como profissão o desporto dependem deste como do pão para a boca. No entanto nem a URSS foi impedida de disputar competições internacionais aquando da invasão da Hungria em 1956 ou da Checoslováquia em 1968, nem os EUA foram igualmente impedidos de participar em qualquer competição internacional aquando da invasão do Afeganistão em 2001 ou do Iraque em 2003.
No extremo oposto, temos os desportistas ucranianos impedidos de treinarem e competirem por força de terem tido a necessidade de pegar em armas para defenderem o seu território… Que culpa têm os desportistas de terem nascido num país colocado a ferro e fogo? E estes, se escolheram o desporto como profissão, também dependem deste como do pão para a boca…
Mas também temos desportistas autorizados a continuarem a competir sob a chamada «bandeira neutra», como por exemplo a tenista bielorussa Victoria Azarenka… tal como tivemos desportistas russos nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 em Pequim a competirem com a designação ROC (Russian Olympic Committe) e não em representação da Rússia! A Federação Internacional Automóvel (FIA) também permite que pilotos russos e bielorussos continuem a participar em provas de Fórmula Um desde que não usem as cores ou as bandeiras dos respectivos países – era o caso de Nikita Mazepin… entretanto colocado numa lista de sanções aplicadas pela União Europeia e, por isso mesmo, tendo a Haas rescindido o seu contrato.
Perante a actual situação, não mais poderemos reclamar uma neutralidade política do desporto sem cairmos numa hipocrisia mais do que declarada. Não enquanto negociantes de bens e de serviços desportivos, usando as palavras de Bourdieu, continuarem a influenciar e a exercer o seu domínio no desporto.
Uma actividade eminentemente associativa e que se pretendia veículo de valores e unificadora dos povos apresenta-se agora como um instrumento de desígnios que nada deveriam ter a ver com a mesma. Encontra-se contaminada pelo comércio e pela política!
Não falemos mais em valores ou em princípios morais e éticos no e do desporto enquanto os desportistas permanecerem a ser usados para o melhor ou para o pior – enquanto continuarem a ser explorados. Não enquanto os desportistas forem induzidos e tiverem sido preparados para descobrir satisfação no próprio esforço “e para aceitar – é esse o próprio sentido de toda a sua existência – gratificações diferidas em troca do seu sacrifício presente” como nos refere o mesmo Bourdieu. Não falemos mais em valores ou em princípios morais e éticos no e do desporto enquanto os donos do desporto, e recorremos de novo a este autor, “encontrarem nisso uma ocasião de impor os seus serviços políticos de incitamento e de enquadramento e de acumular ou alimentar um capital de notoriedade e de honorabilidade sempre susceptível de ser reconvertido em poder político”.
Os últimos tempos têm sido ricos e exemplificativos deste paradigma não só
a nível internacional como também entre nós…
61. Desporto:
os esqueletos no armário
10.04.2022
No passado dia 6 de Abril comemorou-se o Dia Internacional do Desporto ao Serviço do Desenvolvimento e da Paz. Uma data instituída pela ONU e determinada pela primeira edição dos Jogos Olímpicos da era moderna em 1896 e realizados em Atenas.
Uma comemoração mais do que necessária num tempo em que o desporto é, ele próprio, atingido pela guerra. Num tempo em que o desporto é usado como arma de arremesso para combater essa mesma guerra. Cabe-nos, a nós, reflectir sobre a eficácia destas comemorações e sobre as várias e diferentes campanhas de sensibilização que são lançadas utilizando o desporto como meio. Entre nós, e das últimas, recordamo-nos da campanha «Violência Zero», promovida pela Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (lançada a 17 de abril de 2019), assim como da campanha «Start to Talk» desenvolvida pelo IPDJ entre o final de 2018 e o final de 2020 para prevenir e responder ao abuso sexual de crianças e jovens no desporto. Cabe-nos, a nós, reflectir não só sobre a eficácia (resultado) destas comemorações mas também sobre a sua eficiência (processo). Ele é as «virtudes desportivas», ele é os «valores no desporto», ele é «as boas práticas no desporto», ele é a «ética no desporto»… e o que resulta de tudo isto? Já em 1985 Melo de Carvalho[191] nos dizia que “é evidente que estas campanhas não terão qualquer consequência prática, a não ser dar satisfação à «boa consciência» dos dirigentes políticos e calar as críticas mais acérrimas (…)”.
Mas regressemos à paz, à guerra e ao desporto. Num momento em que a FIFA, a UEFA, o COI e inúmeras federações internacionais retiram a Rússia e a Bielorrússia das competições internacionais, num momento em que os ministros do desporto da União Europeia e de outros 11 países - Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos, Islândia, Japão, Liechtenstein, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido e Suíça -, validaram todas as sanções aplicadas a desportistas, clubes ou seleções que representem a Rússia e Bielorrússia, o desporto foi colocado no mapa geostratégico da política internacional deixando de ser «uma guerra por meios pacíficos», excluindo-se a derrota como «morte simbólica» neste substituto do conflito armado entre países e passando a ser instrumento da própria guerra.
Se nos estatutos da FIFA, nos estatutos da UEFA e na Carta Olímpica se vislumbra um suporte jurídico que permita a aplicação destas sanções, não é menos certo que nos mesmos também são plasmados princípios de neutralidade. Mas esta neutralidade cai por terra com a aplicação dessas sanções. É excelente pensarmos a quatro dimensões mas de nada serve se agirmos apenas a três dimensões. O desporto neutro foi uma bandeira agitada ao vento por certos ideais e durante muito tempo mas nunca o foi na realidade. O mote já tinha sido dado há muito e socorremo-nos de novo de Melo de Carvalho quando nos dizia que era “absolutamente necessário liquidar essa velha visão tecnocrática do desporto que afirma que entre os dois (desporto e política) não há qualquer relação, pretendendo fazer daquele uma «ilha» de pureza (considerando que a política é sempre «suja»).” E foi reforçado uns anos mais tarde quando Gustavo Pires[192] falando de Gestão do Desporto nos dizia que o interesse das pessoas por estes processos ficava-se “a dever não só ao seu valor económico como também à sua dimensão política.” E rematava afirmando que neste domínio “a utilização do desporto como um dos instrumentos da política tem vindo a acentuar-se de uma forma cada vez mais acentuada, desde os anos sessenta.”
Nestes tempos conturbados propalaram-se inúmeros e diferentes clichés, banalizaram-se conceitos… O desporto é uma ferramenta que fortalece os laços sociais, promove o desenvolvimento sustentável, fomenta a solidariedade e o respeito… O desporto une e reúne, o desporto favorece e incrementa a aproximação e o bom relacionamento entre os povos… O desporto, para além da manutenção da paz, encontra-se imbuído de valores como o fair-play, a cooperação, a disciplina, a confiança mútua, a superação, o diálogo, a fraternidade… Instaladas num politicamente correcto, estas expressões vulgarizaram-se, revelando-se perigosas como artefactos de uma narrativa única, manipuladora.
Recorreu-se à trégua da guerra no Natal de 1914, na Bélgica, em que soldados alemães e britânicos abandonaram as trincheiras para se defrontarem num jogo de futebol, exemplificando-se assim como o futebol pode interromper uma guerra e gerar momentos de paz. Evocou-se o exemplo do «jogo da morte», entre os ucranianos do Start e os alemães do Flakelf em 1942, e em que, segundo se consta, ao intervalo, no balneário, os jogadores do Start de Kiev foram visitados por um oficial da Gestapo que lhes recomendou perderem o jogo sob pena de perderem a vida – certo é que a equipa ucraniana derrotou os alemães por 5 a 3, que oito jogadores foram detidos pelos nazis, e que um deles foi assassinado após interrogatório dos invasores e outros três foram executados num campo de concentração. Trouxe-se o facto de, em 2018, as duas Coreias competirem sob a mesma bandeira nos J. O. de Inverno (já o tinham feito em Sidney 2000, Atenas 2004 e Turim 2006) em hóquei no gelo…
No entanto ninguém se lembrou das duas partidas entre as selecções de futebol de El Salvador e Honduras, em 1969, e que foram o pontapé inicial para um conflito fora das quatro linhas. Foram quatro dias de batalhas até que a Organização dos Estados Americanos conseguisse negociar uma trégua. No campo desportivo, a guerra foi decidida numa terceira partida, em território neutro, que os salvadorenhos venceram por 3-2. Derrotada saiu a população anónima: entre salvadorenhos e hondurenhos, os números apontam para mais de dois mil mortos. Também se olvidou o encontro de futebol entre o Dínamo de Zagreb e o Estrela Vermelha de Belgrado em 1990 (117 polícias feridos, além de 39 adeptos do Estrela Vermelha e 37 do Dínamo) e que marcou o início dos combates pela independência da Croácia. E por que motivo não se trouxeram estes factos à colação? Porque o desporto também tem esqueletos no armário...
