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IV 

Textos de "Espaço Universidade" em «A Bola» online

Introdução

O desporto impregna as nossas vidas. Praticamos desporto, vestimos desportivamente, utilizamos um vocabulário recheado de termos desportivos, absorvemos o desporto que nos é divulgado pela comunicação social, comentamos e emitimos opiniões sobre o mesmo. Entranhou-se sem se estranhar!

Poucas vezes pensamos o desporto. Propalamos aos quatro ventos que o mesmo tem funções educativas, formativas e culturais – e sentimo-nos ufanos disso – mas esquecemo-nos que o mesmo também possui outras faces. Talvez porque seja politicamente correcto ignorar ou esconder as mesmas. Os sinais estavam aí desde a década de 70 de século passado… por aqui estão e persistimos na recusa de os querermos ver.

É necessário desconstruirmos e desmistificarmos o desporto para termos consciência do que consumimos. A sociedade de consumo (comprar, usar e deitar fora) evoluiu, refinando-se para uma sociedade do consumismo (comprar, não usar e deitar fora). As modificações que se verificam no desporto acompanharam essa evolução, são avassaladoras e desenvolvem-se a um ritmo alucinante. Tão alucinante que a nossa capacidade de análise não consegue acompanhar esse ritmo. Ninguém pensaria, há uns simples 10 anos que skateboarding, sport climbing, surfing e breaking – assim mesmo, com designação inglesa – seriam modalidades que viessem a fazer parte do programa dos J. O. (Paris 2024). Ou que, também por exemplo, os e-Sports tentariam também fazer parte do mesmo programa…

A crença de que o desporto possui valores e virtudes e que é um espaço de construção de valores assim como de construção do carácter dos seres humanos já não possui raízes sedimentadas. Nem que é um palco da ética. Ou um pedestal da moral. Acreditarmos que, ao entrarmos por um lado do desporto, nos submetemos a um processo mágico e que saímos pelo outro lado completamente virtuosos não é uma utopia, é uma falácia. O desporto por si só não é a solução para o sedentarismo, a obesidade, a hiperactividade, a indisciplina ou a falta de concentração de crianças e jovens tal como começa a revelar fracturas em relação à solução de problemas ligados à saúde mental, ao desemprego, à apaziguação de conflitos ou à solução de confrontos. O desporto transformou-se num objecto, e como tal, passível de mercantilização. Sujeito a uma economia de mercado.

E temos de estar atentos a esta realidade. E até tentarmos ver mais longe. O que não é difícil se, como disse Bernardo de Chartres (1130-1160), se estivermos sobre ombros de gigantes. 

E alguns desses gigantes levaram-nos a isso mesmo: a ver mais longe.

Subimos primeiramente sobre os ombros de Melo de Carvalho[1], em 1985, quando procurámos compreender as suas questões: “Que significados tem o espectáculo numa sociedade de consumo que é a nossa? Que papel desempenha a intervenção do dinheiro em toda a estrutura desportiva? Porquê e ao serviço de quem é montado o espectáculo?” Reparemos que as mesmas ainda hoje são actuais… como ainda é actual para além da violência no desporto outras violências tais como o acentuado abandono da prática desportiva entre os 14 e os 16 anos, o doping e a prática precoce da especialização desportiva, como o próprio refere. E foi este gigante que reforçou o facto de o ser biológico determinar o psíquico mas apenas pela mediação decisiva do social… assim como nos alertou para o facto de ser no processo educativo e cultural que se deve procurar a resolução dos problemas da violência no desporto – não é só o sistema desportivo que está em causa, mas também a totalidade da dinâmica social que o determina.

Olímpio Coelho[2], logo no ano seguinte, e em relação à actividade dos agentes desportivos, dizia-nos que não é a deficiente preparação técnica destes que leva ao insucesso no que se refere à sua acção e objectivos, mas sim a sua deficiente preparação psicopedagógica.

Aos ombros deste autor equacionávamos o papel do treinador porque (e citamos) “ – antes de se prepararem atletas preparam-se pessoas; – os praticantes, principalmente crianças e jovens são facilmente influenciados pelos adultos nos seus hábitos, atitudes e comportamentos; – a componente psicopedagógica é indispensável a uma efectiva formação dos praticantes; – as características que devem ‘marcar’ os praticantes adultos de nível só se ‘constroem’ durante o período da respectiva formação e com uma intervenção psicopedagógica adequada e correcta.

O treinador enquanto professor, o treinador enquanto educador, pelo menos nos escalões de formação, transporta uma grande responsabilidade. Em princípio influencia pela positiva aqueles que orienta. Mas nesse mesmo ano, sobre os ombros de Jorge Bento[3], começámos a dar conta que poderia não ser bem assim e que algo poderia não correr bem. São dele estas palavras numa obra também consagrada à psicopedagogia: o professor e o educador “podem fomentar fortemente o desenvolvimento harmonioso da personalidade dos seus alunos. Mas podem também, em certas circunstâncias, cometer erros e favorecer tendências de desenvolvimento que se converterão mais tarde em grandes problemas.”

No entanto a educação, a formação e a cultura deixaram de estar unicamente nas mãos de treinadores, de professores e de educadores. Os mass media e outras entidades entraram em jogo e “as mudanças tecnológicas, sócio-culturais e políticas ocasionaram um retrocesso nítido das possibilidades institucionais e intencionais de influência educativa das crianças e jovens, a par (e por efeito) da multiplicação das instâncias, mais ou menos anónimas e contraditórias, de educação e socialização.[4] E questionava Jorge Bento então por que motivo as concorrentes educativas (televisão, jornais, rádio, cinema, vida social, igrejas, instituição militar, partidos políticos, clubes, locais de recreação) não agiam de acordo com as máximas pedagógicas tradicionais. Era precisamente Jorge Bento[5] que nos dava a resposta: “porque agem de acordo com as leis do mercado! A sua ideia não é produzir aquilo que é bom segundo critérios pedagógicos, mas sim produzir aquilo que se deixa vender e consumir optimamente.

Dez anos depois, em 1996, estávamos sobre os ombros de Gustavo Pires[6] para constatarmos que “poderemos dizer que existem sete idiomas universais: o dinheiro, a política, a arte, o sexo, a droga, a corrupção e o desporto. O desporto reúne todos eles”. Com ele descobrimos que o competidor faz os resultados, os recordes, mas é a comunicação social que faz o ídolo. Porque “o desporto, as suas modalidades, áreas e sectores organizacionais, valem em função da mediatização que forem capazes de gerar e de gerir. Dos espaços escrito, oral, televisionado e/ou presencial que forem capazes de animar. O valor, cada vez é mais evidente, vale na razão directa das suas potencialidades mediáticas.” Era o colocar o dedo na ferida…

E não parávamos de subir aos ombros de gigantes. Não já para tratar do treinador ou da comunicação social, mas para tratar do competidor, do desportista – o sujeito da acção. Era o momento de subirmos para os ombros de Manuel Sérgio[7] pois era ele que nos interrogava: Em plena sociedade capitalista, o que é a prostituição senão corpos que se entregam, na procura exclusiva de dinheiro? E não é o atleta de alta competição um trabalhador que vende ao Clube a que pertence a sua força de trabalho? E não é, ele também, humilhado e ofendido, quando se põe em risco a sua saúde, através de anestesias locais, que escondem, por poucas horas, lesões ósseas e musculares, de alguma gravidade?

Os sinais estavam aí, todos aí, para não recuarmos ainda mais. Os alertas já aí estavam. E Jorge Bento[8] veio, para que subíssemos mais uma vez nos seus ombros, trazer-nos a constatação de que “num contexto de relativismo ético e legal, os princípios políticos e interventores mediáticos surgem apostados em cantar as virtudes da versão prevalecente do mercado, em branquear as suas perversões e esconder que os danos colaterais são calculados, programados, e produzidos de modo absolutamente objectivo, frio e racional.

Não adianta atribuirmos ao desporto mais funções que aquelas que ele consegue assumir. Não adianta petrificarmo-nos em crenças que já esboroaram há muito. Adianta, isso sim, tentarmos explicar o desporto através dos seus efeitos. Dos seus efeitos na sociedade e dos seus efeitos no indivíduo. Porque o desporto, que não nasceu para dar lucro, hoje se encontra mais submetido a interesses económicos e políticos do que a interesses desportivos. E principalmente tenhamos também presente as outras faces (obscuras) do desporto. Conheçamo-las. Denunciemo-las. Porque estamos a chegar a um ponto de não regresso.

O desconhecimento dessas faces não significa inocência… e só a denúncia dessas faces nos redime. Como nos disse Graham Greene[9]é extraordinário o sentimento de inocência que acompanha o pecado. (…) E quando amamos o nosso pecado, em verdade estamos condenados.

Respiramos desporto… e este tornou-se um fenómeno global, um facto social total (utilizando a terminologia de Marcel Mauss) mas são necessários contributos para compreendermos o fenómeno… ou, talvez mais do que isso, para o desconstruirmos. A presente obra, produto de setenta artigos publicados no jornal «A Bola» online na sua rubrica Espaço Universidade, desde Agosto de 2018 e apresentados por ordem cronológica dentro de cada capítulo, isso pretende. E pretende também ser uma modesta homenagem aos gigantes atrás citados – Melo de Carvalho, Olímpio Coelho, Jorge Olímpio Bento, Gustavo Pires e Manuel Sérgio pelo rasgar de horizontes. Alguns desses artigos foram actualizados, outros ligeiramente adaptados para uma leitura mais agradável. Esperamos que tenham aceitação por parte dos leitores...

  

1. Da hipocrisia no desporto…

16.08.2018

 

As pinturas rupestres de mãos, impressões positivas ou negativas, datadas entre 28 e 40 mil anos, quer sejam as mais antigas as de La Pasiega, de Chauvet ou da ilha de Sulawesi, transformaram o ser humano em espectador. O desporto transformou esse mesmo ser humano em espectador-consumidor.

Hannah Arendt[10] dizia-nos que a excelência – areté – necessitava da presença dos outros, de um público formal. Em 1936 já Hitler tinha percebido isso ao fazer transportar a tocha olímpica de Olímpia para Berlim, quando a televisão dava os seus primeiros passos na divulgação das imagens de uns Jogos Olímpicos…

Mas os atletas também perceberam que a existência desse público formal poderia servir para passar as suas mensagens. Tommie Smith e John Carlos, ao fazerem a saudação típica dos Black Panthers no pódio, foram talvez dos primeiros a demonstrarem isso nos Jogos Olímpicos de 1968, no México.

No Mundial de futebol de 2018, na partida entre a Suíça e a Sérvia, que a primeira venceu por 2-1, Xherdan Shaquiri e Granit Xhaka, autores dos golos da Suíça, comemoraram os mesmos fazendo um gesto, com as mãos cruzadas, aludindo à águia de duas cabeças da Albânia. Disse-se que provocaram os adeptos sérvios… Contextualizemos: Xhaka é filho de pais albaneses de origem kosovar ao passo que Shaqiri é mesmo kosovar… e sabemos que a Sérvia não reconhece a independência do Kosovo. A FIFA, solícita, abriu um inquérito e multou os dois jogadores suíços em 8,7 mil euros. Curioso a FIFA também sancionar jogadores que chamem «macaco» a um adversário considerando isso racismo e não sancionar um jogador por injuriar a mãe de um árbitro ou de um adversário porque esses termos fazem parte da linguagem do futebol… Hipocrisia ponto um!

Em 1999 a Nike pagou 500 mil dólares à União Ciclista Internacional para encobrir uma análise positiva de Lance Armstrong[11]… No entanto, a mesma Nike, em Outubro de 2012, ano em que Armstrong perde os seus 7 títulos do Tour, emite um comunicado onde expressa ter sido enganada por Armstrong durante mais de uma década e que a mesma “não tolera o uso de drogas ilegais que melhorem o desempenho desportivo”. Hipocrisia ponto dois!

E se o desporto criou o espectador-consumidor, a entrada da publicidade em jogo neste levou a alterações profundas no espectáculo. O que significa alterações profundas no desporto.

Antes da era Armstrong, alguém na Europa conhecia os US Postal? Ou deles tinha ouvido falar? Não, foi ele que lhes deu visibilidade, foi ele que os publicitou durante todos os anos em que os carregou às costas. Mas o Estado norte-americano pretende reaver de Lance Armstrong – como se só ele fosse patrocinado e não toda a equipa – a quantia de 85 milhões de euros por sentir-se defraudado pelo patrocínio abonado pelos US Postal entre 2000 e 2004… com juros referentes a 13 anos… Hipocrisia ponto três!

Um dos últimos casos onde poderemos detectar essa hipocrisia passou-se na América do Sul (Dezembro de 2018): a equipa feminina do Atlético Huila, da Colômbia, conquistou a Taça Libertadores, mas o prémio (55 mil dólares) vai para… a equipa masculina que milita na Primeira Divisão da liga colombiana!

Se o consumo do desporto pelo espectador e a publicidade provocaram mutações no desporto, a intromissão da política no mesmo maior alteração veio a provocar. O atentado ocorrido nos J. O. de Munique, em 1972, e os boicotes aos J. O. de 1980, em Moscovo, e aos de 1984, em Los Angeles, disso são provas.

Desde 2017, muitos desportistas, principalmente de futebol americano, nos Estados Unidos, ajoelhavam-se durante a entoação do seu hino como forma de protesto em relação às políticas daquele país. Donald Trump pronunciou-se: “a primeira vez que se ajoelharem devem ser expulsos do jogo, à segunda devem ser proibidos de jogar durante a temporada e ficar sem salário”. Era a força da política sobre o desporto a sobrepor-se à capacidade do mesmo resistir à intromissão da mesma. Exemplo disso é o caso do jogador da NFL Colin Kaepernick que se viu no desemprego por ser um dos contestatários iniciais. E mesmo quando a NFL se colocou a o seu lado a situação persistiu… pelo menos até 2020.

A hipocrisia institucional encontra-se também no desporto a partir do momento em que o movimento associativo começou a ser regido por imposição legal… da política. Exemplo concreto reside no actual Regime Jurídico das Federações Desportivas, pois o mesmo pode determinar que uma associação ou um clube com 2000 federados esteja representada(o) numa Assembleia Geral de uma qualquer federação apenas por um ou dois delegados… ou até não ter nenhum por não ter conseguido eleger ninguém. No entanto, é possível uma congénere com 300 federados ter dois, três ou mesmo quatro delegados nessa reunião magna desde que ocupassem um lugar elegível numa lista… É o que acontece quando um RJFD é feito para o futebol mas aplicado a todas as outras modalidades.

No campo da hipocrisia situacional poderemos ir desde a fraude nos resultados competitivos até à utilização de meios ilícitos… para não termos de falar na exploração infantil ou na corrupção.

Em 1997, no Tour de France, Richard Virenque pagou quinze mil euros a Ian Ulrich para que este o deixasse vencer a etapa de Courchevel, enquanto em 1999 Jérome Chiotti (apanhado pelo doping em 1996) pagou sete mil e quinhentos euros a Miguel Martinez, companheiro de fuga, para lhe comprar o título de campeão de França em BTT…

As pressões a que estão sujeitos os competidores para atingirem certos resultados, as pressões a que são sujeitos não só pelas entidades patronais e pelos treinadores mas também pelos sponsors, levam a situações em que são triturados para benefício de alguns poucos. Nada mais hipócrita do que isto! A evolução de uma actividade praticada como ócio e que acaba por degenerar numa mercantilização a isso leva. Esse é um dos sinais deste desporto pós-moderno.

Uma vozearia rebentara no solar. Voltaram para trás a toda a pressa e tornaram a espreitar pela janela. Sim, eclodira uma violenta altercação. Havia gritos, murros na mesa, olhares ferozes de desconfiança, desmentidos irados. A origem do tumulto parecia residir no facto de Napoleão e o Sr. Bonifácio terem jogado simultaneamente dois ases de espadas. Doze vozes gritavam, furiosas, e todas se assemelhavam. Era agora evidente o que sucedera aos rostos dos porcos. Os animais diante da janela olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.” Assim termina George Orwell o seu «A Quinta dos Animais»[12]. Assim se encontra o desporto… refém do espectador-consumidor, da publicidade, da política e da hipocrisia.

 

2. Silly season: quatro apontamentos

05.09.2018

 

1. Eduardo Galeano no seu livro «Futebol: sol e sombra»[13] perguntava-nos quantos teatros estão metidos no teatro do futebol…

Após o jogo entre o Boavista e o Porto, realizado a 6 de Maio de 2006, foi instaurado um processo sumaríssimo ao jogador Ricardo Silva, do Boavista, sendo este acusado de ter agredido com uma cotovelada o portista Anderson. A época desportiva terminou vindo-se a conhecer só em Outubro, 5 meses depois, a decisão da Comissão Disciplinar da Liga: suspensão de um jogo para o agressor. Ficou assim o Boavista impedido de contar com o mesmo para o primeiro confronto perante o Nacional na época de 2007/2008. O comportamento do jogador foi sancionado mas só teve reflexos no campeonato seguinte…

Em Itália, o Parma acedeu à Série A na época 2017/2018, mas no último jogo da Série B, contra o Spezia, um dos seus jogadores pretendeu influenciar o resultado, tendo enviado mensagens a um dos adversários tentando convencê-lo a não dar o seu melhor nessa partida. Resultado: o mesmo foi suspenso por dois jogos e foi-lhe aplicada uma multa de 20 mil euros… e o Parma foi penalizado iniciando a época seguinte com cinco pontos negativos. Mais um caso ocorrido numa época e numa série, com reflexos na época seguinte e numa outra série… Teria o Parma subido se o ilícito tivesse sido sancionado do mesmo modo na época respectiva? Não!

E o mesmo Eduardo Galeano dizia-nos que “a moral do mercado, que é, no nosso tempo, a moral vigente, autoriza todas as chaves do sucesso, mesmo as que tenham a forma de um pé de cabra”.

2. O COI estabeleceu que, para os Jogos Olímpicos da Juventude de Buenos Aires 2018, cada país poderia apenas participar com uma selecção, por género (uma equipa masculina ou uma equipa feminina), nas modalidades colectivas que integram o respetivo quadro competitivo – e são quatro as modalidades. O COP definiu como critério prioritário que se mais do que uma modalidade estivesse qualificada, participariam duas modalidades e não apenas uma única, garantindo uma maior diversidade da representação nacional. Acontece que apenas se apuraram para participar as selecções de Portugal de Andebol de Praia (feminina e masculina) e de Futsal feminina. Curioso é o facto de «género» ser um critério de apuramento…

Foram assim escolhidas as selecções de Portugal de Andebol de Praia masculina e de Futsal feminina, ficando de fora a selecção feminina de Andebol de Praia.

Entretanto, Carlos Resende, treinador de andebol do Benfica e pai de uma das jogadoras desta última, veio a terreiro afirmar (DN, 14.08.2018) que “a FIFA ou a UEFA é que decidiram. Isto do Futsal masculino não se qualificar é uma falácia, porque também se apuraram e depois houve ordens para que fosse retirada a candidatura”.

E o mesmo Galeano dizia-nos que “o futebol profissional é intocável porque é popular. «Os dirigentes roubam para nós», dizem, e acreditam, os adeptos”.

3. Inês Henriques e Nélson Évora venceram, respectivamente, as provas de 50Km Marcha e de Triplo Salto, no Campeonato Europeu de Atletismo de 2018. Ambos se revelaram os melhores da Europa, a primeira aos 38 e o segundo aos 34 anos.

Somos porque ganhamos”, disse-nos Eduardo Galeano. “Se perdemos deixamos de ser”, disse-nos o mesmo Galeano…

As excepções vão dando a ideia que tudo está bem! Numa comitiva com 35 atletas para 2 medalhas de ouro (é pouco mas é ouro, exulta-se!) Portugal ficou-se por um 11º lugar no medalheiro e 94,3% dos mesmos não chegaram ao pódio nem perto dele ficaram…

Todos os sucessos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis” dizia Pangloss a Cândido (sim, o Cândido de «Cândido e o Optimismo» de Voltaire[14]), ao que este retorquia: “tudo isso está certo, mas é preciso cultivar a nossa horta”. Cultivemos pois a nossa horta: como a temos cultivado até aqui, ou de maneira diferente…

4. E apesar do mesmo Eduardo Galeano nos ter dito que os ideólogos amam a humanidade mas desprezam as pessoas, Tiago Brandão Rodrigues, ministro português responsável pelo desporto, veio declarar que “não é obviamente necessário ter a mesma profundidade de conhecimento quando estamos a treinar jogadores num escalão de iniciados do que quando estamos com equipas seniores”… Pois não, nem é obviamente necessário ter a mesma profundidade pedagógica…

 

3. Valores: evolução ou degenerescência?

24.09.2018

 

Na Piscina Oceânica de Oeiras deparamo-nos com um painel onde se afirma que a prática da Vela “procura aprofundar valores de cidadania, companheirismo, amizade, tolerância, confiança e auto-estima em cada um dos participantes”.

É mais que comum no Karate recorrer-se a cinco máximas, afirmando-se que a prática do mesmo aperfeiçoa o carácter (1), cultiva a sinceridade (2), incentiva o desenvolvimento do esforço (3), fomenta o respeito pelo próximo recorrendo à etiqueta (4) e promove o autocontrolo (5).

Não há modalidade desportiva que não alarde a existência de valores no seu seio durante a fase de formação dos seus praticantes.

E se podemos estabelecer uma comparação entre a ontogénese e a filogénese da motricidade do ser humano, também nos deparamos com um paralelismo entre a evolução axiológica do desportista e a evolução dos valores do e no desporto…

Se na fase de iniciação e formação do praticante o modelo pedagógico pretende inculcar valores no mesmo, o objectivo principal do desporto até à primeira grande guerra mundial era a moral e a educação.

Na fase da especialização do desportista o resultado começa a ser sobrevalorizado, isto é, sobrepõe-se a qualquer um outro valor - treina-se e compete-se com vista a um determinado resultado tendo-se em conta o espectador que assiste ao evento. Foi após a primeira grande guerra mundial que começou a emergir no desporto o objectivo espectáculo.

Quando o desportista se encontra na fase de rendimento, a vitória é a única coisa que conta, tentando-se alcançá-la por vezes sem se olhar a meios. O desportista começa a estar sujeito já não só ao seu desempenho mas também a pressões exteriores e o desporto metamorfoseia-se dado que o desportista tem de satisfazer o treinador, o clube, o patrocinador… Compara-se à fase do desporto moderno em que “ganhar não é o mais importante, é a única coisa que importa!” (como referiu Vince Lombardi) e muitas vezes, para além da vitória, importante é também o recorde. Foi a partir da década de 80 que o desporto começou a ser mais uma indústria geradora de comércio e de comunicação.

