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III
Desporto: tolerar o intelerável?
Armando Inocentes
(Texto apresentado à "IV Edição do Prémio PNED para Investigação sobre Ética no Desporto", 2016, 3º lugar)

  
Decide-se que, por mais que se devam respeitar as opiniões, os costumes, as práticas e a crenças dos outros, há alguma coisa que nos parece intolerável. Temos de assumir a responsabilidade de decidir o que é intolerável e depois agir, preparados para pagar o preço do erro.
(Humberto Eco, 2016)[1]

1 – Pensar pelo contrário
De um desporto onde se jogava o jogo pelo jogo, passou-se para um desporto que não é mais do que negócio em que se trabalha para um espectáculo lucrativo e que coloca quem o pratica ao serviço de uma actividade que pouco tem de humanista. De um desporto em que a competição era um meio passou-se para um desporto em que a competição é um fim. De um desporto feito do «amor à camisola» passou-se para um desporto onde o desportista, o competidor, tem de se sujeitar não só às leis do próprio desporto como aos interesses dos patrocinadores, das entidades patronais e até da comunicação social. Surgem então situações que procuram contornar essas leis ou que até as violam, passando a discursar-se sobre a formação ou a ética como forma de combater futuras situações semelhantes. A ética começa a ser invocada para o desporto numa sociedade ameaçada por inúmeras intolerâncias e onde existe o intolerável no desporto. A palavra «ética», como nos diz Castoriadis (2012), é então “utilizada como estribilho no pior dos casos e, no melhor, é apenas um sinal de um mal-estar e de uma interrogação.
Mas a banalização do termo «ética», usado para tudo e mais alguma coisa, acaba por fazer com que esta perca o seu próprio significado. “A pergunta «o que é a ética?» está para além da capacidade humana de resposta; «ética» é apenas um rótulo. A questão crítica é «como é que deverá o termo ‘ética’ ser usado?». A melhor resposta é provavelmente que deverá ser evitado a todo o custo, uma vez que está irremediavelmente corrupta.” (Meehan, 1998). É a esse rótulo que teremos de dar conteúdo…
Dilthey (2005) é categórico quando refere que não se pode responder a priori à seguinte pergunta: o que é a ética? E afirma que devemos interrogar a própria evolução moral e se a equacionarmos em diferentes épocas ela dará respostas substancialmente distintas. Este alerta, já feito no início do século XIX, coloca qualquer análise sobre a ética num certo contexto histórico e social. E no presente momento estamos num determinado contexto… diferente dos contextos passados.
Heráclito (540-480 a.C.) deixou-nos a ideia de que nada pode ser pensado sem o seu contrárioAnalisarmos a ética no desporto no momento actual pode passar precisamente por o fazermos em sentido contrário, já que Bento (1999, 2004, 2005) nos mostra que no desporto tanto se podem realizar valores de sinal positivo como valores de sinal negativo. Estes últimos originam o intolerável no desporto.
Ao pensar pelo contrário descobrimos esse intolerável – o desporto “não é ninho de virtudes” (Serpa, 2013) – que convém ser conhecido até porque, como evoca Bento (2009a), “num contexto de relativismo ético e legal, os principais políticos e interventores mediáticos surgem apostados em cantar as virtudes da versão prevalecente no mercado, em branquear as suas perversões e esconder que os danos colaterais são calculados, programados e produzidos de modo absolutamente objectivo, frio e racional.
Depende esse intolerável não só de governantes, legisladores, gestores, decisores e agentes desportivos – mas de todos dado que são os homens, e não o Homem, que vivem na Terra e habitam o mundo (Arendt, 2001). Não é um assunto só do desporto ou só de quem pratica desporto. Sérgio (2016) interroga-nos: “Quem duvida que são, sobre o mais, problemas humanos os problemas desportivos?” E acrescenta: “É o homem todo (e não só o físico) que faz desporto. Permitam-me que lastime, por fim, o desprezo pela essência lúdica do desporto. Uma competição, sem ludismo, destrói a riqueza moral do jogo, cria as condições necessárias à violência e à guerra.

2 – A existência de contra-valores
Estuda-se muito a ética no desporto, assim como os valores no mesmo. Já não é tão comum o estudo dos seus contrários embora Inocentes (2007), abordando a ética desportiva, nos mostre casos exemplares mas também perversidades no desporto.
Quando Mendes (2012) afirma que “os valores negativos do desporto estão a ser estendidos à sociedade”, a questão que poderemos colocar é exactamente a inversa: não estarão os valores negativos da sociedade e ser estendidos ao desporto?
Sérgio (2012) defende que “a mercantilização, a burocratização, o uso e o abuso da droga, a corrupção, etc., são provas evidentes que os conceitos fundadores da prática desportiva foram nitidamente postos de lado. É o Desporto uma instância autónoma? Só o é, relativamente. Por isso, a competição desportiva se confunde com a civilização consumista. E em que o desportista também é o hiperconsumidor.” E já Arendt (2006) nos deixou escrito em 1961, ao referir-se à crise na cultura, que “a sociedade de massas não deseja cultura mas entretenimento, e os artigos oferecidos pela indústria são de facto consumidos pela sociedade como quaisquer outros bens de consumo.
Do mesmo modo Marques (2009) refere que o desporto está a ser usado com propósitos condenáveis e a perder as valias educativas e sociais de que sempre foi portador. Na mesma senda, Carvalho (2009), salienta que “não podemos olvidar o facto da prática desportiva profissional constituir um modelo, um referencial, para o bem e para o mal, do panorama desportivo nacional.
Se os comportamentos manifestados pelos desportistas reflectem o seu sistema de valores e a sua adesão aos princípios da ética, os actos intoleráveis por eles praticados revelam a necessidade de tomar consciência da existência de contra-valores como obstáculos à promoção de valores (Pereira, 1997).
O desporto tem uma função social ambivalente, porque ele é susceptível de exercer uma influência seja positiva seja negativa sobre o comportamento dos cidadãos, diz-nos Lassalle (1997).
Attali (2004) apresenta a educação pelo desporto como uma prática com dupla face e Inocentes (2007) mostra a bivalência do desporto, defendendo ambos, assim como Caillat (2008) e Serpa (2013, 2015a, 2015b), que o desporto não é tanto como se propala uma escola de virtudes com carácter formativo e educativo.
Enquanto Saint-Martin (2004) refere que, legitimado pelas performances e pelos recordes, o desporto moderno veicula valores e contra-valores, Liotard (2004) conclui que o desporto educativo mostra também a aprendizagem de princípios postos como contra-valores ou anti-valores.
Em suma, e segundo Bento (2009b), a ambiguidade e a ambivalência tomaram conta de nós. Castoriadis (2012) fala-nos da “duplicidade instituída” nas nossas sociedades… Pires (2016) enfatiza o facto de que “só no dinamismo do conflito positivo da luta de contrários, pode ser encontrada a euritmia do equilíbrio dinâmico do desenvolvimento e do progresso do desporto.
E sendo o desporto utilizado de uma forma educativa e/ou formativa, não podemos ignorar que ele próprio é uma montra onde crianças e jovens admiram os seus modelos. A base da pirâmide tem os olhos postos nos ídolos e “é bem sabido que no desporto de elite há muitos interesses económicos e políticos em jogo que não só afectam o próprio desportista como se repercutem num conjunto variado de pessoas que o rodeiam” (Pérez Triviño, 2011).
No conceito de “gamesmanship” – em oposição ao de “sportsmanship” – está subjacente a ideia da vitória como único objectivo da competição e segundo o qual atletas e treinadores são encorajados a contornar as regras sempre que possível em ordem a ganhar uma vantagem competitiva sobre um oponente e a desconsiderar a segurança e a justiça na competição, conforme nos refere Cruz (2015).
Turró Ortega (2016) mostra-nos um mundo desportivo que é multifacetado, ambivalente e apresenta abundantes claros-escuros, onde demasiadas vezes está presente uma forma de canalizar patologias, disfunções e contra-valores das nossas sociedades pós-modernas. Segundo este autor, examinar as suas misérias permite-nos apreciar a diferença entre o que ele é e o que deveria ser, ao mesmo tempo que analisá-lo do ponto de vista moral deixa-nos identificar tanto os seus problemas como o seu potencial humano.

3 - O intolerável
Tendo em conta todo o meio ambiente envolvente específico – temporal, cultural e social – onde se desenvolve o desporto, teremos de considerar que “a ética, em contraste com a cultura, é a articulação racional do bem. A moral é a incarnação da ética na cultura; ou, de uma forma mais pessimista, é a contaminação da ética pela cultura.” (Cunha, 1996).
É essa contaminação que faz surgir o intolerável no desporto.
Os seus actores, como nos diz Bento (2009a), os principais sujeitos da cegueira e insanidade,são os que usam todos os ardis para encobrir a indecência do modo de ser e de estar, de exercer o poder para impor, por via legal, decisões abjectas e reprováveis pela moral. Os que alargam o fosso da cada vez maior separação entre a lei e a ética.São os que fazem com que se tolere então o intolerável…
Num desporto onde os casos exemplares são cada vez mais divulgados – tal como o recentemente protagonizado por Nikki Hamblin e Abbey D'Agostino nos 5.000 metros femininos dos J. O. do Rio 2016 –, também o intolerável no desporto é cada vez mais mediatizado: atletas que morrem em plena competição, crianças a competirem como adultos, violências, fraudes, corrupções, dopagens, lesões vitalícias e até suicídios de desportistas relacionados com a sua actividade.

3.1 - A morte súbita
Em 1973 Portugal ficou surpreso com a morte de Pavão. Em 2004 a surpresa foi maior dado que a morte de Fehér em pleno relvado foi transmitida em directo pela TV. Entre um e outro caso pelo menos 21 desportistas perderam a vida durante a prática desportiva no nosso país. Futebol (15), basquetebol (3) e ciclismo (3) foram as modalidades onde se registaram esses casos de morte súbita.
Em 2005, José António, ex-defesa central do Belenenses e da selecção nacional, e Hugo Cunha, futebolista do União de Leiria, morreram ambos durante jogos amigáveis e por motivos cardíacos.
Em 2007, em Vila Chã de Ourique, Ricardo Reis, de 15 anos, morreu num treino com a equipa de juvenis do Estrela Ouriquense e Justino Jorge Ferreira, atleta da Associação Académica de Cambra, faleceu num jogo de futsal.
Em 2008 verificamos a morte durante os treinos dos treinadores António Matias (judo) e Mike Plowden (basquetebol). No jogo de andebol entre os juniores do Gaia e da Jobra, Luís Mortágua Silva, guarda-redes desta última, pediu ao árbitro para interromper o jogo por indisposição e caiu inanimado, vítima de morte súbita.
Em 2009, a polaca Kamila Skolimowska, campeã olímpica do lançamento do martelo, em estágio em Vila Real de St.º António, sofreu embolia pulmonar no decorrer de um treino e acabou por falecer. Kevin Widemond, base do Ovarense, caiu inanimado no balneário no intervalo do jogo com a Académica. Francisco Ribeiro, guarda-redes de andebol do Boavista, morreu logo após um treino, no Porto.
O jogador juvenil dos Leões da Citânia, de Paços de Ferreira, Pedro Miguel, com 15 anos, morreu no campo enquanto treinava, em 2010.
Alex Marques, jogador do Tourizense, faleceu de ataque cardíaco durante um jogo com o Carapinheirense em 2013.
O COI registou de 1966 a 2004 a ocorrência de 1101 mortes súbitas (Lima et al., 2010). Em 2012 médicos especialistas da FIFA deram-nos a conhecer que nos últimos cinco anos se tinham contabilizado, em todo o mundo, a morte de 84 jogadores de futebol enquanto treinavam ou disputavam jogos, devido a problemas cardíacos (com base em informações remetidas por 129 das 208 federações).
Em 2016 Eduardo Grilo, durante o 35º Grande Prémio da JOMA, em Queluz, sentiu-se indisposto entrando em paragem cardiorrespiratória e faleceu.
A organização «Médicos de Portugal» (Gomes et al., 2010) afirma que “em Portugal, estima-se que ocorram 250 mortes súbitas por ano em praticantes desportivos.
Pergunta-se: não serão casos a mais?

3.2 - A exploração infantil
O desporto é, conforme nos diz Brito (2001), “uma profissão que pode iniciar-se em idades muito baixas. Haverá, então, trabalho infantil (há obrigações, horários, remunerações) encapotado, disfarçado de recreação, prazer, entusiasmo, paixão, etc. … Mas na realidade, trabalho”.
Aos 12 anos Karen Muir, em 1965, tornou-se na mais nova recordista mundial na natação; aos 13 anos, Maureen Wilton, em 1967, venceu a maratona de Toronto; Nádia Comaneci foi campeã da Europa aos 13 anos e campeã olímpica aos 14, em Montreal, 1976; em 1983, com 16 anos, Naim Suleimanov batia recordes do mundo de halterofilia; Martina Hingis – a mais jovem a atingir o primeiro lugar do ranking mundial de ténis aos 16 anos, em 1997 – profissionalizou-se aos 14 e Kuti Kis aos 12 anos também já era profissional.
Ian Thorpe, aos 14 anos, foi o atleta masculino mais novo a representar a Austrália em 1996 e o mais novo campeão individual de natação nos mundiais de 1998. Maria Sharapova fez a sua estreia no circuito profissional em 2001, com apenas 14 anos, em Indian Wells. Em 2008 Thomas Daley é medalha de ouro na prova de salto de plataforma de 10 metros nos Europeus de natação... aos 13 anos!
O futebol é fértil em casos destes. No Chile, em 2006, Nicolás Millán, de 14 anos, alinha como avançado na equipa principal do Colo-Colo. Em 2007, no Atlético de Bilbao, na equipa principal, alinha o médio Iker Muniain, de 14 anos, e ainda nesse mesmo ano o Bayern recruta um peruano com apenas 13 anos de idade, Pier Larauri. Em 2009 o Liverpool contrata Fernández Sáez, um médio espanhol do Cádiz, com a idade de 16 anos. Em 2009 Maurício Baldivieso jogou os últimos 10 minutos do encontro entre o La Paz e o Aurora da I Liga da Bolívia, apenas com 12 anos… Em 2007 o Sporting contrata o nigeriano Rabiu Ibrahim de 15 anos assim como Bruno Silva e Miguel António, ambos com 8 anos.
E com apenas 10 de idade, Alzain Tareq, do Bahrein, é a mais nova de sempre num Campeonato do Mundo de Natação de 2015… enquanto nos J. O. do Rio 2016 a nadadora mais nova é Gaurika Singh, do Nepal, com 13 anos…
Sendo a infância e a juventude um período em que o ser humano se dedica naturalmente ao jogo com uma grande componente lúdica, e só posteriormente ao treino e competição, “perdendo o seu carácter lúdico, a infância entra em moratória, transformando-se apenas em uma etapa de trabalho” (Bento, 2009b) em que a criança não passa de um objecto mercantil e, sem direito a opção própria, é explorada. Isto porque “na especialização precoce há mais ideologia manipuladora do que ciência emancipadora” (Sérgio, 2012).

3.3 - A violência
Não há modalidade desportiva onde não ocorram comportamentos de violência, quer sejam reactivos quer sejam instrumentais, na prática desportiva, embora em algumas sejam pontuais. Comportamentos que nem sempre envolvem só dois indivíduos e que vão desde os juvenis aos seniores, desde os escalões de formação até aos profissionais.
Até na fórmula um acontecem: recordemos os duelos entre Nelson Piquet e Eliseo Salazar no GP da Alemanha em 1982 ou entre Ayrton Senna e Eddie Irvine logo que terminado o GP do Japão em 1993. Ou na Nascar: em 2014 Matt Kenseth e Brad Keselowski saem dos seus carros e passam a vias de facto.
Em 2006, no futebol americano universitário, no jogo entre o Miami Hurricanes e o Florida International, trinta jogadores foram suspensos para além de um irradiado e, na NBA, dez jogadores foram expulsos no jogo entre os Knicks e os Nuggets disputado no Madison Square Garden.
Caricatas as cenas de violência entre colegas de equipa! No jogo entre o Newcastle e o Aston Villa, em Abril de 2005, agrediram-se mutuamente dois futebolistas: Lee Boyer e Kieron Dyer. Em Março de 2007 acontece o mesmo no jogo Internacional–Vélez Sarsfield, em Porto Alegre: o guarda-redes da equipa argentina, Sessa, também agrediu com um murro o seu colega de equipa Pellegrino. E em Abril de 2009 foi a vez de Lukas Podolski decidir agredir o seu colega Ballack durante o jogo entre a Alemanha e o País de Gales.
Mas que modelos podem ter as nossas crianças e jovens perante a cabeçada de Zidane a Materazzi na final do Mundial de 2006, o soco de Scolari a Dragunitovic (no Sérvia–Portugal em 2007), o apertão de pescoço de Cristiano Ronaldo a Marcelo no particular das selecções Brasil–Portugal em 2008, a agressão de Pepe a Casquero em 2009 ou a pisadela na mão de Messi em 2012 quando são visionados em directo e depois retransmitidos até à exaustão?
Segundo Gutiérrez Sanmartín (1995), há duas razões para a existência da violência no desporto: 1ª) uma parte importante da violência é inerente a todo o desporto de contacto; 2ª) certas práticas agressivas, embora ilegais aos olhos da lei que rege o desporto, chegam a ser toleradas como algo que faz parte do jogo.
No quadro da competição desportiva, para Laure e Falcoz (2004), a violência é facilmente olhada como um factor que contribui para se superar, a chegar mais alto e a transcender-se, e “longe de ser um benefício para o desenvolvimento do indivíduo, ou de restabelecer a sua integridade física ou moral, esta forma de «violência» ser-lhe-á ao contrário benéfica”. Segundo estes autores, a maior parte dos resultados dos estudos sobre violência no desporto “acentuam que o desporto não é nada um mundo virtuoso resistente ou canalisador da violência”. E concluem afirmando que a violência existe no desporto, principalmente a violência física, e “foi mesmo, em parte, graças a ela que o desporto apareceu”, sendo o desporto “também gerador de violência ao invés de si mesmo, através da instrumentalização do seu corpo pelos desportistas”.
Poderão os comportamentos de violência na prática desportiva deixar de existir? A resposta é negativa. Condenamo-los mas admitimo-los… Poderemos eliminar esses comportamentos? Mais uma resposta negativa. Contestamo-los mas aceitamo-los…
E se nenhuma sociedade pode assegurar que não exista nenhum distúrbio e confronto assim como a punição de todos os crimes, de facto “o modo seguro de erradicar a violência desportiva seria acabar com o próprio desporto.[2]