Caiu o pano e, definitivamente, temos de considerar o desporto como uma actividade não-neutral, não apolítica. Em 2004, um Catedrático em Ciências do Desporto, na área de Pedagogia do Desporto – Pedro Sarmento[193] – dizia-nos que o desporto “é um instrumento da política e é fácil constatar como tem sido usado por políticos, ao serviço de ideologias ou de regimes, que se revêem politicamente nos feitos desportivos, servindo estes como orientações individuais e institucionais”. Hoje em dia é o próprio Presidente do COP, José Manuel Constantino («Público», 05.03.2022), a dizer-nos que política e desporto “nunca deixaram de estar misturados. Toda a história do desporto está contaminada por aquilo que é o seu enquadramento político.”
Há demasiadas campanhas de sensibilização contra a violência no desporto, a favor do fair-play no mesmo, sobra a ética no desporto, sobre a prevenção e o combate ao bullying no desporto… mas atente-se que a pedagogia é sempre ignorada. E por que motivos? Porque essas campanhas, elas próprias, encontram-se dentro do politicamente correcto, fazem parte do próprio sistema. Actualmente o desporto tem mais a ver com política e com economia do que com educação. Criou-se o mito da formação moral pelo desporto ou da construção do carácter através do mesmo... Pois vivamos com ele e vamos cantando e rindo!
E terminamos com as palavras de Antonino Pereira e de Rui
Proença Garcia[194]:
“Qualquer desvio axiológico é percebido e
combatido mais rapidamente no desporto do que em qualquer outra área da vida
humana. Tal ocorre porque o desporto é observado como um oásis no deserto
axiológico da sociedade. Nesta atividade não há lugar para a neutralidade
axiológica. É a lei do tudo-ou-nada. Não há lugar neste agir para o mais ou
menos. A ética é um absoluto ou, por outras palavras, um imperativo categórico.”
Saibamos interpretá-las!
62. Da
instrumentalização do desporto
02.05.2022
“Não há
desporto apolítico.”
Ernst
Bloch (1885-1977)
Existem os defensores da neutralidade política do desporto – que olhando para leis e regulamentos neles vêem plasmado que a política não se imiscui no desporto – e existem aqueles que, sendo mais pragmáticos, defendem que o desporto para além de depender da política se encontra refém desta.
Há aqueles que olhando para a história encaram os boicotes aos J. O. (1980, Moscovo e 1984, Los Angeles) como perfeitamente legítimos segundo a conjuntura política de então e que os próprios se obrigaram a cumprir… e que olhando para as actuais proibições ou sanções desportivas aplicadas aos desportistas da Rússia e da Bielorrússia (e repare-se que não referimos como proibições ou sanções aos respectivos países) pelas várias Federações Internacionais (FIFA E UEFA incluídas), COI e Comités Olímpicos Nacionais também as caucionam considerando-as lícitas, tendo em conta o actual contexto geopolítico e considerando que as mesmas são um alerta e uma forma de sensibilização internacional para causas sócio-políticas ou eventualmente para a resolução de conflitos bélicos sob a forma de pressão.
Em ambos os casos o desporto e os desportistas – os competidores – foram o instrumento da contestação, embora as duas situações não se comparem nem em natureza nem em grau. Transformou-se o desporto, com o consequente prejuízo dos desportistas, em arma de arremesso pedindo ao mesmo para solucionar questões cujas causas lhe são, ou eram, completamente alheias. Traduzindo, instrumentalizou-se o desporto através do boicote para realçar certas situações de confronto político dando mais visibilidade às mesmas e instrumentalizou-se o desporto usando-o na forma de sanção proibindo a participação de desportistas à espera que isso algo venha a resolver.
A intromissão da política no desporto (e não nos esqueçamos que o desporto é proveniente do livre associativismo) sempre se verificou a três níveis: um nível macro, que se reflecte na legislação oficial que abarca o mesmo; a um nível meso, na regulamentação proveniente das próprias instâncias que regulam o desporto (federações internacionais, nacionais, associações, clubes e até sindicatos de jogadores) – “o desporto é talvez uma das actividades humanas mais regulamentadas e sujeita a um maior número de leis, embora o Direito não tenha muitos amigos no desporto”, na opinião de José Manuel Meirim”[195]; e por último a um nível micro, como forma visível de manifestação por parte de desportistas e por parte do próprio público durante os variados eventos desportivos. Neste momento poderemos dizer que a política se intrometeu no desporto a um outro nível: o nível da instrumentalização do mesmo.
Houve os que concordaram com o boicote aos J. O. de Moscovo e houve os que concordaram com o boicote aos J. O. de Los Angeles… há os que concordam com as sanções aplicadas aos competidores da Rússia e da Bielorrússia e todavia também há os que discordam…
Fomos lestos a caucionar as sanções e proibições actualmente em vigor…
Em Fevereiro de 2022 a selecção ucraniana de esgrima desistiu da Taça do Mundo, no Cairo, para não defrontar a sua congénere russa. Uma opção dos próprios esgrimistas no momento em que se encontravam frente a frente com o adversário… o público presente foi lesto a aplaudir este comportamento (e até alguns dos rivais o saudaram) tal como nós próprios o fomos. No mês seguinte o presidente da federação sueca de basquetebol anunciou o afastamento do jogador Jonas Jerebko da selecção nacional da Suécia após este ter assinado, e por isso, um contrato com o clube russo CSKA Moscovo… e mais uma vez fomos lestos a aplaudir esta decisão… Repare-se na diferença entre as duas situações dada a circunstância (bélica) ser a mesma: a primeira é uma situação auto-imposta pelos próprios desportistas, a segunda é uma situação imposta por um órgão do poder.
No entanto fomos lestos a condenar o comportamento do judoca egípcio Islam El Shehaby, quando se recusou a cumprimentar o adversário Or Sasson, de nacionalidade israelita, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, tal como fomos lestos a condenar o argelino Fethi Nourine quando abdicou dos J. O. de Tóquio para não defrontar o israelita Tohar Butbul, também na mesma modalidade.
Verificamos assim que nós próprios possuímos uma dualidade de critérios. E quem possui uma dualidade de critérios não pode, em verdade, julgar. Quem julga, por definição, tem de ser isento – mesmo não sendo, entretanto, neutro.
É sempre mais fácil, mais bonito e mais apelativo (e talvez mais lucrativo) agitar-se a bandeira do “o desporto constitui um instrumento de paz nas mãos da humanidade”, conforme fez Viviane Reding quando no final do século passado foi nomeada para a Comissão Europeia, sendo encarregada da educação, cultura, juventude, media e desporto. No entanto, como nos diz Stefano Pivato[196], “o desporto não é somente um «jogo», mas um cenário onde se entrelaçam relações internacionais, interesses comerciais e relações políticas, e sobre o qual se apresentam os maiores perigos” – perigos do ponto de vista político e económico mas também perigos na óptica da manipulação de opiniões e da criação de crenças, acrescentaríamos nós.
A instrumentalização política do desporto foi definitivamente mais que confirmada quando o Comité Nacional Olímpico e Desportivo da França – o organizador dos próximos J. O. em 2024 – acabou por apelar ao público francês [197] que votasse em Emmanuel Macron na segunda volta das eleições presidenciais francesas…
Encerremos
o assunto e deixemo-nos de ilusões: já não restam dúvidas que se
instrumentalizou politicamente o desporto e que
o mesmo acabou por se transformar num terreno de lutas políticas!
63. Da pedagogia – ou da falta dela
27.05.2022
Na Grécia Clássica, o escravo que conduzia a criança até à palestra era denominado de pedagogo. Era aquele que a acompanhava e aproveitava o caminho para a ir educando…
Genericamente, a pedagogia é definida como a ciência que tem por objecto o estudo da educação. Ela fornece-nos os métodos e os meios para atingirmos resultados que beneficiem e valorizem o ser humano, tanto individual como colectivamente.
A pedagogia aplicada ao desporto resulta num campo do conhecimento que investiga a prática educativa pela atividade desportiva. A abordagem pedagógica do desporto releva questões não só de educação, mas também de formação e desenvolvimento. Falamos então de «pedagogia do desporto».
Mas mais importante do que abordarmos a pedagogia do desporto seria abordarmos a pedagogia no desporto. Porque para além de métodos e procedimentos, a pedagogia no desporto é acima de tudo uma ética pedagógica.