Por fim chega-se à fase da profissionalização. O desportista é peça de uma engrenagem da qual já não se consegue libertar e, por isso mesmo, tem de fazer parte da mesma. Estamos então no desporto pós-moderno: tudo se quantifica, tudo se negoceia, tudo é mercantilizado. Entram em cena no desporto nesta etapa os mass media, a alta tecnologia, a publicidade, o direito, a economia e a política.

Parece assim haver em toda esta evolução uma degeneração de valores… Se no primeiro caso se pode considerar essa degeneração como adaptação a um sistema em constante mudança, no segundo existe um processo intencional e planeado onde as disputas de poder acabam por programar mudanças de comportamento.

Como refere Mihir Bose[15], “o desporto adquiriu uma filosofia antes de ter sido adequadamente organizado e, em grande medida, o principal problema do desporto moderno é esse choque entre sua filosofia do século XIX e o subsequente desenvolvimento de muitos jogos, já que eles tiveram que reagir a um diferente, e em constante mutação, mundo.

As consequências dos acontecimentos acima referidos levam em primeira instância a uma reprodução. Em segunda instância levam a uma inovação, ou a constantes inovações, onde uma análise abrangente das mesmas nos remete para aquilo a que Jack D. Forbes[16] chamou de “patologia uética” – o desprezo pelo ser humano, a exploração do trabalho de outrem em função de objectivos ou lucros privados. Poderemos dizer pois que a patologia uética invadiu o desporto.

A reprodução torna-se então madre dessa inovação.

Tolstoi[17] dá-nos um exemplo muito concreto em “A morte de Ivan Ilitch”, quando a personagem principal, juiz, é atendido pelo médico: “Ivan IIich foi-se. Passou-se tudo como ele esperava, e como sempre se passa. Longa espera, ares solenes e doutorais, bem conhecidos dele – porque fazia o mesmo no tribunal –, auscultação, as perguntas do costume, exigindo certas respostas antecipadamente determinadas e evidentemente inúteis, um ar importante que queria dizer: não tem mais que nos obedecer e nós arranjaremos tudo; estamos fartos de saber, sem dúvida possível, como as coisas se arranjam, sempre da mesma maneira, seja qual for o paciente. Tudo se passava exactamente como no tribunal. Tal como ele representava no tribunal diante dos acusados, o célebre doutor representava ali diante dele.

A questão não são os que representam, porque aproveitando-se destes outros ditarão novas leis, gerirão novos destinos, administrarão novas organizações ou novas instituições. A questão coloca-se perante aqueles que não abandonando a sua zona de conforto permitem que surjam, para além dos danos centrais consentidos, danos colaterais.

Mihir Bose[18] salienta ainda que o desporto transformou-se num gigante económico que se tornou muito maior do que ele – mais do que um meio de passar o tempo, de se exercitar ou de ter um pretexto para uma aposta. Essa transformação levou a uma degenerescência dos valores do e no desporto.

 

4. Kant e Freud explicam o desporto

16.10.2018

 

O Código de Ética Desportiva (2014, Lisboa, IPDJ) diz-nos que “o Espírito Desportivo deve ser vivido por todos os agentes, elementos-chave no exemplo a dar aos mais jovens. Deve ser concretizado dentro e fora da competição desportiva, devendo nortear a sua prática e constituir a ‘espinha dorsal’ da mesma.

Entende-se assim o espírito desportivo como algo não só inerente aos intervenientes directos na competição mas também em relação a todos os envolventes.

Os associados dos clubes pagam as suas quotas, os espectadores compram o seu bilhete e enchem os estádios – aplaudem, gritam, pululam… e, por vezes, insultam (insultam-se) ou agridem (agridem-se). Os competidores, cumprindo as regras ou não, procuram alcançar sempre a vitória - por vezes utilizando instrumentalmente meios ilícitos. Os dirigentes gerem as organizações para as quais foram eleitos com métodos e estratégias diferentes uns dos outros – uns mais válidos, outros nem tanto. Os árbitros… os treinadores… a análise poderia ser extensa!

Tudo isto será uma questão de educação? Uma questão de cultura? Uma questão de ética? Uma questão de “espírito desportivo”?

Bem… quando se prevarica não é de certeza uma questão de “espírito desportivo” – ou talvez seja… mas mais de falta dele. Ao evocar-se o espírito desportivo seria bom reflectir-se se na docência existe um “espírito pedagógico”, se na medicina existe um “espírito médico”, se na arquitectura existe um ”espírito artístico”… e por aí fora. A existirem são muito menos evocados.

Noutra obra[19] demonstrei a bivalência do desporto… urge agora debruçarmo-nos um pouco sobre as origens (algumas) dessa mesma bivalência.

Com Immanuel Kant[20] aprendemos que “a educação é o problema maior e mais difícil que pode ser proposto ao homem”. A educação visa formar indivíduos autónomos, emancipados e com uma identidade própria de modo a adaptarem-se a uma sociedade, a uma cultura, onde se inserem, mas apresenta-nos uma antinomia: “como cultivar a liberdade pela coacção?” – pergunta-nos Kant. E é este mesmo filósofo que nos diz que a educação concilia, através de uma legítima coacção, “a submissão [do indivíduo] com a faculdade de servir-se da sua vontade”.

É através deste antagonismo que se forma o ser humano, construindo-se um indivíduo com propensões altruístas e sociáveis mas simultaneamente com tendências egoístas e desintegradoras. Resume Kant numa outra obra esta ideia a um termo: “insociável-sociabilidade”…

António Damásio[21] deixou-nos a ideia que o comportamento altruísta é passível de ser treinado e praticado na sociedade. Mas diz-nos também que existe a alternativa contrária. Não há garantias que sendo treinado e praticado na sociedade resulte sempre, “mas existe como recurso humano consciente, presente através da educação”.

Encarando-se o desporto como um meio educacional durante os períodos de iniciação e de formação, também o mesmo não consegue fugir a esta antinomia. Os valores que se pretendem inculcar no jovem praticante, tais como a cooperação, a amizade, a tolerância, a justiça ou a equidade esbarram com o individualismo, o egoísmo, a tentação da vitória a qualquer preço, a competição exacerbada.

Foi Kant que nos mostrou que a educação se torna no uso livre da razão moral dependendo dela que o indivíduo saiba utilizar a sua vontade pessoal e agir livremente. Mas a antinomia presente naquela leva a que a coacção passe a ser uma auto-coacção conduzindo o indivíduo a agir livremente mas em conformidade com o dever, ou seja, resistindo a tendências menos civilizacionais.

Encontramos o mesmo tipo de raciocínio em Sigmund Freud[22]: “as duas premências, a que se volta para a felicidade pessoal e a que se dirige para a união com os outros seres humanos, devem lutar entre si em todo o indivíduo, e assim também os dois processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa oposição hostil um com o outro e disputar-se mutuamente a posse do terreno.

Nestes dois autores – o filósofo e o psicanalista – verificamos que é através de uma adaptação cultural que o homem acede à humanidade na sua plenitude (não se trata tanto de discutir o inato e o adquirido), tanto na sua evolução filogénica como ontogénica. Essa adaptação cultural pressupõe no indivíduo tendências altruístas e sociabilizantes mas também egoísta e desintegradoras.

 Vale a pena demorarmo-nos um pouco mais numa outra obra de Freud[23]: “(…) cada indivíduo é virtualmente um inimigo da civilização, apesar de ter que reconhecer o seu geral interesse humano. Dá-se, com efeito, o facto singular de que os homens, não obstante, ser-lhes impossível existir no isolamento, sentem como um peso intolerável os sacrifícios que a civilização lhes impõe para tornar possível a vida em comum. Assim, pois, a cultura há-de ser defendida contra o indivíduo, e a esta defesa respondem todos os seus mandamentos, organizações e instituições.

A ética do desporto, cada vez mais ventilada diariamente, tem conseguido dar ao desporto um outro rumo? Pensamos que não e até Freud ao analisar o mal-estar na civilização já dizia que a ética deveria ser considerada como uma tentativa terapêutica… A presença de comportamentos exemplares no desporto tal como a existência de comportamentos reprováveis é uma realidade porque “tanto em nós como nos demais, encontramos sempre lado a lado uma solicitude pelos outros e motivos egoístas[24].

Tal como a velha história contada pelos índios sobre os dois lobos dentro de nós… E quando o neto pergunta “Qual o lobo que vence?” o velho índio responde:Aquele que tu alimentas!

 

5. Os mitos reinantes no desporto

12.11.2018

 

É atribuída a Joseph Goebbels a frase “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Sendo um mito uma narrativa para explicar factos ou fenómenos que a ciência não explica de modo plausível ou inequívoco e que o cidadão comum não conhece na sua profundidade, vamos denominar “mito” essa “verdade” de que nos falava o Ministro da Propaganda da Alemanha nazi entre 1933 e 1945.

Ser o desporto um meio que fomenta a construção da personalidade ou do carácter do praticante tem sido um dos mitos sempre apresentado relevando-se a sua positividade. Mas a fraude, o utilizar todos e quaisquer meios para alcançar a vitória, a corrupção e o uso de substâncias dopantes mostram-nos que o desporto não constrói o carácter de um desportista, antes revela-o.

Qualidades como a persistência, a iniciativa e a autoconfiança não são somente específicas do desporto e não são só treinadas no e através do desporto. Que elas possam ser treinadas no desporto e depois automaticamente transferidas e aplicadas em outras esferas da vida carece de confirmação. Peter Arnold[25] dizia-nos que “esta última perspectiva é seguramente uma das ingénuas e infundadas no relacionamento entre o desporto e o desenvolvimento do carácter.

Quando Kant nos deixou o seu imperativo categórico – age de tal modo que a tua vontade possa considerar-se a si mesma como constituindo uma lei universal por meio da sua máxima – estava longe de prever que esse “meio de formação” está para o desporto tal como o gato de Schrödinger está para a mecânica quântica: vivo e morto ao mesmo tempo.

O facto de inúmeros desportistas se profissionalizarem aos 12 ou aos 14 anos, exacerbando-se assim o espírito da competição porque sujeitos a enormes pressões e exigências demonstra estarmos na presença de algo camuflado: a exploração infantil no desporto. Poderá nestas idades e nestas condições o desporto contribuir para a formação do carácter destes desportistas?

Temos como um dado adquirido que o desporto promove valores – mais um mito. Não temos dúvidas que o desporto promove valores, mas também promove contra-valores. Tomarmos consciência da existência desses contra-valores, sabermos identifica-los e reconhecermos que estes são obstáculos que se opõem à promoção de verdadeiros valores é tarefa urgente e necessária.

O mito da saúde no desporto é outro daqueles que constantemente vem a lume. O desporto dá saúde, diz-se, mas… a morbilidade e o abandono de carreiras desportivas precocemente, a morte súbita em plena prática desportiva, as inúmeras mortes de desportistas não explicadas e um sem número de suicídios no desporto mostram-nos o contrário. Gustav Caroll[26] pergunta por que motivo teremos de aceitar a ilusão da associação entre o desporto e a saúde, a confusão voluntária entre jogo e rivalidade, exercício e competição? E interroga-nos ainda sobre o facto de se encorajar este masoquismo que enche os hospitais e faz prosperar as clínicas do desporto… Manuel Sérgio[27] diz-nos que “ninguém faz este desporto para ter saúde; fá-lo porque tem saúde”. Posição essa corroborada por Jorge Bento[28] quando afirma que “o alto rendimento não se inspira na ideia de fomentar a saúde; mas isso não o autoriza a atentar deliberadamente contra ela.

O mito da igualdade de oportunidades dos participantes no desporto também costuma estar sempre presente dado que o espaço onde este desenvolve as suas actividades assim como as normas que regem as mesmas são comuns. Mas este mito ignora as desigualdades de condições desses mesmos atletas – condições individuais diferentes (genéticas, anatómicas, fisiológicas ou psíquicas), diferentes condições de treino (metodologias de treino, infraestruturas desportivas, competências de treinadores e restante staff, apoios económicos) e até díspares condições de participação no momento (tempo) – esse sim – comum a todos os competidores (onde todos os antecedentes atrás assinalados emergem).

Sendo um mito algo que justifica uma crença comum, verificamos que o desporto está cheio deles e ele próprio deles necessita… porque os mitos resolvem as nossas próprias contradições: podemos justificar o «real» pelo «desejável». E podemos incorporá-los nas nossas vivências, tal como nos explicava Kafka[29] numa das suas metáforas: Os leopardos invadiram o templo e beberam o vinho dos vasos sagrados. Esse incidente repetiu-se com frequência. Por fim, chegou a calcular-se de antemão a hora exacta do aparecimento das feras. E a invasão dos leopardos foi incorporada no ritual.

 

6. Do “fair-play”… ou do “enganem-me que eu gosto”!

26.12.2018

 

Fala-se de futebol, pensando-se que se está a falar de desporto. Fala-se em ética no desporto quando se deveria estar a falar de moral no desporto. Fala-se de fair-play em qualquer situação nem que seja somente no mero cumprimento do regulamentado… Utilizam-se indiscriminadamente no desporto meia dúzia de termos que se foram banalizando acabando-se por se perder o seu real significado. Um problema de semântica ou um problema de conhecimento? Ou ainda, um problema de manipulação?

Tanto a comunicação social como o público consumidor de desporto acabam vítimas de um espectáculo apresentado por profissionais em que os valores da cultura desportiva original há muito se esfumaram, criando-se assim um círculo vicioso. Um dos termos mais generalizados é “fair-play”… aquilo que se exige ao desporto mas que não se exige no dia a dia-a-dia da sociedade ou da política…

A noção de fair-play encontra-se relacionada com omissões nas regras e regulamentos ou com situações em que o agente desportivo – competidor, treinador ou outro – busca uma certa equidade, procurando o mesmo adaptar essa omissão existente à situação do momento, pretendendo aplicar um critério de justiça e igualdade, sendo esse fair-play um comportamento intimamente ligado aos valores do referido agente e que são moral e culturalmente relevantes perante a sociedade e que a mesma legitima.

Falacioso o título “Peruanos e dinamarqueses dão show de fair-play nas redes sociais – Federações de ambos os países deixam o exemplo” (Record, 30.05.2018)…

Intitular uma notícia ou um artigo, tal como se pode ver na internet (12.12.2018), com a frase “Um fair-play brutal: Dínamo de Kiev dá a mão ao Shaktar e deixa Paulo Fonseca emocionado” porque um clube cede o seu campo a outro nada tem a ver com fair-play… poderá ter a ver com cortesia e com bom relacionamento entre clubes…

Tal como o facto do judoca egípcio Islam El Shehaby, que se recusou a cumprimentar o adversário, Or Sasson, de nacionalidade israelita, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro nada ter a ver com ausência de fair-play, mas sim com a formação do competidor e com a sua falta de respeito pelo adversário.

A própria FIFA colabora neste erro ao chamar «regra do fair-play» ao critério que desempatou o Japão e o Senegal no grupo H no Mundial de futebol de 2018. Os japoneses acabaram por passar para a segunda posição do grupo, à frente dos senegaleses, por estes terem mais dois cartões amarelos atribuídos que os nipónicos. Este aspecto organizacional, legal e regulamentar nada tem a ver com a noção de fair-play

O comissário Iúri Rodrigues, num artigo intitulado “A pirotecnia verbal e literal é o que mais preocupa” (O Jogo, 25.11.2018, p. 33), ao abordar a problemática dos comentadores desportivos – “gurus da informação” segundo as suas palavras – sobre os mesmos afirma que “há falta de fair play, quere-se ganhar a todo o custo e julgam que estão legitimados a criar ambientes de intimidação.” Mais um uso incorrecto do termo fair-play, porque o que existe é falta de princípios…

Não é uma questão de fair-play ajudar ou socorrer um adversário num momento de lesão. Este é um acontecimento – que muito aparece na história do desporto – relacionado com a solidariedade entre seres humanos.

O fair-play é um comportamento, logo algo visível, determinado por valores. Está intimamente ligado à acção de um qualquer agente desportivo ao prescindir de algo que lhe é favorável para repor uma situação. O agente abdica assim de uma situação vantajosa em prol da reposição da veracidade dos factos.

Num jogo de futebol em 2005, Miroslav Klose, então atacante do Werder Bremen, avisou o árbitro de que este tinha marcado uma grande penalidade inexistente favorável à sua equipa, pelo que o árbitro anulou a sua decisão. Em 2012, desta vez ao serviço da Lazio, Klose marcou um golo com a mão, o árbitro validou-o mas a seguir o próprio jogador deu conhecimento ao mesmo da ocorrência, voltando este atrás com a sua decisão. Fair-play declarado!

Mas existe também o reverso da medalha. Em Novembro de 2009, no França-Irlanda de apuramento para o Mundial de 2010 na África do Sul, Thierry Henry joga deliberadamente com a sua mão esquerda a bola e Gallas marca de cabeça, sendo o golo validado pelo árbitro… e a França apura-se. Após o jogo Henry declarou: “Sim, houve mão, mas eu não sou o árbitro.” Em Junho de 2010, em jogo de apuramento para o mesmo Mundial, mas com outros intervenientes (Alemanha e Inglaterra), Frank Lampard remata à baliza, a bola bate na trave, ressalta para o chão transpondo a linha de golo, e Manuel Neuer, agarrando a bola coloca-a de novo em jogo. Nada sancionado… Mais tarde, diria Neuer: “Tentei não reagir ao árbitro, concentrando-me apenas no que estava a acontecer. Dei-me conta de que estava para lá da linha e penso que o facto de eu ter sido tão rápido enganou o árbitro, fazendo-o pensar que não estava.

Muitos exemplos conhecidos de jogadores que propositadamente falham a marcação de grandes penalidades poderão ser confrontados com um dilema. Isto porque, no desporto pós-moderno, o jogador é pago pela entidade patronal para marcar golos… e não para ser honesto.

No final de 2018 vieram a terreiro duas notícias coincidentes no tempo e no ocorrido. A primeira, sobre a segunda jornada da 2.ª fase do Campeonato Distrital de Infantis, entre o Aljustrel e o Alvito. A equipa visitante alinhou somente com 6 jogadores (futebol de 7), pelo que o Aljustrelense, por sua iniciativa e sem que qualquer regulamento o obrigasse, fez alinhar também a sua equipa com menos um jogador. A segunda, acerca do jogo de futsal entre as equipas de iniciados do Vitória de Santarém e do Sport Clube Ferreira do Zêzere – escalões de formação – em que esta segunda equipa só se pode apenas apresentar com 4 elementos. Os escalabitanos entenderam então fazer alinhar a sua equipa também só com 4 jogadores. Seriam estas situações semelhantes – e sim, demonstrativas de fair-play – possíveis no futebol profissional?

Exijamos e pratiquemos o fair-play na vida diária, na convivência com os nossos semelhantes, mas exijamos também que não nos tentem enganar com a utilização indiscriminada desse termo no desporto.

 

7. Da violência

30.01.2019

 

O mês de Janeiro de 2019 apresentou-nos o facto de uma jovem árbitra ter sido agredida à cabeçada e com cuspidelas por um treinador num encontro de infantis em futsal entre o CPCD e o Povoense. Apresentou-nos também as agressões entre adeptos, alguns deles pais, durante um jogo de iniciados, entre Real Sport Clube e o Despertar de Beja, disputado em Massamá. E mostrou-nos ainda a agressão do treinador do Anadia ao treinador do Loures no final do encontro de futebol entre estas duas equipas e referente à série C do Campeonato de Portugal.

Em comum aos dois primeiros acontecimentos a ocorrência dos mesmos em jogos de escalões de formação… Comum ao primeiro e ao último o facto de serem considerados comportamentos de violência no desporto, enquanto o segundo tem de ser tipificado como violência associada ao desporto.

Ao longo da filogénese da espécie humana verificamos a presença constante de duas características: a competição e a violência. Constatamo-las da caça ao desporto moderno, do circo romano ao desporto olímpico.

Inicialmente tudo por causa de uma questão de sobrevivência, posteriormente numa codificação que pretende substituir a guerra. Mas se nos primórdios o homem reagia a uma ameaça súbita com a fuga ou com o ataque, actualmente os métodos refinaram-se. As garras transformaram-se em unhas e os crimes de sangue foram substituídos pelos crimes de colarinho branco. E isto porque o homem foi criando regras e regulamentos para viver em sociedade e porque foi criando códigos para a justiça ser igualmente aplicada, tendo os indivíduos de respeitar as leis por medo de sanções ou de serem reprovados moralmente pelos seus pares e por se sentirem culpados à posteriori da sua desobediência a esses códigos.

A predisposição genética para o comportamento violento, os valores morais do indivíduo e a sua aprendizagem social determinam a maior ou menor propensão para o ocorrer da violência, despoletada pela situação. São as características desta situação, que depende da actividade em que se insere, do grupo de intervenientes e do espaço em que ocorre, que são muitas vezes preponderantes para determinar a ocorrência de um comportamento de violência. Verifica-se esta premissa nos três casos acima apresentados.

Mas parece que a serotonina e a dopamina desempenham também um papel importante na ocorrência destes comportamentos. Não podemos então olhar só para o social, temos de olhar também para o biológico. Se o papel desempenhado pelo indivíduo no momento é determinante, tal como o seu status, não é menos importante a sua herança genética e os processos químicos que se desenvolvem no seu organismo.

O primata civilizado é então vítima (produto) de transmissões ao longo de um processo evolutivo tal como de circunstâncias do momento. E se, através da razão, não salva as suas circunstâncias, não se salva a si mesmo (como nos disse Ortega y Gasset).

No livro «O Desporto debaixo de fogo – entre valores e perversidades»[30] podemos encontrar um capítulo dedicado à violência durante a prática desportiva, no treino e na competição, onde podemos constatar que a violência no desporto não é mais do que o reflexo da violência na própria sociedade e onde também podemos verificar que a violência no desporto se pode reflectir na violência na própria sociedade. Segundo vários especialistas de Ciências do Desporto são aí dissecadas as causas dos comportamentos de violência no desporto e apresentados inúmeros exemplos que mostram diferentes tipologias dos mesmos.