3.4 - A fraude
Desde o atirador que tinha um botão instalado no punho do seu florete para, ao ser accionado, fazer acender a luz do marcador (Boris Onischenko, J. O. de Montreal 1976) ao motor detectado na bicicleta da ciclista belga Femke van den Driessche (Mundial de ciclocrosse de 2016), muitos são os casos de fraude no desporto.
Nos Campeonatos do Mundo de atletismo, Roma 1987, um membro do júri, antes do último salto do italiano Evangelisti, mediu e registou em memória, no instrumento de medida, um salto não efectuado, de 8,38 metros, que corresponderia ao terceiro lugar. Quando Evangelisti saltou, esse juiz só teve de enviar para o quadro electrónico o resultado que estava em memória…
No Campeonato Europeu de hóquei em patins de 2006, no final do jogo entre a Itália e a Áustria, ganho pela selecção italiana por 4-0, em jogo da terceira jornada do grupo B, o italiano Alessandro Bertulucci admitiu um “arranjo” do resultado para que a equipa da Itália não tivesse de defrontar Portugal ou a Espanha nas meias-finais. Bertulucci declarou que tinham instruído a equipa para não marcarem mais de quatro golos: “Não sei porquê, mas foi isso que nos disseram. Deve ter sido por causa dos emparelhamentos. Limitámo-nos a marcar os golos desejados e, depois, optámos por treinar”. Após estar a vencer por quatro golos, a selecção italiana passou quase toda a segunda parte a tentar evitar marcar mais…
Em 2007 Schachener reconheceu – 25 anos depois – que existiu fraude no Mundial de futebol de 1982, pois o jogo Alemanha–Áustria, que permitiu a qualificação das duas equipas para a segunda fase, foi combinado. Bastou o 1-0 a favor da Alemanha para ambas as equipas se apurarem em detrimento da Argélia. E se Walter Schachener lhe chamou fraude, Hans-Peter Briegel preferiu chamar-lhe “pacto tácito de não-agressão”.
Em 2009, na fórmula um, Nelson Piquet Jr. denunciou que a sua equipa, a Renault, lhe tinha ordenado para provocar o seu próprio acidente no Grande Prémio de Singapura em 2008 a fim de poder ser beneficiado Fernando Alonso.
Cruyff (2016), formado no Ajax, clube onde despontou, na sua autobiografia declara, aquando treinador do Barcelona: “Reconheço que fiz o Barça pagar um pouco mais por Witschge para salvar o Ajax dos seus problemas.” Dos seus problemas financeiros…
Vivemos num tempo de fraudes, no qual o delito, se for divertido e entretiver um grande número de pessoas, é perdoado”, diz-nos Llosa (2012).
Inúmeras vezes a fraude invade o desporto. Nem sempre descoberta, quando detectada nem sempre a conhecemos... E se “a fraude é o anti-desportivismo no seu estado mais puro, pois pretende iludir os atletas, os juízes, o público, o resultado e a própria verdade desportiva” (Inocentes, 2006), a existência da mesma demonstra a que meios os interessados na vitória ou no lucro podem aceder…

3.5 - A corrupção
A corrupção, por ser um crime sem vítima e porque “garante normalmente evidentes vantagens, tanto para os corruptores como para os corrompidos, mas raramente para quem os denuncia” (Ferreira, 1998) é um dos crimes mais difíceis de provar.
A corrupção no desporto alastra e a manipulação de resultados é uma outra faceta do fenómeno. Hill (2011) e Kistner (2013) desmontam a indústria das apostas ilegais, da manipulação de resultados e da corrupção no futebol, onde até homicídios ocorrem…
Em Itália, em 1980, rebenta o caso totonero. 36 jogadores de futebol foram detidos pela justiça italiana sendo o mais conhecido Paolo Rossi, que combinara o resultado de um jogo com um apostador profissional. Em 2006, no calciocaos, provada a movimentação de influências no sentido de adulterar resultados.
Na Polónia, em 2008, Dariusz Wdowczyk foi condenado a dois anos e meio de prisão por corrupção tal como Andrej Wozniak, acusados de combinação de resultados, compra de árbitros e suborno a jogadores adversários. Em 2009, foram ambos irradiados do futebol.
Sobre a corrupção no COI, durante o reinado de Antonio Samaranch, muito foi tornado público…
Em 2011 o árbitro ucraniano Oleg Oriekhov foi irradiado do futebol por tentativa de fraude, relacionada com apostas.
Ainda nesse mesmo ano, o árbitro chinês de futebol Lu Jun, o primeiro do seu país a dirigir jogos em Campeonatos Mundiais e J. O., admitiu ter recebido cerca de 98 mil Euros para manipular resultados em 2003… e o tenista sueco Lucas Renard, de 19 anos, foi suspenso por seis meses por corrupção…
A situação repete-se em Itália em 2012 com o calciocomesse
Em França surgem suspeitas de resultados manipulados no andebol ainda em 2012…
A FIFA e a UEFA são um poço sem fundo. Joseph Blatter e Michel Platini são ambos punidos…
Em Julho de 2016, o Comité de Ética da FIFA recomendou a suspensão por quatro anos de Worawi Makudi, por violação das «regras do organismo, contrafação de documentos e falsificação»... Logo no mês seguinte foi a vez de pedir a suspensão por seis anos de Kirsten Nematandani, por «viciação de resultados na preparação do Mundial de 2010»... Em plenos J. O. do Rio, Patrick Hickey, membro do COI e presidente do Comité Olímpico da Irlanda foi preso, acusado de envolvimento num esquema de venda ilegal de bilhetes.
Entre nós, e sem irmos muito atrás, em 2007 dois árbitros de Viseu (José Cunha e Fernando Dias) e dois dirigentes do Sporting Clube de Lamego (Manuel Medeiros e Rodrigues Guedes) foram detidos em flagrante delito. Em 2009 foi detido Pedro Guedes, dirigente de um Clube de Vila Real, no momento em que pagava 250 euros ao árbitro. Em Maio de 2016, foram detidos oito jogadores (quatro do Oriental e quatro da Oliveirense), o presidente e um diretor do Leixões e ainda quatro empresários e um elemento de uma claque suspeitos de viciação de resultados, aliciamento de jogadores e apostas ilegais.
Mas não é só o futebol… Há pouco tempo a Federação Italiana de Ténis suspendeu Marco Cecchinato por 18 meses e multou-o em 40 mil euros por viciação de resultados. Aliás, o ténis é a modalidade onde há maiores suspeitas de viciação de resultados, com 34 casos no segundo trimestre de 2016. E até o torneio de Wimbledon se encontra a ser investigado…
E já não é só Moscovo 2018 ou o Katar 2022: a FIFA anunciou recentemente que iriam ser abertos procedimentos ao presidente do comité organizador do Mundial de 2006, Franz Beckenbauer, e a mais cinco antigos dirigentes alemães.
Nas palavras de Arnold Jabor (apud Bento 2009a), “aprendemos que a corrupção, a farsa e demais iniquidades não são um desvio da norma, um pecado ou crime; são a norma mesmo, entranhada nos códigos, nas línguas, nas almas (…).

3.6 - A dopagem
Um dos mais antigos casos de doping remonta a 1886 e refere-se ao ciclista inglês Arthur Linton, o qual morreu numa Bordéus–Paris por ter tomado trimetil.
Nos J. O. de Roma 1960, o ciclista dinamarquês Knud Jensen desmaiou durante a corrida de cem quilómetros e acabou por morrer. Constatou-se posteriormente que tinha ingerido ronicol.
Tom Simpson, em 1967, morreu de paragem cardíaca no Tour de France. O calor, o esforço e a absorção de uma grande dose de anfetaminas ditaram essa fatalidade.
São três casos de ciclismo… mas sabemos que, conforme refere Luís Horta (2007), “o doping surge em todas as modalidades. Até mesmo no golfe ou no xadrez.” E até no bilhar. O japonês Junsuke Inoue foi impedido de participar nos Jogos Asiáticos em 1998 por ter sido revelado num controlo antidoping que usava metiltestosterona. Em 1997 o francês Djamel Bouras cumpriu a suspensão aplicada pela Federação Internacional de Judo por uso de nandrolona durante o Campeonato Mundial desse ano. Nos J. O. de Sydney 2000, Andreea Raducan, ginasta romena de 17 anos, perdeu a medalha de ouro depois de acusar pseudoefedrina.
Mas o mais lamentável é haver crianças que revelam controlos positivos. Três exemplos: em 1995 a sul-africana Lisa Villiers, no atletismo, com 14 anos, revelou um teste positivo aos esteróides e a nadadora Jessica Foschi, dos Estados Unidos, igualmente com 14 anos, acusou um teste positivo à mesterolona. Em 1999, Nicolette Telo, vencedora dos 200 metros bruços nos Jogos do Sueste Asiático, com 13 anos, também foi controlada positivamente.
Foi a partir do caso Ben Johnson, em 1988, que o problema do doping passou a ter mais visibilidade.
Mas uma dúvida persiste: Florence Griffit-Joyner, nunca detectada positiva, faleceu em 1997. Ataque cardíaco? Ataque epiléptico? Asfixia? Quais as origens do seu falecimento?
Nomes sonantes no desporto como Dwain Chambers, Justin Gaitlin, Tim Montgomery, Chryste Gaines e Trevor Graham (treinador) do atletismo ou Roberto Heras, Ivan Basso, Floyd Landis e Tyler Hamilton do ciclismo, foram condenados por uso de doping.
Marion Jones, em 2007, depois de reconhecer ter-se dopado foi obrigada a restituir as cinco medalhas olímpicas ganhas nos J. O. de Sydney 2000. A seguir, cumpriu pena de seis meses de prisão efectiva, por perjúrio, durante 2008...
E o que dizer da “novela” Lance Armstrong em 2012? Nunca apanhado num controlo antidoping? Albergotti e O’Connell (2014) revelam que a Nike pagou 500 mil dólares à UCI para encobrir uma análise positiva em 1999…
Novo escândalo em 2016: o Relatório McLaren demonstrou a existência de um sistema de dopagem sistemático organizado pelas autoridades russas, de 2011 a 2015, em 30 modalidades desportivas, das quais 20 são disciplinas inscritas nos J. O. de Verão. A IAAF recusou o pedido de 67 atletas russos suspensos para participarem nos J. O. do Rio, tendo igualmente o TAD rejeitado o seu recurso.
Serena e Venus Williams, Rafael Nadal (ténis), Simone Biles, (ginástica), Chris Froome e Bradley Wiggins (ciclismo), Mireia Belmonte (natação), Mo Farah (atletismo) e Alistair Brownlee (triatlo) são nomes divulgados como tendo utilizado substâncias proibidas no desporto para uso terapêutico por prescrição médica. Mesmo que autorizado e justificado o seu uso medicamente, pergunta-se: esses produtos beneficiaram estes competidores em relação aos restantes ou não?
Se há três valores centrais em que se fundamenta a proibição da dopagem (Pérez Triviño, 2011) – protecção da saúde dos desportistas (evitação do dano), no jogo limpo (equidade e evitação do engano) e na integridade e unidade do desporto (valores internos da prática desportiva) – teremos de concluir que são valores que estão progressivamente a ser ignorados. A ânsia da vitória, a perseguição do recorde, a procura da fama, o culto da performance e as pressões contratuais e publicitárias levam a que muitos desportistas aceitem correr o risco. Pires (2014) fala-nos em mais uma mudança de paradigma e afirma que “o efeito mais visível desta mudança de paradigma traduz-se no facto da vitória ter deixado de ter valor exclusivamente desportivo para passar, também e sobretudo, a ter valor económico, social e político.

3.7 - A morbilidade
O ciclista Roger Riviére, no Tour de France de 1960, sofreu uma queda na etapa Millau–Avignon, provocando-lhe a fractura de duas vértebras, tornando-o inválido para sempre.
A ginasta soviética Eléna Mukhina, caiu durante um treino em 1979, quebrou o pescoço e ficou tetraplégica. Numa cadeira de rodas durante 26 anos, faleceu em 2006 aparentemente de complicações provocadas pela sua tetraplegia.
Sang Lan, ginasta chinesa, nos Jogos da Boa Vontade de 1998, caiu no aquecimento para a prova de salto de cavalo, bateu com a cabeça no solo fracturando duas vértebras cervicais e ficando paraplégica.
Em 1998 dois grandes abandonos: Mike Powell anunciou a retirada das pistas devido a uma lesão nos adutores e Jean-Luc Cretien termina a sua carreira após uma aparatosa queda durante a Taça do Mundo de esqui alpino em Itália.
A lançadora de dardo Karen Forkel acaba com a competição em 2000 devido a uma lesão num ombro.
No basebol, Mark McGuire, batedor dos St. Louis Cardinal, decidiu terminar a sua carreira em 2001 devido a lesões consecutivas.   
O chileno Charles Manosalva, de 16 anos, praticante de salto à vara, ficou inválido ao fracturar a coluna quando participava num torneio escolar, em 2002.
Em 2005, Tiago Sousa, atleta de tumbling do Lisboa Ginásio Clube, contrai uma lesão na coluna durante um treino ficando paraplégico.
O checo Jan Zelezny, recordista mundial do dardo, termina a carreira em 2006 por já não poder suportar as dores no tendão de aquiles.
Sebastian Deisler, futebolista do Bayern de Munique, põe um ponto final na sua carreira em 2007 por não conseguir suportar as sucessivas lesões. Palavras suas: “… os últimos anos foram um suplício. Já não jogava futebol com alegria”. Também em 2007 Kevin Everett, jogador de futebol americano dos Buffalo Bills, ficou tetraplégico, vítima de uma grave lesão na medula durante um jogo.
Yao Ming, jogador dos Rockets, retira-se do basquetebol em 2011, pois as lesões ameaçaram tornar-se crónicas e limitativas.
Em 2012 Christian Olsson, campeão olímpico do triplo salto em 2004, decidiu terminar a carreira após uma nova lesão no seu pé direito, ao qual já tinha sido operado seis vezes. Carolina Kluft, campeã olímpica em 2004 no heptatlo e três vezes campeã mundial, aos 29 anos, decidiu deixar de competir na sequência de uma lesão declarando: “o meu corpo está cansado e sinto-me triste por abandonar, mas feliz e orgulhosa por ter feito parte disto”. E Setembro fica marcado pela saída de cena da mais prestigiada basquetebolista portuguesa: Ticha Penicheiro. Um dia após completar os 38 anos revela: “Ganhei tendinites crónicas nos tendões de Aquiles e é-me difícil correr. Quando acordo, para sair da cama estou a sofrer. Nunca na carreira tinha levado uma injeção ou infiltração e nos últimos 12 meses levei dez (!) para jogar”.
"Depois de quatro cirurgias nos joelhos e centenas de injeções semanais para aliviar a dor, meu corpo implora-me para parar!" – palavras da chinesa Na Li. Aos 32 anos, a vencedora do Roland Garros em 2011 e do Australian Open de 2014 abandona os courts nesse mesmo ano.
Aos 35 anos, após quase dois anos de afastamento das provas, Naide Gomes não resiste a lesões crónicas que a impedem de competir. A campeã mundial (2010) e europeia (2005 e 2007) em pista coberta de salto em comprimento, depois de ter sido campeã mundial indoor no pentatlo (2004), anuncia o seu afastamento das pistas em Março de 2015. 
O desporto de alto nível identifica-se com o desempenho, a proeza, assim como com o excesso do limite, a ultrapassagem de si próprio. Que futuro para um humano submetido ao imperativo ideológico e técnico da superação dos seus limites naturais? Questão colocada por Queval (2004).