No momento em que o desporto é atravessado todos os dias por factos que nos mostram violência, xenofobia, fraude, corrupção e muitos outros comportamentos desviantes e disruptivos, mais do que nos preocuparmos com as causas deveríamos preocupar-nos com as consequências. Mais do que andarmos preocupados com a sensibilização, deveríamos andar preocupados com a formação. Com a formação integral do ser humano… Mais do que recorrermos à ética, ao cartão branco ou ao cartão do adepto (já em desuso), a mais legislação e a mais sanções, deveríamos recorrer à pedagogia.
Sabemos e conhecemos da fragilidade e da imperfeição do ser humano. Sabemos e conhecemos da incompletude da democracia. Sabemos e conhecemos como o sistema económico submete, aprisiona, tritura e elimina.
O próprio desporto – a actividade em si – colocou-se a jeito (ou foi colocado a jeito, talvez com intenções mercantilistas já na sua génese) e não esqueçamos que é uma actividade criada, desenvolvida e gerida pelo ser humano. Para além de muitas modalidades desportivas serem originárias das chamadas «artes da guerra» (salto com vara, lançamento do dardo, tiro com arco, judo, esgrima, tiro olímpico) o desporto assumiu um vocabulário castrense (ataque, defesa, tiro, lançamento, simulação, estratégia, contra-ataque). Os próprios J. O. da era moderna, que desde o seu início representaram o confronto entre as várias nações, adoptaram muitos dos elementos simbólicos da guerra (os desfiles com as bandeiras nacionais, as equipas uniformizadas, a atribuição de medalhas, a entoação dos hinos nacionais).
Dever-se-ia pedir aos jogadores que jogassem demonstrando pedagogia. Aos treinadores que fossem pedagogos. Aos árbitros que julgassem pedagogicamente. Aos dirigentes que executassem a sua gestão com uma base pedagógica. Aos políticos que actuassem dando exemplo de pedagogia. Tal desiderato não nos é no entanto possível dada a nossa imperfeição. Pior ainda quando não estamos preocupados com a verticalidade da nossa coluna vertebral. Recorremos muito ao chavão «é preciso mudar mentalidades», sim, mas sempre a dos outros, nunca a nossa. Esquecemo-nos amiúde que não é a doença que temos de tratar. É o doente que tem de ser tratado!
Portugal não vai ter nenhum árbitro no Mundial de futebol no Catar. Tendo sido escolhidos 36 árbitros, 69 árbitros assistentes e 24 para operarem o VAR, Pierluigi Collina, presidente do Comité de Árbitros da FIFA declarou que o critério utilizado foi o da qualidade. Informa-nos Duarte Gomes, através da sua página pessoal do Facebook (21.05.2022), que um dos árbitros assistentes seleccionado foi Tevita Makasini, do Tonga (arquipélago nos arredores da Polinésia), que, no entanto, nesta época não fez um único jogo no campeonato local. Triste pedagogia esta!
Disse o Presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol: “Ficamos tristes por não termos nenhum representante no Mundial”. Antes pelo contrário, deveríamos estar contentes, alegres por não termos ninguém num Mundial de futebol que vai ser realizado num país em que se questionam os direitos humanos, entre eles o da igualdade de género, mas para o qual foram escolhidas três senhoras – pela primeira vez – para arbitrarem no mesmo. Escolha pela qualidade, pela competência, ou por motivos políticos? Deveríamos estar felizes por os nossos árbitros não fazerem parte de um quadro de uma organização quando a Human Rights Watch exige que a FIFA indemnize (consta-se que são 418 milhões de euros) as famílias dos cerca de mais de seis milhares e meio de trabalhadores mortos na construção dos estádios e respectivas infraestruturas. Por aqui se vê por onde anda a pedagogia…
Exemplos flagrantes também a decisão do TIC do Porto de levar a julgamento dois empresários de futebol e um funcionário de um clube acusados do crime de corrupção por, alegadamente, tentarem favorecer esse clube não só nos resultados dos jogos de futebol mas também nos de andebol, assim como a irradiação de um árbitro português de ténis por manipulação de pontuações introduzidas num evento em 2020 e que facilitou ganhos a vários apostadores.
Entretanto a Federação Portuguesa de Futebol recebeu 400 mil euros da União Europeia para financiar o programa ‘Sport Against Match-Fixing’ a fim de combater a viciação de resultados… Segundo a sua pedagogia, e de acordo com a nota divulgada no site da FPF, o projecto pretende “sensibilizar atletas da formação de várias modalidades desportivas para os perigos do ‘match-fixing’ e o impacto negativo que a associação a este fenómeno tem nas suas carreiras”. Mais uma campanha de sensibilização? E será a entidade que gere o futebol que se irá dedicar a outras modalidades desportivas?
Vivemos numa sociedade em que o superficialismo e o facilitismo são pedra de toque para muitas realizações. Com a consequente projecção mediática. Vivemos numa sociedade em que uns pedem mais armas, alguns mais sanções e outros pedem mais financiamento. Mas, tal como nos perguntava Jorge Valdano («A Bola», 21.05.2022), “por que razão nos custa tanto reconhecer a honra e a ética?”. Questão que poderemos reformular com um pequeno acrescento: por que razão nos custa tanto reconhecer a honra, a ética, a moral e a pedagogia? Porque se a ética é prescritiva e a moral normativa, é a pedagogia que é actuante!
Exemplo
pedagógico foi o protagonizado por Steve Kerr, treinador dos Warriors na NBA e
adjunto da selecção norte-americana, na conferência de imprensa que antecedeu o
jogo com os Mavericks. “Hoje não vou
falar de basquetebol. Não quero responder a perguntas sobre basquetebol, o
basquetebol hoje não interessa.” Referia-se ao massacre em Uvalde, no
Texas, em que foram assassinadas dezanove crianças e duas professoras. “Quando vamos fazer alguma coisa? Isto é
patético. Estou cansado dos minutos de silêncio. Basta!”
64. Imagens do desporto
24.06.2022
1
No final dos anos 90, quando o FC do Porto foi a San Ciro defrontar o AC Milan para a Liga dos Campeões, Jorge Costa pisou a mão de George Weah quando este se encontrava no chão, num lance dividido entre ambos. No jogo da segunda volta, o AC Milan foi às Antas empatar por uma bola. No final do encontro, já nos balneários, Weah, que ainda tinha a mão engessada, deu uma forte cabeçada a Jorge Costa deixando-o coberto de sangue. Curioso, ou talvez não, o facto de na época anterior, em 1996, ter sido Weah o jogador a receber o prémio «FIFA fair-play»... George Weah, eleito em 2017, é actualmente o Presidente da República da Libéria…
2
José Luis Chilavert guarda-redes da selecção de futebol do Paraguai desde 1989 até 2003, em tempos disse: “O que opinem sobre mim pouco me importa. No papel de ‘mau da fita’, ganhei tudo. Dizem que não respeito os códigos do futebol?! Para mim não existem! O que existe são as leis da vida. Sendo como sou, cheguei onde cheguei.” Condenado num processo movido pelo presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, por calúnia e difamação, cumpre pena de um ano revertida em medidas alternativas. Neste momento anuncia que será candidato à Presidência da República do seu país em 2023…
3
Natela Dzalamidze, tenista, é a atual 44.ª classificada no ranking mundial de pares. Sendo de nacionalidade russa, e de acordo com as sanções impostas, não se poderia apresentar no torneio de Wimbledon. No entanto, a moscovita contornou a situação naturalizando-se pela Geórgia. Para além de Natela Dzalamidze, vários desportistas russos optaram por outras nacionalidades nos últimos meses. Foram os casos do ciclista Pavel Sivakov (França), assim como dos xadrezistas Evgeny Romanov (Noruega) e Alina Kashlinskaya (Polónia) entre outros…
Entretanto o defesa Maciej Rybus foi excluído da selecção nacional de futebol da Polónia e vai falhar o Mundial por continuar a competir no campeonato russo: foi anunciado na semana passada que, após cinco temporadas ao serviço do Lokomotiv de Moscovo, seria reforço do Spartak de Moscovo para a próxima época desportiva.