Para Patrick Laure e Marc Falcoz[31] a violência é facilmente olhada como um factor que contribui para se superar, para chegar mais alto e para se transcender, e “longe de ser um benefício para o desenvolvimento do indivíduo, ou de restabelecer a sua integridade física ou moral, esta forma de «violência» ser-lhe-á ao contrário benéfica.Atletas, competidores ou desportistas desejosos de alcançar a vitória mesmo que não seja a qualquer preço estão submetidos à condição de poderem recorrer a comportamentos de violência porque o desporto não existe sem a vitória e sem a derrota. Mais o estão quando a pretendem alcançar sem olhar a meios. Treinadores bem formados e interessados em formar seres humanos estão sujeitos ao mesmo. Treinadores interessados só em ganhar, aniquilar e destruir de certeza que recorrerão à violência…

Gustavo Pires e António Cunha[32] dizem-nos que a ética da competição desportiva vive na necessidade de gerir um paradoxo de extraordinária complexidade: “se, por um lado, a agressividade competitiva não pode disparar para níveis incontroláveis, sob pena de o desporto deixar de ser uma atividade positiva do ponto de vista educativo, económico, político e social, por outro lado, qualquer tentativa para erradicar a agressividade subjacente ao jogo competitivo poderá deturpar a essência da pratica desportiva enquanto espaço de confronto sem o qual o desporto deixa de usufruir das condições da sua existência.

É esta ética da competição desportiva que terá de dar prioridade à razão sobre o sentimento, que terá de dar primazia à reflexão sobre a emoção. Só ela separa o homem do animal. E o homem terá de dar prioridade a esta ética no e do desporto.

Será possível um desporto sem violência? A resposta é declaradamente NÃO!

O criador da sociobiologia, Eduard O. Wilson[33], diz-nos que “somos governados por emoções inscritas no nosso ADN por acontecimentos pré-históricos pouco conhecidos e apenas parcialmente compreendidos”. Daí os comportamentos de violência reactiva… E continua afirmando que “entretanto, profundamente confusos, fomos catapultados para uma época técnico-científica que pode, com o tempo, adequar-se bem a dar instruções a robôs, mas não aos valores e sentimentos antigos que nos mantêm indelevelmente humanos”. Por isso mesmo neste desporto pós-moderno, essencialmente técnico-científico a todos os níveis, extremamente mercantilizado, se recorre a comportamentos de violência instrumental…

Poderia haver um desporto sem violência? Claro que poderia, poderia mas não seria a mesma coisa!

 

8. Da morte súbita

22.03.2019

 

Fábio Mendes, jogador de futsal do Centro Social de São João, faleceu durante o jogo com o Portimonense no início de Março de 2019. Segundo veiculou a comunicação social, foi vítima de um ataque cardíaco fulminante. Três dias depois somos confrontados com a notícia de que Kenneth To, nadador vencedor de uma medalha de prata pela Austrália nos Mundiais de 2013, morreu aos 26 anos depois de se ter sentido indisposto durante um treino, na Florida, nos Estados Unidos.

Chamam-lhe a “síndroma da morte súbita” e reside no nosso imaginário como que acontecendo só de vez em quando no desporto, pois “o desporto dá saúde” e os desportistas são dos seres humanos mais bem controlados e vigiados medicamente.

Recordemo-nos que em Junho de 2003, em directo na televisão, Marc-Vivien Foé, jogador camaronês, morreu em campo aos 28 anos, quando alinhava pela selecção do seu país, na Taça das Confederações, no jogo contra a Colômbia. Talvez o primeiro grande caso porque foi possível a milhões de espectadores confrontarem-se pela primeira vez, em cima do acontecimento, com esta realidade transmitida em tempo real.

O caso mais mediático em Portugal, também porque transmitido em directo pela televisão, foi o de Miklós Fehér, jogador do Benfica, em Janeiro de 2004, em pleno estádio do Guimarães.

A comunicação social, solícita numa retrospectiva, logo repescou o caso de Pavão, jogador do Porto, falecido durante a partida entre este clube e o Setúbal em Dezembro de 1973. E logo tivemos a oportunidade de ver a circular algo parecido com o «entre este caso e o de Fehér nada se passou».

Ora, antes do caso de Pavão, embora menos divulgados, podemos registar as mortes dos futebolistas Rico do Varzim, Mário Ventura do Leixões, Lemos do Marinhense e João Pedro do Vilanovense.

Entre Dezembro de 1973 (Pavão) e Janeiro de 2004 (Fehér) faleceram entre nós durante a prática desportiva – treino ou competição – pelo menos 15 futebolistas, 3 basquetebolistas e 3 ciclistas. Depois de Fehér muitos outros casos semelhantes aconteceram em Portugal…

Parecem ser casos a mais, alguns dos quais ocorrendo mesmo com crianças, numa actividade que se diz promover a saúde… até porque o próprio Comité Olímpico Internacional registou de 1966 a 2004 a ocorrência de 1101 mortes súbitas. A média é de 292 casos anuais…

Na síndroma da morte súbita o coração não suporta o intenso esforço físico a que é submetido e a morte é causada por uma paragem cardíaca. Este desfecho fulminante é a primeira manifestação de uma doença de que não se tem conhecimento, a qual é muitas vezes congénita e indetectável nos exames convencionais – dizem os especialistas… diz a comunidade médica.

O relatório da autópsia de Fehér apontava para uma hipertrofia cardíaca moderada como causa da morte deste futebolista.

Mas para além das causas das mortes, imperativo era serem estudadas e divulgadas as origens dessas causas, pois para cada caso o importante seria não ter voltado a acontecer.

E não só as causas mas as suas origens por que motivo?

Porque enquanto a causa explica o facto, a sua origem explica um processo como afirma André Comte-Sponville[34]. Porque se um condutor se despista e morre a causa pode ser o excesso de velocidade mas a origem dessa causa pode ter sido o facto de ele ter perdido o seu emprego antes de iniciar essa sua viagem… Porque se um indivíduo se suicida com um tiro na cabeça a causa da sua morte pode ser a falência do cérebro mas a origem dessa causa pode ter sido uma discussão conjugal…

E 2021 começou para nós da pior maneira: o futebolista Alex Apolinário, de 24 anos, caiu inanimado no jogo entre o Alverca e o União de Almeirim a 3 de Janeiro sofrendo uma paragem cardio-respiratória, vindo a falecer quatro dias depois e Paulo Diamantino, basquetebolista internacional português do Mirandela Basket Clube com 35 anos, morreu a 8 de Janeiro em pleno jogo com o Juventude Pacense… Para não se ficar por aqui, perdemos Alfredo Quintana, de 32 anos, guarda-redes de andebol do Porto e da selecção nacional logo no final de Fevereiro. Mais três casos para confirmar a regra!

 

9. Do riso e da loucura

02.04.2019

 

Em 1967 Guy Debord publicou «Sociedade do Espetáculo»[35], uma análise mais económica, filosófica e histórica do que cultural. Uma obra em que o autor declara queo espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O espetáculo é, materialmente, «a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem».” Nitidamente uma obra em que o espetáculo é dissecado numa óptica das relações de produção e não centrada no espectador. Numa das poucas vezes em que Debord se preocupa com o espectador afirma que “a alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo.

Mario Vargas Llosa publicou em 2012 «A Civilização do Espetáculo»[36] mais preocupado com a cultura do nosso tempo. Uma cultura que, no sentido tradicional conferido ao vocábulo, talvez já tenha desaparecido (a confusão total provocada pelo capitalismo entre preço e valor, em que este último sai sempre prejudicado, conduz à degradação da cultura e do espírito que é a civilização do espetáculo). Llosa chega mesmo a afirmar que “a ideia de progresso é enganosa”…

São mais os pontos que separam estes dois livros do que aqueles que possuem em comum. Mas complementam-se. No entanto, enquanto no primeiro se pode constatar que o consumidor real se torna um consumidor de ilusões, no segundo afirma-se que “nos nossos dias, os grandes jogos de futebol servem acima de tudo, como os circos romanos, de pretexto e libertação do irracional, de regressão do indivíduo a sua condição de parte da tribo, de peça gregária na qual, amparado no anonimato da sua tribuna, o espectador dá rédea solta aos seus instintos agressivos de rejeição do outro, de conquista e aniquilação simbólicas (e às vezes até real) do adversário.”

São duas obras preocupadas com o espetáculo mas não com o espectador. Debruçam-se sobre um mas não sobre outro.

Como espectadores rimo-nos da loucura de certas ideias. Rimo-nos quando uma diretora executiva da Liga de Clubes nos apresenta as suas ideias sobre as vantagens da decisão no possível regresso da venda de álcool de baixo teor nos estádios de futebol. Rimo-nos quando o problema não está nos desportistas, nos competidores, nos atletas, mas em nós. Na nossa loucura, nós encorajamo-los quando aclamamos as suas vitórias. E nós continuamos atrás do golo! E continuamos atrás do recorde! Vamos atrás da exaltação!

Rimo-nos quando uma diretora executiva da Liga de Clubes afirma que “a nossa mentalidade é ainda a de ‘cerveja e tremoço’, portanto temos de dar seguimento.” Rimo-nos e nem sequer damos conta da loucura da tentativa de perpetuação de uma cultura escondida nestas palavras. Reprodução… diria Bourdieu! Perdemos a possibilidade de análise, perdemos o espírito crítico e não damos conta, como nos diz Llosa nessa mesma obra, que “o vazio deixado pelo desaparecimento da crítica permite que, insensivelmente, a publicidade o tenha preenchido, convertendo-se esta nos nossos dias não só em parte constitutiva da vida cultural como no seu valor determinante.” E é precisamente aqui que reside a grande questão: o espectador existe porque a publicidade necessita dele. Não há espetáculo sem espectador, não há publicidade sem espectador. Este é o eixo fulcral de todo o mecanismo. E “a publicidade exerce um magistério decisivo nos gostos, na sensibilidade, na imaginação e nos costumes.”[37]

O espectador tem de consumir não só o espetáculo mas também a publicidade. Quem a paga? Não é o Clube, desiludam-se, somos nós. Não é a TV, desiludam-se, somos nós. Porque quando compramos um perfume, não estamos só a pagar o cheirinho… estamos a pagar a embalagem, estamos a pagar o frasco, estamos a pagar o aspersor, estamos a pagar o rótulo, estamos a pagar os anúncios…

Temos a Liga NOS, a taça CTT, a Liga SportZone… mas já não temos o Pavilhão Atlântico, temos o Altice Arena… já não temos Pavilhão Rosa Mota, temos o Super Bock Arena… temos «a fome de vencer»… “portanto temos de dar seguimento.”

O próprio Comité Olímpico de Portugal assinou um protocolo (19.02.2019) com os Vinhos da Bairrada. Ah grandes apreciadores e consumidores dos Vinhos da Bairrada… que irão pagar o famoso néctar, a garrafa, a rolha, o rótulo e… toda a publicidade!

Desde 2006 que a publicidade para produtos relacionados com o tabaco foi banida na Fórmula 1 – antes era norma! Entre nós a Sagres é o parceiro mais antigo da Federação Portuguesa de Futebol – desde 1993: portanto temos de dar seguimento.” Ou seja: não fumemos mas bebamos!

Quando temos antevisões de jogos e conferências de imprensa em que o que interessa não é o que os protagonistas dizem mas sim a enorme quantidade de logotipos que proliferam nas suas costas e que subliminarmente entram para o nosso cérebro, temos de dar seguimento a umas bjecas, a uns tremoços e a uns caracóis… temos de dar seguimento à loucura.

E recordamo-nos aqui que Demócrito, respondendo a Hipócrates em “Do Riso e da Loucura”[38], quando lhe disse: “Atribuis ao meu riso duas causas, as coisas boas e as coisas más, porém, na verdade, não me rio senão por uma razão, do homem insensato, desprovido de rectidão, pueril em todos os seus desígnios e que sofre, sem daí retirar benefício algum, com os infindáveis esforços que envida, e que é impelido por imoderados desejos a aventurar-se, até aos limites da terra e nos abismos imensos, na conquista de prata e ouro, não cessando jamais de os alcançar, sempre afadigado em granjear mais, a fim de não ficar na ruína.

 

10. Erradicar a violência do desporto? (I)

20.04.2019

 

Notícia vinda a lume e intitulada “Ministro da Educação quer erradicar violência no Desporto” (www.sábado.pt, 17.04.2019) dá-nos conta do lançamento da campanha «Violência Zero», afirmando-se que o governo está apostado em acabar com os casos de violência, racismo e xenofobia nos recintos desportivos. Só faltou acrescentar-se aqui os casos de «corrupção» e de «dopagem», já que se continuam a omitir os casos de violência sexual (sim, porque existem no desporto!), os casos de fraude nos resultados desportivos, de morte súbita em plena pática, de morbilidade, de exploração infantil, de mortes inexplicadas, de suicídios no desporto…

Assegura o Ministro da Educação, que tutela o desporto, ser esta a “janela de oportunidade ideal para atuar com uma campanha vasta de sensibilização", frisando que "sempre que exista um caso de violência no desporto, será um caso a mais". Mais uma campanha de sensibilização – e por que não incluir nos currículos escolares, já que neles se despejam tantos conteúdos, o combate à violência no desporto ou à violência associada ao desporto?

O Decreto Regulamentar n.º 10/2018, de 3 de outubro, cria a Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto, que tem como missão assegurar a prevenção e fiscalização do cumprimento do regime jurídico do combate aos contra-valores acima enunciados, acrescentando-se “a intolerância nos espetáculos desportivos” de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança, prevista na Lei n.º39/2009, de 30 de julho (repare-se, nove anos depois!). A primeira questão que se coloca é: o que fez esta “Autoridade” até ao momento? Atente-se que no seminário “Estados de Sítio” (Março de 2019), Magina da Silva, superintendente-chefe da PSP, mostrou a inação dos vários agentes desportivos até porque dos 15 adeptos proibidos de entrarem em estádios de futebol nenhum foi proibido por ordem do IPDJ (CM, 01.04.2019, p. 36)… A segunda questão que se coloca é: a preocupação será erradicar a violência no futebol, a violência associada ao desporto (e não a “violência no desporto”), ou a preocupação será a realização da final da Liga das Nações em Portugal entre os dias 5 e 9 de junho de 2019, no Porto e em Guimarães?

Mas regressemos ao cerne do tema! Será possível erradicar a violência do desporto e erradicar a violência associada ao desporto? Já aqui demos uma primeira resposta a esta interrogação no 7º artigo desta compilação, com o título “Da violência”…

No que se refere à primeira parte desta pergunta, a origem guerreira do desporto, o carácter simbólico da morte em cada competição, e a agonística inerente ao próprio desporto levam a que os praticantes por vezes utilizem uma violência instrumental para atingirem os seus objectivos enquanto outras vezes, com o calor da refrega, utilizem uma violência reactiva. O alcançar a vitória na competição faz com que a violência instrumental faça parte da natureza humana. Até porque “a ganância é inerente ao homem[39]. A utilização da violência como reacção, uma resposta emocional a uma provocação, encontra-se inscrita no código genético da humanidade. Como afirma Dolf Zillmann[40], “não encontramos em nenhuma outra espécie uma concepção inteiramente racional de estratégias de agressividade eficaz, nem uma justificação moral da agressividade. Estas motivações distinguem-nos, pois, dos outros animais.” E se, por um lado, a selecção natural da espécie humana favoreceu a nível de grupo especialmente o altruísmo e a cooperação, por outro lado a raiva, o ciúme e a vingança são emoções que “fazem parte dos programas instintivos já estabelecidos no hipotálamo e noutros centros de controlo emocional dos nossos antepassados há dezenas de milhões de anos”, na opinião do criador da sociobiologia, Edward O. Wilson[41].

Portanto, parece-nos ser possível controlar-se (diminuir-se) tanto a violência instrumental como a violência reactiva na prática desportiva, erradicar as mesmas não!

Em relação à segunda parte da mesma pergunta, quanto à violência associada ao desporto, ela tanto pode ser diagnosticada em relação aos intervenientes directos no espectáculo (jogadores, árbitros, treinadores, dirigentes) como em relação aos espectadores – meros adeptos ou claques – ou ainda em relação às forças de intervenção. E segundo Robert Sapolsky[42]nós não odiamos a violência. Odiamos e tememos o tipo errado de violência, aquela que ocorre no contexto errado. Porque a violência no contexto certo é diferente.” Porque o contexto depende do grupo em que o indivíduo se encontra inserido (simples adeptos, claque, stewards, grupo das forças da ordem) – e o indivíduo age e reage sempre de uma maneira diferente quando inserido num grupo como nos mostra a psicologia de massas –, depende do espaço (o campo de jogo, as bancadas, a «gaiola», o espaço envolvente ao estádio) e depende também do tipo de evento (um mero jogo, um derby ou uma final). Resta saber quem define o contexto… Nós ou os outros? E quando os outros somos nós?

Ainda em relação à violência associada ao desporto, temos os exemplos da Inglaterra e da Alemanha em que a redução de episódios violentos foi conquistada não só com a aplicação de leis eficazes como com a colaboração entre as autoridades e organizações de adeptos. No caso inglês com a Football Supporters Federation e no caso alemão com a Unsere Kurve. E se na Suécia a Svenska Fotbollssupporterunionen (federação de adeptos) está ao mesmo nível das autoridades – tanto governativas como futebolísticas – nas discussões sobre os rumos a tomarem-se em relação ao futebol, em Portugal a Associação Portuguesa de Defesa do Adepto para nada é tida ou achada. Somos lestos a copiar muito do que de bom se faz lá fora… mas só em relação a alguns exemplos.

Se atentarmos no que nos diz Vargas Llosa[43], veremos que “nos nossos dias, os grandes jogos de futebol servem acima de tudo, como os circos romanos, de pretexto e libertação do irracional, de regressão do indivíduo a sua condição de parte da tribo, de peça gregária na qual, amparado no anonimato da sua tribuna, o espectador dá rédea solta aos seus instintos agressivos de rejeição do outro, de conquista e aniquilação simbólicas (e às vezes até real) do adversário.” Nada mais do que «panem et circenses»… Mas há outras varáveis que aqui poderemos – e teremos de – contemplar: a «publicidade», os «mass media» e o próprio «espectáculo».

Panaceia, neta de Apolo, a deusa capaz de curar todos os males e todas as enfermidades, não seria por acaso filha de Asclépio, o qual se tornara deus da medicina. Também não será por acaso que o anúncio de uma campanha de sensibilização que pretende “erradicar a violência do desporto” não passe de mais uma panaceia quando se faz da publicidade a estratégia-mor das políticas públicas…

 

11. Erradicar a violência do desporto? (II)

29.04.2019

 

Arturo Pérez-Reverte[44], no diálogo entre Jaime Astarloa, o mestre de armas, e Marcelino Romero, o professor de piano, mostra-nos as posições antagónicas de dois comuns mortais, uma talvez mais utópica, outra talvez mais realista.

Aquele último declara:

Sou contra qualquer tipo de violência, pessoal ou colectiva.

E o seu interlocutor contrapõe:

Pois eu não. Há nela tonalidades muito subtis, garanto-lhe. Uma civilização que renuncia à possibilidade de recorrer à violência nos seus pensamentos e acções destrói-se a si mesma. Transforma-se num rebanho de carneiros a degolar pelo primeiro que passe. O mesmo acontece aos homens.

A etologia, a psicanálise, a sociologia, a psicologia social, a história e até a filosofia mostram-nos que os comportamentos de violência são inerentes ao ser humano… A evolução biológica não modelou por si só o homem: no campo da ontogénese combinam-se três factores fundamentais – a estrutura genética, o efeito social e a acção ou esforço pessoal; no campo da filogénese, o desaparecimento dos instintos no ser humano só foi possível realizar-se porque existiu uma compensação por parte de uma progressão paralela da tradição, da cultura, do poder inventivo (conhecimento) do homem e porque a sociedade vai conservando o saber adquirido… e tenta melhorar esse saber.

A etologia mostra-nos que tanto o comportamento agressivo como o comportamento altruísta foram pré-programados através de adaptações genéticas que se processaram ao longo da filogénese da humanidade. Logo, não poderemos libertarmo-nos de um ou de outro indiscriminadamente… António Damásio[45] realça a dualidade cooperação-conflito ao afirmar que “as estratégias cooperativas fazem parte da composição biológica homeostática dos seres humanos, o que significa que o embrião da resolução de conflitos está presente nos grupos humanos, a par da tendência para conflitos.” Yuval Harari[46] salienta que a importância decisiva da cooperação a larga escala é provada à sociedade pela História e que “o fator decisivo na nossa conquista do mundo foi a capacidade de ligarmos o maior número de humanos entre si.” Parece-nos assim justificar-se não ser com o incremento de novas leis, o acrescentamento de sanções e de prémios ou o lançamento de campanhas de sensibilização que se conseguirá «erradicar a violência do desporto». Até porque para Damásio[47]parece ser razoável pressupor que o equilíbrio entre a cooperação salutar e a competição destrutiva depende, em grande medida, da contenção civilizacional e da governação justa e democrática, capaz de representar aqueles que estão a ser governados.

Em 1982, a então Direcção-Geral dos Desportos lançava a «Desportos revista» (n.º 1, Jun/Jul) com carácter bimestral. Recordamo-nos da contra-capa dessa revista onde se podia ver a silhueta de uma pomba em mancha branca estilizada segurando nas patas uma bola com uma venda a toda a volta desta sobre um fundo azul-claro. A legenda, em letras bem grandes, era «desporto sem violência». Talvez uma das primeiras campanhas a serem lançadas sobre este tema…

Em 1991 foi comemorado o Ano da Ética Desportiva no nosso país.

A Comissão Europeia decidiu designar 2004 como o Ano Europeu para a Educação pelo Desporto.

A Organização das Nações Unidas proclamou 2005 como o Ano Internacional do Desporto e da Educação Física.

Vinte e um anos depois Portugal repete-se: 2012 acabou por ser o Ano Nacional da Ética no Desporto.

De todas estas campanhas, de todas estas comemorações, de todas estas proclamações, o que resultou em termos de erradicação da violência associada ao desporto? A resposta é «nada!». Mas só o é devido a quatro motivos (causas) muito simples: 1º - a iliteracia sobre o assunto dos que estiveram à frente dos destinos de todos esses eventos; 2º - o só se ter recorrido a uma tentativa de manipulação dos consumidores do espectáculo desportivo em conluio com os mass media; 3º - o abandono de uma análise consciente e de um espírito crítico por parte destas vítimas que se traduziu no ignorar das mesmas; 4º - a falácia da ética no desporto.