3.8 - O suicídio
Como diz Marques (2009), “o desportista é cada vez menos sujeito e cada vez mais o objecto numa prática que tem vindo a transgredir os limites da espécie humana”, o que Sérgio (2014) confirma: “no desporto que se deixou tomar pelo capitalismo, hoje imperante no mundo, o praticante é um objecto-coisa-mercadoria e não um sujeito livre e responsável.
Inúmeros casos de suicídio existem no desporto… uns devem-se à pesada máquina que se abate sobre os desportistas e os pressiona, outros às frustrações ou ainda à não adaptação a uma nova e diferente vida após terminarem as suas carreiras.
Abdón Porte em 1918 suicidou-se com um tiro durante a noite em pleno estádio do Nacional do Uruguai, pois após mais de duzentos jogos decaiu o seu rendimento e foi retirado da equipa.
Francisco Stromp, capitão carismático da equipa de futebol do Sporting, em 1930 atravessou-se na frente de um comboio em Sete Rios.
Percy Williams, campeão olímpico em Amesterdão, competiu em Los Angeles 1932 com uma lesão na coxa e foi eliminado. Terminou aí a sua carreira, afirmando: “para mim o atletismo acabou!”. E acabou por se suicidar mais tarde, massacrado pela artrite crónica originada nas pistas…
Nos J. O. de Tóquio 1964, o holandês Anton Geesing derrotou o tri-campeão nacional japonês Akio Kaminaga. Dois anos após a derrota, Kaminaga suicidou-se como forma encontrada para pedir perdão pela derrota. Mas nestes mesmos J. O. o Japão sofreu outro desaire, desta vez na maratona: Kokichi Tsuburaya, favorito na prova, teve de se contentar com a medalha de bronze. Nove meses antes dos J. O. do México, após amiúdes lesões, Tsuburaya decidiu cortar as carótidas com uma lâmina de barbear e deixou escrita uma só frase lacónica: "não posso correr mais".
Luís Ocaña, vencedor do Tour em 1973, da Vuelta em 1970 e do Grande Prémio da Nações em 1971, depois de retirado continuou ligado ao ciclismo. Em 1994 pôs termo à vida com uma bala na cabeça.
Em 2004 Marco Pantani morreu subitamente num hotel de Rimini, tudo levando a crer que se tratou de suicídio. A autópsia revelou que o falecimento se deveu a uma paragem cardíaca provocada por overdose de cocaína.
O futebolista polaco Adam Ledwon cometeu suicídio na sua própria casa, em Klagenfurt, enforcando-se em Junho de 2008. Quatro meses depois, o jogador grego Yiannis Koskiniatis, ao não ser convocado para o jogo Diagoras Rhodes–Olympiakos, atirou-se de um precipício de 12 metros e deixou um bilhete  onde dizia: "Ficar fora da equipa foi uma grande injustiça. Não aguento mais".
Em 2009 o ciclista belga Dimitri de Fauw põe termo à vida. Três anos antes esteve envolvido no acidente em que perdeu a vida o espanhol Isaac Galvez quando os dois corredores embateram a alta velocidade em plena pista do Velódrome de Gante. E verifica-se também o suicídio de Christophe Dupouey, Campeão do Mundo de BTT em 1998, tal como o de Mike Whitmarsh, vice-campeão olímpico de voleibol em Atlanta 1996. Mas menos de quinze dias após a tragédia de Robert Enke suicídio aos 32 anos , o jogador brasileiro Marcelo Moço, do ASK Bruck/Leitha, foi encontrado enforcado no sótão da casa onde vivia, em Pandorf, Viena tal como Enke, sofria de depressão.
O americano Antonio Pettigrew admitiu ter usado doping para melhorar o desempenho entre 1997 e 2001 e foi despojado das suas medalhas de ouro ganhas nos Campeonatos Mundiais de 1999 e 2001 e nos J. O. de 2000. Em 2010 foi encontrado morto no seu carro vítima de uma overdose de comprimidos.
No nosso país, a 28 de Setembro de 2010, um cavaleiro francês de 23 anos enforcou-se numa cavalariça na Herdade da Comporta. O jovem encontrava-se entre nós como participante numa prova de saltos equestre. Nesse mesmo dia é dado a conhecer o suicídio de Terry Newton, jogador de râguebi que estava suspenso. Newton foi encontrado enforcado na garagem de sua casa, em Inglaterra.
O guarda-redes do Cerro Porteños, Martín Cabrera, cometeu suicídio na sua residência em Fevereiro de 2011, aos 21 anos, disparando uma arma contra a sua cabeça. No mês de Março o jogador Roger de Souza foi encontrado morto num quarto de motel em Guarulhos, enforcado num lençol. No mesmo mês em que Cheung Sai-ho, 35 anos, antigo internacional pela selecção de Hong Kong, se atirou de uma janela do 36.º andar, tendo morte imediata. Em Abril, o futebolista brasileiro Pikenes foi encontrado caído na casa de banho de sua casa, inconsciente, com os pulsos cortados, e a judoka austríaca Cláudia Heill, medalha de prata nos J. O. de 2004, morreu após ter caído de um sexto andar em Viena, suspeitando-se de suicídio. Em Setembro, o esquiador e medalhista olímpico Jeret Peterson, medalha de prata nos J. O. de Inverno 2010, foi encontrado morto numa zona remota do estado norte-americano do Utah depois de ter telefonado para a linha de emergência antes de disparar sobre ele próprio. Em Novembro, Gary Speed, treinador da selecção do País de Gales, foi encontrado na garagem da casa onde morava, enforcado.
Ainda em 2011, Alberto León, antigo corredor de BTT, foi encontrado morto por enforcamento na sua casa, nos arredores de Madrid. Leon era um dos implicados na «Operação Galgo» e acusado de traficar produtos dopantes. Na Alemanha, o árbitro Babak Rafati tentou cometer suicídio. Horas antes do encontro Colónia–Mainz foi encontrado na banheira de um quarto de hotel com os pulsos a sangrarem. Um caso semelhante ocorreu na Bélgica com o árbitro auxiliar de uma partida da II Divisão: Chris Schelstraete foi encontrado pouco antes do início de um jogo, no balneário, igualmente com os pulsos cortados.
Em Maio de 2012 e no nosso país, ocorre o suicídio do ciclista Gonçalo Amorim, em Santarém. No mesmo mês a italiana Giulia Albini, jogadora de voleibol da equipa Ornavasso, atirou-se de uma ponte para o rio Bósforo, numa altura de cerca de 70 metros… e o seu compatriota, também voleibolista, Alessio Bisori, logo no mês seguinte, comete suicídio ao atirar-se para a linha de comboio em Bolonha. Numa carta endereçada à família deixou escrito: “Perdoem-me mas não consigo viver mais.
Trágico foi o suicídio do halterofilista russo Igor Tepikin dada a sua tenra idade: 15 anos. Em Moscovo, em 2012, o atleta, campeão russo do seu escalão etário, atirou-se da janela de um 16º andar no prédio onde morava depois de ter perdido uma prova…
Em 2013, o antigo internacional eslovaco Marek Spilar, que alinhou pelos belgas do FC Bruges, suicidou-se ao saltar de um quinto andar de um prédio em Presov.
Tsvetelina Stoyanova, ginasta búlgara quatro vezes medalhada em campeonatos do mundo, saltou do sexto piso de um edifício de Sofia, no que pareceu ser uma tentativa de suicídio, em Junho de 2016. Tinha sido preterida na selecção que iria competir nos Campeonatos Europeus… Tinha 21 anos!
No futebol americano registam-se pelo menos 31 casos de suicídio… no basquetebol 12… 19 no hóquei no gelo…
Serão estes suicídios «danos colaterais» do desporto, de que nos fala Bento (2009a)?

4 - Conclusão
Se é introduzida uma grande mutação no desporto quando aparece o espectador (Renaud, 2014), teremos de considerar que o aparecimento no mesmo da publicidade e dos sponsors introduz uma outra mutação. A mercantilização do desporto transforma a sua matriz inicial e torna-o numa actividade em que os fins parecem justificar os meios: “o aumento de competitividade, associado à determinação económica dos objectivos, contribuiu para tornar a acção desportiva incompatível com a ética e fair play nos níveis mais elevados de competição” (Nery & Neto, 2014).
Outra grande mutação verifica-se na passagem de um amadorismo para um profissionalismo. O próprio COI, sob a liderança de Samaranch, iniciou um processo de erradicação do amadorismo no desporto. Como refere Pires (2014), a este respeito, anos mais tarde, Samaranch explicou que o COI, numa estratégia que viria a mudar radicalmente a face do desporto moderno, proclamou: «yes to commercialisation».
Estas mutações não anularam os valores do desporto mas modificaram-nos… e fizeram aparecer contra-valores…
No desporto há valores formativos, culturais e económicos, mas este tem de ser encarado como um produto que não gera nem bens nem obras; cria postos de trabalho mas não cria riqueza – movimenta-a em determinados sentidos –; o seu principal actor submete-se aos imperativos vigentes no mesmo e aceita o risco, a imprevisibilidade e o acaso; em suma, o desporto é um produto também de si próprio, o que origina a existência do intolerável no seu seio.
E, conforme afirma Eco (2016), “quando surge um intolerável inaudito, o limiar da intolerabilidade já não é o fixado pelas velhas leis. É claro que se precisa de ter a certeza de que o consenso sobre o novo limiar de intolerabilidade será o mais vasto possível, que superará as fronteiras nacionais e será de qualquer modo garantido pela «comunidade» (…). Mas depois tem de se optar.
Para podermos optar temos a interrogação de Renaud (2014): “Como é que os valores éticos do desporto permanecem e permanecerão íntegros sobrevivendo no contexto de uma pura lógica empresarial?” Respondendo, saberemos se devemos continuar a tolerar o intolerável.


Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem, podem vocês dizer.
Mas chega um momento na história em que a ignorância deixa de ser uma ofensa perdoável…
(Dan Brown, 2013)[3]



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[1]Cinco Escritos Morais”, Lisboa, Relógio D’Água.
[2] Segundo Rui Pereira, professor de Direito e presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo de então, posteriormente Ministro da Administração Interna, em Janeiro de 2006, in “A validade das normas”, «Correio da Manhã», Lisboa, 08.Jan.06, p. 12.
[3]Inferno”, Lisboa, Bertrand.

II
Ritos, Reproduções e Crenças: uma análise socio-pedagógica
Armando Inocentes
(in J. Salgado e L. Pereira, 2009, “Karaté: entre a tradição e a modernidade”, Lisboa, FNK-P, pp. 117-158, autorizado pelo Presidente da FNK-P em 25.01.2011)



Quando há chefes incompetentes no campo de batalha,
o sangue dos guerreiros é desnecessariamente derramado.
Shusako Endo

I – Introdução

Num quadro conceptual dominado actualmente pela Metodologia do Treino, pela Pedagogia e pela Didáctica, verificamos que os vários saltos paradigmáticos na evolução do Karaté não foram acompanhados por uma transição epistémica.
A ética, a moral e a axiologia do ser humano enquanto relacionamento entre este, o outro e o grupo, os aspectos simbólicos do seu comportamento e as micro-relações de ordem ritual, normativa e cultural sob um ponto de vista sociológico, também deverão ser objecto de estudo no Karaté. O enquadramento deste conhecimento com o “quê”, o “como”, o “porquê”, o “quando”, o “onde”, o “a quem” e o “por quem” da Didáctica e da Pedagogia (Mialaret, 1992) permitir-nos-ão uma unificação ao nível da compreensão e da explicação, que em conjunto com uma re-unificação ainda maior a nível da sensação através da prática (pensamento – sensação – acção), na actividade do treinador, torna este último “vítima obrigatória” da dinâmica de uma modalidade.
O Karaté não tem existência para além do indivíduo que o pratica e quando o pratica, pois este utiliza o seu corpo segundo a sua consciência, a sua vontade, com determinados objectivos. Quando se pretende abordar o que é o Karaté sem o sentir não se consegue explicá-lo porque só pensá-lo não basta. Quando se pretende explicar o que é o Karaté após senti-lo, também não se consegue explicá-lo porque só se consegue senti-lo agindo, só se é capaz de o sentir durante a acção. No Karaté o indivíduo exerce a sua motricidade intencional com um fim em vista – sentir o Karaté. A prática e a actividade do treinador têm uma razão de ser que se transporta para lá de si própria.
Uma actividade do homem, qualquer actividade, não tem uma razão de ser e uma justificação em si própria. Os seus objectivos e a sua actuação têm de ser função dos fins que visa, dos contextos em que se situa, dos meios e instrumentos de que dispõe, etc.. Caso contrário não seria mais do que, por exemplo, um desporto pelo desporto, uma dança pela dança, um teatro pelo teatro, o que seria bem pouco, quer olhemos o homem que vive esta situação, quer a sociedade na qual se insere” (Almada, 2008).
O mesmo se passa com o Karaté, pois não é praticado, não é treinado, só por o ser. Uma actividade onde existe agonística, onde o movimento está presente, na qual a situação motora competitiva designa vencedores e vencidos (mesmo numa prática com mais auto-emulação), que implica jogo – actividade codificada, com regras e regulamentos –, que possui um sistema institucionalizado e que se encontra unida em torno da ideia de projecto tem de ser classificada como desporto e, como tal, um fenómeno social total nos dizeres de Mauss (1989).
Uma análise paradigmática permite-nos afirmar que houve uma transição de arte marcial a desporto de combate, embora, actualmente, ainda existam os que continuam arreigados ao conceito de arte marcial, pura e simplesmente porque praticam Karaté embora não tenham abraçado a competição.
Tradicionalmente o ensino era ministrado pelo denominado “mestre”, conceito designado pelo termo japonês “sensei”, onde «sen» significa «antigo, que se antecipou» enquanto «sei» está imbuído do conceito de «existência, pureza». Logo, o sensei é aquele que existe antes de nós em determinado campo e que detém uma existência pura, exemplar.
O termo «treinador» não fazia, até há pouco tempo, parte do vocabulário do Karaté, sendo por vezes até adoptado o termo «professor», ou mais correntemente «instrutor».
Durante anos, o termo que se instituiu para denominar aquele que fazia a transmissão de conhecimentos, aquele que ensinava e que era o detentor da técnica foi «mestre», dirigindo-se a ele os seus alunos utilizando a terminologia japonesa: sensei.
Com o advento da competição – a primeira teve lugar em 1957, os primeiros campeonatos europeus em 1966 e os primeiros mundiais em 1970 – o “mestre” começou em certos casos a ser encarado como um treinador, embora atletas e alunos ainda hoje se dirijam aos seus instrutores utilizando o termo “sensei”. Dentro de cada dojo («do» – a via, «jo» – o local), lugar onde se ensina e onde se estuda a via, a prática é liderada por um instrutor, estando este, conjuntamente com os outros instrutores de outros dojo sob a orientação de um instrutor-chefe, entidade máxima da sua associação, o qual, por sua vez depende do presidente da federação internacional em que essa associação está filiada.
Existe assim uma cadeia hierárquica nos órgãos de transmissão dos conhecimentos e das técnicas referentes ao Karaté, a qual é definida não tanto pelos cargos ocupados ou funções que cada elemento exerce, mas mais pela graduação que cada um deles detém.
Sendo a forma comportamental transmissível, conforme o concluído por Inocentes (2007a) – comportamento treino-instrução, comportamento de suporte social, comportamento de reforço, comportamento democrático, comportamento autocrático e o poder formal do líder –, embora numa pequena amostra, um dos problemas com que nos deparamos implica saber se a forma de ensino dos conhecimentos e das técnicas também é transmissível, e qual o papel da formação na modificação do comportamento dos treinadores.
Se mais motivos não houvesse, bastar-nos-ia citar Tubino (1992), para quem a proliferação de modalidades desportivas derivadas das artes marciais, principalmente no mundo ocidental, é uma das projecções do desporto no início do século XXI, até porque actualmente, o Judo, o Karaté, o Taekwon-do e o Kendo têm mais praticantes que os tradicionais desportos olímpicos.
Mas teremos também de considerar que o Karaté, como modalidade desportiva, continua a ter uma forte ligação afectiva com o Japão. Os praticantes (atletas, competidores e treinadores) ainda se encontram muito dependentes dos mestres japoneses, as associações procuram sempre uma filiação numa associação japonesa, os modelos orientais continuam a influenciar os nossos… e sabemos como a cultura, a organização e a mentalidade deste povo são bastante diferentes das suas congéneres ocidentais…
Cleary (1991) refere que “atributos conhecidos como reserva e mistério do comportamento formal japonês, assim como a humildade e a altivez, estão profundamente arraigados nas estratégias milenares da tradicional arte da guerra. Portanto, para conhecer o Japão e os japoneses em profundidade é fundamental compreender a cultura da estratégia criada pela arte japonesa da guerra”.
A evolução técnica do praticante de Karaté, a sua avaliação e a sua participação competitiva, não se assemelham a nenhuma outra modalidade desportiva. A competição não obriga o atleta a participar simultaneamente nas suas duas provas competitivas – kata (forma) e kumite (combate) –, o que também difere de outras modalidades desportivas. E não há árbitro ou treinador que não tenha sido praticante... porque não o pode ser sem ter sido.
Teremos ainda de salientar alguns elementos específicos desta modalidade e que não se encontram presentes noutras modalidades desportivas (exceptuando talvez o Judo): a ritualização, a disciplina formal e os exames de graduação.
Não estando presentes numa imensidão de outras modalidades, verifica-se uma ausência de reflexão sobre essas componentes, sendo entendidas como únicas e exclusivas, e não se reflectindo sobre elas, não as conhecendo, não se abrem para a diversidade epistemológica existente. Isso mesmo nos diz Boaventura Sousa Santos (2007) ao mesmo tempo que também afirma que a teoria e a prática social se apresentam como discrepantes. A sua «sociologia das ausências» tenta “mostrar que o que não existe é produzido activamente como não existente”, que há coisas que apesar de existirem não as vemos por fugirem à lógica convencional do sistema ou à percepção, à reflexão e à lógica do observador.
Os ritos, as reproduções, as crenças e, consequentemente, a ética e a moral existentes no Karaté também têm sido «ausências»...

II – A ritualização e o dojo

Pela primeira vez aquela criança foi assistir a um campeonato de Karaté.
A certa altura pergunta ao pai:
– Porque é que aqueles senhores de gravata e casaco azul
estão sempre a baixar a cabeça uns para os outros?
– É a saudação meu filho, é um cumprimento.
– Mas eles cumprimentam-se mesmo?