Já em Fevereiro o presidente da federação sueca de basquetebol tinha anunciado o afastamento do jogador Jonas Jerebko da selecção nacional do seu país por este ter assinado contrato com o clube russo CSKA Moscovo…
4
Notícias que nos chegam do Japão dizem-nos que a All Japan Judo Federation decidiu cancelar um seu prestigiado torneio nacional para crianças com idades entre os 10 e os 12 anos. Yasuhiro Yamashita, presidente desta associação e também presidente do Comité Olímpico Japonês diz que a eliminação desta competição colocou em evidência "um problema que envolve a sociedade japonesa". E realça que "o judo é um desporto que enfatiza o sentimento de humanidade. Se só a vitória tem valor, se só o resultado conta, então a filosofia do judo está deformada". Casos de crianças forçadas a perder peso, levadas até ao limite nos treinos ou sujeitas a castigos corporais têm sido revelados. A existência de uma associação japonesa de vítimas do judo revela a contabilização de 121 mortes atribuídas à prática do desporto nas escolas entre 1983 e 2016…
5
A
nadadora artística norte-americana Anita Álvarez foi resgatada do fundo da
piscina pela treinadora, Andrea Fuentes, depois de desmaiar no final da sua
prova a solo no Campeonato Mundial de Natação, em Budapeste, na
Hungria. Ao ver que a jovem não vinha à tona, a treinadora espanhola
saltou para a piscina. Só quando já estava a trazer a jovem para fora um
nadador-salvador da organização foi ajudar a treinadora a tirar Álvarez da
água. Andrea Fuentes, quatro vezes medalhada olímpica, declarou ter saltado
para a piscina "porque os
nadadores-salvadores não o faziam". Em comunicado, a FINA revelou que
os salva-vidas contratados para trabalhar em campeonatos mundiais de natação só
podem entrar em acção após autorização dos árbitros… e admite rever os
regulamentos…
65. Pedagogia do e no desporto
20.07.2022
O judo português esteve presente
no Grand Slam de Budapeste com a sua competidora mais medalhada de sempre:
Telma Monteiro. Não lhe tendo corrido da melhor
feição a prova – ficou-se por um 5º lugar – declarou no final da mesma: “O combate para o 3º lugar foi uma derrota
pesada e é sempre desagradável terminar a prova assim”. Sem desculpas, sem
auto-recriminações, sem auto-comiserações, ainda disse: “não estou satisfeita como o dia acabou”. Telma Monteiro não se veio
vangloriar de ter alcançado um quinto lugar… Telma Monteiro não se mostrou
eufórica ou esfusiante por ter conquistado um quinto lugar… Porque não se ganha
um quinto lugar, antes se perde um terceiro. Perde-se uma medalha de bronze!
E se Roger Federer, após a final olímpica com Andy Murray no Rio de Janeiro, em 2016, ao sair derrotado afirmou “não perdi o ouro, ganhei a prata” há que analisar esta declaração à luz de questões relacionadas com poder, com status e com retribuições económicas. Federer subiu ao pódio… e numa sociedade onde a meritocracia continua a fazer escola, numa sociedade onde se medem os êxitos pelos ‘rankings’ ou pelos medalheiros, “como acontece em todas as éticas meritocráticas, a sua exaltada conceção de responsabilidade individual é gratificante desde que as coisas corram bem, mas desmoralizante, e mesmo punitiva, quando as coisas correm mal”, como nos diz Michael Sandel[198].
A diferença entre estes dois exemplos reside no facto de Telma Monteiro ter feito pedagogia. E fez pedagogia no desporto. Porque há uma diferença entre «pedagogia do desporto» e «pedagogia no desporto»…
Se a pedagogia do desporto nos dá o “como”, o “porquê”, o “quando”, o “onde”, o “a quem” e o “por quem”, como nos refere Gaston Mialaret[199], a pedagogia no desporto transporta-nos para comportamentos éticos e morais eivados de valores. Se a pedagogia do desporto assume um carácter exclusivamente científico, exercer a pedagogia no desporto é uma arte inerente ao indivíduo digno, responsável, decente, com coluna vertebral vertical. Maria Teresa Pimenta[200], quando nos fala do pedagogo que foi Sebastião da Gama (1924-1952), declara que “é importante que alguém nos venha lembrar que, para lá da utilização das técnicas, é a educação essencial que conta e que ela depende da concretização de uma certa maneira de pensar e realizar a vida”.
O realce dado aos aspectos lógico-objectivos no desporto de alto rendimento (ou alta competição) em detrimento dos factores pedagógico-didácticos (com uma maior valência nas etapas de iniciação e de formação) indicam-nos a utilização e a aplicação de métodos pedagógicos que vão sendo progressivamente abandonados ao longo da vida do desportista. A pedagogia do desporto tem um papel fundamental na construção do carácter e da personalidade do jovem desportista. Se bem aplicada torna-se uma ferramenta extremamente útil, se desbaratada poderá ser até um instrumento criador de contra-valores. No primeiro caso verificar-se-á em anos vindouros a existência de uma pedagogia no desporto, no segundo a sua ausência. A pedagogia no desporto não nos dá métodos nem meios, antes pelo contrário, é um comprovante da existência anterior de uma pedagogia do desporto bem praticada e alicerçada.
A pedagogia do desporto assume-se num eixo vertical entre o desportista e o treinador numa relação contratual e afectiva (relação pedagógica), enquanto a pedagogia no desporto, ou a falta dela, é transversal a todos os intervenientes no sistema desportivo e a todas as profissões que gravitam à volta deste.
Nada há de pedagógico em sancionar um jogador de futebol que já terminou a sua carreira. É o caso de Fábio Coentrão, que já se retirou dos relvados, alvo um processo disciplinar do Conselho de Disciplina da FPF em 2022/23 mas referente a um jogo da 1.ª Liga de 2020/21. Sanção extemporânea que só terá aplicação prática se o jogador decidir voltar às lides do futebol… Um mau exemplo de pedagogia no desporto.
Não existe pedagogia no desporto quando pouco antes do início da terceira etapa do segundo Grande Prémio Douro Internacional, um contra-relógio, oito ciclistas da W52-FC Porto recebem a notícia da sua suspensão por 120 dias. Oito ciclistas suspensos preventivamente na sequência de uma operação para detecção do uso de métodos proibidos e substâncias ilícitas em provas de ciclismo… Oito ciclistas que já tinham cumprido duas etapas…
Pedagogia no desporto fez Jonas
Vinegaard, o camisola amarela no Tour de
France, quando desvalorizou a pressão de envergar a mesma e declarou: “É o que é. Se ganhar, ganhei, se não, não
posso fazer nada. Enquanto eu fizer o meu melhor…” Felizmente ainda existem
pessoas que vão fazendo pedagogia no desporto!
66. Algumas interrogações
12.09.2022
1
Antes da Volta a
Portugal em bicicleta o doping esteve
na ordem do dia. Suspensão de oito ciclistas, detenção de um director e de um
massagista...Em relação a este tema, "alguém
acredita que um ciclista, para fazer 200 ou 300 quilómetros, sob sol, chuva,
subindo, descendo, fazendo médias verdadeiramente impressionantes de 40 ou 50
quilómetros hora, não necessita de alguma coisa que o ajude a suportar todo
esse esforço? Responda quem quiser, ou então que se submetam a esforços
semelhantes e depois digam se têm de tomar ou não estimulantes..."
A pergunta foi feita por Joaquim Agostinho em 1982...
2
A tenista ucraniana Marta Kostyuk recusou-se
a cumprimentar a adversária bielorrussa Victoria Azarenka no final do
encontro entre ambas no US Open de ténis, por considerar que a
antiga número um do mundo não tomou uma posição relativamente à guerra na
Ucrânia.
Os que condenaram o comportamento do judoca egípcio Islam El Shehaby, quando se recusou a cumprimentar o adversário israelita Or Sasson, nos J. O. do Rio de Janeiro, assim como os que condenaram o judoca argelino Fethi Nourine quando abdicou dos J. O. de Tóquio para não defrontar o israelita Tohar Butbul, também condenaram Marta Kostyuk?
3
Oito medalhas nos Europeus de 2022 parecem mostrar que a nível desportivo Portugal respira saúde… Mas só no atletismo foram 43 atletas para 2 medalhas (façam a conta: dá 0,047)… Pela primeira vez, Portugal apresentou-se sem um atleta que fosse para as maratonas. A questão que se coloca é: o que é feito do meio-fundo e do fundo português?
4
No norte do país disputou-se a 31ª edição do grande Prémio Jornal de Notícias–Leilosoc em ciclismo… Sem se consultar o Google, alguém saberá o que é, para que serve, ou o que quer dizer «Leilosoc»?
5
Foi preciso uma jornalista colocar a um treinador uma pergunta não relacionada com o jogo de futebol que tinha terminado para se descobrir que um artigo de um regulamento é inconstitucional. Foi preciso o Conselho de Disciplina da FPF instaurar um processo disciplinar a uma jornalista (porque os jornalistas são incluídos na condição de «agentes desportivos») para se descobrir que um artigo de um regulamento é inconstitucional. E se o artigo 91º do regulamento das competições organizadas pela Liga de Futebol Profissional é inconstitucional, isso não torna todo o regulamento inconstitucional? Ou chega decidir-se «desaplicar o artigo 91.º »?