Porque eles desconheciam que no indivíduo mantém-se sempre “uma determinada disposição agressiva que mais facilmente virá ao de cima numa oportunidade que se lhe ofereça, quanto mais longa for a impossibilidade que tiver para se libertar” como nos mostra Eibl-Eibesfeldt[48]. Porque desconheciam que é impossível erradicar por completo a violência associada ao desporto dado que, segundo este mesmo autor, “é possível uma redução de agressividade mas não a sua completa eliminação. (…) Toda a subestimação da agressividade, com base na suposição de ela poder ser aprendida, é da maior irresponsabilidade em face da evidência presente.

Os que estiveram à frente dos destinos de todas essas campanhas, de todas essas comemorações, olvidaram que a competição e a violência sempre acompanharam a evolução filogénica da nossa espécie. E é preciso reconhecer, como nos diz Castoriadis[49], “a importância dessas duas manifestações que tanto a História como a experiência clínica confirmam quotidianamente: a agressividade ilimitada dos seres humanos e a sua compulsividade repetitiva.

Lopes Marques, logo no primeiro editorial da revista acima referida, afirmava que “não há desportista ou atleta que não se sinta um pouco técnico ou treinador, não há técnico ou treinador que não se sinta um pouco dirigente, não há dirigente que não se sinta um pouco árbitro ou jornalista, não há jornalista que não se sinta um pouco político, e, finalmente, não há político que não se sinta um pouco desportista.” Ou seja, todos nós desempenhamos diferentes papéis em contextos diferentes mesmo que não tenhamos competências para isso. Isto acontece porque o ser humano tem um pensamento associativo (relacionamos tudo com tudo, mesmo aquilo que não dominamos), um pensamento generalista (tendemos imensa vezes a recorrer a um defeito: a generalização), um pensamento categórico (utilizamos os nossos valores morais independentemente dos resultados) e um pensamento determinista (todos os factos são baseados em causas). Tudo se agrava quando disso não temos consciência… e principalmente quando o sentimento e a paixão se sobrepõem à razão.

Rui Pereira, Professor de Direito e Presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo em 2006 (CM, 08.01.2006, p. 12) declarava que “nenhuma sociedade assegura a inexistência de quaisquer distúrbios e a punição de todos os crimes. Por exemplo, o modo seguro de erradicar a violência desportiva seria acabar com o próprio desporto.” Uma conclusão correcta mas um raciocínio errado: o modo seguro de erradicar a violência na sociedade seria acabar com a própria sociedade?

Não é possível erradicar a violência no desporto. Isto porque, como referem Pires e Cunha[50], a ética da competição desportiva vive na necessidade de gerir um paradoxo de extraordinária complexidade: “se, por um lado, a agressividade competitiva não pode disparar para níveis incontroláveis, sob pena de o desporto deixar de ser uma atividade positiva do ponto de vista educativo, económico, político e social, por outro lado, qualquer tentativa para erradicar a agressividade subjacente ao jogo competitivo poderá deturpar a essência da pratica desportiva enquanto espaço de confronto sem o qual o desporto deixa de usufruir das condições da sua existência.

Não é possível erradicar a violência associada ao desporto. A ética – nomeadamente a ética desportiva – há muito que está contaminada pela cultura, pelo negócio e pelo lucro. Talvez por isso mesmo fosse conveniente saber-se quanto se vai gastar do erário público com a campanha «Violência Zero» e que resultados produzirá a mesma. Talvez por isso mesmo fosse conveniente os responsáveis por este país deixarem-se de discursos de circunstância e de nos atirarem areia para os olhos (os nossos!). E que ponham os olhos (os seus!) naquilo que se passou em Abril de 2019 no jogo NRD Ídolos da Praça – GD Alfarim, da AF Setúbal e no jogo FC Maia Lidador – EA Sporting, da AF do Porto.

 

12. Semenya: o fim dos mitos do desporto…

11.05.2019

 

Poderemos sempre apresentar e discutir o desporto como uma actividade ligada a valores. Poderemos sempre afirmar que o desporto é uma escola de virtudes e que ele contribui para a formação do ser humano e para a sua transcendência. A utopia poderá e deverá estar sempre presente no desporto mas temos de encarar a realidade presente no mesmo. Que o desporto foi invadido pela mercantilização, já não temos dúvidas. Que a expectativa de uma ética universal é uma aspiração do desporto que não ocorre em outras áreas, como nos diz Andy Miah[51], também já não nos deixa dúvidas. Mas quando essa ética é contaminada pelos resultados do espectáculo (a todos os níveis) e pelo dinheiro o desporto muda de figura.

Com o caso Semenya assistimos ao princípio do fim de um mito do desporto: o da igualdade de oportunidades dos desportistas.

De facto, e já o salientámos aqui, o espaço onde desportista desenvolve as suas actividades assim como as normas que regem as mesmas são comuns. E iguais! Mas este mito, o mito da igualdade competitiva, ao criar entre nós uma crença fez com que pudéssemos resolver as nossas próprias contradições: passámos a justificar o «real» pelo «desejável». Para dar razão ao mito foram ignoradas intencionalmente as desigualdades de condições individuais genéticas, anatómicas, fisiológicas ou psíquicas dos desportistas, foram descartadas as diferentes condições de treino (desde metodológicas a logísticas, desde os recursos humanos até aos suportes económicos) e até olvidadas díspares condições de participação no exacto momento.

Vamos aos factos!

Facto um – O organismo de Caster Semenya, a sul-africana duas vezes campeã olímpica nos 800 metros, produz naturalmente testosterona acima do normal para uma mulher, o que lhe dá uma vantagem competitiva em relação às suas adversárias.

Facto dois – A International Association of Athletics Federations (IAAF) decidiu que todas as atletas com uma situação hormonal idêntica teriam de se submeter a um tratamento médico para baixarem os níveis de testosterona a fim de poderem competir.

Facto três – Semenya, queixando-se de descriminação, recorreu ao Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) vendo a sua pretensão ser rejeitada.

Facto quatro – A IAAF comunicou que “em qualquer caso, é direito da atleta decidir (em consulta com sua equipa médica) se deve ou não prosseguir com qualquer avaliação e/ou tratamento. Se ela decidir não fazê-lo, ela não terá o direito de competir na classificação feminina de qualquer Evento Restrito numa Competição Internacional. (vejam-se as cláusulas 2.5 e 2.6 dos Regulamentos). No entanto, ela ainda teria o direito de competir: 1 - na classificação feminina: a) em qualquer competição que não seja uma Competição Internacional: em qualquer caso, sem restrição; e b) em Competições Internacionais: em qualquer disciplina que não seja evento de pista entre 400 metros e uma milha; ou 2 - na classificação masculina: em qualquer competição em qualquer nível, em qualquer disciplina, sem restrição; ou 3 - em qualquer classificação 'intersex' (ou similar) que o organizador do evento possa oferecer em qualquer competição em qualquer nível, em qualquer disciplina, sem restrição.

Facto cinco – O Presidente da The World Medical Association, Dr. Leonid Eidelman, respondendo a uma solicitação da South African Medical Association afirma: “Temos fortes reservas quanto à validade ética desses regulamentos. Eles são baseados em evidências fracas de um único estudo, o qual está a ser amplamente debatido pela comunidade científica...” E ainda acrescenta: “Em geral, é considerado antiético pelos médicos prescreverem tratamento para testosterona endógena excessiva se a condição não for reconhecida como patológica.”

Assim, para além de nos parecer que existe uma discriminação em relação ao género, parece-nos também haver uma clara violação do respeito pela dignidade da pessoa humana, dignidade essa plasmada na Carta Olímpica. Parece-nos também haver um forte agravo em relação ao direito à livre participação no desporto – também contemplada na Carta Olímpica. O já referido Andy Miah[52], conferencista em Mídia, Bioética e Cibercultura na Universidade de Paisley e professor de Ética na Ciência e Medicina na Universidade de Glasgow, diz-nos que “o argumento a respeito dos danos minando a natureza do desporto afirma que algumas formas de melhora de desempenho não são éticas porque negam uma característica essencial ou inerente do desporto que lhe confere valor, a naturalidade.” Aqui está-se a incorrer precisamente no retirar ao desporto essa naturalidade. E o mesmo autor confirma que “seria injusto punir um indivíduo por algo que ele não tem culpa. Da mesma maneira que não teria sentido desqualificar um atleta naturalmente dotado da competição.” Nada mais esclarecedor!

A baixa frequência cardíaca em repouso de Miguel Induráin nunca foi obstáculo à sua participação na Vuelta, no Tour ou no Giro. A elevada potência aeróbica de Carlos Lopes nunca foi impeditiva para participar em Jogos Olímpicos ou em Mundiais de corta-mato. Yao Ming, com 2,29 m de altura, sempre participou nos jogos da NBA. Será que Kyle Korver, um californiano branco de olhos azuis (A Bola, 10.04.2019), será o próximo a ser impedido de actuar na NBA porque na mesma militam 75% de jogadores negros?

Por que motivo penalizar Semenya?

Quando o próprio Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas está contra esta deliberação da IAAF, que conclusão poderemos tirar sobre os dirigentes desportivos que assumiram esta posição?

Recorrendo a Philippe Liotard[53], sociólogo na Universidade Claude Bernard em Lyon e membro do Centro de Pesquisa e Inovação sobre o Desporto, “a prática e o espectáculo desportivos perpetuam o poder dos homens sobre as mulheres, utilizando as próprias mulheres, que se envolvem, com toda a liberdade, em atividades desportivas. A eficácia do processo de incorporação reside na sua invisibilidade e na adesão das dominadas aos valores do sistema de dominação.” Estaremos em presença precisamente de uma não adesão por parte de uma atleta aos valores desse sistema…

É portanto falacioso o argumento da «igualdade competitiva». É igualmente falacioso afirmar-se que Semenya se encontra sujeita a um dilema ético entre essa igualdade e a sua dignidade – e ela demonstra-o ao recorrer ao TAD, mesmo tendo sido derrotada, e ao afirmar que não se vai retirar… mas que também não se medicará (A Bola, 09.05.2019). O dilema ético não é de Semenya… o dilema ético foi da IAAF.

 

13. Predadores(as) sexuais (I)

17.06.2019

 

Aos 17 anos, a 05.06.2019, Noa Pothoven morreu em sua casa em Arnhem, depois de anos a lutar contra a depressão, a anorexia e o stress pós-traumático. Transtornos provocados por violações de que foi vítima em criança. Apesar de solicitada, a eutanásia não foi autorizada. Morreu, com acesso a cuidados paliativos, depois de deixar de se alimentar e com a anuência tanto de médicos como dos seus pais em não lhe ministrarem alimentos por via artificial. Segundo a comunicação social, a jovem publicou o livro «Winnen of leren» (que ora é apresentado como «Winning or losing» ora como «Winning or learning») em novembro de 2018, onde relatou como “por vergonha e medo” escondeu durante anos os abusos que sofreu. Nas suas próprias palavras o seu objetivo era tornar público aquilo por que passou e tentar quebrar o tabu em torno destas questões e dar apoio a jovens que passavam por situações semelhantes. Uma morte que parece ter sido consciente e bem ponderada e que, sem estarmos na posse de todos os dados, nos parece enquadrada num suicídio de honra, o que nos aproxima da noção japonesa de seppuku, dizendo-nos Maurice Pinguet[54] que “é bom e bonito aprender a vencer, mas cedo ou tarde, em qualquer vida, por mais triunfante que o imaginemos, vem o último momento: é preciso saber então ser vencido.

Catherine Moyon de Baecque, abusada sexualmente pelos seus colegas masculinos da equipa de França durante um estágio organizado pela Federação Francesa de Atletismo em 1991, também resolveu colocar em livro[55] aquilo por que passou. Catherine relata no mesmo aquilo que sofreu, mas não só: mostra como os responsáveis colocaram em primeiro lugar o interesse das instituições, pois em vez de ajudarem a vítima tentaram silenciá-la.

Uma vintena de antigas alunas do treinador Régis de Camaret acusaram-no de violação. Entre elas a antiga n°2 francesa, Isabelle Demongeot, que conta a sua história no livro «Service volé»[56]. Nove anos de abusos sexuais…

Ao contrário de Noa, Catherine, lançadora de martelo, e Isabelle, tenista, não recorreram ao suicídio. Eventualmente, a prática do desporto poderá ter tido aqui alguma influência… Ao ser inculcado ao praticante desportivo a ideia de esforço, de sacrifício, a fim de se superar a si mesmo ele vai construindo o seu próprio caminho… vai-se formando. A procura incessante da excelência, o culto do corpo e da performance e, a superação de si próprio, a tentativa de ultrapassar os limites são motivados pela crença de que ser um «verdadeiro atleta» significa assumir riscos, fazer sacrifícios e jogar o preço de ser tudo o que se pretende e poderá ser.

Habituados a comportamentos de violência física no desporto, de violência verbal, de violência psicológica e de violência gestual, normalmente descura-se a violência sexual no mesmo. Ignora-se ou procura-se mesmo esconder…

Em 2009 realizou-se em França o “Étude des violences sexuelles dans le sport en France : contextes de survenue et incidences psychologiques”[57] o qual na altura mostrou muito do que não chega ao público nem faz notícia… e que vale a pena consultar apesar dos seus já 10 anos!

Em 2012, a campeã americana de judo, Kayla Harrison, explicava ao New York Times[58], precisamente antes dos J. O. de Londres, o que não era um segredo: “eu fui violada pelo meu primeiro treinador.  E isso é realmente a coisa mais difícil que eu tive que superar.

O poder e a dominação masculina, tanto de pares como de treinadores e até de dirigentes serão as principais causas destes comportamentos de barbárie (veja-se o artigo de Aline Flor[59] intitulado “Reagiu ao assédio sexual e foi repreendida pela chefia. «Isto é um mundo de homens»”). São casos de cultura, de educação, de respeito pelo ser humano, já que “não é a fatalidade hereditária que determina que os homens dominem as mulheres”, tal como nos diz Germano da Fonseca Sacarrão[60]. Mas que não se pense que a violência sexual funciona só num sentido… ou que o desporto é só uma escola de valores ou de virtudes…

O denominado «el mayor caso de pederastia de España»[61] eclodiu precisamente no seio de uma modalidade que se apresenta como formadora do carácter do indivíduo e detentora de inúmeros valores: o karate. Torres Baena, ex-campeão de Espanha e presidente da «Federación Gran Canaria de Kárate» foi acusado de abusos a menores de 9 a 17 anos que se prologaram durante mais de 20 anos num julgamento em que depuseram mais de 100 pessoas, 61 delas como vítimas. A 15 de Março de 2013 a «Audiencia de Las Palmas» torna pública a sua sentença: 302 anos de prisão para Fernando Torres Baena  por se comportar como um predador sexual com os seus alunos, 148 anos para María José González (companheira do anterior e também treinadora) e 126 anos para Ivonne González (outra treinadora de karate).

Será de admirar que exista violência sexual numa actividade em que um atirador tinha um botão instalado no punho da sua espada para fazer acender a luz do marcador quando accionado (Boris Onischenko nos J. O. de Montreal em 1976), em que um futebolista no último jogo da sua carreira pela selecção do seu país agrediu um adversário com uma cabeçada (Zidane na final do Mundial de 2006), em que o ginasta mais medalhado de sempre afirmou que se habituou “a conseguir das mulheres aquilo que queria” (Vitaly Scherbo em 2010) ou em que uma ciclista é apanhada com um motor dissimulado na sua bicicleta (Femke van den Driessche, no Mundial de sub-23 de Ciclocrosse de 2016)?

 

14. Predadores(as) sexuais (II)

03.07.2019

 

Em Julho de 2017, o treinador de futsal Humberto Cunha foi condenado pelo tribunal de S. João Novo, no Porto, a 10 anos de prisão por abusar sexualmente de quatro menores. Em Dezembro desse mesmo ano na Polónia vieram a lume alguns casos de abusos sexuais a várias ciclistas, sendo que algumas eram alegadamente menores.

A Confederação Brasileira de Basquetebol em Cadeira de Rodas afastou em 2018 três atletas apuradas para a selecção nacional - Lia Martins, Denise Eusébio e Geisa Vieira - por terem cometido um suposto abuso sexual contra uma colega de equipa. O episódio teria ocorrido em fevereiro de 2017, e, de acordo com o relato da vítima, após um treino da equipa Gladiadoras / Grupo de Ajuda dos Amigos Deficientes de Indaiatuba, do interior de São Paulo, Lia, Denise, Geisa e Gracielle Silva, então coordenadora do clube, usaram um pénis de borracha para abusar sexualmente da colega, que foi retirada à força de sua cadeira de rodas. O ataque foi registrado em imagens que circularam por grupos de Whatsapp. Gracielle viria a cometer suicídio no final de maio de 2018.

Em Janeiro de 2018 Larry Nassar, antigo médico da selecção de ginástica olímpica dos Estados Unidos, de 54 anos, foi condenado a 175 anos de prisão por abusos sexuais cometidos contra jovens ginastas. Barry Bennell, que treinou as equipas jovens do Manchester City e do Stoke City, de 64 anos, foi condenado a 31 anos de prisão por violação e abuso sexual de jovens jogadores em Liverpool, também na mesma altura.

Em Março de 2018 o escândalo na Argentina: jovens das equipas de formação do Independentiente prostituíam-se a troco de botas e de calções seis indivíduos identificados e um árbitro de futebol juntamente com o seu advogado detidos – num caso que poderá ter afectado seis clubes da primeira divisão.

Em 2019, Khalida Popal, ex-capitã da selecção feminina afegã de futebol, vem a terreiro reforçar aquilo que recai sobre Keramuddin Keram, o responsável máximo do futebol no Afeganistão, acusado de ter violado e agredido várias jogadoras da equipa feminina, e afirma que o escândalo envolve mais pessoas da federação, incluindo treinadores.

Vitor Rosa[62] fala-nos das vulnerabilidades existentes no desporto, dizendo-nos que “a vulnerabilidade remete-nos para a fragilidade da existência humana.” Mas esta vulnerabilidade também nos remete exactamente para o lado contrário… o lado dos que se aproveitam dessa vulnerabilidade. E aqui teremos de distinguir dois conceitos: «perversão» e «perversidade». Ambos designam uma anomalia no comportamento, mas é preciso não os confundir porque não têm o mesmo sentido: a perversão é um desvio comportamental de carácter sexual. A perversidade é igualmente um desvio comportamental mas de carácter mais intelectualizado: pressupõe um atropelamento dos valores morais e define-se como uma prevaricação em relação a normas sociais estabelecidas. Esta última é consciente e nela se incluem pelo menos a violência (física, gestual, psicológica, verbal) na prática desportiva, a corrupção, a fraude, a utilização de meios dopantes, o treino intensivo precoce (nome pomposo para camuflar a exploração infantil) e a morbilidade entre outras. Temos estado a tratar de perversões no desporto, mas quando Afonso de Melo e Rogério Azevedo[63] afirmam que na antiga RDA, nos anos 80 e 90, imensas vezes foi injectada determinada quantidade de hélio no intestino grosso de vários nadadores abordam uma perversidade.

É o desporto um campo propício às violências sexuais? Declaradamente sim! Tal como muitas outras actividades embora isso não seja justificação para que elas aconteçam.

A relação treinador-desportista leva a uma submissão à autoridade que é totalmente aceite e consciencializada pelos desportistas. Aquele que treina é o que ensina, é o que faz progredir, é o que seleciona este ou aquele para determinada competição… Entre pares, a dominação masculina é um factor omnipresente – índice de uma cultura de virilidade machista. Um(a) competidor(a) de alto nível aprende a tentar superar (ou a controlar) a dor, quer seja física ou psicológica. Uma vítima de violência sexual é capaz de “ignorar” a situação e concentrar-se apenas nos seus objectivos desportivos fechando-se para não comprometer os mesmos: se denuncia, a sua carreira estará acabada. Ou também por medo, ou por vergonha…

No desporto existe uma relação muito específica com o corpo. É óbvio que um(uma) treinador(a) terá um contato físico com seu(sua) atleta para exemplificar as tarefas, para corrigir gestos ou posições, para ajudá-lo(la) a alongar os músculos, avaliar o pulso, ver se ele(ela) solicita bem cadeias musculares...

É óbvio, como nos diz Sidónio Serpa[64], que o facto de o desportista estar habituado a correr riscos na sua prática desportiva lhe transmite uma sensação de invencibilidade, dentro e fora do campo (daí os tantos casos de violação sexual por parte de jogadores fora do contexto desportivo – referimo-nos apenas aos condenados em tribunal, pois também há os absolvidos –, alguns dos quais ainda andam pela justiça)… mas isso não obriga o desporto – ou antes, qualquer um dos agentes desportivos – a ser perverso… nem o autorizam! Isso não obriga, nem autoriza, qualquer agente desportivo a ser um(uma) predador(a) sexual!

Vítor Rosa, no artigo citado, propõe que o Governo Português, através do Instituto Português do Desporto e Juventude, promova um inquérito nacional sobre os abusos sexuais no meio desportivo… talvez seja mais de propor que o mesmo seja desenvolvido pela Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto… pois não interessa só conhecer a situação mas essencialmente instalarem-se medidas de prevenção.

Será assim tão vasta a predominância de comportamentos de violência sexual envolvendo agentes desportivos que justifique esse investimento? Na falta de estudos, não sabemos se é vasta ou não, mas o investimento justifica-se nem que seja só para se evitar mais um caso. Necessitamos desses estudos “para explicar essas realidades, há muito ocultadas ou subestimadas por agentes desportivos, não como «abusos lamentáveis» ou «excessos deploráveis», mas como as próprias consequências da competição desportiva globalizada” como nos diz Jean-Marie Brohm[65].

Sim, porque como disse Jacques Personne[66] em 1991 (repare-se que já lá vão 28 anos), nenhuma medalha vale a saúde de uma criança. E não vale a saúde nem física nem psíquica.

 

15. O espectáculo - a variável esquecida (I)

24.07.2019

 

O desporto apresenta-nos situações motoras competitivas com competições escalonadas a todos os níveis (escalões etários, género, etc.) e de diversas formas (consoante as modalidades), e é uma actividade codificada possuindo regras e regulamentos que se consubstanciam num sistema institucionalizado organizado em torno de clubes, de associações e de federações (desde as nacionais às internacionais). É uma actividade apoiada em gestão de organizações, em planificações, em metodologias de treino, em estratégias, em tácticas e em técnicas onde o indivíduo (ou o colectivo a que pertence) se procura transcender alcançando a excelência.