O praticante, ao entrar no dojo, faz uma primeira saudação ao espaço onde vai estudar a via. Saúda os mestres ancestrais, representados em fotografias, que codificaram os estilos que pratica, saúda o seu mestre e os companheiros. Ritual este que se repete no final do treino.
Há aqui uma primeira ritualização em relação ao espaço, uma ritualização histórico-cultural e uma ritualização pessoal.
Esta ritualização é apresentada sob a forma de etiqueta – reikishi – denominada ritsurei quando a saudação é efectuada de pé e zarei se efectuada de joelhos. “A etiqueta constitui um treino necessário à sujeição do seu ego. O choque é ainda maior quando se realiza numa sociedade, como a nossa, onde cumprimentar não assume uma grande importância. Num Dojo, ela é importante, pois permite de imediato determinar o inesperado, o inconveniente” (Braunstein, 1999), ou seja, representando a sujeição de quem efectua a saudação, colocando-se num plano inferior em relação ao saudado.
A função real de um rito consiste, não nos efeitos particulares e definidos que ele parece visar, e através dos quais é geralmente caracterizado, mas numa acção geral que, apesar de continuar sempre e em todo o lado semelhante a si própria, é, no entanto, susceptível de apresentar formas diferentes de acordo com as circunstâncias” (Durkheim, 1912). No Karaté a saudação perpetua-se desde os seus primórdios como uma maneira de mostrar respeito pelo outro. Mas é diferente o significado de uma saudação em ritsurei no início ou no fim de uma kata e do mesmo gesto entre dois adversários em shiai kumite. Tal como assume contornos diferentes a saudação em zarei na circunstância shinzen ni rei ou na circunstância sensei ni rei – a primeira pretendendo uma ligação sagrada, universal e temporal, cultural e histórica, e a segunda uma ligação pessoal, presencial e de subordinação.
Durkheim, (id.) ainda nos diz que “o essencial é que haja indivíduos reunidos, que sentimentos comuns sejam sentidos e se exprimam e actos comuns. Tudo nos leva à mesma ideia: os ritos são, essencialmente, os meios pelos quais o grupo social se reafirma periodicamente”.
Verificamos assim que o rito possui várias funções, sendo as principais as de ligar o presente ao passado e o indivíduo ao grupo, à comunidade.
Ao saudar-se o “local onde se estuda a via”, há uma ritualização em relação ao espaço físico.
O espaço livre, natural, a partir do momento em que é delimitado e serve para determinadas funções torna-se sagrado – tal aconteceu com o dojo, quando se passou da prática do Karaté no jardim das traseiras da casa do mestre (semi-público) para um recinto fechado e protegido, com a prática acessível só aos que se encontrassem no seu interior e longe de olhares indiscretos.
No dojo tradicional, com a entrada virada a sul e a parte principal a norte, o ritual mantém-se sob a forma de cerimónia, estando esta fisicamente de acordo com o espaço. Frontalmente, na parte central, o shinzen, o lugar dos deuses, onde normalmente existe um altar com um sabre (katana), com um arranjo floral ikebana ou com uma estátua representando o deus das artes marciais – Busaganashi. À direita do mesmo, o kamiza, o lugar onde residem os espíritos do fogo e da água («ka» – fogo, «mi» – a água, «za» – sentado). À esquerda, o shimoza, o lugar onde se situam os espíritos dos mestres ancestrais, os codificadores da escola ou do estilo.
Esta divisão tripartida diluiu-se progressivamente para actualmente ser mais comum a existência do shinzen ladeado pelas fotografias dos mestres representativos do estilo praticado no dojo. Em alguns altares é comum um vaso com arroz e outro com sal, simbolizando a prosperidade e o afastamento dos maus espíritos. No Ocidente é rara esta disposição, para além do dojo não ser um lugar de culto, principalmente se o tatami se encontra num ginásio ou num pavilhão gimnodesportivo.
O próprio alinhamento dos praticantes, réstia da disciplina militar, com o mestre à frente da classe, outros mestres logo atrás à sua direita, enquanto os instrutores se colocam à esquerda, alinhando depois os praticantes da direita para a esquerda, do mais graduado para o menos graduado, e dentro da mesma graduação do mais antigo para o mais novo, personifica outro ritual que nos transporta para a disciplina existente – “a disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço” (Foucault, 1996).
Mas mesmo numa modalidade controlada por quem detém o poder técnico e administrativo, e na qual a disciplina serve para exercer esse controlo, “quando os soldados são fortes mas os oficiais fracos, o exército é insubordinado. Quando os oficiais são valentes mas as tropas ineficazes, o exército está em apuros” (Sun Tzu, 1994).
A competição é também uma ritualização, pois simulam-se combates (kumite) esvaziados de toda a violência (o controle da técnica – sundome – é obrigatório) e apresentam-se formas técnicas que representam a defesa de quatro adversários imaginários (kata), ambos iniciando-se e terminando sempre com o cerimonial da saudação, e sujeitos a regras específicas e regulamentos formais e institucionais.
No entanto Baudrillard (1990) alerta-nos para o facto de ser o querer “substituir o arbitrário da regra pela necessidade da Lei que os signos da delicadeza se tornam uma convenção arbitrária [...]. Ora a delicadeza, que acontece numa ordem cerimonial que não é a nossa, não tem sequer como função, tal como a não têm os rituais, temperar a violência original das relações, conjurar a ameaça e a agressividade (estender a mão para mostrar que não se tem arma escondida, etc.). Como se houvesse alguma finalidade na civilidade dos costumes: está aí realmente a nossa hipocrisia, aplicar, por todo o lado e sempre, uma função moralizadora das trocas [...]”.
E se no desporto é utilizada uma terminologia comum a Sun Tzu (1994) e a Clausewitz (1997), também Foucault (1996) a utiliza para nos dizer algo que é inerente ao Karaté: “a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das actividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza «tácticas». A táctica, arte de construir, com os corpos localizados, actividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar”.
Para Cleary (1991) o disciplinarismo, basicamente uma forma civil de militarismo, aparece às vezes disfarçado de zen ou de artes marciais.
O sistema de graduações, atribuído a partir de 1900 (Braunstein, 1999) e baseado num exame é equacionado por Inocentes (1995/96) pois assume um grande relevo em detrimento de uma formação global dos praticantes, o que implica uma avaliação incorrecta proveniente da inexistência de programas concretos, de planificações baseadas em objectivos específicos e de métodos científicos e actividades estrategicamente bem organizadas.
Porquê as graduações, porquê este sistema altamente hierarquizado? Atentemos na opinião de Pinguet (1987): “É com a igualdade que se inquietam os japoneses: ela pode bem depressa levá-los a conflitos de prestígio, dos quais as fórmulas de cortesia são apenas o exorcismo em negativo. É preciso que diferenças de graduação ou de antiguidade venham recobri-la com sua escrita. Eles não podem viver a solidariedade sem se sentirem protegidos por todo um aparelho simbólico de signos, de insígnias – cada indivíduo estando inscrito numa repartição referenciada de tarefas e honras, num equilíbrio global das obrigações e privilégios”.
As graduações, obtidas através desse exame, são apresentadas como sendo uma promoção e uma recompensa. Mas “a recompensa é, tanto como o castigo, uma sanção” (Lebovici, 1976) e como afirma Foucault (1996): “O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimónia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objectos e a objectivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível”.
A examinação de praticantes tendo um critério temporal (fixação ritual), representa o estado actual do Karaté assim como o ponto a que chegou a actuação de certos mestres (Inocentes, 1995/96), bem expresso nas palavras de Sun Tzu (1994): “prémios demasiado frequentes indicam estar o general no termo das suas capacidades; castigos demasiado frequentes indicam estar profundamente aflito”.
Mas o candidato à graduação é examinado por aquilo que sabe, por aquilo que deve saber ou por aquilo que é?
Para além da preocupação japonesa em se estabelecerem graus a nível técnico, verifica-se também uma preocupação semelhante no estabelecimento de graus a nível de quem ministra o treino. Para além da hierarquização segundo os kyu ou os dan ainda constatamos a existência de títulos conferidos àqueles que se dedicam ao ensino, perpetuando essa hierarquização: Renshi (7º dan que revela capacidade e perícia para conduzir o treino), Kioshi (8º dan com mestria técnica e espírito superior) e Hanshi (9º dan, professor modelo, perito “espiritualmente”).
E mais uma vez recorremos a Foucault (1996): “A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar. Funcionamento penal da ordenação e carácter ordinal da sanção. A disciplina recompensa unicamente pelo jogo de promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição”.
Mas poderemos justificar sempre a ritualização, a disciplina formal e os exames de graduação com uma oposição fundamentada entre o Ocidente e o Oriente: a cultura ocidental dá valor aos conhecimentos mas não à sabedoria, à religião mas não à reverência, ao desafio mas não ao sacrifício, ao romance mas não ao amor desinteressado (Pinguet, 1987). Ou ainda poderemos argumentar como Watts (1995), para quem “os sábios do Oriente têm escolhido cuidadosamente seus discípulos, ocultando seus conhecimentos mais profundos com mitos e símbolos que só são compreendidos pelos que eles julgam capacitados a conhecê-los”.
Ou então poderemos sempre apresentar, como faz Forster (1986), as diferenças entre desporto e artes marciais: “os desportos ocidentais estão focados para habilidades, capacidades, e força física os quais conduzem à separação artificial entre corpo e alma. Nas artes marciais, as habilidades técnicas e as capacidades são secundárias; mais exactamente eles são os meios de dar a estabilidade ‘ao caminho’. O exercício está mais enriquecido e satisfaz mais em artes marciais porque é baseado num conceito holístico, isto é, numa unidade de elementos físicos e mentais” (Forster, id.).
Mas, tal como Eduardo Lourenço (1999), não podemos olvidar uma das alegorias que herdámos de Franz Kafka: “Os leopardos invadiram o templo e beberam o vinho dos vasos sagrados. Esse incidente repetiu-se com frequência. Por fim, chegou a calcular-se de antemão a hora exacta do aparecimento das feras. E a invasão dos leopardos foi incorporada no ritual”.

III – A especificidade do Karaté

O passado guerreiro do Japão ainda hoje se reflecte nas artes marciais em geral e no Karaté em particular.
A origem dos profissionais da guerra no Japão remonta ao ano de 792. Por volta do século XII, as famílias guerreiras – os samurais – começaram a desenvolver-se mais organizadamente, opondo-se às famílias nobres, sendo transmitidas de pais para filhos as técnicas e as tradições.
Na época Kamakura (1192-1333) os guerreiros japoneses “viviam num só ímpeto, até às últimas consequências, emoções que eram imediatamente éticas. Eles não distinguiam as paixões e as virtudes” (Pinguet, 1987). O zen impregnava o seu espírito. “Longe de ser irracional, o ensinamento zen aponta a irracionalidade de uma vida dominada por instintos e emoções” (Cleary, 1991). Em 1615 aparece o primeiro código escrito dos samurais – o Bushido – mas, no entanto, só em 1716 é que o verdadeiro sentido do Bushido se transforma num código de honra, com a redacção do livro Hagakure, sob a direcção do samurai Yamamoto (Braunstein, 1999).
No Bushido é posta a tónica no sentimento do dever – giri (Nitobe, 2000; Pinguet, 1987) – e da sinceridade, pureza, autenticidade, lealdade – makoto (Pinguet, id.).
Descobri que a via do Samurai reside na morte. Perante uma crise, quando existem tantas hipóteses de vida como de morte, é necessário escolher imediatamente a morte. Não existe nada de difícil: só é necessário simplesmente armar-se de coragem e agir” (Yamamoto, 2000). Shigesuke (2006) inicia o prefácio do seu livro “Código de Honra do Samurai” com as seguintes palavras: “A primeira preocupação de quem pretende tornar-se guerreiro é ter a morte sempre presente no seu espírito, dia e noite, desde a manhã do primeiro dia até à noite do Ano Novo”.
Verificamos assim que o guerreiro – aquele que dá a morte e a recebe – não se preocupa com ela. A morte é o objecto, a curto ou longo prazo, de todos os seus actos, mas jamais de sua reflexão (Pinguet, 1987).
Sete eram os princípios do Bushido – a justiça, a coragem, a benevolência, a cortesia, a verdade, a honra e a lealdade.
Musashi (2002) no seu tratado sobre estratégia e artes marciais, denominado “O Livro dos Cinco Anéis” elabora as obrigações necessárias à formação da personalidade do guerreiro, a fim de que a mente evolua como um todo:
- Pensar com rectidão e verdade
- Seguir o caminho através da prática
- Familiarizar-se com todas as artes
- Conhecer os caminhos das várias profissões
- Distinguir vantagens e inconvenientes nos assuntos mundanos
- Desenvolver a compreensão intuitiva de todas as coisas
- Perceber aquilo que não é óbvio
- Prestar atenção aos pormenores
- Não fazer coisa alguma que seja inútil
A dedicação, a disciplina e o recorde de vitórias em duelo com o sabre (katana) de Musashi são considerados admiráveis, sendo a vitória, para si, o verdadeiro caminho do guerreiro, representando “a estratégia bélica do militarista, utilizando técnicas zen sem a ética budista” (Cleary, 1991).
O Bushido acabou por impregnar lentamente todas as classes japonesas, incluindo camponeses e pescadores, que para se defenderem de assaltos praticados pelos ronin – samurais errantes, que não se encontravam enquadrados em nenhum grupo guerreiro –, começaram a praticar técnicas de combate sem armas.
No início, o Karaté encontrava-se imbuído de grandes princípios filosóficos, refém do meio em que se desenvolveu. “O fim último do Karate-Do não reside na vitória ou na derrota, mas no aperfeiçoamento do carácter dos seus praticantes” é uma das citações mais conhecidas, atribuídas a Funakoshi, e mostra a colocação da tónica do Karaté na auto-superação e na realização interior do seu praticante. Mas recorrendo a Roland Barthes (2007), não estará aqui presente “o velho mito do «carácter», isto é, do «condicionamento»”?
Proveniente do Japão, considera-se Okinawa, uma ilha situada a sul, no arquipélago Ryukyu, o berço do actual Karaté. A influência das artes marciais chinesas, que se fundiram com as artes de combate locais (Tode), aquando da conquista desta ilha pelos chineses durante a dinastia Ming, a posterior invasão da mesma pelos japoneses do clã Satsuma (século XVII) com a proibição do porte de sabre aos locais, origina um maior aprofundamento do estudo das técnicas de luta sem armas – o Okinawa-te (a mão de Okinawa) praticado secreta e intensamente. O Okinawa-te desenvolveu-se principalmente em duas cidades: Naha e Shuri. Devido à sua maior proximidade do continente, Naha seria a cidade mais influenciada pelas técnicas de combate chinesas, onde se trabalhavam principalmente técnicas de mãos e braços, com respiração ventral profunda, técnicas essas que viriam a ser denominadas Naha-te e dariam origem aos estilos goju-ryu e shito-ryu. Em Shuri, mais afastada da China, as técnicas de pernas tiveram maior preponderância, denominando-se Shuri-te, originando mais tarde os estilos shotokan e shorin-ryu.
Os primórdios do Karate-Do revelam assim um treino muito individualizado – de mestre a discípulo – estabelecendo uma cadeia hierárquica vertical, em que muitas vezes as técnicas mais importantes ou eficazes eram só transmitidas aos eleitos, sendo pertença de uma élite muito reduzida. Nos finais do século XIX o ensino começa a fazer-se com um carácter mais aberto pelos Mestres Higaonna, Itosu e Azato. Com a morte destes, os seus alunos mais avançados deram origem a vários estilos, sendo a designação inicial de «Karate-jutsu» («kara» – vazias, nuas, «te» – mãos, «jutsu» – arte) substituída pela de «Karate-Do» (a via das mãos vazias ou o caminho das mãos nuas), a qual aparece em 1936.
Divergências entre alunos mais graduados e respectivos mestres provocaram cisões dentro de estilos (McCarthy, 1995; Bishop, 1995), dando origem a outros estilos – o shotokan deu origem ao shotokai e ao wado-ryu, o shito-ryu deu origem ao shukokai e ao sankukai … – e mesmo em Okinawa podemos contar actualmente cerca de 24 estilos (Bishop, id.)…
A prática tradicional do Karate-Do tem de ser enquadrada dentro da cultura japonesa, a qual se encontra profundamente influenciada por valores históricos, por valores religiosos (budismo e zen), por códigos de honra (Bushido) e pelo sentimento do dever, da obrigação (giri) (Pinguet, 1987).
Ao estabelecer-se uma relação vertical, o instrutor acaba por ser o detentor de todo o poder dentro do dojo, e o instrutor-chefe (ou, mais modernamente, o director técnico) o detentor do poder sobre os outros instrutores e seus alunos.
Fiadeiro (1989) apresenta os seguintes aspectos característicos das artes marciais:
- as aulas processam-se em ambiente de disciplina rigorosa e os mestres ocupam boa parte do tempo exemplificando os movimentos, e a aprendizagem é normalmente feita por imitação;
- os praticantes são ordenados hierarquicamente, segundo escalas a que correspondem cintos de cor diferente, e a que está associado um estatuto progressivamente mais nobre, o que implica numa autêntica caça ao cinto;
- a cada Arte, ou escola dentro da mesma Arte, está associado “um espírito próprio”, difícil de explicar, mas que se assume invariavelmente como o único legítimo, e que confere a cada grupo características de clã, além de servir bastantes vezes como único argumento para justificar a diferença entre escolas iguais;
- a personalidade do mestre é marcante e toda a actividade gira em seu redor ou dele deriva, existindo um apego emotivo bastante forte;
- a relação dominante é do tipo mestre-discípulo, quebrada normalmente quando o aluno mais adiantado se farta de ser explorado pelo mestre e se afasta para se instalar por conta própria;
- os mestres, e a um escalão menor também normalmente os discípulos, encontram-se filiados em escolas internacionais, as quais representam a fonte de legitimidade para o grupo, fornecendo-lhes padrões técnicos, assim como oportunidades para aperfeiçoamento técnico e a indispensável creditação para as graduações e correspondentes cintos;
- mesmo que associados a nível nacional, o motivo mantém-se na área do aperfeiçoamento técnico e na legitimidade dos cintos, pelo que as suas formas associativas tendem a reflectir esta necessidade, sendo característicos os litígios entre a hierarquia técnica, fonte de legitimidade da escola ou grupo, e a hierarquia dirigente, eleita, e fonte de poder formal;
- a nível internacional, a acumulação de poder no foro técnico, associado ao poder económico dessas autênticas multinacionais das Artes Marciais, levam a que se verifiquem fenómenos de secessão, assim como ao aparecimento de novas artes, resultando numa proliferação de escolas e estilos, cujos reflexos a nível nacional estão à vista”.
Confirmando esta posição, mas pondo a tónica entre duas culturas diferentes, Braunstein (1999) faz notar que: “a oposição fundamentada entre o Ocidente e o Oriente repousa a maior parte das vezes sobre a construção de um eu, a procura fanática de um ego. A compreensão falseada da grande maioria dos praticantes de Artes Marciais do contexto cultural destes últimos conduziu-os a comportamentos no limite do patológico sobre o Dojo. A vontade de perder o seu ego conduziu-os a uma vontade de submissão que fazia do Sensei, não um mestre, no sentido do magister latino, pondo de parte a conotação espiritual, mas a um dominus. As respostas oscilam entre a afirmação de si e a negação de si, simultânea e contraditoriamente, num movimento que em cada um dos extremos pode conduzir à transposição para um limiar patológico. O indivíduo pode abandonar a sua solidão na psicose, entre exaltação e depressão, entre a certeza paranóica de ser o único e o centro de tudo e o trabalho esquizofrénico do apagamento de si”.
Comparando as artes marciais com os desportos de combate, Fiadeiro (1989) continua a sua caracterização centrada na linha de reprodução dos mestres: “A evolução típica do crescimento nas Artes Marciais, começa num mestre que tem discípulos. Ao fim de algum tempo os melhores alunos começam a auxiliar o mestre e a certa altura, ou o mostre abre novo dojo e manda para lá um desses seus auxiliares, ou este o faz por sua iniciativa, mas com subordinação do mestre.
Este processo é inerentemente multiplicativo e assim se cria uma nova escola, estilo ou ryu. Daí às filiais de âmbito regional e depois internacional é um passo, mas o tipo de relação é o mesmo, todos os dojos ostentam as mesmas insígnias, prosseguem o mesmo tipo de ensino, os mesmos termos e técnicas e, as graduações bem controladas, obviamente, pois o laço mais importante para manter a subordinação, é a contribuição financeira, de toda a gente envolvida.
Neste tipo de organização, de cariz totalmente autocrática, em que é o mestre que escolhe os seus auxiliares, a quem delega alguns poderes, e retira a seu belprazer, não há lugar para dirigentes eleitos, obviamente. E isto passa-se a todos os níveis, mesmo internacional, é só ver aí à roda os nossos mestres que aparecem com um certificado de uma escola qualquer, no Japão, Coreia, Tailândia, etc., a nomeá-los representantes dessa escola para Portugal, e lá vem os diplomas cheios de carimbos encarnados a atestar a validade da sua graduação”.
Analisando o Karaté como modalidade desportiva, Inocentes (1995/96) equaciona a prática deste segundo alguns binómios presentes no mesmo, tais como tradicionalismo versus ciência, mestre versus pedagogo, competição versus formação, exames versus avaliação e diplomas versus realidade, realçando características que se perderam quando de uma arte marcial – que visava essencialmente a formação do ser humano – se transitou para uma modalidade desportiva, e mostrando algumas incongruências da estrutura competitiva e da concepção da própria competição quando comparado com outras modalidades desportivas.
No campo da formação, Inocentes (id.) afirma que o ensino do Karaté tem sido “mais simplista que experiente, mais moralista que moral, mais imitador e empírico que criativo, mais demagógico que científico” e que “estamos fartos de ver ‘Mestres’ que não passam de um disco partido e que fazem dos seus alunos papagaios…” sendo necessário que tanto a formação dos treinadores como dos praticantes passe a ter um cariz mais científico, ético e moral.
Ainda confrontando o desporto com as artes marciais, Fiadeiro (1989) apresenta o facto de que “o culto do Mestre é uma das marcas mais características das Artes Marciais”, concluindo nesta comparação que “se o atleta perde, muda-se o treinador, se o discípulo falha, sai e entra outro, mas o Mestre, esse fica”.
A transição de arte marcial a desporto de combate originou a comercialização do Karaté “acarretando a fragmentação da ciência, com elaborações nada práticas e movimentos baseados no senso teatral e não na eficiência da guerra” (Cleary, 1991), o que já havia sido confirmado por Miyamoto Musashi ao afirmar que “particularmente nas artes marciais, existe muita teatralidade e vulgarização de carácter comercial. O resultado disso tem de ser, como disse alguém: «as artes marciais amadoras são uma fonte de sérios danos»” (Musashi, 1985).
Na arte marcial kata e kumite eram praticados como um meio, eram o elemento do ethos guerreiro que o militarismo inculcou na sociedade e no pensamento japoneses. Num desporto institucionalizado kata e kumite são praticados como um fim em si, sendo a vitória num ou noutro, na competição, o objectivo a ser atingido.
A representação guerreira, do combate, regulamentado, a simulação da violência, e o confronto lúdico levam-nos a conferir hoje em dia ao Karaté o estatuto de desporto. O simbolismo presente no mesmo faz com que tenha mais sentido falar em «jogo» do que propriamente continuar-se a falar em «combate».