6
O Conselho de Ministros aprovou uma verba de 31,2 milhões de Euros para Portugal preparar e estar presente nos J. O. de Paris 2024. Face a um aumento de cerca de 17,15% em relação a Tóquio, o aumento de medalhas será proporcional?
7
Por
cá, Gabriel Silva, do Santa
Clara, lançou a bola para fora de campo depois de esta ter acertado em cheio na
cara de André Amaro, do Guimarães, para que este pudesse receber assistência de imediato. Por Espanha, no
Cádiz – Barcelona, o guarda-redes do Cádiz, Ledesma, apercebeu-se que um espectador estava em dificuldades na bancada
e, lesto, correu atravessando o campo para levar um desfibrilhador (que lhe foi
facultado por um elemento do departamento médico do Barcelona) para que aquele pudesse ser assistido. Por
cá uma criança foi obrigada a assistir a um encontro de futebol em
tronco nu porque o clube não permite a utilização de adereços do clube visitante nas
zonas das bancadas destinadas aos apoiantes da equipa da casa.
Quando teremos dirigentes (alguns) com posturas iguais às de (alguns) jogadores?
9
Beatriz Fernandes, campeã mundial de C1200 metros júnior (canoagem), 18 anos. Diogo Ribeiro, três medalhas de ouro no mundial júnior de natação e recorde do mundo nos 50 metros mariposa, 17 anos. Irão ter os apoios necessários e suficientes para se afirmarem na alta-roda dos seniores?
10
A 24 de Novembro de 2009, um jornalista desta casa, António Simões, na versão em papel de «A Bola», na página 39, trazia-nos a parábola da vaca:
"Profeta e discípulo em peregrinação
perderam-se na negrura de uma montanha rude, descobriram cabana com gente pobre
dentro. Deram-lhes o que tinham: o calor da fogueira, o leite que lhes sobrara
do jantar, contaram-lhes que a vaca era o que os sustentava. Dormitaram,
partiram. Era de madrugada, a vaca pastava à beira de um precipício – e o
profeta ordenou ao discípulo, desconcertando-o:
– Atira-a para o penhasco!
– A vaca morre, a família fica sem alimento,
balbuciou.
O profeta insistiu, o discípulo cumpriu a ordem
em angústia. Várias vezes, culpando-se, lamentou-se, chorou...
Algum tempo depois, voltaram à montanha. Já não
era a cabana miserável, havia plantações em redor, animais pastando. Ao jantar,
não lhes deram leite, serviram-lhes carnes, frutas, vinhos, licores, tudo da quinta
grande, deles. Dormitaram, partiram. E o profeta soltou em brado
ao discípulo:
– Se não empurrasses a vaca para o penhasco,
continuavam a alimentar-se apenas de leite, não tinham mudado de vida..."
Haverá por aí alguma vaca
que seja necessário empurrarmos para o penhasco?
67. Uma feira em cima de um cemitério
14.11.2022
“Se parece um pato, caminha como um
pato e fala como um pato, cozinha-o.”
Michael Palmer[201]
No dia 5 de setembro de 1972, em plenos Jogos Olímpicos de Munique, oito elementos palestinianos do grupo "Setembro Negro" invadiram e atacaram as instalações onde se encontrava acomodada a comitiva de Israel na aldeia olímpica. Com duas mortes de imediato, nove israelitas foram feitos reféns, tendo sido os jogos suspensos durante o dia. Às nove da noite, uma intervenção de resgate mal sucedida revelava o resultado: a morte dos nove reféns, de quatro árabes e de um polícia alemão. No dia seguinte os jogos foram reatados. Como teria dito na altura (já lá vão 50 anos!) o campeão olímpico de 1936, Jesse Owens, “montou-se uma feira em cima de um cemitério”!
Vem este episódio a propósito de uma nova feira montada em cima de um outro cemitério...
Há doze anos que o Qatar foi escolhido pela FIFA para organizar o Campeonato do Mundo de Futebol de 2022. Um país sem tradições no futebol, colocado em 50º lugar no ranking das selecções nacionais da FIFA (num Mundial com 32 países representados) e em que a mesma é uma manta de retalhos de jogadores naturalizados, nunca chegaria a um Mundial… a não ser que fosse o país organizador. Uma demonstração do poder do dinheiro!
Envolta a atribuição deste Mundial em acusações de corrupção desde o início – o New York Times chegou a citar uma testemunha que afirmou que o presidente da Federação Argentina de Futebol se queixou de não ter recebido os 80 milhões prometidos para votar a favor da candidatura deste país ao Mundial de 2022 («Público», 21.10.2022) –, o próprio Joseph Blatter admitiu que a escolha do Qatar como país organizador do Mundial 2022 “teve influências políticas directas”, acrescentando que “Chefes de Governo europeus aconselharam os representantes dos seus países com direito de voto a pronunciarem-se a favor do Qatar, porque estavam ligados a esse país por interesses económicos importantes” («Público», 18.09.2013). Joseph Blatter que veio agora admitir que a escolha do Qatar foi um erro…
Presume-se
que rondem os 220 mil milhões de dólares o custo da construção dos oito
estádios (com sistemas de ar
condicionado devido ao clima desértico do país, o que também impôs a
realização do campeonato no Inverno e não, como é costume, no Verão) e de todas
as infraestruturas necessárias envolventes. Mais uma vez, o poder do dinheiro…
Este é o campeonato que vai ficar conhecido pelo Mundial da hipocrisia. Ou pelo Mundial da vergonha. Ou pelo “campeonato que não deveria realizar-se”[202].
Maurizio Sarri, treinador da Lázio, declarou o seguinte: “O Mundial no Qatar é um insulto ao futebol. Gostaria que alguém explicasse o que o Qatar pode trazer para o futebol, excluindo o dinheiro para o Manchester City e o Paris Saint-Germain” («A Bola», 12.11.2022).
Mas uma sociedade que não respeita os direitos humanos, em que a dignidade é retirada aos trabalhadores, em que só se pode consumir bebidas alcoólicas no recato da privacidade, em que manifestações de afecto não são permitidas em locais públicos, que discrimina negativamente as mulheres, em que os direitos dos homossexuais não são reconhecidos, em que fotografias só são permitidas com permissão e em que jornalistas não podem fazer livremente as suas reportagens acaba por ter os seus aliados no ocidente: a Dinamarca solicitou à FIFA autorização para treinar no Qatar, durante o Mundial 2022, com os jogadores envergando camisolas com o slogan «Direitos Humanos Para Todos». Resposta da FIFA: negada a pretensão! Por que terá sido? Talvez porque a FIFA preveja que vá arrecadar a quantia de 5,9 mil milhões de euros… De novo o poder do dinheiro!
O jornal britânico «The Guardian» revelou que mais de 6.500 migrantes do sul da Ásia morreram no Qatar na última década[203] no que tem sido secundado pela Amnistia Internacional… São mais do dobro dos mortos no atentado de 11 de Setembro. São 813 mortos por cada estádio. São 203 mortos por cada país participante. São 9 mortos por cada um dos jogadores seleccionados. Temos, de facto, uma nova feira montada em cima de um outro cemitério...
O que fazer? O que fazermos? Uns propõem um boicote ao Mundial (os adeptos do Bayern, do Dortmund e do Porto já se manifestaram publicamente). Outros propõem uma discussão sobre o assunto (Jorge Valdano, em «A Bola» de 29.10.2022, avança com uma televisão na sala de aula, argumentando que “trinta e duas selecções dão para falar muito de Geografia e de História: um Mundial no Qatar poderia abrir um debate interessante sobre direitos humanos…”). No mínimo, ignorarmos, não divulgarmos ou não condenarmos será sermos coniventes! Será irmos à feira sobre esse cemitério!
Jurgen Klopp, treinador do Liverpool, foi bastante lúcido quando declarou que “todos sabemos como aconteceu e todos deixámos acontecer” («O Jogo», 06.11.2022). Todos somos culpados, principalmente aqueles que vão suportar este mundial através da sua presença (estima-se que já se tenham vendido três milhões de bilhetes) e aqueles que vão publicitar a sua empresa ou o seu produto no mesmo patrocinando o evento ou as selecções nacionais. Principalmente os adeptos do espectáculo, os defensores da paixão.