Mas esta excelência – «areté» no tempo dos gregos e «virtus» no tempo dos romanos – sempre foi obrigada a ser do domínio público, onde o indivíduo (ou a equipa) pode sobressair e distinguir-se dos outros. Como refere Hannah Arendt[67], “para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença dos outros, e essa presença requer um público formal”, pelo que o desporto só é desporto quando existe o espectáculo.

Se admitirmos que a génese do desporto se encontra na caça – o Australopithecus africanus já era caçador e poderá ter usado paus e ossos como armas, enquanto o Homo neanderthalensis era um hábil caçador e já caçava animais de manadas –, verificamos que “a caça apela para a cooperação, desde a organização da expedição até à captura da caça, sem omitir a divisão das tarefas antes e depois da captura. Por outro lado, o trabalho do indivíduo depende em cada instante do dos companheiros” como nos diz Serge Moscovici[68], o que pressupõe a utilização de estratégias de conjunto, pelo que constatamos que nesta se encontram todas as variáveis que pertencem ao desporto. É a caça a primeira actividade do homem onde surge a existência de um enquadramento com vista à adopção de estratégias de conjunto a fim de se tomarem as melhores decisões em relação ao fim em vista – “a caça engloba uma cadeia complexa de acções preparadas, organizadas, colectivas, um equipamento intelectual e técnico exigindo uma formação prévia dos indivíduos” (id.).

E é ao começar a utilizar armadilhas na caça que o homem começa a planificar e a desenvolver técnicas e tácticas mais complexas tendo de se preparar antecipadamente para as aplicar – “a caça por meio de armadilhas e as técnicas anexas incluem o ataque e a defesa numa única acção” (id.) – e passa do fabrico do utensílio individual para o fabrico do utensílio colectivo (a corda, a rede, a fossa ou as estacas para capturarem o animal). “O conteúdo técnico e intelectual da caça por meio de armadilhas testemunha o facto de a caça ser autodomínio, resistência, mas sobretudo astúcia” (id.) – e é precisamente este último aspecto que é importante como mais-valia dos povos caçadores, pois “transforma uma posição de fraqueza numa posição de força e acrescenta ao aparente, o dado, a dimensão do simulado e do construído” (id.).

Haveria outros elementos da tribo que, ao não participarem na caça, reservavam para si um papel de observadores ou de espectadores? Não o sabemos de fonte certa, mas a resposta provável será a positiva, pois sabemos que o espectador nasceu no momento em que o homem pré-histórico colocou na parede da caverna as impressões positivas e negativas das suas mãos, conforme defende Marie-José Mondzain[69]. E se, por exemplo, as pinturas rupestres de mãos humanas nas grutas de Chauvet possuem uma idade de cerca de 30 mil anos, elas são precisamente de uma época em que os humanos eram caçadores-recolectores… A representação de cenas de caça em grutas pré-históricas podem indiciar-nos um duplo espectador: o que assistia à caçada e que admirava posteriormente a sua própria obra de arte.

Actualmente o desporto não subsiste sem o espectáculo e, consequentemente, sem o espectador, coloque-se este no estádio, no pavilhão, na mesa do café ou no conforto do seu sofá. Muitas têm sido as variáveis estudadas no desporto, no entanto parece-nos que o espectáculo tem sido a variável esquecida.


16. O espectáculo - a variável esquecida (II)

05.08.2019

 

Peter McIntosh[70] foi talvez dos primeiros a equacionar os motivos da existência do espectáculo desportivo ao afirmar que “não há nada de novo no facto de competidores, treinadores, promotores e aqueles que prestam serviços auxiliares, ganharem dinheiro no desporto. Com raras excepções, o dinheiro ganho vem, em última instância, do espectador.” Mas esta era uma análise de 1963, completamente diferente da realidade actual. Fazendo uma retrospectiva histórica, este autor diz-nos que foi por volta de 1880 que várias modalidades desportivas passaram a poder “lucrar com as entradas do público urbano” e que as mesmas, inclusivamente o futebol e o críquete, tornaram-se “indústrias e se juntaram aos desportos já comercializados, se não industrializados, tais como a corrida de cavalos e o boxe.

Reservemos para um pouco mais à frente o facto de McIntosh referir que quando William MacGregor fundou a Football League em 1888 o objectivo deste era poder proporcionar às pessoas um entretenimento regular semelhante ao proporcionado pelo teatro e que à data da sua obra, na Inglaterra o críquete e o futebol eram tanto desportos como indústrias de entretenimento e floresciam, assim como o facto de logo no ano seguinte Georges Magnane[71] ter feito uma destrinça entre estes dois espectáculos e os seus públicos: enquanto o teatro, e mais ainda o cinema, isolavam o espectador, o espetáculo desportivo incidia principalmente no ambiente colectivo.

E é preciso esperarmos vinte e três anos para aparecerem duas obras abordando o tema em questão: «The Quest for Excitement»[72] de Norbert Elias e Eric Dunning e «Sports Spectators»[73] de Allen Guttmann.

Elias e Dunning colocam a génese do desporto moderno no século XVIII, na caça à raposa típica da Inglaterra na época vitoriana. Se por um lado era proibido aos caçadores caçar outros animais, não havendo contrapartidas para eles, por outro lado era proibido aos caçadores matar a raposa, pelo que o único objectivo desta actividade era o prazer obtido pela participação na caçada. “Talvez a sua característica principal fosse a tensão-excitação de um combate simulado que envolvia esforço físico e o divertimento que este oferecia aos seres humanos como participantes ou espectadores.

Para estes dois autores a passagem dos passatempos a desportos é um exemplo do avanço da civilização, avanço esse que progride através de um «processo» não planeado orientado pela estrutura social das configurações mas que é simultaneamente transformado por elas e em parte provém de um aumento da pressão sobre as pessoas para exercerem um autocontrolo próprio. Quando esse autocontrolo é inexistente por «moto próprio» a sociedade constrói as suas próprias regras. Na maioria dos confrontos desportivos as regras existem para manter essas práticas sob controlo. Ambos nos falam em confrontos altamente regulamentados, exigindo esforços físicos e competência técnica, caracterizados na sua forma de espectáculo como «desporto» e referem que “o termo desporto nunca esteve confinado apenas ao participante isolado: inclui sempre confrontos realizados para satisfação dos espectadores, e o esforço físico principal tanto podia ser dos animais como dos seres humanos.

Na obra referida estes autores também separam o comportamento dos públicos do teatro e do desporto – neste caso os espectadores procuram alcançar uma excitação-tensão controlada. “Pode afirmar-se (…) que o futebol, como outras modalidades de desportos de lazer, se apoia no equilíbrio precário entre o enfado e a violência. O drama de um bom jogo de futebol, segundo a forma através da qual se manifesta, possui qualquer coisa de comum com uma boa peça teatral. Aí também é construída durante algum tempo uma agradável tensão mimética, talvez a excitação, orientada para o clímax e, deste modo, para a resolução da tensão. Porém, uma peça teatral é, em muitos casos, o resultado do trabalho delineado por uma determinada pessoa, enquanto muitas formas de desporto atingiram a maturidade no decurso de um desenvolvimento social não planeado.” Aqui se nota uma diferença em relação à opinião de McIntosh acima apresentada e mais coincidente com a de Magnane, também supra.

Ainda segundo os mesmos[74], “dentro de certos limites, um tipo de realização desportiva pode conservar as suas funções como ocupação de lazer: quando assume a qualidade de desporto espectáculo. Considerado nesta perspectiva, o desporto pode resultar numa agradável excitação mimética, que é susceptível de contrabalançar as tensões, normalmente desagradáveis, das pressões derivadas do stress inerente às sociedades, proporcionando uma forma de restauração de energias.

Assim, para estes dois sociólogos (Elias & Dunning), o espetáculo desportivo surge para controlar comportamentos (poderemos falar de um superego social?) e apresenta até a possibilidade de catarse – “a peça fulcral da configuração de um grupo envolvido no desporto é, sempre, a simulação de um confronto, com as tensões por ela produzidas controladas, e, no final, com a catarse, a libertação de tensão.

Guttmann[75] numa perspectiva mais histórica revela-nos que no tempo dos gladiadores, na época romana, a maioria dos espectadores pagavam os seus lugares enquanto os mais pobres, os plebeus, tinham bilhetes grátis (por aqui se vê que já naquela altura esta seria uma forma ardilosa de se garantir a enchente do Coliseu). E considera que os jogos de gladiadores “eram verdeiros desportos, no sentido estrito apenas para aqueles que, provavelmente uma minoria, se ofereciam, aqueles que eram atraídos pelo risco envolvido, pelo puro amor ao combate mortal.” Os que tinham de combater sob coacção, os escravos, para Guttmann já não entram nesta categoria…

E a grande questão que este autor nos coloca, situando-a no seu tempo, é a seguinte: “Será que John McEnroe e Martina Navratilova ainda jogam tanto pelo amor ao jogo como por recompensas pecuniárias?

 

17. O espectáculo - a variável esquecida (III)

05.08.2019

 

A constituição do fenómeno desportivo, na sua origem, residiu no ócio, no lazer. A sua demanda pelo associativismo, até chegar ao profissionalismo, provocou o negócio. E o negócio não funciona sem o espectáculo. A evolução das diferentes modalidades desportivas e do sistema desportivo, a emergência de novos modelos, a entronização dos heróis e as suas sucessivas hierarquias, assim como a sucessão rápida de eventos desportivos e a criação de outros novos, devem fazer-nos reflectir sobre um desporto onde cada vez mais há esse espectáculo e cada vez menos formação, mais negócio e menos jogo, mais elitismo e menos participação.

Paul Yonnet[76] realça a necessidade fundamental para o desporto-espectáculo de duas componentes – a incerteza e a identificação. Duas componentes que não estão presentes no espectáculo cultural. E, contrariamente a algumas posições aqui apresentadas no artigo anterior, diz-nos que “a violência das identificações no desporto-espectáculo não é catártica, é aditiva.

Sendo a competição uma das características fundamentais do desporto-espectáculo, Paul Yonnet[77] já nos tinha alertado anteriormente para a existência de dois tipos de competição no momento dos grandes eventos desportivos: a primeira, uma competição mensurável, regulamentada, e que é o objecto de um resultado técnico visível e de prémios e recompensas; a segunda, uma competição não regulamentada em que o objectivo é o reconhecimento público. Entra-se assim na ordem dos afectos realçando Yonnet (id.) que “ser conhecido não é o suficiente, é preciso ser amado, admirado, profundamente, colectivamente. Mas que não se pense que este segundo tipo de competição é gratuito pois estão-lhe associados os contratos financeiros, os direitos de imagem, a publicidade.

Uma questão é fundamental: para que serve o desporto-espectáculo? O leigo responder-nos-á: para nos entretermos e nos divertirmos (ócio). Um especialista responder-nos-á: para vender produtos (negócio). Ora, teremos de estar cientes de que o entretenimento não produz conhecimento como refere Byung-Chul Han[78] e de que o negócio não gera nem bens nem obras, não cria riqueza, apenas a movimenta em determinados sentidos.

O desporto actual já não é o deportatre latino e nele estão presentes as situações mais exemplares mas também as mais ignóbeis, as mais perversas. Preocupante é o facto de nele a vitória e a acumulação de riqueza terem talvez actualmente o mais importante papel. Preocupante é já não ser tanto o «interessa participar»... 


18. O espectáculo - a variável esquecida (IV)

22.10.2019

 

É com base nesta variável esquecida – o espectáculo – que deveremos compreender o desporto com olhos de ver inserindo-a num sistema muito poucas vezes abordado mas que permite compreendermos melhor a sua função.

Se a mais antiga referência escrita sobre uma competição data de 776 a.C., quer se desenrolasse no ginásio, na palestra, no estádio ou no hipódromo, em Olímpia, a mesma já implicava a presença de espectadores. Se o desporto sem competição não é desporto, também poderemos afirmar que o desporto sem espectáculo não é desporto. Este espectáculo evoluiu ao longo dos séculos e hoje já não é aquele que se encontrava presente na Grécia Antiga, na época vitoriana ou na modernidade. Em qualquer uma das épocas históricas o homem teve as suas manifestações corporais, atléticas e desportivas utilizadas para outros fins que não a prática ou a competição em si.

Actualmente verificamos a existência de um fosso enorme entre a prática antiga e o desporto pós-moderno, ao mesmo tempo que constatamos também a existência hoje em dia de um outro fosso entre os ideais proclamados pelo desporto e a realidade quotidiana que apresenta no espectáculo a sua face visível.

Atribuem-se ao desporto finalidades de grandes dimensões (valores) que não correspondem em nada à prática que é realizada quotidianamente mas que está inserida num meio determinado pela mercantilização num sistema capitalista.

O desporto apresenta-nos um marketing com linguagens de sedução e uma publicidade com imagens de tentação porque… o espectáculo desportivo é negócio. Não só o negócio da venda de bilhetes, de lugares cativos, de venda de camisolas e cachecóis, dos direitos televisivos, da transferência de jogadores, do naming dos estádios… Repare-se que no futebol já tivemos a Liga Sagres e a Liga Vitalis, a Liga Zon Sagres e a Liga Orangina, a Liga CTT, NOS ou MEO, a cerveja oficial do râguebi português – a Super Bock – patrocinou a selecção nacional designando-a por All-Bocks, enquanto o futebol se fica pela Sagres... e pela «fome de vencer» de um grande grupo económico onde efectuamos compras todos os dias.

Temos as antevisões dos jogos na televisão, as entrevistas pré e pós desafios de futebol em que se exprimem dirigentes e jogadores, muitos sem nada dizerem de proveitoso… Estas entrevistas em directo são obrigatórias antes e depois das transmissões dos eventos porque não se podem realizar sem apresentar alguém (dirigente, treinador ou jogador/atleta), embora o mais importante não seja esse alguém ou o que diz mas sim o que se encontra por detrás dele – o painel publicitário que subliminarmente faz entrar no espírito dos telespectadores dúzias e dúzias de logotipos e marcas. E aqui reside o grande cerne da questão: o espectáculo desportivo é necessário para nos levar a consumir os produtos cujas imagens são veiculadas nos painéis que circundam o campo, nos outdoors, nos painéis por detrás dos pódios, nas costas das camisolas… tudo isso porque conscientemente não damos conta mas o nosso cérebro capta e regista.

Graças a quem? Graças ao desportista – ao seu corpo e também à sua mente. Abusa-se da saúde do desportista e molda-se, formata-se, a sua mentalidade. Resumindo: manipula-se o ser humano. Sempre com o objectivo do dinheiro. Ou de alguns minutos em que o humano se transforma em deus – mas sempre servindo alguém, em nome de uma imagem, em nome de uma marca, em nome de um logotipo.

Tudo isto é depois repetido até à exaustão, expandido, mais que divulgado (sempre com as tais imagens subliminares) em três ou quatro canais em horário nobre por pessoas que pouco ou nada pensam sobre desporto (o que é diferente de pouco ou nada sabem de desporto). A imprensa escrita colabora igualmente sob a forma de imagens, não havendo notícia que não tenha a sua.

O espectáculo é um factor tão interveniente no próprio terreno de jogo que numa partida de futebol realizada à porta fechada há uns anos e posteriormente transmitida pela televisão mostrava-nos que quando um golo era marcado nem os próprio jogadores festejavam.

Actualmente o espectáculo desportivo não pretende regularizar os comportamentos em sociedade pois a teoria da válvula de escape e a teoria catártica encontram-se realmente em desuso (comprovado já por estudos científicos)… Governantes, executivos, decisores e dirigentes desportivos apresentam uma maior preocupação com o direito como sendo a forma específica mais importante e eficaz para o controle social nas sociedades. O aumento progressivo de leis, de regulamentações, de sanções, de comissões de estudo, análise e/ou prevenção assim o demonstram…

Jean-Marie Brohm[79], para quem o desporto é um sub-sistema do sistema capitalista, mostra-nos que a história do desporto se inscreve totalmente no desenvolvimento do capitalismo e afirma mesmo que, sendo o espectáculo desportivo o ópio do povo, “o ópio é não somente a ilusão da comunidade, mas sobretudo a comunidade da ilusão.

Num artigo de 2013[80], intitulado “Le spectacle sportif, une aliénation de masse”, este sociólogo apresenta o desporto actual como sendo a principal indústria do entretenimento e simultaneamente uma economia política real da cretinização das massas, defendendo que uma outra mistificação, ainda mais escandalosa, é a que sugere que o desporto é um factor de cidadania, de aproximação, de harmonia civil.

A sua pretensão é “a desconstrução do mito idealista do desporto «velho como o mundo» (dos gregos aos nossos dias)[81]. A teoria crítica do desporto de Brohm mostra-nos que “o espectáculo desportivo que os seus fanáticos apresentam sempre como uma «festa», uma fonte de «felicidade», uma oportunidade de «sonhar» ou uma «comunhão popular» é de facto - e muito mais prosaicamente - um enorme empreendimento de despolitização e de desapropriação de si no seio de identificações «fictícias» para com vedetas «míticas», para com dream teams «excepcionais» ou para com «equipas emblemáticas». O espetáculo desportivo não é mais do que um caso particular dessa alienação coletiva no consumo excessivo de imagens, de shows, de slogans, de gadgets e de mercadorias. (…) A mercantilização generalizada da devoção pelas estrelas das pistas e estádios (posters, maillots e outros produtos derivados), a representação televisa incessante de seus confrontos, ambições e decepções, a exibição de suas fortunas e suas infidelidades conjugais, o interminável voyeurismo desportivo tornam-se o conteúdo ideológico mediaticamente supervalorizado que suplanta todas as outras preocupações; o vazio, o efémero, o fútil e o grotesco, o trivial e o banal constituem então a própria realidade da uma falsa consciência.

Urge tomarmos consciência para que, na realidade, serve o espectáculo desportivo e quais as suas funções. Talvez então, a partir daí, a realidade na nossa consciência seja outra.

 

19. Os mass media e a falácia dos recordes

04.11.2019

 

Os que já passaram a barreira dos 60, e principalmente aqueles que passaram a dos 70, foram criados (educados) a olharem para o desporto como uma entidade mensurável através de medidas de comprimento, medidas de tempo ou medidas de peso.

Foi provavelmente a partir de 1969, com o milésimo golo de Pelé, que tudo no desporto passou a ser medido e quantificado de modo diferente. Nisso tiveram os mass media o seu papel, nomeadamente em relação à falácia dos recordes.

Para se realçar a queda de um «recorde» os media salientaram que as sete medalhas de ouro de Mark Spitz em Munique (1972) foram destronadas pelas oito de Michael Phelps em Pequim (2008) – variável “J. O.” e variável “ouro”. Os media proclamaram mais um «recorde» batido por Simone Biles com 25 medalhas em detrimento das 23 de Vitaly Scherbo em mundiais de ginástica – variáveis “mundiais” e “ouro, prata e bronze”… Mas se recorrermos às variáveis “J. O.” e “ouro” verificaremos que Scherbo possui seis medalhas de ouro e Biles quatro…

Se a variável for o número de cartões vermelhos no futebol por jogador Vinnie Jones é um recordista: mais cartões na Premier League em 1995/96 e 1996/97; mais cartões na qualificação para o Europeu de 1996. Se a variável passar a ser o número de cartões amarelos Vinnie Jones continua a ser recordista: mais cartões na Liga Inglesa de 1992/93. Com outras variáveis (ano e clube), Roy Keane, do Manchester United, em 2004 possuía o «recorde» dos cartões vermelhos ao serviço de um clube inglês. Mas se se introduzir aqui a variável «tempo», Vinnie Jones também detém o «recorde» do cartão amarelo mais rápido de sempre na história do futebol aos 3 segundos de jogo. Mudando uma vez mais de variáveis, a mais rápida apresentação de um cartão vermelho num Mundial de futebol foi feita ao uruguaio José Batista, expulso aos 55 segundos no jogo contra a Escócia, no México em 1986.

Se os mass media foram buscar as 69 pole positions de Lewis Hamilton para mostrarem que este bateu o «recorde» de Schumacher em Setembro de 2017, também foram buscar o «recorde» de Ayrton Senna em relação a pole positions consecutivas: oito.

Correndo atrás da variável «velocidade», os media apresentaram-nos o «recorde» de serviço mais rápido no ténis (Samuel Groth, em Busan, na Coreia do Sul, serviu a 263Km/h, em 2012) tal como nos mostraram o «recorde» da velocidade máxima na Fórmula Um (Juan Pablo Montoya, 372,6Km/h, no Circuito de Monza, em 2005). E é também através dos media que ficamos a saber que o turco Hakan Sukur tem o «recorde» do golo mais rápido em mundiais de futebol (aos 11 segundos no jogo de atribuição do terceiro e quarto lugar no Mundial de 2002) e que o «recorde» do KO mais rápido do pugilismo – aos 55 segundos de combate – pertence a James Jackson Jeffries e remonta a 1900, sendo secundado por Myke Tyson que em 2000 demorou apenas 58 segundos para atirar ao tapete Julius Francis…

Pinto da Costa, presidente do Porto, ao fazer 80 anos em Dezembro de 2017, é o dirigente com mais títulos de futebol no mundo e o que mais tempo possui à frente de um clube (58 troféus, 35 anos de presidência). Nesse mesmo ano o uruguaio Sebastián 'Loco' Abreu assinou nesse mesmo mês pelo 26.º clube da sua carreira – o Audax Italiano, da 1ª divisão do Chile –, um novo «recorde» mundial…

Roger Federer era o mais velho de sempre no primeiro lugar do ranking de ténis no início de 2018 a meio ano de completar os 37 anos, ano em que Cristiano Ronaldo alcançou 100 golos nas provas de clubes da UEFA, mais jogos em fases finais dos Euros (21) e melhor marcador de sempre de todas as competições da UEFA (132 golos)…

Na 1ª Taça da Liga das Nações, em 2019, Rui Patrício atingiu as 81 internacionalizações na baliza da selecção nacional à frente de Vítor Baía (80) e Ricardo (70): mais um «recorde» glorificado pelos mass media.

Verificamos assim que a falácia dos recordes é uma constante nos mass media, pois bastará somente escolher os parâmetros, uma ou outra variável, e poderemos obter «recordes» de todo e qualquer feitio: o «recorde» de espectadores, de países participantes num evento, de encontros vitoriosos consecutivos, do participante mais velho ou mais novo, do maior número de minutos imbatível e até o «recorde» do primeiro homem com três medalhas num só dia (o norte-americano Caeleb Dressel nos mundiais de natação de 2017, em Budapeste).