IV – Formação de treinadores: evolução ou reprodução?

Toda a gente tem vontade de ganhar,
mas muitos poucos têm vontade de se preparar para vencer.
Vince Lombardi

Para compreendermos o contexto em que se desenvolve a formação de um treinador de Karaté teremos de ter presente uma perspectiva histórica no nosso país, pois as “artes marciais” em Portugal sofreram um enorme atraso, dado que o Estado Novo sempre as considerou «perigosas». Um despacho ministerial de 1948 considerava que o Judo não era desporto, o que só seria rectificado em 1957, para dois anos depois ser considerado de «utilidade militar» definindo-se a existência de um «judo marcial» e um «judo desportivo». Em 1968 foi decidido que a prática das artes marciais passava a depender do Ministério da Defesa dada a sua «perigosidade», criando-se a Comissão Directiva das Artes Marciais (CDAM), que, em 1972, foi transferida para o Ministério da Educação e Ciência e, em 1980, para a secretaria de Estado do Desporto, sendo nomeados Presidente o comandante José Monteiro Fiadeiro e Vice-Presidente o capitão Vítor Mota (Correia, 1998). Em Fevereiro de 1987, o então Director-Geral dos Desportos, Mirandela da Costa, extingue a CDAM, dada a existência da Federação Portuguesa de Karaté desde Março de 1985 e da Federação Portuguesa de Karate-Do e Disciplinas Associadas fundada um ano mais tarde, as quais acabam por se unir, em 1992, formando-se a Federação Nacional de Karaté – Portugal, englobando cerca de 70 Associações.
Ao longo destes anos vários e diferentes modelos de formação de treinadores foram adoptados por estas entidades, processo esse iniciado pela CDAM que ao longo de 11 cursos formou 282 treinadores (Madeira, 1985).
Os cursos de treinadores organizados pela CDAM possuíam em média 60 horas e abrangiam disciplinas como Psicologia do Desporto, Psicopedagogia, Metodologia do Treino, Didáctica, Pedagogia do Desporto e Primeiros Socorros (Fiadeiro, 1986) com o suporte de Professores dos então ISEF’s de Lisboa e Porto, enquanto os cursos organizados por qualquer uma das Federações possuíam uma carga horária menor, embora tivessem introduzido uma maior especificidade técnica referente ao Karaté e “novas” disciplinas, tais como Anatomofisiologia, Biomecânica, Sociologia do Desporto, ou ainda Traumatologia e Nutrição.
A par dos cursos federativos, algumas associações tiveram a preocupação de chamar a si académicos e técnicos credenciados e ministrarem aos seus treinadores em início de funções cursos de monitores associativos.
Assim, constatamos que temos em Portugal, na prática, vários tipos de treinadores de Karaté no que se refere à sua formação: a) aqueles que ministram treinos suportados somente pela sua graduação; b) aqueles que, a par da sua graduação, possuem um curso de monitores associativo; c) aqueles que possuem um curso de treinadores da CDAM (entre os quais alguns possuem formação superior em Educação Física); d) aqueles que possuem um curso de treinadores federativo (onde também uns poucos têm formação superior em Educação Física). Enquanto os dois primeiros oficialmente não são treinadores, embora exerçam essas funções dada a inexistência de fiscalização, os seguintes podem solicitar equiparação ou equivalência.
No final de 2007, existiam 791 clubes inscritos na FNK-P, para 14593 praticantes e 678 árbitros. Revelava-se ainda a existência de 1466 treinadores, dos quais 1179 eram treinadores-monitores, sendo 246 treinadores de nível I, 28 de nível II e apenas 13 de nível III. Dados que revelam a aposta federativa na formação de treinadores.
Para Mialaret (1982) a palavra formação pode ter muitos significados:
- estrutura institucional que permite preparar os ensinantes para as suas funções posteriores – organização e funcionamento da formação;
- acção exercida sobre os “aprendizes-ensinantes”, centrada nos métodos utilizados;
- conteúdo da acção exercida – programa, actividades previstas, repartição dos tipos de actividades;
- resultado da acção exercida – estudo do produto final e suas características a curto, médio e longo prazo.
Onofre (1996), define formação “como o processo contínuo e sistemático de aprendizagem no sentido da inovação e aperfeiçoamento de atitudes, saberes e saberes-fazer e da reflexão sobre valores que caracterizam o exercício das funções inerentes à profissão docente”.
Lagrange (1977) entende a formação como possibilidades de adaptação activa, algo muito diferente de «acomodação», ou seja, a oferta de um máximo de esquemas de comportamento possíveis face a novas situações e a condução a prováveis associações dos mesmos.
A investigação em Pedagogia Desportiva vive influenciada, teórica e epistemologicamente, pelos modelos de investigação no sistema educativo, transpostos e implementados no âmbito da actividade física. Deste modo, onde especialmente se analisa e estuda o professor de Educação Física, analisa-se e estuda-se o treinador; e onde particularmente se analisa e estuda o aluno, analisa-se e estuda-se o atleta-jogador” (Tobio, 1998). Daí que, a partir deste momento, passamos a fazer um transfer do professor de Educação Física para o treinador e, mais particularmente, para o treinador de Karaté.
De Landsheere (1978) afirma que “os futuros docentes não serão capazes de educar os seus alunos com a independência e a conquista pessoal do saber, senão na medida em que eles mesmos forem independentes e conquistadores durante e depois da sua formação inicial”.
Jaurés, citado por Mialaret (1992), defende que “não se ensina o que se sabe ou se julga saber; ensina-se o que se é”. Nesta linha, para Mauco (1977) “o educador age não somente por aquilo que diz e faz, mas mais ainda por aquilo que é”, salientando que “qualquer método pedagógico vale o que valer aquele que o aplica”. É exactamente o mesmo que nos diz Feitosa (2008): “aquilo que somos transmite-se de forma muito mais eloquente do que qualquer discurso que possamos proferir”.
Verificamos assim que não é só a formação inicial que pode influenciar um treinador, até porque, segundo Carreiro da Costa (1996), a aprendizagem por observação de um atleta, futuro treinador, praticante num clube desportivo, durante a fase anterior à formação irá ter as suas influências no mesmo. Igualmente o processo de socialização do treinador compreende “diferentes tipos de influência, tais como as primeiras experiências na Educação Física e no desporto, professores, treinadores, pais, companheiros, as ideias dominantes sobre Educação Física e desporto, a formação formal, etc.” (Carreiro da Costa, id.).
Nos dizeres de Carvalho (1996), o conceito de aprendizagem por observação “é utilizado como representação de uma aprendizagem invisível, intuitiva e imitativa, de modelos de ensino, de um conjunto de crenças, conhecimentos e habilidades adquiridos ao longo de uma experiência de longos anos pelos futuros professores, enquanto alunos, que é depois transportada para a formação e para a situação de trabalho. Um fenómeno que permite compreender a manutenção da própria estrutura escolar e dos seus mitos (Britzman, 1986)”, o que nos parece ser aplicável ao Karaté.
Graça (1999) salienta que “quando estamos a considerar o que o professor deve saber, muito frequentemente não entramos em linha de conta com o que ele pensa e sabe sobre o assunto”. Ainda segundo este autor, a introdução do conceito de «aprendizagem por observação» é importante para “se referir a algo que facilmente passa despercebido, e que tem a ver com familiaridade do candidato a professor com o quotidiano da escola”. Reportando-se à longa caminhada do estudante, Graça (id.) refere que “o contacto e a experiência com uma diversidade de professores e práticas de ensino certamente deixam inevitavelmente marcas no entendimento do que é um bom professor, uma boa aula, uma boa relação professor-aluno; em que é que consiste ensinar, o que pretende e trata a matéria da disciplina, o que é suposto ensinar-se e em que é que o professor e os alunos ocupam o tempo nas aulas”. No entanto, este autor sublinha que “aquilo que os estudantes aprendem desta forma é mais intuitivo e imitativo do que explícito e analítico”.
Recorrendo a vários investigadores, Graça (id.) salienta que “este aprendizado pode funcionar como um mecanismo de reprodução das práticas e contribuir para o conservadorismo da escola: os novos professores, na falta de experiência de ensino, recorrem às imagens e recordações das estratégias e procedimentos de ensino de professores com que se identificam, às recordações de si como alunos, dos seus interesses e níveis de habilidade nas actividades, para derivar expectativas para os seus alunos” e deixa presente que “abrangendo esta familiaridade com o ensino, o que lhes pode dar a sensação que ensinar é uma actividade fácil e sem grande coisa para aprender, está todo o conhecimento e as crenças que os formandos trazem para a formação e que se constituem como filtros da informação e das perspectivas veiculadas pela formação inicial”.
No entanto, segundo Rodrigues (1996), a formação inicial, a experiência profissional, as características pessoais do treinador (motivação, valores, personalidade, inteligência, etc.) são capazes de exercer influência no treino e nos seus efeitos.
A formação académica superior em Educação Física e Desporto assim como a habilitação técnica e desportiva, podem permitir um desenvolvimento de um conjunto alargado de conhecimentos e de competências cognitivas, que se podem transferir positivamente para a intervenção pedagógica do treinador (Sarmento, 1987; Rosado, 1988), pois tanto no processo de ensino como no de treino, compete ao professor e ao treinador compreender as necessidades de aprendizagem dos praticantes e saber como transmitir os conhecimentos e as técnicas.
De acordo com Shulman (1986), e à semelhança do professor, tem de se perspectivar o treinador concebendo-o como um indivíduo que reflecte, decide, ajuíza, com crenças e atitudes particulares, o que implica, conforme refere Rosado (1995), que o treinador passe a ser concebido como um profissional activo, inteligente, em que a definição de objectivos, a busca de informação acerca dos praticantes e do currículo, no contexto dos objectivos, faz parte da sua actividade.
Se por um lado, a influência do pensamento dos professores na eficácia de ensino não tem sido evidente, por outro a investigação tem demonstrado que efectivamente o pensamento dos mesmos exerce certa influência sobre os comportamentos interactivos (Januário, 1992; Clark e Peterson, 1986; Clark e Yinger, 1987), o que também se infere para os treinadores de Karaté.
Na opinião de Coelho (1980) a formação do treinador deve assumir um carácter permanente e acompanhar a evolução dos conhecimentos e da própria ciência do treino, pois o trabalho do treinador desportivo exige uma preparação técnica, pedagógica e científica adequada.
Para Araújo (1989) um projecto de formação de treinadores tem de privilegiar uma estratégia de intervenção, em que a importância do seu contributo social esteja perfeitamente clarificada, para além de uma intenção de projectar o sistema desportivo numa via de desenvolvimento. Ainda segundo este autor, uma correcta metodologia a prosseguir nas actividades de formação de treinadores deve implicar preocupações relativas a uma aquisição de conhecimentos (saber), um domínio das técnicas (saber fazer) e uma transformação positiva e continuada das atitudes (saber estar). Saliente-se que Patrício (1993), às três grandes competências – saber, saber-fazer e saber-ser, acrescenta uma outra que considera essencial: saber fazer-ser.
O desempenho da função de treinador subentende uma continuada e profunda aprendizagem, um recurso a apoios pessoais, os «treinadores do treinador» e um maior conhecimento de si próprio e das limitações individuais que afectam o treinador (Araújo, 1987).
A relação pedagógica entre treinador e atleta constitui não só um elemento determinante ao nível da sua prestação e consequente sucesso desportivo, como um dos principais factores que influenciam a decisão dos jovens de abandonarem a prática desportiva, aspecto que assume tanto mais importância quanto menor for a idade do praticante” (Gonçalves, 1987), o que nos leva a reflectir sobre quantos atletas que se iniciam no Karaté (alguns em tenras idades) acompanham ao longo da sua vida os ensinamentos do treinador. Se, de facto, no Karaté, o treinador é um “mestre”, este “mede-se” positivamente pelo número de indivíduos que forma com uma alta craveira técnica, mas “mede-se” também, aqui pela negativa, pelo número desses indivíduos que o vão abandonando ao longo dos anos.
E teremos de salientar as palavras de Olímpio Coelho, actuais volvidos mais de vinte anos, para quem “alguns treinadores falham na sua função e objectivos por deficiente preparação técnica, mas a maior parte falha por uma deficiente preparação psicopedagógica” (Coelho, 1987).
Tobio (1998), estudando o conhecimento didáctico dos conteúdos de ensino de técnicas em treinadores, conclui que: a) parece verificar-se uma contradição entre o que os peritos (formadores) dizem e o que os treinadores manifestam que fazem; b) parece constatar-se que existem diferenças entre o que os treinadores dizem e o que os jogadores manifestam fazer; c) parece verificar-se que as decisões de programação dos treinadores estão marcadas por um elevado carácter autodidacta.
Os estudos sobre a formação de professores em Educação Física que constataram que muitos programas de formação não têm em conta o conhecimento científico disponível neste campo (Bain, 1990) estabelecem um paralelo com a formação de treinadores de Karaté, onde nos parece que a aprendizagem ainda se faz segundo moldes tradicionalistas: aprende-se por imitação, por ensaio-erro-correcção, para mais tarde se transmitir do mesmo modo – a rotina reprodutiva.
Graça (1999) refere um artigo de revisão dedicado ao desenvolvimento profissional durante a formação inicial e nos primeiros anos de docência, onde “Kagan (1992) pôde constatar que, de uma forma geral, as crenças e imagens pessoais sobre o ensino permaneciam inalteradas pelo programa de formação e acompanhavam o formando no estágio e nas práticas de ensino; Anderson e Bird (1995) investigaram o uso de estudos de caso como estratégia para fornecer imagens alternativas de ensino procurando, desta forma, desafiar as crenças dos estudantes acerca do ensino e do processo de aprender e ensinar. Apesar de ter contribuído para aprofundar o conhecimento sobre o ensino, a estratégia não alterou o cerne das perspectivas iniciais dos formandos”.
De Landsheere (1978), equacionando a mudança de valores de uma geração para outra, afirma que “para os docentes contemporâneos que se esforçam por adaptar-se aos novos valores, aderindo ainda aos valores do passado, a situação torna-se cada vez mais aflitiva e ansiogénica. Apesar da sua juventude, os alunos-professores nem sempre escapam a essa dificuldade, longe disso, pois eles fazem evidentemente parte da juventude e partilham portanto mais ou menos – senão totalmente – das suas aspirações dominantes, e tendem contudo a reproduzir comportamentos de ensino que têm profundamente fixados da época dos seus estudos primários e secundários, e que estão frequentemente em contradição com os seus valores actuais”.
O facto da maior parte dos treinadores de Karaté passarem como atletas por uma progressão baseada num sistema de graduações, que ao alcançarem o seu cinto negro lhes abre as portas do ensino, fazendo só muito mais tarde a sua formação “teórica”, coloca-os numa perspectiva tradicional, embora inversa da de Russel (1988, in Carreiro da Costa, 1996) – “formação teórica primeiro e formação prática depois” –, tendo no entanto os mesmos resultados, pois caem numa “prática não reflexiva, imitando as rotinas e os procedimentos dos seus antigos professores” (Carreiro da Costa, id.).
Assim, acreditamos que a visão tradicionalista dos treinadores de Karaté, aos quais na maior parte das vezes é uma graduação (técnica), o dan, que lhes abre a porta do ensino, permite que se possa adaptar ao mesmo “o círculo vicioso do fracasso auto-reprodutor da Educação Física” de Bart Crum (1990, in Carreiro da Costa, id.), até porque, para este autor, “os programas de formação têm geralmente um impacto reduzido, quando comparados com o impacto da aprendizagem por observação” e “mesmo quando o programa da formação transmite com sucesso uma perspectiva de ensino e aprendizagem, a força socializadora da entrada nas escolas trabalha no sentido de apagar esta tendência” (Crum, 1993, in Graça e Januário, 1997).
A este panorama adiciona-se o facto de não existir controle da parte da Federação que rege a modalidade sobre quem ensina, principalmente sobre quem ensina os mais jovens, não lhes sendo exigida nenhum tipo de formação ou de habilitações, dado que cada associação ou clube determina quem são os seus “treinadores”, esquecendo-se muitas vezes os seus responsáveis que um bom atleta não é obrigatoriamente um bom treinador. Isto acontece devido à não obrigatoriedade de inscrição na Federação de clubes e associações e à ausência de competências fiscalizadoras por parte da mesma.
No entanto, realçamos de novo que somente podemos fazer um transfer teórico dos estudos sobre formação dos professores de Educação Física, já que não existem estudos sobre os processos de pensamento dos formadores, sobre a formação dos treinadores de Karaté, os processos de pensamento dos mesmos (concepções e crenças, decisões de programação, relação entre a programação e o comportamento do treinador e dos atletas), ou sobre os processos de pensamento do atleta (percepções pessoais, sobre o comportamento do treinador e processos cognitivos dos atletas durante o processo ensino-aprendizagem).
Parece-nos ainda que o processo de socialização antecipatória é comum no Karaté, pois Carvalho (1996), citando vários autores, em relação aos conceitos atractivos e facilitadores, refere que:
1 – as ocupações possuem recursos de recrutamento, que cumprem a função de atracção dos indivíduos para o seu interior; atractivos e facilitadores são tipos de recursos a considerar;
2 – os atractivos respeitam a potenciais benefícios que a ocupação oferece aos indivíduos, sejam de natureza material (vencimento, segurança de emprego, possibilidades de mobilidade), de natureza simbólica (prestígio, poder), ou de natureza emocional (prazer e satisfação);
3 – os facilitadores respeitam a mecanismos sociais que contribuem para a decisão de entrar numa dada ocupação”.
Em relação a este último ponto, surgem ainda “a certificação subjectiva, a identificação com determinados professores e a continuidade de uma ocupação de família” (Carvalho, id.) como alguns dos mecanismos a considerar.
Como conclusão, Carvalho (id.) faz notar que “esta socialização antecipada para a profissão envolve, portanto, a interiorização de modelos de ensino e, também, uma representação da escolarização, da profissão e do currículo (particularmente da matéria de ensino que vão leccionar)”.
Efectuado o transfer acima referido e após uma equiparação de funções semelhantes, parece-nos assim que, apesar da existência de uma formação científica dirigida a treinadores de Karaté, o peso da aprendizagem segundo moldes tradicionalistas continua a ser muito maior e a técnica (prática) continua a sobrepor-se ao conhecimento. Isto só nos pode levar à conclusão de que se constata uma reprodução do ensino do Karaté, mais do que uma construção ou uma criação cientificada do mesmo, apesar dos esforços desenvolvidos pelas entidades competentes através de cursos de treinadores e de acções de formação dos mesmos.