O que nos faz lembrar o seguinte conto oriental:
“Um discípulo queria
reduzir tudo ao entendimento. Só confiava na razão e estava preso na jaula da
sua própria lógica asfixiante. Visitou um sábio e perguntou-lhe:
– Mestre, o que é
que sustém o mundo?
E o mestre
respondeu-lhe:
– Oito elefantes
brancos.
– E quem suporta
esses oito elefantes brancos? Inquiriu de novo o discípulo intrigado.
O mestre
respondeu-lhe então:
– Outros oito elefantes brancos.”
68. O que faz o futebol pelos direitos humanos?
19.01.2023
Reflectir sobre um Mundial de futebol em que os oitavos de final renderam cerca de 16,4 milhões de Euros à Federação Portuguesa de Futebol e uma indeminização de 4,5 milhões de Euros a Fernando Santos será reflectir não só sobre economia mas também sobre política.
Mas para levarmos a cabo este exercício teremos de ter em conta aquilo que ele poderia ter sido – o possível – e aquilo que foi na realidade – o real. “(…) o possível é quase infinito, ao passo que o real possui fronteiras rigorosamente delimitadas. O real é sempre um possível único, eleito numa série de possíveis. Um caso particular do possível. Esta a razão por que o pensamento pode abordá-lo de várias maneiras. Ingressar no possível corresponde a modificar a nossa perspectiva do real.”[204]
Tudo começou, apesar de todas as objecções que já foram apresentadas, com a atribuição do Mundial ao Qatar. No campo do possível, seria mais bonito (talvez até politicamente mais correcto) organizar o Mundial de futebol de 2022 nos Estados Unidos porque seria logo a seguir ao Mundial organizado na Rússia – tal como desejava Blatter, presidente da FIFA na altura. No campo do real, Platini, presidente da UEFA, foi chamado ao Eliseu (estávamos em 2010) e de lá saiu já com o voto pronto para o Qatar… porque o presidente Sarkozy necessitava de vender cerca de 14,6 mil milhões de Euros em caças Mirage ao Qatar (o que veio a acontecer algum tempo depois).
A partir daqui foi tudo aquilo que se sabe e já foi denunciado. A partir daqui tudo foi uma bola de neve até se chegar ao ponto – real – do Qatar seduzir 34 parlamentares britânicos e com eles ter gasto cerca de 300 mil Euros a fim dos mesmos promoverem uma imagem positiva deste país. De tal maneira real que dentro dos muitos possíveis, um veio à luz do dia: a Vice-Presidente do Parlamento Europeu, Eva Kaili, foi detida em flagrante delito em Bruxelas e acusada de branqueamento de capitais, corrupção e participação em organização criminosa (“o Qatar está entre os países líderes na defesa dos direitos dos trabalhadores” é uma frase sua!).
É facto assente que o futebol não sai da política, nem a política sai do futebol. Tal como a economia. A economia não sai do futebol nem o futebol sai da economia. Ou o negócio… diríamos nós!
De 20 de Novembro a 18 de dezembro estivemos hipnotizados, apesar de todo o anátema deste Mundial, por aquilo a que alguns autores franceses chamam o «ópio do povo» num duplo sentido, como refere Pierre Laguillaumie[205]: “por um lado, obscurantismo das faculdades críticas (evasão, fuga, êxtase); por outro lado, compensação, substituição e esquecimento das reais infelicidades”. Apesar de todos os atropelos do Qatar aos direitos humanos denunciados, o espectáculo e o consumismo levaram-nos a uma trégua tornando-nos cúmplices desses atropelos. A melhor confirmação vem precisamente de uma jogadora de futebol: “Já que, infelizmente o país organizador não promove a normalização dos direitos humanos, o que é habitual do campeonato do Mundo, estejamos cá para desfrutar de um bom espectáculo de futebol”. Afirmação de Madalena Marau, defesa do Lank Vilaverdense («O Jogo», 27.11.2022).
No jogo entre Portugal e o Uruguai o italiano Mário Ferri invadiu o campo tendo na parte de trás da t-shirt escrita a frase «respeito pelas mulheres iranianas» e na parte da frente «salvem a Ucrânia», ao mesmo tempo que transportava na mão uma bandeira LGBTQIA+… O marroquino Jawad El Yamiq celebrou a passagem aos oitavos de final com a bandeira da Palestina dentro de campo… Nas bancadas múltiplas manifestações estiveram presentes… Uma adepta do Irão foi expulsa do Estádio Ahmed Ben Ali por ter homenageado Mahsa Amini apresentando a imagem desta numa t-shirt…
Jogadores e adeptos do Irão permaneceram calados durante o seu hino no jogo contra a Inglaterra enquanto antes do pontapé de saída os jogadores ingleses colocaram um joelho no chão para assinalarem a importância de se respeitarem os direitos humanos… Jogadores alemães, antes de jogo com o Japão, protestaram contra a decisão da FIFA de impedir uso da braçadeira «One Love» deixando-se fotografar com a mão sobre a boca…
Como respondeu Portugal? Depois de altos dignatários terem estado presentes como forma de apoio aos nossos jogadores, só depois da eliminação da nossa selecção nacional o nosso Parlamento aprovou um projecto de resolução que propunha a condenação da realização do Mundial 2022 no Qatar… Só depois!
Como respondeu a FIFA? Alargando o Mundial de Clubes para 32 equipas e o Mundial de futebol em 2026 para 48 selecções nacionais sem ter em conta o desgaste dos jogadores ou os calendários nacionais.
Entretanto a Supertaça de Espanha vai para Riade, na Arábia Saudita, tal como a Supertaça de Itália. País em que entre 10 e 23 de novembro foram executadas 17 pessoas (das quais 4 sírias, 3 paquistanesas e 3 jordanas). País em que ao todo houve 144 execuções em 2022 de acordo com uma contagem da Agence France-Presse, mais do que o dobro de todo o ano anterior. E em Março do ano findo, num único dia, 81 pessoas acusadas de terrorismo foram executadas. Grandes competições saem dos seus próprios países para se realizarem num país que não respeita os direitos humanos… Motivos? O negócio!
Agora temos, também na Arábia Saudita, o encontro entre o Paris Saint-Germain e uma selecção do próprio país naquilo que se designa como o encontro entre Messi e Cristiano Ronaldo. É o poder do dinheiro!
Já em 1976 – ano em que Carlos Lopes venceu o Campeonato do Mundo de corta-mato e conquistou a medalha de prata nos J. O de Montreal –, Brohm[206] nos dizia que o desporto é “em todas as áreas, uma empresa florescente, um «big business» capitalista, que incentiva numerosos grupos financeiros, empresas industriais, entidades comerciais, públicas ou privadas, municípios, até países, a envolverem-se na organização de grandes eventos desportivos, torneios, competições e Jogos Olímpicos, cujas repercussões económicas são enormes.” Quase há cinquenta anos!
Talvez
o título deste artigo não devesse ser o que o encima. Porque a questão é: o que
fazem os dirigentes desportivos pelos direitos humanos?
69. Consciencializemo-nos!
01.03.2023
Quando Lev Tolstói iniciou o seu «Anna Karénina» – “Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é-o à sua maneira” – de certeza que não estaria a pensar no desporto, mesmo que de uma forma metafórica se tratasse. Isto até porque em 1877 este se encontrava nos seus primórdios…
O desporto actual já não é o «deportatre» latino, porque a sua prática já nada tem de distracção ou de divertimento, e nele estão presentes todas as situações, desde as mais exemplares às mais ignóbeis, desde as portadoras de valores às detentoras das maiores perversidades. Nele, neste momento, a vitória e a acumulação de riqueza têm um mais do que importante papel – já não é tanto o «interessa participar»... E sim, parafraseando Tolstói, todos os que se servem do desporto são parecidos; os que o servem são ignorados, relegados para segundo ou terceiro plano, mas felizes à sua maneira e consigo próprios.
Actualmente o desporto pós-moderno tem de ser encarado como uma actividade que possui valores intrínsecos ao ser humano mas também tem valores (preço) económicos. Tem de ser visto como uma actividade que não gera nem bens nem obras, e, mesmo criando postos de trabalho em inúmeras áreas, não cria riqueza, embora a movimente em determinados sentidos. Actualmente o desporto assenta em dois intervenientes: o praticante (desportista, competidor) e o consumidor (espectador). E não é só consumido pelo espectador em directo: passámos da época do relato radiofónico para a época da imagem e, na sociedade actual, como nos diz Manuel Sérgio[207], a educação desportiva chega às pessoas pelos media e pela internet, destituída de preocupações éticas, bem mais do que pela escola e pela família. Não há desporto sem competidor e sem espectáculo (o que implica a existência do espectador).