Manuel Sérgio[82] disse-nos que “raro é que a retórica dos críticos e comentaristas não atraiçoe a verdade vivida, hipervalorizando o tratamento quantitativo (que pode ser medido, testado, verificado, experimentado) e resistindo ao tratamento qualitativo, onde a experiência e a compreensão predominam. É, por natureza, uma arte presunçosa, intrometida e falseadora confundir sempre o mais relevante com o mais mensurável.” 

Vejamos dois exemplos próximos no tempo!

O «Record» de 25.10.2019, na página 43 apresenta o título: “Erling Haland supera as marcas de CR7 e Messi”. Recorrendo aos jogos da Liga dos Campeões, Haland em apenas 3 jogos chegou aos 6 golos… Messi demorou 17 jogos e CR7 precisou de 32. Repare-se como se conseguem manobrar os números… Mas vai-se ainda mais longe quando se diz que Haland em 10 remates marcou esses 6 golos tendo 60% de eficácia. Sem dúvida que começamos a assistir à construção de uma nova vedeta por parte dos media.

Três dias depois, na página 48, o mesmo jornal titula: “Roger Federer a meia dúzia de Connors”. Federer tem 103 títulos singulares, Connors 109. Salienta-se neste artigo que Federer tem 4 títulos este ano (já nova variável) tal como Djokovic, Nadal e Medvedev embora Dominic Thiem tenha 5. A seguir destaca-se que Federer “é ainda o primeiro tenista a chegar a pelo menos dez títulos em dois torneios de superfícies diferentes. Nadal, por exemplo, ganhou dez ou mais títulos em três torneios diferentes (Roland Garros, Monte Carlo e Barcelona), mas todos em terra batida.” Atente-se mais uma vez na mudança de variáveis… Consoante o que se pretende realçar, assim se escolhem os parâmetros.

Tudo é quantificável no desporto. Tudo pode ser apresentado como «recorde» desde que se escolham as variáveis que interessam para tal… A quantificação da qualidade contribui, segundo Roland Barthes[83], para a criação do mito: quando se reduz toda a qualidade a uma quantidade “o mito faz uma economia de inteligência: ele compreende o real com menos custo.” E quando o real possui um custo menor nem sequer damos conta que estamos a ser manipulados…

 

20. Consumir desporto

29.11.2019

 

O Total Sportek – um site que cobre e fornece links de transmissão ao vivo gratuitos e informações sobre partidas para alguns dos maiores eventos esportivos ao vivo que geralmente são transmitidos pela Sky Sports e BT Sport – publicou um estudo que apresenta “os 25 desportos mais populares do Mundo”[84].

Para tal foram selecionados treze parâmetros sob os quais foram analisadas várias modalidades:

o   Audiências globais e público-alvo

o   Números de audiência televisivos

o   Número de ligas profissionais em todo o mundo

o   Valores de direitos televisivos

o   Valores de contratos de patrocínios

o   Salário médio de atletas na liga principal

o   Maior competição e número de países representados

o   Presença nas redes sociais

o   Destaque nos meios de comunicação (sites, TV)

o   Relevância ao longo do ano

o   Domínio regional

o   Igualdade de gênero

    Acessibilidade ao público em geral em todo o mundo

Não é o resultado deste estudo que nos preocupa – o qual será facilmente consultado na internet – mas sim os critérios adoptados para se procurar o resultado investigado. São parâmetros de pendor declaradamente económico, com base na apresentação de um produto como espectáculo. Um espectáculo que depende essencialmente de dinheiro. De dinheiro da televisão, de dinheiro dos patrocinadores, de dinheiro do merchandising, de dinheiro da publicidade e, em última instância, de dinheiro do consumidor.

Não se atendeu aos critérios “maior número de praticantes por modalidade” ou “modalidade que mais valores fomenta” por exemplo. As vertentes social e cultural são minimamente tidas em conta.

Se dúvidas ainda haveria sobre o negócio existente à volta de toda e qualquer modalidade, a escolha destes parâmetros eliminam-nas.

Já não são a vitória e o recorde as principais especificidades do desporto pós-moderno, mas sim o lucro…

Facto que é demonstrado por um simples exemplo: logo após os Jogos Olímpicos de Inverno em 2018, onde 2 atletas «limpos» da Rússia, a competirem sob a bandeira do COI, foram apanhados nas malhas do doping, um entendimento entre Thomas Bach, presidente do COI, e Igor Levitin, ex-ministro dos Transportes e representante de Putin na Coreia do Sul, revelou o seguinte: Moscovo pagou a quantia de 15 milhões de dólares a título de contributo para a luta contra o doping e retirou o recurso apresentado no TAS relativamente ao levantador de pesos Alexander Krushelnitsky, que teve de devolver a medalha de bronze… e a Rússia foi readmitida pelo COI nos Jogos Olímpicos! Vão-se os valores, fique o d’argent!

Num país – o nosso país – com mais espectadores (incluindo telespectadores) que praticantes desportivos na base, o consumismo impera. E isto verifica-se porque o espectador continua atrás do golo, continua atrás do recorde, continua a perseguir o herói e continua atrás da exaltação.

Mas isto acontece porque o consumidor o procura ou porque lhe é oferecido?

 

21. Discursos sobre o desporto (I)

23.01.2020

 

Assistimos nos dias de hoje a vários discursos sobre o desporto consoante a sua proveniência. Mas estes discursos, venham de onde vierem, acabaram por se banalizar. E talvez a maior banalização a que assistimos é aquela que confere ao desporto um carácter formativo e educativo, impregnada de valores morais e éticos… produto de crenças que se encontram enraizadas na nossa sociedade.

Poderemos apontar essencialmente para a constatação quatro tipos fundamentais de discurso sobre o desporto:

1 – o discurso dos investigadores e especialistas em Ciências do Desporto;

2 – o discurso dos intervenientes directos no próprio sistema desportivo (os agentes desportivos – principalmente treinadores e jogadores);

3 – o discurso dos consumidores do espectáculo desportivo e dos receptores daquilo que é divulgado nos mass media desportivos;

4 – e, por fim, o próprio discurso destes últimos.

Os especialistas em Ciências do Desporto procuram causas do fenómeno – e dos fenómenos – desportivo, procuram explicações para o mesmo assim como tentam também elaborar prescrições no seu âmbito. São especialistas desde a Psicologia do Desporto à Metodologia de Treino, desde a Gestão Desportiva ao Alto Rendimento, desde a Sociologia do Desporto à Nutrição, desde a Pedagogia do Desporto à Ergonomia, desde a Traumatologia à Gestão da Formação Desportiva, desde a Ética Desportiva à Medicina Desportiva ou ao Direito do Desporto.

Investigam, procuram analisar, descrever e compreender as várias componentes do desporto, tentando por vezes também, dependendo das variáveis consideradas, predizer e até controlar algumas das mesmas, fundamentando as suas conclusões. Investigam, procuram analisar, descrever e compreender o desporto na sua totalidade. Também aqui tanto encontramos a raposa como o ouriço de Arquíloco (século VII a. C.): "a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa importante". Uns vêem a árvore, outros vêem a floresta. Difícil é ver-se a árvore e a floresta. Mas tanto uns como outros têm como missão fundamental divulgar as suas conclusões.

E se em relação aos especialistas em Ciências do Desporto muita investigação é produzida e publicada, nomeadamente em termos de percepções sobre ética e sobre valores, encontram-se praticamente ausentes das investigações as perversidades no desporto (excepção talvez para os estudos sobre doping, agressão e violência) – não só a corrupção, mas também a morte súbita na prática desportiva, a morbilidade, o treino intensivo precoce, a fraude desportiva, o racismo e a xenofobia, o suicídio de desportistas ou o próprio terrorismo que se abate sobre os mesmos.

Investigam-se imensos parâmetros em Ciências do Desporto, mas o que é feito da sociomotricidade? E dos planos socio-afectivo e relacional?... Será mais importante investigar as virtudes e os valores do desporto do que os contra-valores do mesmo? Será mais relevante pesquisar sobre o espírito desportivo, sobre a ética, sobre a moral ou sobre valores nesta actividade do que pesquisar sobre as perversidades existentes no desporto?

O discurso dos agentes desportivos baseia-se nos resultados que alcançam ou não nas próprias provas, pouco justificando os métodos que utilizam, fazendo referência, no entanto, por vezes, ao espectáculo que produzem.

São discursos de circunstância. São discursos sempre proferidos à frente de um painel cheio de logotipos de patrocinadores a fim de nos impulsionarem ao consumo daquelas marcas. Muitas vezes são discursos vazios de significado: “vamos deixar tudo em campo para ganhar” antes do jogo e “fizemos o melhor que pudemos” ou “fomos os melhores em campo” depois do jogo são os chavões mais utilizados – realçando muitas vezes neste último caso a vitória moral que não a efectiva. “Venho para trabalhar“ e “prometo dar tudo ao clube” são os clichés mais comuns das novas aquisições. Treinadores e jogadores apresentam um discurso corrompido pelo “killer instinct”, pelo “amor à camisola”, pela “verdade desportiva” e pelo “fair-play”. A obrigatoriedade das entrevistas de antevisão do jogo e as entrevistas rápidas no pós-jogo a isso obrigam.

Eduardo Galeano, em “Futebol: sol e sombra”[85] dá-nos um exemplo paradigmático:

Antes do jogo, os cronistas formulam as suas perguntas desconcertantes:

– Dispostos a ganhar?

E obtêm respostas assombrosas:

– Faremos tudo o que for possível para obter a vitória.

Treinadores e jogadores, os principais sujeitos do desporto, ignoram muitas vezes no seu discurso as suas competências técnicas e tácticas, mas também as suas competências pedagógicas, éticas e deontológicas. É enorme a diferença de discurso entre um treinador dos escalões de formação e um treinador de uma equipa profissional… Disso não nos apercebemos porque os primeiros não são mediatizados, ao invés dos segundos. É enorme a diferença de discurso entre jogador amador e um profissional. Disso não nos apercebemos porque, como nos diz Galeano na mesma obra, o jogador “que tinha começado a jogar pelo prazer de jogar, nas ruas de terra batida nos subúrbios, joga agora nos estádios e tem a obrigação de ganhar ou ganhar.

Não poderemos ignorar aqui também os dirigentes desportivos e os agentes de jogadores, apesar de não intervirem directamente no espectáculo desportivo.

São estes intervenientes diretos no desporto os responsáveis pelas maiores e pelo maior número de perversidades – nunca abordadas nos seus discursos a não ser quando chegam à barra dos tribunais, desportivos ou cíveis. Poderemos apontar como (alguns) exemplos Ben Johnson, Marion Jones e Alberto Salazar (atletismo), Tonya Harding (patinagem artística), Marco Pantani e Lance Armstrong (ciclismo), Torres Baena (karate) e os dirigentes Bernard Tapie, Juan Antonio Samaranch, Michel Platini e Joseph Blatter.

 

22. Discursos sobre o desporto (II)

31.01.2020

 

Passamos de seguida para o discurso dos consumidores do espectáculo desportivo e dos receptores daquilo que é divulgado nos e pelos mass media desportivos e para o próprio discurso destes últimos.

Os consumidores do espectáculo desportivo, quer sejam espectadores in loco, quer sejam receptores do que é veiculado pelos mass media, em directo ou em diferido (TV ou imprensa), fundam o seu discurso num fenómeno de identificação com o clube ou com a modalidade e de posterior oposição em relação ao adversário. Mais preocupante quando fundam esse discurso em razões emotivas que à posteriori se transformam em fundamentalismos… É o discurso da paixão e não o discurso da razão. É o discurso inflamado e não o discurso ponderado. É o discurso faccioso e não o discurso isento. É o discurso da reprodução e não o discurso da crítica ou da análise. É o discurso alterado e não o discurso sereno. É um discurso de opressão, um discurso de amarras…

Têm opiniões sobre tudo e sobre todos mesmo que não consigam explicar os fundamentos das mesmas. Têm opiniões sobre tudo e sobre todos mesmo que não saibam do que estão a falar. É um discurso muitas vezes reprodutivo daquilo que escolheram – ou lhes fizeram escolher – para seguir na comunicação social.

Souness, nos tempos em que treinava o Benfica, em 1997/98, chegou a afirmar que “em Portugal todos os burros falam de futebol”, referindo-se aos comentários que eram dirigidos à sua actividade profissional e ao desempenho dos profissionais da equipa que orientava. Não deixava de, alegoricamente, ter razão... Mas Souness esqueceu-se de dizer que para esses burros falarem de futebol alguém ou algum meio lhes tinha metido na cabeça ideias sobre o futebol…

Os mass media, ou parte deles, procuram relatar factos e acontecimentos, apesar de esse relato não poder fugir a uma certa subjectividade e interpretação do seu relator, o que o torna parcial e arbitrário. E se parte desses media ainda procura… a outra parte elabora e propaga o discurso que tem de ser construído para vender.

A 27 de Janeiro a Espanha acabava de vencer o Europeu de andebol. Tragicamente, um helicóptero com nove pessoas despenhava-se nos Estados Unidos. A imprensa do país vizinho – «Marca», «Mundo Deportivo» e «As» – ocupavam as suas capas com fotos a tamanho inteiro de Kobe Bryant. Os três principais jornais desportivos do nosso país retratavam o nosso futebol, o nosso futebol e o nosso futebol…

Como nos dizia Humberto Eco[86]os mass media, colocados dentro de um circuito comercial, estão sujeitos à «lei da oferta e da procura». Dão ao público, portanto, somente o que ele quer, ou, o que é pior, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este deve desejar.” Assistimos então na TV a transmissões futebolísticas com as imagens de quatro ecrãs num ecrã só em que não se vislumbram imagens do jogo jogado (mas tão só do seu envolvente) e onde este é relatado com essas imagens em fundo – é a rádio visual. Alain Woodrow[87] explica-nos que a imagem é insolente e pervertida pelo dinheiro e “é assim que todos os media, sob o jugo da imagem, se deixam pouco a pouco desviar do seu objectivo – informar – para se tornarem, por sua vez, manipuladores.” Transmite-se em cima do acontecimento (é o “chegar primeiro”) e transforma-se o espectador num voyeur desencadeando nele emoções e retirando-lhe a possibilidade de parar um pouco para analisar a mensagem recebida (é o “formar o desinformado”) ao invés de procurar informar bem e correctamente através da imagem real do acontecimento mesmo que em directo (ou até em diferido) com a particularidade de nessas imagens passar publicidade encapotada. É esse o principal objectivo destas transmissões. Departamentos de marketing e de comunicação estudam e aplicam estas técnicas o que indica que não são ingénuas essas transmissões. Essa publicidade em primeiro lugar seduz e em segundo lugar leva ao consumo: uma forma camuflada de manipulação. E, na realidade, quem a paga é o consumidor final do produto publicitado – o espectador.

Assistimos depois a um sem número de programa de debate transformados em autênticos reality shows os quais revelam por vezes uma certa tendência para influenciar ou manipular a opinião dos consumidores através dos opinion makers e/ou dos influencers. O jornalista Daniel Deusdado (JN de 21.07.2011) diz-nos exactamente que “fazer jornalismo é produzir influência na opinião pública.” São mesas redondas, são debates, são programas sobre futebol e não sobre desporto, pois se perguntássemos a esses comentadores (normalmente um por cada um dos três “grandes clubes”) por que motivo uma baliza de futebol tem as dimensões que tem, qual a altura a que se encontra colocado um aro de uma tabela de basquetebol, quantas armas tem a esgrima ou quantos buracos existem num campo de golfe provavelmente (quase de certeza!) não saberiam responder. Nas palavras de Alain Woodrow[88], numa obra posterior, afirma que “os limites do abjecto são os do valor comercial do sórdido. E a merda vende-se bem.

O consumo assíduo destes tipos de programa, para os quais nem sequer existe um espírito selectivo ou um espírito crítico, condena o espectador passivo ao obscurantismo. E é sempre mais fácil dominar uma pessoa criada neste meio ambiente…

E na internet, redes sociais incluídas, a divulgação de factos deturpados (há quem lhe chame fake news) é bem notória. Como disse o jornalista Luís Freitas Lobo[89] sobre a modalidade mais mediatizada “há algo que o futebol actual consagrou através do impacto da internet e das redes sociais: a verdade vende menos. A mentira é um produto lucrativo.

Se tivermos em linha de conta toda a evolução do desporto e todo o conhecimento sobre este, reparamos que as crenças no mesmo – ou antes, nas suas finalidades – existentes desde o tempo do amadorismo e do «amor à camisola» ainda hoje se mantêm (o que é verificável pela linguagem utilizada pelos consumidores do desporto – o desporto forma, é um meio educativo, transmite valores, o desporto promove a saúde), quando esse «amor à camisola» se traduz actualmente por uma actividade onde a busca do lucro e da vitória é cada vez mais explícita. Consequência disto, no desporto, é a excepção ter-se tornado regra, ou seja, as perversidades sucederam, por evolução do desporto, a um estado ético onde existiam valores, estando estes agora cada vez mais ausentes.

 

23. Sobre a formação de treinadores

02.02.2020

 

"Toda a instituição passa por três estágios - utilidade, privilégio e abuso."

François Chateaubriand (1768-1848)

Não chega aprender com quem sabe. Tem de se aprender com quem sabe ensinar, com quem sabe fazer e, principalmente, com quem sabe fazer ser! E não é por decreto que quem presumivelmente terá de saber, saber fazer e saber fazer ser passará a ter competências pedagógicas, competências formativas!

É demais conhecida a frase de Maquiavel: “os homens são tão simples e submetem-se a tal ponto às suas necessidades presentes que aquele que engana encontrará sempre alguém que se deixe enganar.

Isto porque, à semelhança da formação de treinadores, um dia destes poderá ser promulgada uma lei em que para se pintar com lápis de cor seja preciso fazer um curso. Sim, porque um afia-lápis possui uma lâmina e, sendo um objecto potencialmente cortante, é preciso evitar acidentes e é preciso evitar que essa lâmina seja usada com outros fins... Para além disso, um lápis bem afiado pode ser uma arma mortal (não sabiam? Claro que sabiam!!!). 12 lápis de cor são 12 armas!!! E agora, vamos afiar o lápis amarelo e pintar com o amarelo...

Logo, só pessoas devidamente credenciadas (terão de fazer um curso e, para isso, pagar uma inscrição no mesmo) poderão afiar e pintar com lápis de cor. Claro que só poderá ministrar esse curso uma empresa devidamente certificada... Depois de terem frequentado esse curso, depois de terem feito um estágio e terem sido aprovadas terão de pagar a “licença de utilização” dos lápis de cor e dos apara-lápis... E agora, vamos afiar o lápis azul e pintar com o azul...

Mas atenção: nos três meses seguintes terá de se frequentar uma acção de formação (e lá temos de novo os €, as £ ou os US$) sobre os diferentes modelos e utilizações dos apara-lápis consoante o diâmetro dos lápis... E nos seis meses posteriores uma acção de formação sobre contornos e preenchimentos (mais uma vez os €, as £ ou os US$)… E nove meses depois outra acção de formação (outra vez os €, as £ ou os US$) sobre a sobreposição e a mistura de cores com os referidos lápis. Adivinhem agora quem vai dar essa formação! Claro, a tal empresa certificada, a qual irá cobrar inscrições para a acção de formação aos utilizadores dos apara-lápis e dos lápis de cor... E agora, vamos afiar todos os lápis e pintar com os lápis todos...

O resultado dependerá, como diz o povo, do pintor. O pintor que pintou Ana também pintou Leonor. Se a Ana é a mais bela, a culpa é do pintor.

Há no entanto, aqui, um pormenor importante: aqueles que já são artistas, aqueles que já têm obra exposta, publicada e/ou vendida – e um quadro pintado com lápis de cor pode ser uma bela obra de arte – não terão de frequentar o referido curso, pois poder-lhes-á ser homologada a referida habilitação – mas nada os ilibará de pagarem na mesma uma taxa (sempre os €, as £ ou os US$) .

Mas ser um bom pintor não implica ser um bom professor de pintura com lápis de cor. E nada os impedirá de serem como o pintor que pintou Ana e Leonor… ou de formarem novos pintores como este último.

 

24. Ainda a formação de treinadores

18.03.2020

 

Tem sido constante ultimamente notícia o facto de treinadores exercerem estas funções sem terem o curso de treinadores exigido por lei, argumentando-se com os seus resultados ou o seu currículo. No entanto, a um bom condutor não lhe é permitido conduzir na via pública sem carta de condução…

Recorrendo a ex-jogadores, o currículo de Paulo Futre como jogador é excepcional mas Paulo Futre não tem currículo como treinador.

Paulo Futre é um daqueles génios da bola que teve a felicidade de, depois de ter deixado de jogar, ter tido alguém que, em Espanha, lhe tenha dado a mão. Teve a felicidade de não ser um daqueles três em cada cinco futebolistas com salários superiores a 140 mil euros por mês que terminam a sua carreira falidos, ou acabam nesta situação em apenas cinco anos (sim, é um estudo realizado em Inglaterra com 30 mil jogadores). É uma pessoa que provavelmente aufere de rendimentos daquilo que escreve nas suas crónicas semanais num diário desportivo e que de certeza aufere de rendimentos provenientes de publicidade televisiva – o que não é extensivo a todos os ex-jogadores excepcionais.

Paulo Futre é uma das pessoas que defende que um jogador internacional, com uma carreira relevante, e exactamente por ter sido isso, possa ser automaticamente um treinador. Como se o facto de ser um bom jogador desse origem automaticamente a um bom treinador… mesmo sem ter competências a nível de metodologia de treino, de fisiologia do esforço, de pedagogia do desporto, de… (a lista seria longa, muito longa). Um bom jogador pode não ser por natureza um bom condutor de homens, e aí esvai-se toda a sua capacidade técnica, todo o seu rendimento, toda a sua percepção táctica. Trazemos de novo aqui Olímpio Coelho[90]: “alguns responsáveis falham na sua acção e objectivos por deficiente preparação técnica mas a maior parte dos insucessos devem-se a uma deficiente preparação psicopedagógica.

Ao invés, um bom treinador pode nem sempre ter sido um jogador de relevo. O futebol está cheio destes exemplos. Alguns entre nós, outros lá fora. Neste lote poderemos incluir José Mourinho e Jorge Jesus. Estes, para além de revelarem competências técnicas e pedagógicas revelam também competências de planeamento, de gestão, de execução, de avaliação e competências de liderança. A maior parte destas não foram adquiridas no relvado enquanto jogadores.