V – A organização e a crença

No clube, ou na associação – relação social regulativamente limitada para fora ou fechada, segundo Weber (1997) – existe quase sempre uma indefinição em termos de atribuição de competências, até porque é comum nos estatutos aparecerem as competências, no geral, de cada órgão gerente, mas normalmente não aparecem as competências individuais ou funções de cada um dos seus membros – o que poderia ser contemplado no regulamento geral interno, caso existisse.
Os poderes concentram-se nos instrutores, no presidente da direcção e no presidente do conselho técnico (o director-técnico, o instrutor-chefe, o “mestre”) – que normalmente, na realidade são uma e a mesma pessoa. E embora o conselho técnico seja um órgão consultivo da direcção, verifica-se na realidade uma sujeição do poder executivo ao poder técnico… dizendo-nos Fiadeiro (1989) que aparecem contradições inevitáveis, pois “no desporto o poder reside na hierarquia dirigente democraticamente eleita, enquanto nas artes marciais ele reside na hierarquia técnica de nomeação e não de eleição”. Verificamos também na organização a eterna possibilidade da justificação de desporto ou de arte marcial.
Por outro lado, sendo a hierarquia vertical uma das características do Karaté, a realização de exames de graduação a atletas dos vários dojo é sempre única e exclusivamente da competência do instrutor-chefe, salvo delegação noutro ou noutros instrutores (normalmente elementos do conselho técnico).
Situação esta que encontra em Foucault (1977) um óptimo intérprete quando nos diz que “o exame como fixação ao mesmo tempo ritual e «científica» das diferenças individuais, como aposição de cada um à sua própria singularidade (em oposição à cerimónia onde se manifestam os status, os nascimentos, os privilégios, as funções, com todo o brilho de suas marcas) indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder [...]”.
A associação é a única entidade competente (com poder) para realizar o exame de graduação – aquilo a que Bourdieu (1982) chamou de ritos de instituição. E ele próprio dá como exemplo o facto da entrega ritual de um diploma, o que cria uma diferença social entre aquele que o confere e quem o recebe. Assume assim este rito a dupla função de defender e separar novas qualificações com a aprovação de todo o grupo, o que só acontece porque quem detém o poder determina a fronteira entre os instituídos e os não aceites.
Actos de magia social [...] apenas podem ser bem sucedidos se a instituição, no sentido activo do acto tendente a instituir alguém ou alguma coisa enquanto dotados deste ou daquele estatuto e desta ou daquela propriedade [...] for um acto garantido por todo o grupo ou por uma instituição reconhecida [...]. Encontra o seu fundamento na crença de todo um grupo (que pode estar fisicamente presente), isto é, nas disposições socialmente habituadas a conhecer e a reconhecer as condições institucionais de um ritual válido (o que implica que a eficácia simbólica do ritual variará – simultânea ou sucessivamente – de acordo com o grau com o qual os destinatários estarão mais ou menos preparados, mais ou menos dispostos a acolhê-lo)” (Bourdieu, id.).
Revela-se aqui a importância de uma primeira crença dos praticantes: crença na organização, no poder da instituição que confere uma graduação ao caucionar um exame aos seus elementos e a disposição dos mesmos em submeterem-se a esse poder.
Elias (1999) diz-nos que o poder de outra pessoa deve ser temido, pois pode obrigar-nos a praticar um determinado acto, quer queiramos quer não; diz-nos que o poder é suspeito, pois as pessoas usam de poder para explorar outras para os seus próprios fins; e diz-nos ainda que o poder parece imoral, dado que todos nós devíamos ter a possibilidade de tomar por nós próprios todas as nossas decisões.
O treinador, enquanto líder, e sendo um interveniente no sistema desportivo, possui poder porque interage e influencia os seus alunos ou atletas, situações e o meio envolvente, assim como é dotado de autoridade em virtude de exercer um poder legítimo, que aceita ao assumir essas funções, implicando agir em conformidade com as concepções e os valores a serem acatados pelos seus subordinados (Inocentes, 2007a).
No Karaté tradicional, o “mestre” é, de facto, o detentor desse poder. No Karaté desportivo, as formas do treinador exercer o seu poder incidem essencialmente no modo de influenciar os seus atletas e na maneira de modificar os seus comportamentos. Recorrendo a Russell (1990, in Inocentes, 2007a), “um indivíduo pode ser influenciado: a) através do poder físico sobre o seu corpo; b) através de recompensas e de punições como incentivos; c) influenciando a opinião”. O esforço e o sacrifício físico exigido ao praticante com vista à superação ou ao rendimento, o conceder ou não uma graduação assim como exercer a prerrogativa de seleccionar ou excluir e o facto de inculcar crenças nos atletas serão os modos de modelar o seu comportamento, instrumentos e meios que o treinador tem à sua disposição graças ao seu poder.
O treinador de Karaté é um líder que detém poder e autoridade sobre os seus alunos ou atletas. O poder traduz-se no facto de atribuir recompensas e/ou aplicar medidas coercivas ou punitivas, ao ser imposto pela estrutura organizacional que representa. A sua autoridade advém dos seus conhecimentos técnicos e pedagógicos, da sua experiência de ensino e até de competidor, assim como das suas habilitações académicas e da sua formação. Outro factor preponderante que cimenta tanto o poder como a autoridade do treinador é a sua graduação, representada pelo dan que possui, a qual determina a sua situação hierárquica (Inocentes, 2007a).
E o rito existe e subsiste no Karaté, quer na sua forma desportiva quer na sua antiga forma “marcial” até porque ele é necessário, como nos diz (Bourdieu, 1998), porque: “surge para garantir o impetrante sobre a sua existência enquanto membro de pleno direito do grupo, sobre a sua legitimidade, mas também para garantir ao grupo a sua própria existência como grupo consagrado e capaz de consagrar, bem como sobre a realidade das ficções sociais que ele produz e reproduz, nomes, títulos, honras, e que o recipendiário faz existir ao aceitar recebê-las. A representação, por meio da qual o grupo se produz, só pode incumbir a agentes que, estando encarregados de simbolizar o grupo que representam no sentido do teatro mas também no sentido do direito, a título de mandatários dotados da procuratio ad omnia facienda, devem cometer-se com o seu corpo e dar a garantia de um habitus credulamente investido numa crença incondicional”.
O agente, o mandatário, é no Karaté o “mestre”, aquele que ao mesmo tempo que transmite o seu conhecimento também disciplina e hierarquiza os seus alunos, aquele que tem o poder e a autoridade. E, no domínio da sociologia, diz-nos ainda Bourdieu (id.), sobre estes, que “enquanto pessoas biológicas, os plenipotenciários, os mandatários, os delegados, os porta-vozes estão sujeitos à imbecilidade ou à paixão, e são mortais. Enquanto representantes, participam na eternidade e na ubiquidade do grupo que contribuem para fazer existir como permanente, omnipresente, transcendente, e que eles temporariamente encarnam, fazendo-o falar pela sua boca e representando-o pelo seu corpo, convertido em símbolo e em emblema mobilizador”.
O detentor do saber e do conhecimento técnico é o representante do grupo, a sua imagem simbólica, presente pelo seu corpo revestido pelo equipamento tradicional – o karategi – e ao mesmo tempo o “carrasco” do mesmo pois exerce sobre ele uma violência.
Neste processo, o praticante ao receber as qualificações que lhe são atribuídas, ao aceitar as convenções, as normas e as simbologias, deixa-se dominar, deixa-se subjugar e submete-se a uma violência simbólica que, segundo apresenta Bourdieu (id.), não é mais do que uma “coerção que só se institui através da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante [...] quando não dispõe, para o pensar e se pensar ou, melhor, para pensar a sua relação com ele, senão de instrumentos de conhecimento que tem em comum com ele e que, não sendo mais que a forma incorporada da estrutura da relação de dominação, fazem aparecer essa relação como natural; ou, noutros termos, quando os esquemas que aplica para se perceber e se apreciar ou para perceber e apreciar os dominantes [...] são o produto da incorporação das classificações assim naturalizadas, das quais o seu ser social é o produto”.
Kihon, kata, bunkai e kumite são os instrumentos de conhecimento no Karaté, sendo as graduações, na forma de kyu e de dan, as classificações – mudansha e yudansha.
Já ao inscrever-se no clube ou na associação o praticante aceita as normas, a autoridade e o poder existente. E não nos esqueçamos que tanto La Boétie (1997) no século XVI, ao falar-nos na servidão voluntária, como Rousseau (1993) no século XVIII, ao abordar a desigualdade entre os homens, colocavam a tónica na aceitação do poder e no fenómeno da obediência consentida, o que viria a ser comprovado pela célebre experiência de Milgram (1975), assuntos mais recentemente reavivados por Romano (2006).
Mas o possuir o poder implica que quem assume a autoridade também é responsável pelas consequências que derivam dos seus actos quando provenientes das ordens que dele emanam (Muñoz, 2008).
E o treinador ao exercer uma actividade pedagógica leva-nos a recordar o axioma que nos foi legado por Bourdieu e Passeron (1975) e que nos diz que “toda a acção pedagógica é objectivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural”. Axioma esse que se desdobra em dois corolários: o primeiro, que afirma que “a acção pedagógica é objectivamente uma violência simbólica, num primeiro sentido, enquanto as relações de força entre os grupos ou as classes constitutivas de uma formação social estão na base do poder arbitrário que é a condição da instauração de uma relação de comunicação pedagógica, isto é, da imposição e da inculcação de um arbitrário cultural segundo um modo arbitrário de imposição e de inculcação (educação)” e o segundo que revela que “a acção pedagógica é objectivamente uma violência simbólica, num segundo sentido, na medida em que a delimitação objectivamente implicada no facto de impor e de inculcar certas significações, convencionadas, pela selecção e a exclusão que lhe é correlativa, como dignas de serem reproduzidas por uma acção pedagógica, reproduz (no duplo sentido do termo) a selecção arbitrária que um grupo ou uma classe opera objectivamente em e por seu arbítrio cultural”.
Por último, a organização que vive para os praticantes só possui esta existência porque existem praticantes. Saliente-se que estes, ao inscreverem-se num clube ou num ginásio particular, têm responsabilidades perante este e, automaticamente, obrigam-se à inscrição na associação e na Federação (caso aquela o deseje). Assim, o atleta suporta monetariamente a inscrição no dojo, a mensalidade do mesmo, a quotização anual para a associação, a correspondente para a Federação e o seguro desportivo. Ao participar num estágio, quer seja regional, nacional ou internacional, o atleta suporta a sua inscrição no mesmo. Quando compete, a taxa de inscrição na prova também fica à responsabilidade do atleta. Ao ser proposto a exame de graduação, a taxa associativa correspondente ao mesmo é igualmente suportada pelo praticante, que também suporta a homologação federativa da sua graduação.
Estamos em presença de um desporto em que, para além do esforço e do sacrifício, o praticante sofre fisicamente, durante a prática, e economicamente, perante o poder da organização. E temos de citar Bourdieu (1998) de novo a fim de compreendermos melhor estes laços: “O poder simbólico só se exerce com a colaboração daqueles que o sofrem porque contribuem para o construir como tal. [...] Esta cumplicidade não é concedida por meio de um acto consciente e deliberado; é ela própria efeito de um poder que se inscreveu duradouramente no corpo dos dominados, sob a forma de esquemas de percepção e de disposições (a respeitar, a admirar, a amar, etc.), quer dizer, de crenças que tornam alguém sensível a certas manifestações simbólicas, como a representações públicas do poder”.
Revela-se agora aqui a importância de uma segunda crença: crença dos praticantes no individuo que é dono do poder, crença na sabedoria e na técnica do “mestre”, esquecendo aqueles que saber executar a técnica não é o mesmo que saber ensinar a técnica ou produzir conhecimento (ou formação) através dessa transmissão. E mais do que uma crença no indivíduo, passa a haver uma crença na forma do acto, na demonstração, no gesto técnico...
Crenças que aliadas a outras, como a redução da agressividade através da prática, se podem revelar perigosas.
Alguém disse um dia, e citamos e memória, que o problema não se encontra no facto das crenças serem ideias que a nossa mente domina. O problema reside no facto das crenças serem ideias que dominam a nossa mente... até porque, como nos diz a sabedoria oriental, não são apenas os que são experientes e sábios que têm mestres, pois os tolos também têm os seus.