O desporto pós-moderno é essencialmente alta competição e profissionalismo, é fundamentalmente espectáculo, é movido pelos ‘media’ e pela publicidade, exige sensacionalismo e impõe heróis, é determinado pela ciência e pela tecnologia e nele tudo é quantificado (em termos de comprimentos, pesos, tempos, pontos, golos, recordes, bolas de ouro, cartões vermelhos e amarelos, número de jogos jogados, ‘performances’, etc.). Por último, e talvez mais importante, com mais peso, mas menos consciencializado, o desporto pós-moderno é gerido pela economia e pela política.
Robert Redeker[208] parte da hipótese de que “o desportista é um mutante submetido ao imperativo da comercialização” para chegar à conclusão que o desporto é um eugenismo despolitizado.
E mostra-nos[209], fazendo cair o mito de que o desporto é um reflexo da sociedade, como o desporto estrutura essa mesma sociedade, a modela, como a força para se parecer com ele. “O desporto é uma ideologia” afirma ainda, apresentado o desporto-espectáculo como um transfundir, dia após dia, do culto da performance, do amor pela lei do mais forte, do fanatismo da avaliação e da legitimação da fraude (não visto, não acontecido).
Quando nos dizem que “não devemos esquecer ou ter dúvidas dos valores que a prática desportiva generalizada, mas sobretudo a competitiva, incute no desenvolvimento de seres humanos como motivação para enfrentarem quaisquer desafios que a vida lhes apresente e da relevância que tem em termos de saúde em geral, com os hábitos saudáveis que garante a todos os seus praticantes, e saúde mental, devendo ser o principal aliado na sua preservação” (Carlos Paula Cardoso, Presidente da Confederação do Desporto de Portugal, em «A Bola», 28.12.2022), nós duvidamos. Duvidamos porque os comportamentos de violência, a corrupção, a fraude, o treino intensivo precoce, a morbilidade, a dopagem, o suicídio, a morte súbita, os abusos sexuais e o treino intensivo precoce estão cada vez mais presentes (e em maior número) no seio do desporto.
E duvidar é não nos enganarmos a nós próprios.
Deixemos de encarar o desporto como uma indústria quando na realidade é um comércio com muito negócio à mistura.
Consciencializemo-nos
pois que no desporto a vítima é o desportista e o grande responsável é o
consumidor – ou seja, nós! Os políticos (governos, deputados e partidos), as
instituições (federações, associações e clubes) e os dirigentes desportivos são
só efeitos colaterais…
70. Factos e interpretações! (De novo!)
06.04.2023
“Não existem factos, apenas interpretações.”
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Assistimos recentemente a um despique verbal entre Nelson Évora e Pablo Pichardo. Cada um esgrimindo os seus argumentos… alguns muito centrados em si próprios, outros centrados em feridas mal saradas…
No entanto, o cerne da questão passou ao lado porque ambos foram instrumentalizados tanto pela comunicação social como pelas próprias instituições que tutelam a actividade desportiva de ambos.
Nelson Évora tinha 6 anos quando chegou a Portugal. Em 2001, apesar de ainda não ter nacionalidade portuguesa, a Federação Portuguesa de Atletismo conseguiu que participasse nas Jornadas Olímpicas da Juventude Europeia, sendo medalha de ouro no salto em comprimento (representou Portugal sem ser português!). Em 2002, naturalizou-se português, depois de completar 18 anos. Segundo as suas próprias palavras, teve de esperar 11 anos para obter a nacionalidade portuguesa. Ora, e sem conhecermos o processo de tramitação, a legislação da altura dizia que a nacionalidade portuguesa poderia ser obtida por cidadãos estrangeiros que fossem maiores ou emancipados à face da lei portuguesa, que residissem legalmente em território português há pelo menos cinco anos e que, entre outros requisitos, conhecessem suficientemente a língua portuguesa.
Pedro Pichardo chegou a Portugal em 2017 com o estatuto de refugiado. A lei portuguesa também contempla casos especiais em que pode ser concedida a naturalização (Decreto-Lei n.º 237-A/2006, artigo 24.º): “O membro do Governo responsável pela área da justiça pode conceder a nacionalidade portuguesa, por naturalização, (…) aos estrangeiros que tenham prestado ou sejam chamados a prestar serviços relevantes ao Estado português.” E foi, em pouco tempo, por motivos baseados neste aspecto legal, que se desenvolveu o processo de naturalização de Pedro Pichardo. O próprio Presidente da FPA, Jorge Vieira, afirmou que “houve tratamento diferente. Nelson Évora vem para Portugal com nove anos [Évora diz que chegou com seis], não colhia nenhum argumento dentro da lei, não se esperava de uma criança de nove anos ou até ser júnior… não se poderia alegar neste período qualquer argumento para acelerar a naturalização. Teve de se esperar pela maioridade." E, segundo parece, tanto a Federação Portuguesa de Atletismo como o Comité Olímpico de Portugal, emitiram um parecer (chamam-lhe «carta de conforto»), que, com base no currículo desportivo de Pichardo, justificaria futuros serviços relevantes ao país, fechando-se a naturalização deste em Dezembro de 2017.
Falou-se em polémica… no entanto não houve polémica quando a velejadora Vasileia Karachaliou, nascida na Grécia (e que aguarda naturalização), em representação de Portugal se sagrou vice-campeã da Europa da classe olímpica ILCA 6, nos Campeonatos da Europa em Andorra, Itália, recentemente disputados («Público», 17.03.2023).
Fazem-nos lembrar aquela embalagem de carne de um hipermercado
em que consta no rótulo o produto «lombinhos de porco nacional» e, se nos
debruçarmos um pouco mais sobre o mesmo, poderemos ver para além do número do
lote a especificação em relação à criação (Espanha), ao abate do animal
(Espanha) e a sua origem (Espanha). No entanto, são «lombinhos nacionais»!
71. Questão ética, questão legal
16.05.2023
“Somos responsáveis por aquilo que fazemos,
o que não fazemos e o que impedimos de ser feito.”
Albert Camus(1913-1960)
1
Pessoa amiga fez-nos chegar um vídeo que circula pelas redes sociais. Um vídeo de um desporto de combate… poderá ser um vídeo de ‘professional wrestling’, poderá ser de luta livre olímpica, mas também poderia ser de luta greco-romana, ou de judo, ou de jiu-jitsu, ou de karate… O árbitro dá início ao combate, os competidores vão-se cumprimentar e, neste exacto momento, um deles aplica uma técnica de prisão de pernas ao adversário colocando-o no chão e ganhando assim o combate. Curiosamente o competidor que ganhou o combate foi aquele que avançou com a proposta de cumprimento com toque de mãos aproveitando-se disso para atacar de surpresa. Questão técnica? Sem dúvida, tecnicamente uma boa aplicação. Questão táctica? Sim, uma opção táctica que revela o carácter do competidor. Questão ética? Questão legal?
Sem dúvida que há um aproveitamento técnico nesta acção. O combate inicia-se à voz do árbitro, pelo que tanto a aplicação da técnica como ela própria são perfeitamente legais. Vitória justa? Sim, do ponto de vista legal, não do ponto de vista ético. É uma situação que tem a ver com a falta de cavalheirismo do competidor que distrai o adversário com um pseudo-cumprimento aproveitando-se deste momento para dar início à acção.
Uma acção que nada tem a ver com falta de fair-play, como muitos vieram reclamar…
2
Em «A Bola» online, de 30.04.23, podemos ver um vídeo em que Mvogo, guarda-redes do Lorient, coloca a bola no chão dentro da grande área tencionando marcar um livre indirecto pois tinha ficado com a sensação que o árbitro tinha interrompido o jogo, quando, de repente, Mbappé, que se encontrava perto, dá meia volta e atira a bola para o fundo da baliza. Golo do empate para o Paris Saint-Germain validado pelo árbitro pois este não tinha sancionado qualquer infracção… Legal? Sim! Ético? Não! E mais uma vez, uma acção que nada tem a ver com ausência de fair-play, como muitos defenderam…
3
Outro vídeo que circula pelas redes sociais mostra-nos um futebolista percorrendo calmamente a linha de golo da baliza da equipa adversária enquanto o guarda-redes vai fazer a reposição do esférico não se apercebendo da sua presença atrás de si. Ao colocar a bola no chão aquele arranca, domina a bola retirando-a do campo de acção do guarda-redes e marca golo. Legal? Sim! Ético? Não! Falta de fair-play? Mais uma vez nada a ver com essa noção.