Claro que também há jogadores excelentes que são excelentes treinadores. Josep Guardiola é um deles…

Ter sido um bom jogador e ter um currículo de relevo não capacita ninguém a orientar treinos e a obter bons resultados. Há uma linha bem definida entre o que é e o que faz um jogador e as funções do treinador. Mesmo que esse treinador de encontre rodeado de terapeutas, de nutricionistas, de “preparadores físicos”, de treinadores adjuntos disto e daquilo.

Um bom jogador não é necessariamente um bom treinador. A prova provada é exactamente confirmada pelo próprio Paulo Futre na sua coluna de opinião de 8 de Março de 2020, na página 13 do «Record», quando afirma: “quando estiver com um médico de Medicina Desportiva vou perguntar-lhe por que razão um profissional de futebol canhoto, por muito que treine o pé direito, não consegue ganhar potência no remate.” Um jogador de eleição não sabe isto mas um treinador sabe.

Esperemos que quem tutela a formação de treinadores de facto não embandeire por essa via – a de transformar óptimos jogadores em treinadores por decreto.

Ignorar este assunto não fará desaparecer o problema.

 

25. O antes e o depois

29.03.2020

 

Tivemos a felicidade de ver Garrincha transformar um pequeno guardanapo num latifúndio, segundo as palavras de Armando Nogueira (completaram-se 10 anos sobre o falecimento deste em 29 de Março de 2020)…

Fomos felizes por termos tido a oportunidade de termos visto uma nota dez ser atribuída a Nadia Comaneci, por termos tido a possibilidade de assistirmos aos desempenhos de Ayrton Senna e de Michael Schumaker e por termos visto Michael Jordan suspenso no ar (I believe I can fly).

Yelena Isinbayeva, Usain Bolt e Michale Phelps, fizeram-nos delirar… tal como a final do Campeonato Europeu de futebol de 2016.

Josep Guardiola e os mind games de José Mourinho mostraram-nos que nem só da taktiké dos gregos vive o futebol…

E poderíamos também considerarmo-nos felizes por termos sido contemporâneos de Livramento, Agostinho, Eusébio, Damas, Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernando Chalana, Manuela Machado, Aurora Cunha, Jorge Fonseca, Telma Monteiro e tantos outros…

Foi preciso um ser minúsculo, na fronteira entre o ser vivo e o ser não-vivo, para transformar o nosso status de espectador… e se nada será como dantes, talvez tudo passe a ser como dantes tomando novas qualidades como diria Camões.

Foi preciso um ser minúsculo para o futebol dar conta que não poderia existir sem os espectadores, para as televisões descobrirem que não poderiam passar sem os comentadores desportivos e as suas guerras, para a imprensa desportiva dar conta que começava a ter falta de sensacionalismo. Foi preciso esse ser minúsculo para receitas de publicidade, direitos de imagem e de direitos televisivos no futebol decaírem… Em «A Bola» (28.03.2020) num artigo com o título “o vírus contou a verdade ao futebol”, Jorge Valdano – outro génio com quem convivemos – dizia-nos que “o coronavírus arrebatou a atenção, a preocupação e os heróis. Os aplausos foram dos estádios para as varandas.

Foi preciso o aparecimento do mesmo, o seu alastramento e a declaração de pandemia para o COI se aperceber que não domina tudo, que não se move impunemente entre grandes cifras, que não dita as regras…

Muito se afirma que nada será como dantes após esta fase, após esta época que atravessamos, que o desporto a isso não escapará e aponta-se para uma grande evolução para formas “desportivas” em que predominarão as ancas no sofá e o comando na mão. Morreu o rei, viva a rainha, quer seja a Playstation quer seja a Xbox. Disso foi exemplo o facto de o Braga ter “transferido” o seu jogo com o Santa Clara para a Playstation e ter convidado o público a assistir através da internet – de um lado Diogo Salomão, do outro Ricardo Horta. A Liga Portuguesa de Futebol pegou nesta ideia e reproduziu a jornada anterior através de duelos individuais de FIFA20, à semelhança do que já havia sido anunciado em Espanha e Itália.

Os e-Sports vieram para ficar. Definitivamente! Mesmo sem a componente «movimento» que é parte integrante do desporto. O lançamento de um livro, entretanto adiado, pelo Comité Olímpico de Portugal, intitulado «e-Sports: O desporto em mudança?» irá levantar uma ponta do véu. A outra ponta do véu já está levantada: em Espanha, os prémios monetários e as audiências online (o Bétis – Sevilha, organizado por estes clubes há duas semanas teve 62 mil espectadores nas plataformas digitais) mostraram-se surpreendentes.

A  Allianz, a Red Bull, os M&Ms e a Kia deitaram mãos à obra e não deixaram os créditos por mãos alheias. A publicidade e as mensagens subliminares continuarão a marcar presença nesta nova forma «desportiva» e continuaremos a ser manipulados como consumidores.

Mas os mesmos não estarão isentos, para além destes, de outros perigos. O doping, a fraude e a corrupção poderão marcar presença, tal como a própria exploração infantil e até o suicídio, a violência, a morbilidade ou a morte súbita. Recordamo-nos que em 2005, um casal na Coreia do Sul deixou morrer acidentalmente o seu filho à fome porque, curiosamente, estavam completamente absortos num jogo em que tinham de cuidar de uma criança virtual. Em 2007, na China, um homem morreu depois de jogar 50 horas seguidas World of Warcraft. Em 2012, em Taiwan, um homem de 23 anos foi encontrado morto num cybercoffe após ter jogado durante 10 horas seguidas imediatamente depois de ter terminado um longo turno no seu trabalho.

As novas qualidades de que nos falava o poeta continuarão enfermas e submetidas ao capital. Novas virtudes (?), velhos vícios!

 

26. Iremos ficar todos bem?

05.04.2020

 

Vamos ficar todos bem” talvez seja a frase mais proferida nestes últimos tempos e deu origem a uma corrente solidária iniciada em Itália e que já se espalhou por todo o mundo. A ideia foi ocupar as crianças desafiando-as a fazer um desenho com um arco-íris como um voto de confiança no futuro nesta época de quarentena. Ao entrar no meu prédio vejo arcos-íris nas janelas do mesmo… Da minha janela vejo um arco-íris numa varanda de um prédio em frente…Um crédito para a esperança, uma expressão de uma crença.

Em relação ao desporto, e dado que serão essas crianças que daqui a dez ou quinze anos serão os actores principais do mesmo, a grande questão é transformar essa afirmação numa interrogação: iremos todos ficar bem? E, consequentemente, dar-lhe resposta…

Quando 14 clubes de andebol propuseram à sua federação que o Campeonato Nacional encerrasse nesse momento acabando a época sem campeão (2020), quando no voleibol 12 clubes preferiram dar o Campeonato como terminado mesmo que isso significasse não se entregar a título, o futebol ainda continuava a discutir quem seria – e de que modo – o campeão nacional, as operadoras de telecomunicações que patrocinavam os clubes da Primeira Liga recusavam-se a pagar antecipadamente os jogos que ainda não se tinham realizado e a UEFA (preocupada em completar os 17 jogos da Champions em falta nem que estes se tivessem de realizar todos sem público) e a FIFA tentam correr atrás do prejuízo.

Para sabermos se iremos ficar todos bem teremos de estar por cá e termos todos condições de saúde. A primeira variável a ter-se em conta é a sobrevivência. E aqui dependemos não só de nós como também dos outros. Tal como os outros dependem de mim. Vítor Serpa deu em «A Bola» (04.04.2020) uma lição enorme na 1ª pessoa... que passou despercebida a muitos: "E nós que, na área do jornalismo desportivo, estamos tão habituados e deformar a verdadeira dimensão das coisas, chamando herói a quem é apenas talentoso, enaltecendo de glórias e de títulos de adjetivação excessiva quem nos ajuda ao prazer do ócio, devemos cair na realidade e perceber, enfim, que herói é quem oferece a vida para salvar a vida dos outros."

A segunda variável será a variável económica: se os jogadores do Barcelona decidiram uma redução de 70% nos seus ordenados para que o clube continuasse a pagar os ordenados na íntegra dos seus funcionários, bancos e empresas com lucros no ano passado deveriam seguir este exemplo e empregar parte dos mesmos no combate a esta pandemia. Se eu ficar desempregado, ou se o meu salário for reduzido, deixo de comprar o jornal; se não compro o jornal o quiosque fecha; sem quiosque e sem venda de jornais não se fazem reportagens nem se redigem, editam ou imprimem notícias; sem imprensa escrita não se vende tinta nem papel, param as rotativas e encerra a gráfica; não sendo necessário papel os madeireiros não vendem eucaliptos; não se abatendo eucaliptos não se comercializam motosserras e a linha de montagem cessa na indústria … mas o dono do quiosque continua a ter de pagar o arrendamento do mesmo, o jornalista têm de continuar a alimentar-se e a vestir-se, o madeireiro tem de pagar o empréstimo da sua habitação e os operários fabris… … É esta bola de neve que é preciso entender e que convém interromper num qualquer ponto.

E se iremos ficar bem, ou não, depende também de muitas ilusões que grassam agora. Teremos de estar atentos a sucessivas manobras de manipulação – e não, não nos referimos aqui pura e simplesmente à publicidade, à desinformação ou às fake news. Em tempos de confinação, constatamos muitos preocupados com a saúde corporal mas poucos com a saúde mental… Cerca de 22,9% dos portugueses adultos sofre de uma perturbação psiquiátrica – 4% da população apresenta uma perturbação mental grave, 11,6% uma perturbação de gravidade moderada e 7,3% uma perturbação de gravidade ligeira (dados da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental). Portugal é o segundo país com a mais elevada taxa de prevalência de doenças psiquiátricas da Europa, sendo apenas ultrapassado pela Irlanda do Norte (23,1%).

Dispararam os apresentadores – em público ou em privado – através de várias plataformas na internet de actividades dirigidas ao bem-estar do corpo, na maior parte das vezes mascaradas de treino”. Tal não foi acompanhado do lançamento de actividades dirigidas ao bem-estar mental… Mas o treino pressupõe uma componente física, uma componente técnica, uma componente táctica e obrigatoriamente uma interacção presencial entre o treinador e o treinando que provém até de uma componente sócio-motora. Ora, numa transmissão à distância onde não há a possibilidade de corrigir o gesto técnico ou de encadear acções com a participação de vários intervenientes, quando muito poderemos falar em exercício físico, quer este esteja disfarçado de alguma forma artística ou de alguma forma jogada – ou então chamemos-lhe apenas actividade ocupacional. Para uma espécie socialmente dependente, tal como a nossa é, são actividades de facto benéficas para diminuírem o isolamento social e ocupar e promover a integração principalmente dos mais novos, mas tenhamos consciência do que de facto são e não daquilo que desejaríamos que fossem. 

Iremos todos ficar bem? Se ultrapassarmos as vicissitudes sanitárias, se melhorarmos as condições de saúde, se recuperarmos os índices económicos e se dermos conta do que fazemos com o que fizeram de nós (na esteira de Sartre), não temos a menor dúvida que a resposta será afirmativa mas “devemos cair na realidade”. Poderá ter um travo amargo mas, sim, iremos todos ficar bem! Ou pelo menos alguns…

 

27. Viagens do corpo (I)

03.05.2020

 

Os japoneses possuem um provérbio, on kochi shin, que se poderá traduzir por "desenvolver novas ideias baseadas no estudo do passado."

Este passado tem de ser revisitado como uma ponte para o futuro, ponte essa que passa pelo presente. Não se trata de prevermos o futuro mas de precavermos esse futuro.

E no passado, quer se tenha descido das árvores para a planície, como defende a teoria da savana, quer se tenha vivido num ambiente mais ou menos pantanoso, como defende a teoria do símio aquático, certo é que a evolução nos fez chegar ao bipedismo e a uma postura erecta.

Ao longo da filogénese da espécie humana talvez tenham sido estas as mudanças, que duraram milhões de anos, mais significativas.

A perda da oponibilidade do polegar no pé implicou a ausência da capacidade de preensão nos membros inferiores, o tamanho dos dedos reduziu-se, sendo o dedo grande particularmente robusto e participando, tal como os restantes, na função de sustentação.

Podemos constatar hoje que o pé humano tem um arco longitudinal idêntico ao dos outros grandes símios vivos, mas é único quanto ao arco transversal (na zona distal do metatarso, a mais próxima da ligação com as falanges), devido aos ligamentos e aos ossos do tarso que suportam antigraviticamente o peso corpo. É este arco transversal que possibilita que o homem possa criar o grau de tensão muscular adequado e necessário ao desequilíbrio que lhe permite transferir o peso do corpo para a frente deslocando um dos pés, e a seguir o outro, mudando a sua base de sustentação e originando a marcha. Esta é a grande vantagem do homem em relação aos outros primatas. Não é por acaso que todos os movimentos de mudança de direcção usando o trem inferior no Karate-do (pelo menos no estilo Goju-Ryu de Okinawa) se fazem sobre este arco: possibilitam um maior equilíbrio, uma maior estabilidade, tal como uma maior pressão dos dedos do pé no chão durante a mudança de lugar do calcanhar.

Com o bipedismo verificou-se o encurtamento e o fortalecimento dos ossos do metatarso, sendo os exteriores mais robustos (justificando como o peso do corpo na marcha passa do calcanhar para o bordo externo do pé, seguidamente para o terço ântero-interior e, por fim, para o dedo grande do mesmo).

Torna-se fácil dar conta da diferença de tamanho no homem entre os membros superiores e os membros inferiores, sendo estes mais longos.

Paleoantropólogos e biólogos dir-nos-ão se foram as pernas que aumentaram ou os braços que diminuíram. Sem dúvidas o facto de o bipedismo ter libertado os membros superiores para transportar os mais novos, para melhor conseguir alimentos, para reagir mais rapidamente a potenciais perigos, para fabrico e utilização de instrumentos e para mais eficazmente enfrentar mudanças ambientais... e ter possibilitado o cruzamento (pronação), e não só o paralelismo (supinação), do par formado pelo rádio e cúbito no antebraço.

A pélvis foi-se alargando e perdendo altura, proporcionando um melhor rendimento aos glúteos que activam as pernas, permitindo uma melhor transição do centro de gravidade do corpo de modo a que a vertical que passa pelo mesmo caísse sempre dentro da sua base de sustentação.

Enquanto no chimpanzé os fémures são paralelos, no caso do Autralopithecus afarensis (extinto aproximadamente há cerca de 2.9 milhões de anos) estes já se tornam oblíquos e orientados para dentro, evoluindo para que o crânio e as articulações de ambas as tíbias se conjuguem verticalmente. O peso do corpo passou a poder ser assim transferido directamente para a frente, evitando o impulso que os chimpanzés dão de uma perna para a outra quando se deslocam.

A caixa torácica hominídea foi sofrendo um achatamento no plano frontal, tal como uma maior amplitude lateral. A omoplata deixou de se situar lateralmente e evoluiu para a zona posterior do tórax aproximando-se da coluna vertebral, a clavícula alongou-se e robusteceu-se e o esterno tornou-se maior e mais forte.

As colunas cervical e lombar foram-se reduzindo, passando a apresentar a coluna vertebral quatro curvaturas flexíveis que permitiram a estabilização vertical.

O crânio reposicionou-se, modificando-se a posição do foramen magnum, que se situa agora sob o crânio, deixando a coluna vertebral de se alinhar obliquamente com o mesmo e apoiando-se aquele nesta.

Quanto às modificações cranianas basta-nos referir o aumento da capacidade do crânio pois há uma diferença de tamanho do cérebro entre o Autralopithecus afarensis (400-500 cm³) e o Homo sapiens (1.200-1.400 cm³) assim como a diminuição do prognatismo e consequentes modificações odontológicas.

Um último apontamento em relação à estatura: se o Homo habilis (2.4 a 1.6 milhões de anos) tinha uma pequena estatura, cerca de 1.52 m, a altura média de um ser humano europeu situa-se actualmente entre os 1.73 m e os 1.78m.

Para se perceber perfeitamente a nossa filogénese seria bom não se esquecer que a evolução humana, assim como a de qualquer outro ser vivo, foi um processo complexo e não um processo linear[91]

Mas enquanto ao longo da mesma o corpo hominídeo se foi modificando como resultado de uma evolução condicionada pela natureza, adaptando-se, actualmente as modificações do e no corpo humano resultam de uma resposta ao ambiente criado pela sua própria espécie.

 

28. Viagens do corpo (II)

14.05.2020

 

O número global de pessoas que sofriam de obesidade em 1995 cifrava-se em 20 milhões. Cinco anos depois esse número passou para 30 milhões. De imediato o nosso raciocínio é conduzido para a ingestão excessiva dos hidratos de carbono e para os hábitos de vida não saudáveis. Mas será só isso?

Regressemos um pouco atrás! O corpo dos caçadores-recolectores operava essencialmente em função da marcha. As suas posições de descanso eram a agachada ou a deitada. A partir do momento em o homem se sedentarizou, a posição agachada foi sendo progressivamente substituída pela posição sentada: numa pedra, num tronco de árvore, num banco, numa cadeira, num sofá… A partir desse momento e com a dedicação à agricultura toda a alimentação do homem se modificou (o que provocou também mudificações a nível de mandíbula e dentição) reflectindo-se nas funções do próprio corpo e na anatomia do mesmo. Vários estudos demonstraram que foi decrescendo a densidade óssea dos humanos: do caçador mesolítico passando pelo agricultor neolítico até chegar ao trabalhador moderno. Os ossos foram ficando mais esguios e porosos[92]

O sedentarismo originou o enfraquecimento progressivo dos flexores do quadril, dos músculos isquiotibiais, dos glúteos e dos abdominais que provocaram a actual inclinação pélvica anterior com as consequentes lordoses a originarem cifoses correctivas. O desalinhamento da coluna reflectiu-se nos discos inter-vertebrais e respectivas hérnias discais. Nos nossos dias mais de 80% da população mundial sofre de dores lombares e/ou dorsais.

Na civilização grega o trabalho sedentário deu origem ao exercício físico como forma de compensação para umas classes, enquanto para outras o aumento do tempo de lazer deu origem aos jogos, ao espectáculo e ao divertimento. Daí o desporto seguiu o seu curso, até aos dias de hoje, onde o movimento e a competição (a todos os níveis, designando vencedores e vencidos) estão presentes, sendo uma actividade codificada (com regras e regulamentos) e estando integrado num sistema institucionalizado (organizado em torno de clubes e federações). Já ninguém ignora que hoje em dia o desporto é uma actividade que movimenta milhões de euros e mesmo aqueles que se pautavam por um desporto com fins formativos e educativos mudaram o seu discurso reconhecendo que o desporto (ou seja o que for a que se chame desporto) está onde estiver o dinheiro. Poucas são as excepções.

O corpo humano, feito para a marcha, começou então a ser trabalhado no desporto ao mesmo tempo que a grande maioria das profissões se exercia sentada numa cadeira. O tempo de ócio, ocupado desportivamente, ao ar livre, em ginásios ou clubes, passou posteriormente a ser ocupado em casa (vídeo-games e streaming) sendo necessária uma cadeira ou um sofá.

Surgem os e-Sports onde os competidores – sentados em cadeiras que por mais ergonómicas que sejam, sofrem de maleitas físicas e posturais (para além da pouca mobilidade, de experiências de esgotamento emocional, isolamento social e compulsividade) – se colocam em frente a um monitor durante 6 a 10 horas por dia. Enchem-se pavilhões desportivos durante horas e horas com espectadores sentados a verem, lá em baixo, minusculamente, os intervenientes diretos a competirem, quedando-se a olhar para gigantescos ecrãs electrónicos para acompanharem em tempo real a acção dos mesmos.

Tenta-se novas reformulações do conceito de desporto com o Comité Olímpico Internacional a admitir, em 2017, considerar os e-Sports uma actividade desportiva[93]. Ano em que se forma em Portugal a Federação Portuguesa do Desporto Eletrónico com mais de vinte clubes, onde, curiosamente, só cinco possuem nome português e em que, na Cidade do Futebol se organiza o Allianz Challenge, no qual participaram milhares de jogadores…

Que influência poderão ter estas actividades nas posturas corporais e nas modificações do corpo humano? Que alterações biomecânicas sofrerá o mesmo? Que impactos na saúde? Talvez não sejam precisos milhares de anos para chegarmos a conclusões…

 

29. Vítimas do desporto

17.05.2020

 

O mito do fomentar a saúde é uma das bandeiras do desporto. O cliché “o desporto dá saúde” é mais que conhecido… mas nada há de mais errado! O desporto tritura o competidor, levando este a aceitar riscos e a conviver com a dor, assim como o leva a interiorizar poder superar os limites do seu desempenho, porque, para além de vencer ou de ganhar dinheiro, é motivado pela crença de que ser um “verdadeiro atleta” implica assumir riscos para a sua própria saúde, fazer sacrifícios e jogar o preço de ser tudo aquilo que quiser alcançar.

Em Março de 2007, no Congresso denominado «Morte Súbita no Desporto» realizado em Lisboa, Gomes Pereira, médico do Sporting e professor universitário, teve a oportunidade de afirmar que “o treino é uma agressão. A alta competição pode ter contornos prejudiciais para os atletas.” Nesse mesmo evento foi secundado por Rui Miller, médico do Belenenses e também professor universitário, que declarou que “a alta competição é extremamente prejudicial para o atleta.

Num comentário ao meu artigo anterior (em «A Bola» online) colocaram esta questão: “E qual é a percentagem de desportistas com maleitas ósseas e articulares graves por terem feito desporto?” Não me é possível responder taxativamente a esta questão por dificuldades estatísticas mas mesmo que fosse 0,002% passaria a ser 100% se fosse com o referido comentador… ou com um filho seu… ou com o seu melhor amigo…

Mas vou tentar responder a esta questão com alguns exemplos.

Roger Riviére, ciclista francês, 24 anos, 1960; Yelena Mukhina, ginasta soviética, 20 anos, 1980; Dennis Byrd, jogador de futebol americano, 26 anos, 1992; Reggie Brown, 23 anos, também jogador de futebol americano, 1997; Sang Lan, ginasta chinesa, 17 anos, 1998; Takuma Aoki, motociclista, piloto oficial da Honda, 24 anos, 1998; Charles Manosalva, chileno, salto com vara no desporto escolar, 16 anos, 2002; Kira Gruenberg, austríaca, saltadora com vara, 22 anos, 2015. O que há de comum entre estes desportistas? Exactamente o mesmo que têm em comum com Tiago Sousa: em Janeiro de 2005 este atleta de tumbling do Lisboa Ginásio Clube, aos 20 anos, contraiu uma lesão na coluna durante um treino ficando paraplégico.