VI – Ética e moral

Confirmando a linha que vimos traçando, é Nitobe (2000) quem nos afirma que “o código ético independente do Bushido perecerá talvez, mas o seu poder não desaparecerá jamais da face da terra”. Até porque de um ethos guerreiro – no sentido sociológico de uma ordem normativa interiorizada, um conjunto de princípios sistematizado que orientam o comportamento, que conduzem o modo de estar no mundo – passou-se para um ethos amador e, posteriormente para um ethos desportivo.
O dojokun é o conjunto de normas que procura reger o comportamento dos praticantes dentro e fora do dojo, sendo o “não desaparecimento” do Bushido, a réstia do espírito do Budo que perpassou para o Karaté. Normas que pretendem transpor os valores da prática desportiva para a vida diária.
Procura-se assim ter presente em cada local de prática a existência de um código ético.
Mas também toda a modalidade é regida pelo “Código Ético do Karaté” emanado da Federação Mundial .
Temos assim em cada dojo um código a nível micro e um código a nível macro para a modalidade desportiva.
Comparado com outras modalidades desportivas, seria motivo para alegarmos que, sendo o Karaté proveniente de uma arte marcial ancestral imbuída de valores, nesta modalidade encontrar-se-iam maiores exemplos de «fair-play» e seriam frequentes comportamentos éticos e morais.
Para alguns especialistas, a transição de artes marciais para desportos de combate “provoca um impacto negativo. A especialização suplanta a orientação; o comercialismo constrói o caminho para o show business e o pior resultado é a brutalização das artes marciais” (Forster, 1986).
Mas toda esta transformação não é repentina nem assume um aspecto linear.
Quando em 1933 o Dai Nippon Butokukai – organismo do governo nacional do Japão para as artes marciais – lançou o repto aos mestres de Karaté da altura a fim de que o então denominado Tode ou Karate-jutsu fosse reconhecido oficialmente no Japão, apresentou-lhes os seguintes critérios: desenvolvimento e implantação de um currículo de ensino unificado; adopção de um uniforme de prática estandardizado; criação de um padrão para avaliar com exactidão os vários graus de proficiência; a implementação do sistema de graduações dan-kyu de Jigoro Kano e o desenvolvimento de um formato competitivo seguro através do qual os participantes pudessem testar as suas técnicas e o seu espírito (McCarthy, 1996). Pretendia-se assim não só organizar o ensino desta arte, mas também tornar a mesma sua pertença original, por força de um poder nacionalista combinado com um sentimento anti-chinês. Assim, foi também proposto que se substituísse o primeiro ideograma por um melhor, dado que o mesmo simbolizava a China, e que se abandonasse o sufixo jutsu substituindo-o pelo mais moderno do, tal como no Judo e no Kendo.
McCarthy (id.) diz-nos que kara, que significa vazio, também pode ser pronunciado “ku” (esvaziado) e “sora” (céu), pelo que não representa só o aspecto físico mas também abraça o metafísico; no plano mais profundo de uma doutrina budista de interesse circundante representa a emancipação espiritual e o mundo dentro (vazio interior). Durante a perseguição da descoberta interior, kara representa a transcendência do desejo mundano, da desilusão, do apego. O sufixo do, tal como se encontra nos termos Kendo, Judo e Budo, significa «modo», «via» ou «caminho» e num contexto filosófico tornou-se um «modo de vida», uma «via» em que se viaja perseguindo o objectivo da perfeição no Karaté.
Numa reunião histórica em Outubro de 1936, em que estiveram presentes Shinpan Gusukuma, Tsuyoshi Chintose, Shoshin Shibana, Genwa Nakazone, Chotoku Kyan, Kentsu Yabu, Chomo Hanashiro e Chojun Miyagi, estes adoptam o termo Karate-Do ao mesmo tempo que decidem a manutenção das kata clássicas e a criação de algumas novas de cariz nacional.
Assim, e ainda segundo McCarthy (id.), o novo ideograma proclama que a disciplina plebeia de Okinawa, o Karate-jutsu, ultrapassou os limites físicos do combate e tornou-se num Budo moderno ao abraçar o que era japonês.
Sendo o significado do termo do proveniente do período Kamakura (1192-1333), 1615 é o ano em que um religioso budista escreveu o primeiro código Bushido, o Buke Sho Hatto ou «código das famílias guerreiras» (Braunstein, 1999).
Enquanto o sufixo jutsu significa a técnica, a arte, do é mais uma doutrina, denotando mais crença do que técnica, mais percepção do que execução, mais motivação do que acção (Ratti & Westbrook, 2000).
O Bushido era um código excelente se entendermos a moralidade num sentido estreito e especializado (um sistema ético inspirado no predomínio político e militar das famílias guerreiras). Mas este critério não é aplicável da mesma maneira quando a doutrina do Bujutsu tenta vincular a ética do guerreiro com valores de qualidade mais elevada, válidos à escala universal, para todos, em todas as partes e em todas as épocas, por dois motivos: 1º porque sempre que a doutrina do Bujutsu tenta proclamar as elevadas crenças das doutrinas orientais de iluminação como as motivações inspiradoras subjacentes à prática das artes marciais, deve ter-se em conta que proclamar a adesão a esses valores em teoria e viver segundo eles na prática (como a história dos homens amplamente demonstra) são duas coisas completamente distintas: 2º porque existe um grande contraste entre o carácter universal das doutrinas que suportam o Bushido (tais como o budismo, o taoismo e o confucionismo), tal como se pretendia originalmente, e a natureza do clã no Japão feudal, “particularista e necessariamente sectária da cultura japonesa com o seu conceito central de uma hierarquia vertical que devia impor-se e manter-se para traduzir o carácter universal de certas doutrinas essencialmente equalitárias e não violentas de desenvolvimento espiritual [...] em expressões sociais e políticas concretas” (Ratti & Westbrook, id.).
Verificamos assim que a existência de um código ético que possa colidir, ou pelo menos não se adaptar, com um sistema social altamente hierarquizado terá levado a que na prática ele pudesse não ser eventualmente cumprido.
Ratti e Westbrook (id.) dizem-nos que as originais doutrinas do budismo, e do taoismo, cuja mensagem ética está profundamente arreigada nos seus escritos poéticos, foram afectadas no processo de adaptação e aculturação ao Japão, tendo sido desprovidas dos seus cânones essenciais e simplificadas até se converterem em pouco mais do que formas expressivas de um ascetismo cuidadosamente ritualizado e exteriorizado, sendo uma característica da cultura japonesa até ao período Heian (794-1192) a geral e omnipresente ênfase no pragmático e utilitário mais do que no escolástico e no abstracto. Estes dois autores referem-nos também que, no século XVIII, há indícios da diferença entre a ideia japonesa de moralidade e o correspondente conceito ocidental, tal como um conjunto de normas universais separadas, e às vezes até antagónicas, das normas políticas e sociais particulares.
E quando consideramos o Bujutsu na perspectiva de um «como» funcional e estratégico do combate, estando o Budo relacionado mais exactamente com o último e mais humano «por quê» (ou seja, com as razões para se enredar num combate), “vemos que só em muitas poucas ocasiões tiveram êxito certos mestres de Bujutsu ao harmonizar o seu jutsu com o do mais elevado e com o imperativo ético até ao ponto de trocar ou transformar substancialmente as antigas técnicas de artes marciais de eleição (separando-as assim da especializada e estreita dimensão da experiência militar e transmutando-as em disciplinas de iluminação e de ganho social e espiritual)” (Ratti & Westbrook, id.).
E se há casos em que houve uma harmonização com sucesso do jutsu com o do na sua transição, Ratti e Westbrook (id.) dizem-nos que “estes raros casos de êxito, contudo, não justificam a suposição de que esta era a norma ou que, de um ponto de vista histórico, o jutsu (ou técnica) era o mesmo ou idêntico que o do de exaltada intenção ética”.
É curioso notarmos que, a nível de semiologia, os termos «judo», «kendo» e «iaido» possuem o sufixo apenso ao corpo da palavra, enquanto que no termo «Karate-Do» este se encontra ifenizado.
Sendo o Bujutsu a arte genérica do combate (com armas ou inerme), “quando falamos de um do universal (de um sistema ético influenciado pelos conceitos originais do budismo, taoismo, confucionismo e outros, numa escala verdadeiramente universal e humanitária que só merece o qualificativo de «moralmente excelente e superior»), consideramos acertado manter esse do separado do Bujutsu na doutrina, tal como estiveram separados nas suas aplicações históricas” (Ratti & Westbrook, id.).
Não sendo assim, o que de facto parece acontecer, verificamos que a todo o momento nos confrontamos com o dilema das contradições entre a aplicação prática da técnica (jutsu), as intenções da mesma, e as motivações últimas da via a seguir (do). Ratti e Westbrook (id.) salientam que este dilema é facilmente observável historicamente na maioria das artes marciais do passado e até em muitas disciplinas delas derivadas tal como se ensinam e praticam actualmente em todo o mundo. Há um contraste entre o que se anuncia praticar e o que na realidade se efectua. Daí o facto de podermos ter um desporto perfeitamente institucionalizado e regulamentado, com um programa técnico codificado, com elevados princípios filosóficos e com um código ético, mas verificarmos que na sua prática nem sempre despontam comportamentos éticos e morais.
Se a ética é um conjunto de princípios universalmente aceites, já a moral, prescritiva, se encontra condicionada pela cultura. Logo, também seria difícil fazer transitar de uma cultura oriental para uma cultura completamente diferente, a cultura ocidental, a sua moral, até porque “a difusão, ou seja, o transporte de realidades culturais de uma para outra cultura, não é um acto, mas sim um processo cujo mecanismo muito se assemelha ao de qualquer processo evolutivo” (Malinowski, 1997). E como tal, há acomodações e assimilações, há interpenetrações e interdependências, há progressos mas também degradações e degenerações, há ganhos mas também perdas.
Por isso mesmo as próprias noções de ética, moral ou «fair-play» (poder-se-á também chamar espírito desportivo ou verdade desportiva?) nem sempre estão presentes no Karaté e nos comportamentos adjacentes (mas quase que poderíamos afirmar que o mesmo acontece no desporto em geral, nomeadamente no profissional).
Primeiro, porque se confunde ética com moral. Segundo, porque se julga que aderir a princípios não escritos e cumpri-los é a essência do «fair-play». E terceiro, porque se vive o mito da meritocracia e o da igualdade de oportunidades no desporto (Inocentes, 2007b).
O desporto é talvez uma das actividades humanas mais regulamentadas e sujeita a um maior número de leis na opinião de um conceituado especialista em Direito do Desporto, mas ele próprio também afirma que o Direito não tem muitos amigos no desporto .
O ideal ético sobrepõe-se ao ideal jurídico, mas o mesmo não se pode dizer em relação ao ideal moral.
Há situações em que o moral é ilegal e situações em que o imoral é legal. Mas o ético nunca é ilegal.
A recusa em cumprir o serviço militar obrigatório por uma questão de objecção de consciência é uma questão moral, mas ilegal (Francis, 2004). O criar-se uma associação por um grupo defensor da moral utilizando-a com o objectivo de fugir ao fisco, embora legal, pela utilização sub-reptícia dos seus estatutos é, no entanto, imoral (Francis, id.). Mas se “quando lei e ética estão em conflito prevalece a lei” (Francis, id.), o contornar-se a lei, até por omissão desta, não é em deixa de ser moral, não é ilegal, mas é, isso sim, eticamente condenável.
Tal como é eticamente condenável, também sem ser ilegal, que um treinador que é simultaneamente árbitro ou juiz, em virtude da existência de uma única carreira, assuma uma das duas últimas funções numa competição onde estejam presentes e participem atletas seus, mesmo sem ajuizar nas suas provas.
Os conceitos de “liberdade, igualdade e fraternidade”, bandeira de jacobinos e girondinos na Revolução Francesa de 1789, são conceitos que se pretendem também fazer existir no desporto. Mas tal como constatamos naquilo em que degenerou tal movimento, também constatamos que o desporto se aproxima do seu mais elevado nível de entropia. E como nos diz Boaventura Sousa Santos (2007), as aspirações da modernidade – entre elas a liberdade, a igualdade e a solidariedade – tornam-se impossíveis na contemporaneidade sem sequer terem sido alcançadas.
Quando verificamos que um sociólogo, Edgar Morin, afirma que “nem os discursos da moral nem a educação ou as grandes religiões universais modificaram jamais os comportamentos humanos” (Morin, 2004) e também que um pedagogo, De Landsheere, realça que “o progresso científico está longe de ter estimulado simultaneamente o progresso moral” (De Landsheere, 1986) resta-nos duvidar, ou pelo menos pôr em causa, que o desporto actual possa de facto contribuir para o aperfeiçoamento do carácter dos seus praticantes.
Aliás, a formação e a educação, a par da construção da personalidade, têm sido dois mitos que sempre se encontraram intimamente ligados ao desporto.
Interrogamo-nos se a velha máxima Kantiana, que na sabedoria popular se exprime pelo provérbio «faz o que e digo e não faças o que eu faço» não se aplica ao Karaté, até porque uma das questões a ser investigada nesta modalidade deveria incidir na convergência (ou divergência) entre o proclamado e o efectuado, pois no Judo, Saito e Tavares (2006) concluíram que vem acontecendo uma diminuição gradativa da transmissão dos valores morais, o que indica uma dissonância entre o discurso e a prática.
Mas este pessimismo não deve ser exagerado nem generalizado, até porque já o próprio Musashi (2007) afirmava que “em todas as artes há muitas flores mas pouco fruto”. E o simples facto de haver flores deve alimentar o nosso optimismo...

VII – Conclusão

A transição progressiva de técnicas guerreiras a desporto (jogo) processa-se através de tempos e de lugares, assim como através de um processo histórico influenciado por mudanças e movimentações.
A passagem do Karaté de arte marcial a desporto de combate não é uma mutação repentina, mas um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos históricos) inserido em modificações socio-culturais e pela aculturação de uma realidade oriental na cultura ocidental. Todo este processo originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, até porque as condições históricas criaram situações objectivas de desigualdade.
Neste avanço temporal, assim como numa deslocação geográfica e cultural, há toda a transferência de rituais que perdem os seus significados originais e ganham outros similares ou diferentes.
Johnson (1986) diz que “a atitude ocidental é principalmente orientada para objectivos, pragmática e reducionista, apontando para a consideração do produto mais do que do processo, dos fins mais do que dos meios, e dos objectivos mais do que das experiências pelo seu próprio mérito. Em contraste, os orientais vêem as oposições como relação e fundamentalmente harmoniosas. Eles reconhecem uma não- -divisão entre produto e processo, fins e meios, ou objectivos e experiências”.
A segunda guerra mundial termina um ciclo da evolução do Karaté. Quando em 1945 o Japão se rende incondicionalmente às forças aliadas, a dissolução do Dai Nippon Butokukai faz com que o desenvolvimento unificado do Karaté fosse abandonado (McCarthy, 1996). Recordamo-nos de fotografias onde aparecem lado a lado Miyagi e Funakoshi, Funakoshi e Mabuni... o trabalho que era desenvolvido em conjunto passou a ser mais espartilhado, sem troca de conhecimentos e de experiências. Os estilos originais reproduziram-se em rede... Actualmente, só a institucionalização de modelos competitivos a nível mundial poderá ser um factor de uniformização do Karaté revelando tendências para uma unificação organizacional – mas existe o risco de surgirem/aumentarem as perversidades no seu seio (Inocentes, 2007b).
Do conceito tradicional de “mestre” desponta o conceito de treinador – uma actividade profissional que assenta numa prática essencialmente pedagógica que visa desenvolver competências, habilidades e saberes. Prática essa que faz o seu retorno sobre o próprio treinador – ou não se verificasse, como afirma Morin (2003), que o efeito volta sempre sobre a causa e, por retroacção, o produto é também produtor. Feitosa (2008) diz-nos que “Mestre é aquele que aprende, não aquele que ensina, porque o mais difícil é ensinar a si próprio e ensinar a si próprio é aprender”. E o treinador, sendo de facto treinador, aprende com os seus alunos.
Mas esse treinador não está confinado a um saber e a uma prática técnica e pedagógica porque ele está enquadrado numa realidade social. Daí o estar também ilimitadamente confinado, a um saber ético e moral, deontológicos, a um saber axiológico e a um saber organizacional, todos eles enquadrados globalmente por um saber histórico-cutural e por um saber sociológico porque ele próprio é parte de um contexto socio-histórico-cutural.
Se o treinador de Karaté sabe que, actualmente, já não tem cabimento defender que “as guerras não podem ser disputadas se um general tiver de se preocupar com os sofrimentos dos seus soldados” (Endo, 1987), ele também tem (deve ter!) a noção de que exerce uma actividade que deve encarar com profissionalismo, e sabe (deve saber!) que esta possui muito mais visibilidade e, como tal, deverá possuir mais e maior qualidade – uma qualidade transversal ao próprio modo de vida.
Ele encontra-se, neste momento, perante a necessidade de ver integradamente mais longe. Não pode aguardar para reagir já que não consegue prever e preparar. A incerteza, a indeterminação e o acaso fazem parte do desporto.
A formação é antagónica da reprodução. A evolução, no sentido de progresso, é o oposto da rotina e da repetição. Formação deve ser a procura constante, a inovação – não é difícil ensinar, até porque ensinar por si só não implica provocar «o aprender», difícil é descobrir o que necessita o formando para ser ensinado, para adquirir conhecimentos e como lhos transmitir a fim de os por em prática de modo a obter os melhores resultados, isto é, a realizar-se, a superar-se, a transcender-se. Princípios a ter em conta tanto na formação do treinador, que deverá ser mais cientificada do que experienciada com base na técnica e na graduação, como na formação dos seus formandos – os praticantes, competidores, atletas...
Gerir a formação desportiva é dar-lhe um sentido, um significado, um destino ético e humanístico possível. Reside aí a principal intenção do treinador de Karaté como agente construtor de uma verdadeira realidade social.
Formar não é mais do que um acto de criação apontado para o mais além, para o sublime, em direcção ao infinito.
O respeito que deve existir no Karaté, como princípio ético subjectivo, deve reflectir-se no dever, que no mesmo deverá existir, como principio ético objectivo. Se o Karaté começa e acaba com a saudação, é imprescindível que essa “saudação” exista sempre no espaço (físico e temporal) durante (entre) esse começo e esse términus. E torna-se imprescindível também que essa “saudação” transite para a vida, para o quotidiano.
O treinador de Karaté tem, imperiosamente, de romper com o determinismo, de provocar uma fractura em relação a “verdades imutáveis”, para fazer acontecer o futuro. E para isso tem de possuir uma visão de conjunto sobre cenários ético-socio-histórico-culturais do passado e do presente, assim como tem de conhecer e saber as realidades e as tendências da sociedade actual – centra-se aí o fulcro da sua actividade, uma actividade inter, multi e transdisciplinar, assim como se centra aí o fulcro epistémico da sua modalidade.

Porque o Karaté é muito mais do que Karaté...

Porque no Karaté, a maior parte das vezes, para não dizermos sempre, é a árvore que não nos deixa ver a floresta...

VIII - Bibliografia
A solicitar ao autor



I
Para uma Pedagogia do Karate-Do
Armando Inocentes
(Artigo publicado na revista «Bushido - Artes Marciais e Desportos de Combate», respectivamente no n.º 68 de Novembro de 1995, pp. 9-11, e no n.º 69 de Janeiro de 1996 , pp. 9-11).