Estes são alguns exemplos, apenas alguns exemplos que observados pelos mais jovens lhes mostram que o oportunismo no desporto é válido e legal. Que por vezes a vitória pode ser obtida a qualquer preço e legalmente. São modelos perigosos… Por que motivo? Porque “quando lei e ética estão em conflito prevalece a lei” como nos diz Ronald Francis[210]. De facto, “nem sempre o legal coincide com o justo, e se obedecer à lei é um imperativo cívico, ser justo é um imperativo ético”, como refere João Baptista Magalhães[211]. É necessário discutir a ética? Sem dúvida que sim. As campanhas de sensibilização ética no desporto que resultados produziram até agora? Seria conveniente encontrarmos resposta para esta pergunta a não ser que essas mesmas sejam pura e simplesmente estéreis. E recorrendo de novo a Francis, “os argumentos éticos, podem, contudo, formar uma parte significativa da contestação à lei e actuar como forte argumento para a alteração legal.” Têm actuado? A não ser que tenhamos de dar razão a Forrest Atlee, personagem de John Grisham[212] na sua obra “A Convocatória”, quando, ao dirigir-se ao seu irmão Ray lhe diz: “ – Já não há ética, mano. Andas na lua. A ética é para pessoas como tu ensinarem aos alunos que nunca irão usá-la.”
4
No futsal, recentemente, o Vitória de Santarém encontrava-se em primeiro lugar antes do último jogo do campeonato com 33 golos de vantagem sobre o Mação, ambos com os mesmos pontos. No entanto o Mação conseguiu ultrapassá-lo pois venceu o último jogo contra o Benavente por 60-0 (e sagrar-se campeão distrital embora a Associação de Futebol de Santarém não tenha homologado o resultado e abrindo um processo disciplinar) … enquanto o Vitória venceu o Ribeira Fárrio apenas por 7-5.
No jogo em causa, o Benavente apresentou-se na partida apenas com três jogadores (um guarda-redes e dois jogadores de campo). Alega este clube em comunicado oficial que tinha informado a Associação de Futebol de Santarém (AFS) que só teria três jogadores disponíveis para o encontro, uma vez que o horário da partida tinha sido alterado. E que, “ainda na sequência deste tema, o Benavente questionou a AFS sobre quais as implicações de uma falta de comparência, tendo a AFS respondido apresentando os vários valores de multas que constam no artigo 49º”.
No comunicado oficial do Benavente ainda se pode ler que este "apresentou-se ao jogo com os três jogadores, como tinha sido comunicado à AFS, sendo que no decorrer do jogo o treinador se dirigiu à equipa de arbitragem solicitando que a outra equipa jogasse apenas com três jogadores. Tal facto foi negado pela equipa de arbitragem alegando que não tinham poder para o fazer ficando essa decisão ao critério da equipa adversária". Aqui sim, e caso o treinador do Mação tivesse acedido a esta pretensão e se apresentasse a jogo apenas com três jogadores, existiria uma situação de ‘fair-play’. Porque existindo uma omissão nas regras em relação a essa possível decisão o treinador do Mação procuraria uma certa equidade, tentando adaptar essa omissão existente à situação do momento, pretendendo aplicar um critério de justiça e igualdade, abdicando de uma vantagem.
Portanto, e apesar do processo disciplinar aberto, e estando nós na posse apenas destes elementos, parece-nos que tudo decorreu dentro da legalidade. Mais uma vez se coloca a questão: correu dentro de padrões éticos?
Mas como a memória é curta, e para que a admiração não seja tão grande, aqui ficam alguns resultados parecidos no futebol: 73-0, em Achay, em 1999, no Paraguai; em Calcutá, na Índia, 114-0, em 2002; 55-1 e 61-1, também na Índia, em 2004; 95-0 e 91-1 na Serra Leoa, em 2022.
5
Olímpio Bento[213]
pergunta-nos se “poderá o fair-play ser hoje o princípio moral mais importante do desporto quando o não é da sociedade?”
Pelo que nos atrevemos a perguntar: poderá a ética ser o mais importante no
desporto quando o não é na sociedade?
Conclusão
“A ignorância
não é inocência, mas pecado.”
Robert
Browning (1812-1889)
A partir deste
momento e deste local a ignorância deixa de ser plausível. Porque os nossos
comportamentos anti-sociais presentes no desporto – “aqueles categorizados como pecados pela religião e como vícios pelos
filósofos”[214]
– não podem ser a regra em vez da excepção. E acentuamos «nossos
comportamentos» dado que não são só os comportamentos dos outros… Nós estamos
implicados no processo e teremos de começar a analisar o desporto mais na
primeira pessoa.
A maior parte dos «fazedores» e dos consumidores de
desporto – e aqui generalizamos conscientemente – se não transportam consigo próprio
uma ignorância profunda sobre o fenómeno desportivo, revelam pelo menos uma
iliteracia notória. São avessos à mudança. O próprio desporto o é. Tal como a
própria sociedade. Tal como eles, quando o «eles» somos nós!
E, terminamos voltando a Graham Greene[215]: “a desgraça, como a devoção, também pode
converter-se em hábito.”
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[124] Bento, J. O.,
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[125] Redeker, R.,
2012. (op. cit.).
[126]
Bierce, A.,
1996. (op. cit.).
[127] Apud Queval, Isabelle, 2004. “S´accomplir ou se dépasser”. Paris: Gallimard.
[128] Ata da 108ª
Sessão do COI, Lausanne, 17 e 18 de março de 1999.
[129] Yonnet, P., 2004. “Huit leçons sur le sport”. Paris: Gallimard.
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[140] Kodansha Intanashonaru Kabushiki Kaisha, 1995. “Japan: Profile of a Nation”. Tokyo: Kodansha International.
[141]
Idem.
[142] McCarthy, P.,
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[143] Pires, G., 2007.
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[146] Idem.
[147] Nichols, T.,
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[149] Blumenfeld, R., 2020, “How A 15,000-Year-Old Human Bone Could Help You Through The Coronacrisis”, disponível em «Forbes» online, 21.03.2020.
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[159] Nietzsche, F.,
2004. “Aurora: Reflexões sobre os preconceitos
morais”. São Paulo: Companhia das Letras.
[160] Confira as
respostas:
1 – A esgrima tem 3 armas: florete,
sabre e espada.
2 – Em centímetros, são a largura e
a altura de uma baliza de futebol.
3 – Sandra Bastos.
4 – 9 ou 18 buracos.
5 – Depende. Este é um dos dilemas do
treinador…
6 – 7-5, 1-6 e 6-4. Vence o primeiro…
7 – 3,05 metros,
determinados pelo inventor do jogo, James Naismit, em 1891.
8 – Não há prova de 150
metros nos J. O.
9 – 11 metros.
10 – 12 centímetros
11 – Leixões Sport Clube.
[161] Sanders, L., 1983. “O Terceiro Pecado Mortal”. Lisboa: Círculo de Leitores.
[162] Inocentes, A. N., 2018. “O desporto debaixo de fogo - entre valores e perversidades”. Lisboa: Prime Books.
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[169] Inocentes, A.,
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[173] Huxley, A., 2013.
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[177]
Kloester, A.
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[178] Aguiar, J.,1988.
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[215] Greene, G., 1950. “O Poder e a Glória”. Porto Alegre: Editora
Globo.
III
Desporto: tolerar o intelerável?
Armando Inocentes
(Texto apresentado à "IV Edição do Prémio PNED para Investigação sobre Ética no Desporto", 2016, 3º lugar)
II
Ritos, Reproduções e Crenças: uma análise socio-pedagógica
Armando Inocentes
(in J. Salgado e L. Pereira, 2009, “Karaté: entre a tradição e a modernidade”, Lisboa, FNK-P, pp. 117-158, autorizado pelo Presidente da FNK-P em 25.01.2011)
I – Introdução
II – A ritualização e o dojo
“- as aulas processam-se em ambiente de disciplina rigorosa e os mestres ocupam boa parte do tempo exemplificando os movimentos, e a aprendizagem é normalmente feita por imitação;
VI – Ética e moral
VII – Conclusão
VIII - Bibliografia
A solicitar ao autor
I
Para uma Pedagogia do Karate-Do
Armando Inocentes
(Artigo publicado na revista «Bushido - Artes Marciais e Desportos de Combate», respectivamente no n.º 68 de Novembro de 1995, pp. 9-11, e no n.º 69 de Janeiro de 1996 , pp. 9-11).
1. TRADICIONALISMO VERSUS CIÊNCIA
2. MESTRE VERSUS PEDAGOGO
4. EXAMES VERSUS AVALIAÇÃO
5. DIPLOMAS VERSUS REALIDADE