1. TRADICIONALISMO VERSUS CIÊNCIA


Originalmente tudo está bem (tal como é)
Originalmente não somos nada (tal como somos)
Hôgen Daidô

No início reinava a magia.
Era o desconhecido, o deslumbrante, o quase impossível: era o reino dos truques, transmitido por uma linguagem espectacular e aliciadora que era apanágio apenas de uma elite.
Era uma imagem sedutora.
A imagem publicitou-se e alastrou captando novos adeptos.
A prática começou a desenvolver-se agarrada a conceitos tradicionalistas e empíricos, ficando por estudar, por definir e até compreender toda a materialidade que une permanentemente o visível - aquilo que se apresenta - e o invisível - o que é necessário para se chegar àquela apresentação - recorrendo somente ao acessível aos sentidos.
Mostrar uma prática que parecia imbuída de forças provenientes do além era suficiente para admitir a sua autenticidade sem se colocarem interrogações sobre os seus antecedentes sobre os mecanismos da sua acção. Realizar essa prática tratou-se de uma experiência que conduziu o pensamento para fora de todo o esquema racional fazendo com que a imitação e a coincidência fossem tomadas como prova de verdade.
A nossa experiência no Karate-Do, devido à acção de alguns neófitos intitulados "Mestres", partiu de verdades reveladas, nunca justificadas, mas em que tínhamos de acreditar. Apresentou-se como uma prática dogmática e intransigente, camuflada aqui e ali por um espírito pseudo-científico, muitas vezes com finalidades utópicas.
A acção desses "Mestres" fez do Karate-Do um exercício lógico sistematizado que avançou através de desenvolvimentos escolásticos. Pretenderam descobrir e evoluir com uma prática demasiado ortodoxa, repetitiva e estagnante. Fizeram com que o Karate-Do adquirisse uma nova roupagem transformando algumas das suas componentes, sujeitando-as a regras para lhe chamarem competição, pressupondo explorá-lo como desporto.
É urgente desmistificar o Karate-Do.
É urgente transformar o Karate-Do num método científico já que o Karate-Do terá de formar homens física, técnica e mentalmente Homens, assim como terá de formar homens humanamente Homens.

2. MESTRE VERSUS PEDAGOGO

Que deve conhecer o professor de latim que ensina o João?
- O professor efectivo responde: o latim;
- Um pedagogo responderia: o João.
Georges Mauco

Ao contrário do que a maior parte de nós imagina, o termo "Sensei" não significa "mestre". Decompondo etimologicamente a palavra, "Sen" significa "antigo, que se antecipou", enquanto "sei" está imbuído do conceito de "existência, pureza". Logo, "Sensei" é aquele que existe antes de nós em determinado campo e que detém uma existência pura, exemplar.
Os japoneses chamam Sensei aos seus pais, ao seu médico, ao seu professor... e dentro das Artes Marciais o título de Sensei é aplicado àquele que ensina como verdadeiro pedagogo, àquele que forma, àquele que se situa verdadeiramente dentro da via - daí a existência do termo "Do".
Entre nós é comum chamar-se "Sensei" ao instrutor que ensina num Dojo e muitas vezes chama-se "mestre" ao todo poderoso da sua Associação.
O estatuto de Sensei não se adquire só no Dojo em relação à prática e ao ensino, nem só por esta ou aquela graduação. O estatuto de Sensei conquista-se principalmente pelas atitudes e experiência de vida no dia a dia. Pelos exemplos que conhecemos de muitos dinossauros do Karaté-Do, concluímos que andamos a chamar erradamente de "Sensei" a muita gente...
Aquele que pura e simplesmente transmite a sua técnica, aquele que ensina o que lhe ensinaram e que faz com que os seus alunos o imitem não é um Sensei. Aquele que não tem um comportamento digno, honesto, ética e deontologicamente exemplar fora do Dojo, não pode ser chamado de Sensei.
No entanto estamos fartos de ver "Mestres" que não passam de discos partidos e que fazem dos seus alunos papagaios... "Não se ensina o que se sabe ou o que se julga saber; ensina-se o que se é". "Qualquer método pedagógico vale o que valer aquele que o aplica."
Os que examinam pelo simples facto de angariarem fundos, para si ou para a sua Associação, ou para justificarem a subida de graduação dos seus subalternos apresentando "quadros" (com progressão rápida dentro da "carreira" ostentando altas graduações) não podem visar o título de Sensei. Muito menos quando examinam e aprovam! Sem esperarem que os examinados adquiram conhecimento e experiência, e façam progressos. De certeza que esses "Mestres" não conhecem a história do rei que sabia esperar a hora apropriada para ordenar ao sol que se escondesse claro que era sempre obedecido!
Aquele que se serve dos alunos em vez de os servir e que sobre eles exerce a sua autoridade, esquecendo-se que "o que a torna válida não é a categoria da pessoa que a exerce, mas o facto de estar ela própria, a despeito, às vezes, das aparências, ao serviço dos interesses daqueles sobre quem se exerce " encontra-se longe de ser um Sensei.
São estes "Mestres" que têm vinculado o ensino do Karaté-Do entre nós. Um ensino mais simplista que experiente, mais moralista que moral, mais imitador e empírico que criativo, mais demagógico que científico.
Isto, porque os "Mestres" que temos são mais pedagogistas que pedagogos, ou talvez pedabobos...
Foram eles que transformaram uma arte de formação integral da personalidade humana numa amálgama de actividades orientadas para dois pólos: competição e exames de graduação.
Pergunta-se: não haveria Mestres sem Dan?.

3. COMPETIÇÃO VERSUS FORMAÇÃO

Desporto e pedagogia se os juntassem como irmão esse conjunto daria verdadeiros cidadãos? Assim, sem darem as mãos o que um faz, outro atrofia.
Sendo a vida diária uma competição, não é desajustada a competição como forma desportiva, mas sim o seu conteúdo e a maneira de se exercer essa competição, assim como o modo de se situar dentro dela.
É necessário transformar a competição num acto pedagógico. É necessário não por em jogo as taças e as medalhas, mas sim o procurar constante do aperfeiçoamento e da superação dos próprios atletas.
E se se pretende um desporto completo, formativo, não poderá haver dicotomia entre Kata e Kumite (o ginasta faz tapete, argolas, paralelas, etc.). Os lugares alcançados pelos atletas deveriam ter em conta estas duas provas, o que passaria por eliminar os especialistas numa só modalidade. Isto pressupõe um novo modelo de competição onde, a nível individual, o lugar alcançado seria o somatório entre as duas provas executadas pelo mesmo atleta. E porque não incluir, à semelhança dos outros desportos (ginástica, patinagem no gelo, etc.) uma prova que seria um misto de Kata e Kumite, talvez um Jyu-Ippon-Kumite ou uma Bunkai Kata, a qual seria atribuída uma nota técnica e uma nota artística que também contribuiriam para esse somatório? A nível de equipas, não poderiam ser os três elementos de Kata os três elementos de Kumite? Não poderia ser a pontuação final da equipa o somatório destas duas provas?
Claro que se pode contestar que haveria uma menor participação de atletas num campeonato, que haveria uma maior sobrecarga dos mesmos, que passaria a haver um elitismo maior do que o que já existe, que no aspecto do treino se teriam de profissionalizar.
Atletas e Treinadores, e mais um sem número de objecções...
Mas pergunta-se: Não haveria atletas mais completos? Não se treinaria com outros métodos o outros objectivos? A nível de público, não seria mais rico o espectáculo? A competição não estaria assim mais perto do verdadeiro espírito do Karate-Do?

4. EXAMES VERSUS AVALIAÇÃO

Três coisas pedimos à vida:
a coragem de mudar o que pode ser mudado;
a humildade de aceitar o que não pode ser mudado;
a inteligência para distinguir uma coisa da outra.

Provérbio Chinês

Todos nós fomos habituados a ver as diversas cores dos cintos dos praticantes de Karate-Do. Sempre nos disseram que foram instituídas porque o espírito ocidental necessitava de um estímulo, de um incentivo... mas poucas vezes as graduações nos foram apresentadas como representando uma competição connosco próprios ou como a superação de determinadas dificuldades e o atingir de certos fins.
Têm sido as graduações apresentadas como sendo uma promoção e uma recompensa esquecendo-nos que "a recompensa é, tanto como o castigo, uma sanção."
Até hoje, nunca vimos um cinto servir senão para manter o casaco do Gi fechado... embora haja pessoas a quem o cinto suba à cabeça! Deveriam usá-lo como um "hachi-maki"...
Há que discernir entre o atribuir-se/conquistar-se uma graduação e o realizar-se um exame de graduação.
"Prémios demasiado frequentes indicam ao general estar no termo das suas capacidades; castigos demasiado frequentes indicam estar profundamente aflito".
Um exame devia pretender ser uma avaliação pontual de conhecimentos técnicos, práticos, físicos e até mentais e éticos e uma observação sobre atitudes e decisões face a novas situações. No entanto os exames não são sequer uma comparação em relação ao caminho percorrido, não só do seu Dojo, mas também da sua Associação e do seu Estilo e muito menos em relação aos praticantes do resto do País.
Os exames, só tem servido para atribuir uma graduação ou passa ou reprova; os exames têm servido só para verificar as aptidões do aluno e para observar e realçar as suas dificuldades e, mediante um juízo, muitas vezes subjectivo, atribuir-se ou não uma graduação.
Há que discernir entre exame e avaliação.
Uma avaliação correcta deverá ser formativa, sistemática e contínua, sendo aferida em relação à planificação elaborada, ao programa existente, ao cumprimento dos objectivos a alcançar e à prática realizada, traduzindo-se essencialmente num juízo globalizante e fundamentado em dados inquestionáveis.
Só depois de uma avaliação correcta se pode aceitar o conceito de graduação e sua validade.
Quantos Mestres conhecemos que foram graduados sem serem submetidos a exame de graduação e sem passarem por todas as graduações? Quem examinou aqueles que detêm actualmente o 10º Dan, ou mesmo o 9º Dan?
A graduação não se dá nem se compra: a graduação conquista-se, mesmo que ela não exista, por mérito próprio.
A graduação é um vínculo que se estabelece entre Mestre e aluno daí o conceito de Giri...
E aqui levanta-se a questão: pode um 5º Dan graduar um aluno 4º Dan ou mesmo 5º Dan? Problema semelhante ao do professor que se recusa a dar um 20, porque se lho der este saberá tanto como ele...
Como dizem os japoneses, pobre do Mestre que não tenta que o aluno o supere, mas ai do aluno que não se esforçar por ser melhor que o seu Mestre duas atitudes raríssimas entre nós! O "Mestre" porque continua sempre a ser o detentor da verdade absoluta, imutável mantendo uma presença omnipotente, no seu pedestal. O aluno, na sua ingenuidade e na sua idolatria pelo "Mestre", basta-lhe ser igual a este. Atitudes, essas sim, que criam um ciclo reprodutivo (o aluno vai-se construindo à imagem do mestre até ser também divinizado) embora de nível decrescente e de qualidade cada vez mais inferior.
Servem então os exames de graduação para criar uma hierarquia onde há dominantes e dominados a qual vai sendo estabelecida em duas ou três horas, de três em três meses muitas vezes à porta fechada e somente para justificar essa hierarquia, espaço de tempo mais que insuficiente para analisar com consciência os principais parâmetros, de cada dos examinados, em que assenta uma graduação: Shin Kororo (espírito, mental), Ghi Waza (técnica, prática) e Tai Harada (corpo, condição física).
Diz-se que a experiência é a madre de toda a sabedoria. Mas com o decorrer dos anos, com a cristalização da massa encefálica, a experiência é muitas vezes, afinal, a madre de todos vícios e de todas as tradições obsoletas. "Quando há chefes incompetentes no campo de batalha, o sangue dos guerreiros é desnecessariamente derramado".
Sem um programa concreto, sem uma planificação baseada em objectivos específicos, métodos científicos e actividades cientificamente organizadas, não poderá haver uma avaliação válida. Sem uma avaliação válida não poderá haver um progresso nem evolução. Chegar-se-á então ao ponto de ruptura, ao descrédito e à frustração, por si difíceis de atingir pois o que é que haja quem acredite no actual sistema... e que continue a haver!
Pague-se o exame e receba-se o diploma!

5. DIPLOMAS VERSUS REALIDADE

"Não são apenas os que são experientes e sábios que têm mestres,
os tolos também têm os seus."

Uma Associação legalmente constituída tem a faculdade de poder emitir diplomas e conferir graduações aos seus associados daí o cada "Mestre" (ou mais humildemente Instrutor-Chefe) ser o patrão da sua própria "Universidade".
E dos muitos que vão "beber" a essa "Universidade", uns ficam de tal maneira etilizados que o melhor remédio que encontram para a ressaca é não saírem da bebedeira; outros, ao constatarem o modo como essas bebidas estão inquinadas e que afinal o "Mestre" não passa de uma "Rainha de baile" resolvem bater com a porta...
O valor desses "Mestres" é confirmado não pelo número de cintos negros que forma (ou disforma) mas sim pelo número daqueles que com ele permanecem desde o início e que consigo continuam.
E aqui se levanta mais uma questão: quando se rompe o Giri, quando há uma cisão, de quem é a responsabilidade? De quem detém o poder ou o dissidente?
O aluno é diplomado de Kyu em Kyu, de Dan em Dan, e mais tarde torna-se o próprio "Mestre". Mas isto aconteceu simultaneamente com mais 7, 8 ou 9 colegas seus. E o ciclo irá repetir-se eternamente... (já imaginámos que se cada 11 jogadores de uma equipa de futebol todos abraçassem a carreira de treinador no fim da sua vida de atletas, teríamos mais treinadores que jogadores?) até que daqui a uns anos, quando desaparecem os barões que polulam no nosso País, esses 7, 8 ou 9 "Mestres" andarão às cabeçadas para saberem afinal qual é o digno sucessor modelo mais uma vez reprodutivo daquilo que se passa no Japão.
Em Roma, os gladiadores dividiam-se em duas espécies: os vitoriosos e os mortos.
Os vitoriosos eram-no apenas até ao combate seguinte, onde tudo se iria jogar de novo. Os derrotados, não tinham sido mortos pelos seus colegas, eles também escravos, mas sim pelos senhores, ávidos de espectáculo, que se sentavam nas bancadas a aplaudir, saboreando em delírio o sangue derramado.
Mas o último gladiador, o vencedor de todos os combates, sabia que se não se pudesse sentar na bancada dos senhores, não teria ganho mais do que a incerteza de novos combates.
Haverá então, para que esses "Mestres" se sentem na bancada dos senhores, o recorrer ao currículo, aos estágios, aos títulos, aos diplomas...
Muitos desses "Mestres" chorariam amargamente o seu infortúnio, se lhes destruíssem os diplomas e os respectivos registos (se é que existem). Se nenhum panfleto comprovativo das suas qualificações pudessem exibir, talvez emoldurado numa parede do Dojo, perante os seus aduladores, os seus súbditos, seria um autêntico desastre.
Contudo, outros haveria a quem isso pouco incomodaria: os verdadeiros Mestres, pedagogos, técnicos e investigadores permanentes. Para estes, o canudo serviu apenas para satisfação de amigos, vizinhos e familiares e para preencher os requisitos de uma sociedade burocratizada. A esses, a ausência de diploma nada significaria. O seu diploma genuíno está dentro do seu cérebro, no seu sangue, na sua prática, no repetir o que sabe e, consequentemente, a ser mais enriquecido e mais qualificado. O pergaminho de caprichosa letra gótica ou de caracteres orientais rendilhados, será mais considerado como uma fronteira, uma metafísica a ultrapassar.
Há praticantes, verdadeiros Mestres, que há muito enriqueceram o que e como lhes foi ensinado, sobrepondo a essa prática e a esses conhecimentos, outros de valor mais profundo, actualizado e eficiente.
Entretanto, existem os que deixam ficar a contemplar, refastelados, o venerado "papiro" encaixilhado com penas de pavão, lisonjeando-se narcisísticos do "esforço dispendioso" (nunca em quantidade investida) para alcançar tão precioso galardão. A diferença entre estas duas classes de técnicos é abissal!
Uns quedam-se satisfeitos com a sua omni-sapiência, com a sua poltrona na bancada dos senhores quando afinal não passam de escravos do diploma!
Os que pretendem evoluir (talvez até nem tenham brilhado muito) possuem em si o dom da persistência indómita e, ao invés dos acomodátícos, praticam, estudam, aperfeiçoam-se, ensinam, trocam experiências, investigam e, ao contribuírem eles próprios para esse avanço técnico, são dignos de serem tratados por Sensei (sem necessitarem do Dr. antes do nome ou de títulos como Renshi, Kyoshi, Hanshi ou Shihan).
Estar preparado para demonstrar as suas aptidões e capacidades, mesmo que esse momento nunca aconteça, é um misticismo superior, que, ou se nasce com ele, ou se alcança após muitos anos de esforço e coloca esses praticantes num estádio superlativo.
Se só raciocinarmos em termos de binómios de trabalho recompensa, mais esforço prémio especial e produção excepcional consagração e glória, então é porque o nosso esquema mental já está petrificado e é de facto o mundo que gira em torno do nosso "Eu".
Um indivíduo que possui os cromossomas do sublime e da busca da verdade procura constantemente evoluir, aplica-se e aperfeiçoa-se para poder contribuir em prol dos que o rodeiam, em oposição aos que, encerrados na sua casca de ostra, esperam obter administrativamente benesses e fama graças aos louros que lhe foram concedidos.
Abstrair-se dos diplomas, despojar-se da graduação, é prova de independência, de uma vivência pura, de uma experiência sã e honesta, de valor intrínseco, mas só pode ser tornado realidade por aqueles que estão constantemente a valorizar o seu arquivo interior e a compartilhá-lo.
O substrato desse activo (o tal que nem a traça corrói, nem os ladrões roubam ou o fogo destrói) avança, ele próprio, rumo ao que é superior e inalienável.
Ignoremos pois os Diplomas! Encaremos a realidade!