Se a estes casos juntarmos o do piloto inglês de BMX Stephen Murray, de 27 anos, ou o caso de Kevin Everett, jogador dos Buffalo Bills, de 25 anos, que em 2007 ficaram ambos tetraplégicos, poderemos dizer que em 55 anos são “apenas” 11 casos… mas estes são “apenas” os que conhecemos!

Estes são casos extremos. Mas há aqueles que sujeitos a pressões de marcas, de patrocinadores, de dirigentes e até de treinadores se tornam vítimas do desporto. As sobrecargas de treino, o esforço repetitivo, os abandonos precoces da carreira de desportista e as lesões vitalícias estão aí à vista de toda a gente. E não estamos a falar de acidentes ou de casos de morte súbita…

Situações confirmadas por Pat Lafontaine, Eric Lindros e Mike Modano no hóquei no gelo na NHL, por Patrik Sjoberg no atletismo ou Charles Barkley no basquetebol, ou no futebol por Van Basten, Brian Laudrup, Vítor Martins, Eusébio e Mantorras… Aliás, o futebol é fértil nestes casos. Basta recordarmo-nos que em 2002 o inglês Matt Holmes (30 anos) e o croata Igor Stimac (35 anos) ficaram impedidos de praticar futebol, tal como em 2003 o norueguês Alf-Inge Haland (30 anos) ou em 2006 o irlandês Roy Keane (35 anos). O brasileiro Leandro Machado, também colocou fim à sua carreira aos 32 anos em 2008, devido a tendinites crónicas nos dois joelhos e em 2009 o argentino Juan Pablo Sorín, de 33 anos, disse adeus ao futebol também na sequência de sucessivas lesões.

Numa pesquisa realizada entre os anos de 1992 e 1995 nos EUA, envolvendo 680 mil atletas, os desportos onde mais lesões graves se verificam durante um ano são a luta livre (38,2%), seguida do voleibol (29,9%), da ginástica (20,6%), do basquetebol (19,2%), do futebol (13,8%), do atletismo (7,2%), da natação (5,4%) e, por fim, da esgrima (4,7%).

No boxe, Muhammad Ali aos 42 anos (1984) apresentava sérios transtornos cerebrais e sintomas de doença de Parkinson, provável consequência dos golpes recebidos ao longo dos 25 anos da sua carreira.

Em 1998 Carl Lewis aos 37 anos sofria de artroses e revelava fortes dores a andar, afirmando os médicos que a sua coluna vertebral parecia a de um homem de 60 anos, e Mike Powell, o homem que derrubou o mítico recorde de Bob Beamon no salto em comprimento, anunciou o abandonou das pistas com 35 anos devido a lesão nos adutores.

Cris Pringle, jogador de críquete neozelandês, retirou-se também em 1998, com 30 anos, devido a uma lesão num tornozelo.

A lançadora de dardo alemã Karen Forkel, acabou com a competição em 2000 devido a uma lesão num ombro aos 30 anos.

No basebol, Mark McGuire, batedor dos St. Louis Cardinal, com um recorde pessoal de 71 home runs, decidiu pôr um ponto final na sua carreira em 2001 devido a sucessivas lesões, aos 38 anos.   

O recordista mundial do dardo, Jan Zelezny, da República Checa, termina um percurso com mais de 20 anos em 2006, por já não poder suportar as dores no tendão de aquiles – tinha 40 anos.

Aos 27 anos, Sebastian Deisler terminou a sua carreira em 2007 por não conseguir suportar as sucessivas lesões. O internacional alemão, jogador do Bayern de Munique, foi operado cinco vezes ao joelho direito e em duas ocasiões teve de receber tratamento psiquiátrico. Segundo palavras suas “… os últimos anos foram um suplício. Já não jogava futebol com alegria.

Em 2008, aos 33 anos, Maurice Greene, antigo recordista, campeão olímpico e mundial dos 100m, retirou-se da competição também devido a lesões. Afirmou na altura: “Já não consigo suportar a batalha mental de tentar regressar das lesões. O desgaste psicológico é imenso e uma pessoa fica deprimida.”

Yao Ming, o gigante chinês da NBA, com lesões que ameaçavam tornar-se crónicas e limitativas após ter sido operado a uma fractura no pé esquerdo retirou-se do basquetebol em finais de 2011.

Em 2012 é a vez de Ticha Penicheiro, a mais conceituada basquetebolista portuguesa, abandonar o desporto. Um dia após completar os 38 anos revela: “Ganhei tendinites crónicas nos tendões de Aquiles e é-me difícil correr. Quando acordo, para sair da cama estou a sofrer. Nunca na carreira tinha levado uma injeção ou infiltração e nos últimos 12 meses levei dez (!) para jogar.

A tenista chinesa Na Li, vencedora do Roland Garros de 2011 e do Australian Open de 2014, aos 32 anos revelou: "Depois de quatro cirurgias nos joelhos e centenas de injecções semanais para aliviar a dor, meu corpo implora-me para parar!" e abandonou os courts

Aos 35 anos, após quase dois anos de afastamento das provas, Naide Gomes não resistiu a lesões crónicas que a impediam de competir e anunciou o seu afastamento das pistas em Março de 2015. 

Em 2016, a antiga número um do mundo do ténis, a sérvia Ana Ivanovic, aos 29 anos terminou a carreira devido às várias lesões contraídas durante a mesma. O italiano Dario Scuderi, futebolista de 19 anos, termina nesse ano uma carreira que mal tinha começado, pois durante um jogo sofre o rompimento duplo dos ligamentos cruzados do joelho, lesão no ligamento do tornozelo e no menisco.

O esquiador suíço Sandro Viletta, medalha de ouro nos J. O. de Inverno de 2014, abandona a alta competição em 2018, com 32 anos, dadas as lesões que o afectavam num joelho.

Já em 2020 o hoquista espanhol do Benfica Albert Casanovas anunciou deixar de jogar, com 35 anos, devido a fortes dores nas costas. No futebol saliente-se a despedida dos relvados de Václav Kadlec aos 27 anos devido a um problema num dos joelhos. Também Viktor Ahn, patinador russo de velocidade de pista curta no gelo, seis vezes medalha de ouro olímpico, colocou um ponto final na carreira aos 34 anos por causa de várias lesões: “Devido à dor contínua no joelho, à recuperação após tratamento e à reabilitação muito longa depois das competições, é muito difícil treinar no máximo”…

Tornozelos, joelhos, anca e coluna vertebral são as articulações mais atingidas. Lesões consecutivas e irreparáveis transformaram-se em lesões vitalícias e deram origem às vítimas do desporto. Gabinetes médicos, hospitais e clínicas desportivas ou de reabilitação têm nelas os seus melhores clientes. O desporto assim o exige[94].

 

30. Suicídios no desporto

27.05.2020

 

A 22 de maio de 2020 fomos confrontados com as notícias de que o futebolista sérvio de 38 anos Miljan Mrdakovic, que alinhou pelo Guimarães em 2007/2008, e de que a japonesa Hana Kimura, Pro Wrestler de 22 anos, teriam cometido suicídio. Ventila-se que o primeiro caso poderá ter acontecido devido a uma depressão do jogador, enquanto o segundo poderá ter origem em online bullying.

De imediato nos vem à memória os nomes do antigo guarda-redes do Benfica, Robert Enke (suicídio em Novembro de 2009, aos 32 anos), e a do ciclista Marco Pantani (suicídio em Fevereiro de 2004, aos 34 anos)… e colocam-se também de imediato as questões: serão frequentes os suicídios entre os desportistas? Quais as causas prováveis dos suicídios conhecidos?

No ano do suicídio de Robert Enke demos conta também também das mortes semelhantes de Christophe Dupouey (campeão do mundo de BTT em 1998), de Mike Whitmarsh (vice-campeão olímpico de voleibol em 1996) e do futebolista brasileiro Marcelo Moço, do ASK Bruck/Leitha, que aos 30 anos foi encontrado enforcado no sótão da casa onde vivia. Ainda em 2009 o ciclista belga Dimitri de Fauw pôs termo à vida aos 28 anos.

Não conseguimos saber se serão frequentes os suicídios entre os desportistas, mas quase que poderemos dizer que são mais do que aqueles que imaginamos ou até daqueles que chegam ao nosso conhecimento através da comunicação social.

O mais antigo suicídio de um desportista que temos conhecimento remonta a 1886 e refere-se ao cavaleiro James Archer. Em 134 anos muito aconteceu… Recordamo-nos entre outros, por terem nomes sonantes devido aos seus desempenhos, de Abdón Porte (futebol), de Luís Ocaña (ciclismo), de Sandor Kocsis (futebol), de Melvin Turpin (basquetebol), de Antonio Pettigrew (atletismo), da judoka austríaca Cláudia Heill e do andebolista sérvio Novak Boskovic.

Devido à sua tenra idade realçamos o suicídio do halterofilista russo Igor Tepikin, de 15 anos, ocorrido em Moscovo, em 2012… e da snowboarder britânica Ellie Soutter em 2018, nos Alpes Franceses, no dia em que completava 18 anos…

Entre nós registamos os suicídios do nadador Rui Abreu (este ocorrido nos Estados Unidos em 1982), assim como do ciclista Gonçalo Amorim em Santarém e de um cavaleiro francês na Herdade da Comporta, ambos em 2012.

A grande maioria destes suicídios é provocada por estados depressivos e de ansiedade, os quais são resultado da pressão colocada em cima dos desportistas, pela sua ânsia de ganharem ou atingirem bons resultados competitivos e pelas exigências de um desporto sujeito ao mercantilismo, a patrocinadores, a dirigentes e treinadores sem escrúpulos, ao uso da imagem e ao consumismo. A máquina desportiva (ao contrário do que muitos parafraseiam) não se compadece com a formação dos desportistas, com a sua maturação, a sua sociabilização e a sua adaptação. Mas o competidor também tem a sua quota parte das responsabilidades ao tentar alcançar os maiores feitos a qualquer preço, ao querer ultrapassar o inultrapassável – os seus próprios limites –, ao arriscar a sua saúde e a sua vida, e a correr atrás da fama, da glória e do dinheiro. E não, não estão sozinhos nesta corrida: nós temos também as nossas responsabilidades ao aclamá-los, ao incentivá-los, ao continuarmos a correr atrás da vitória, do recorde, da exaltação e do herói.

Muitos destes factos ocorrem nas cercanias de outros fenómenos: o treino intensivo precoce, o doping e o terminar de uma carreira…

O médico Jean-Pierre Mondénard[95] mostrou-nos em 1998 que dos 677 ciclistas franceses que participaram na Volta à França num espaço de 51 anos (de 1947 a 1998), 77 faleceram prematuramente (serão só 11%, dirão alguns!), e destes 30 morreram de cancro, 18 de doenças vasculares, 19 em acidentes de viação e 5 suicidaram-se. Estes últimos são só 6,5%, dirão alguns…

Mas no desporto o suicídio não atinge só os principais intervenientes. Em 2011, na Alemanha, o árbitro Babak Rafati tentou cometer suicídio horas antes do encontro entre o Colónia e o Mainz. Em 2012 o treinador russo da equipa feminina de voleibol, Sergey Ovchinnikov, de 43 anos, consumou o suicídio. E só mais um exemplo: Robert Follis, treinador de MMA, cometeu suicídio em 2017.

Resultado diferente tiveram aqueles que escaparam aos seus impulsos ou que não sucumbiram à depressão. Michael Phelps reconheceu ter pensado em suicidar-se logo após os J. O. de Londres em 2012. Em 2015 o futebolista Emmanuel Adebayor confessou já ter pensado em cometer suicídio em várias ocasiões, tal como em 2016 Ronda Rousey também admitiu que chegou a ponderar o suicídio após a derrota por KO frente a Holly Holm…

Infelizmente em Julho de 2020 uma nova tragédia: Ekaterina Alexandrovskaia, campeã mundial de juniores em patinagem artística de 2017, com 20 anos, lança-se de um 6º andar em Moscovo. O desfazer da parceria com Harley Windsor parece estar na origem do trágico desenlace…

Urge estudar esta problemática[96]. Urge proteger a saúde e a vida de competidores seja qual for a sua modalidade, a sua idade ou o seu estatuto desportivo. Urge modificar comportamentos e criar condições para que estes exemplos não se repitam. É urgente que o desporto o permita. E o possibilite!

 

31. Dois livros, duas medidas!

06.07.2020

 

Em 2007 tivemos a oportunidade de ver publicado o livro intitulado «Em defesa do desporto – mutações e valores em conflito»[97] com Jorge Olímpio Bento e José Manuel Constantino como coordenadores e patrocinado pelo Comité Olímpico de Portugal. Prefaciado pelo então Presidente do COP, José Vicente de Moura, podemos ler no mesmo que os autores dos diferentes textos “não se limitam a acrescentar um tijolo ao muro do conhecimento” porque “eles derrubam-no e estabelecem uma nova fasquia quanto aos moldes modernos de o entender.” É um livro com o contributo de autores de várias áreas as quais possuem conexões com o desporto: educação física, pedagogia, direito, psicologia, ética, economia, medicina, estética, saúde pública, jornalismo, antropologia, sociologia e até literatura moderna.

Numa análise sopre o desporto moderno, esta obra coloca no lugar a actividade física, a educação física e o desporto, assim como os valores deste último, mas também equaciona o papel do espectáculo desportivo, o papel do dinheiro no desporto e as várias profissões que gravitam em torno do mesmo. Realce-se a demonstração (J. O. Bento) de o desporto ser “uma prótese para uma infinitude de insuficiências e deficiências que nos limitam e apoucam. É uma réstia de esperança!”. Aborda também os prováveis efeitos sobre o desporto do avanço do conhecimento genético e dos meios de comunicação social, tal como aborda o alto rendimento e o papel do desporto na escola e no turismo. Um facto importante que este livro nos apresenta é o de o desporto possuir o seu “próprio Direito” (J. M. Meirim). É um livro que não esquece o desporto para todos, a performance e a excelência desportiva mas que também nos alerta (T. Marinho): “sejamos conscientes dos nossos limites, mas não nos limitemos a aceitar que não é possível irmos mais longe, sermos mais altos e sentirmo-nos mais fortes.

Aqui poderemos ver que o desporto foi evoluindo ao longo dos tempos e que nesta altura, em 2007, mesmo entre nós, ele já se encontrava num outro patamar muito diferente do século passado, ao ponto de se afirmar (F. Tenreiro) que “nos países mais desenvolvidos a ética é promovida e defendida porque é um bem valorizado económica e socialmente. O mercado da ética do desporto português não existe.

E assim verificamos que de um desporto em que o objectivo principal era a moral e a educação, se passa progressivamente para um desporto virado para o objectivo espectáculo. Posteriormente, com a profissionalização da maioria dos intervenientes directos no desporto e com a panóplia de actividades da mais diversa índole envolventes do mesmo, com a entrada em cena dos mass media e, posteriormente da tecnologia, passamos a um desporto pós-moderno. 

Aquilo que inicialmente era uma actividade que servia de fruição para uns enquanto outros se distraiam assistindo, para ocupar os tempos livres e que possuía um carácter formativo acaba por se transformar numa actividade económica ao redor da qual proliferam inúmeras outras actividades. Do ócio, através da sua própria negação, passa-se ao negócio…

Treze anos depois, agora, temos a oportunidade de assistir à publicação de «e-Sports: o desporto em mudança?»[98], uma outra colectânea de textos tendo como coordenadores José Manuel Constantino e Maria Machado e também patrocinada pelo COP e com prefácio do seu Presidente. Embora seja uma obra específica sobre os e-Sports, debruça-se sobre o conceito de desporto tal como sobre o fenómeno digital e reflecte a posição de um vasto inúmero de autores associados às Ciências do Desporto. Desde aqueles que, e segundo diferentes perspectivas, parecem peremptoriamente afirmar que «os e-Sports são desporto» aos que pretendem uma nova definição do conceito de desporto e a inclusão dos e-Sports na mesma, encontramos ainda aqueles que se interrogam sobre a questão (P. Martins, J. Lameiras e A. B. Ramires, assim como M. J. Andrade), numa posição mais ou menos expectante. Duarte Araújo é o único autor a escrever claramente que “quando se discute se e-sport está contido no conceito de desporto, a resposta tem de ser negativa.” No pólo oposto Alexandre Mestre não tem dúvidas: os e-Sports são desporto.

Neste livro revela-se a evolução dos e-Sports, o crescimento progressivo de jogadores e espectadores, assim como o elevado volume de negócios envolvido nos mesmos e os pontos da sua inclusão como desporto assim como os seus pontos positivos.

No entanto também são denunciados “incidentes comuns que decorrem na generalidade dos desportos (como a manipulação de competições desportivas, o doping e a corrupção)”, os quais “acrescentam problemas particulares derivados da natureza digital dos desportos eletrónicos” (J. P. Almeida e J. Gonçalves) e também somos alertados (A. Neto e R. Magalhães) para o facto de que “os mecanismos de estimulação cerebral associados ao jogo são similares aos provocados por uma dose de cocaína (por ativação de neurotransmissores – por exemplo a dopamina).” A discussão do tema e a investigação são necessárias (J. Lameiras e A. B. Ramires) “quando a dita ‘prática’ destes jogadores contempla, muitas vezes, a permanência entre 6-10 h dia em frente a um monitor, e para além das questões físicas e posturais, as experiências de ‘burnout’ emocional, de compromisso das competências sociais e consequente isolamento social, de desenvolvimento de patologias de adição em idades muito jovens entre muitos outros compromissos do foro da qualidade dos afetos e da estruturação de uma personalidade iminentemente saudável precisam, por isso, ser colocadas no centro das atenções.

Em 2017 o Comité Olímpico Internacional anunciou a possibilidade dos e-Sports integrarem a família olímpica – e não terá sido com o intuito formativo que o fez, dado ser uma empresa (uma big empresa) com lucros significativos.

Se no livro publicado em 2007 Vicente de Moura dizia que era “imperativo não fazer cedências à moda e ter a coragem de ir além dela”, no livro mais recente Pedro Sequeira e António Lopes dizem-nos que os e-Sportsjá passaram claramente a fase em que foram considerados apenas uma moda” pelo que eles mesmos “darão lugar a uma nova redefinição do conceito de desporto e consequente inclusão dos e-Sports na sua família.” Acrescentaríamos nós que o dinheiro mandaria muito nesta nova redefinição…

E após lermos ambos os livros, estamos em condições de responder à questão colocada por Vicente de Moura no primeiro: “qual é afinal o paradigma de organização e de desenvolvimento desportivo que não vislumbramos e de que carecemos, que balize o nosso tempo?” Dirigentes, políticos e empresários há muito que o perceberam: numa política neoliberal que mercantiliza o desporto, a explosão das novas tecnologias e a integração destas neste, animada por uma sede ilimitada de lucro, utiliza o desportista em seu proveito próprio. E parece-nos que também estamos em condições de poder responder a José Manuel Constantino, Presidente do COP, no prefácio do segundo livro, quando afirma que é necessário “indagar se é possível ao desporto continuar a invocar o seu valor educativo, a sua dimensão cultural e a sua importância na saúde pública e ‘simultaneamente’ acolher práticas cuja dimensão salutogénica começa a ser questionada pelas mais importantes instâncias científicas internacionais”…

De facto, como disse Ortega y Gasset, que nos foi trazido por Vítor Serpa no «Em defesa do desporto», nós “temos o dever de pressentir o novo”!

 

32. Abuso da Escola, exploração infantil!

21.07.2020

 

Foi noticiado em «A Bola» (04.07.2020) que iria ser criado através do presidente da Federação Portuguesa de Futebol o programa “FPF na Escola” para promover o futebol entre as crianças dos 6 aos 10 anos, desenvolvendo um dia aberto em cada escola básica do 1º ciclo, em parceria com clubes locais e com a colaboração de ex-internacionais portugueses. Ficou só por explicar se este dia aberto será por ano lectivo, por período ou por semana. Neste último caso não nos parece – mas também será só isso – que haja tantos ex-internacionais que possam apadrinhar este programa… ou que os que a ele aderirem possuam competências pedagógicas para tal…

A Escola sempre foi uma fonte de receita fácil dada a existência de um público numeroso e localizado: eram os espectáculos de teatro, eram as apresentações de cúpulas celestiais dentro de um insuflável, era a apresentação de robôs ou de dinossauros telecomandados, era a apresentação de livros, era a fotografia dos alunos, eram as exposições disto e daquilo… Agora parece que as escolas se transformaram – ou virão a transformar – em locais onde “olheiros” poderão recrutar mão de obra fácil para o futuro ou onde uma organização poderá aumentar, quase que ficticiamente, o seu número de elementos integrantes (chamemos- lhes assim!)… Esta é uma primeira questão e prende-se com o uso (ou o abuso!) da escola.

Uma segunda questão leva-nos a dois conceitos que circulam por aí: a «detecção de talentos» e o «treino intensivo precoce». O desenvolvimento motor da criança integra vários domínios: o afetivo, o social, o cognitivo e, claro está, o motor – aquele “motor” que é visível dado que os anteriores domínios o não são. Detectar talentos em tenras idades e treiná-los para quê? A resposta só poderá ser uma: para futuramente alimentarem o espectáculo e promoverem a venda de produtos – encontramos clubes, estádios e desportistas sempre ligados a marcas ou a logos – a um público consumista.

Os programas desportivos na Escola (e recordamo-nos de dois recentes, um ligado a patins, outro a bicicletas), deveriam estar mais preocupados (assim como as entidades que os gerem) com a riqueza das actividades motoras que permitem à criança desenvolver a cooperação, manifestar sentimentos, enriquecer a sua compreensão do relacionamento eu/outro, a sua integração no grupo e polir o seu comportamento. E perguntarão agora: então e os períodos sensíveis para a evolução das capacidades motoras (recordamo-nos de Grosser, assim como de Martin, no início dos anos 80 do século passado)? Responderemos com duas perguntas: por que motivo tanta preocupação com as capacidades condicionais e tão pouca com as coordenativas? Ou com as psico-cognitivas dinâmicas?

Professores, treinadores e pais esquecem-se ou desconhecem (ou fazem por desconhecer) que o desporto actual necessita instrumentalizar as crianças desde cedo. Numa primeira etapa com campanhas de sensibilização, com captação de jogadores, com capacidade de motivação e com oferta de recompensas. Numa segunda etapa torna-se necessário manobrar para que elas interiorizem desde cedo o sacrifício pelo jogo, que se habituem ao «no pain no gain», que se esforcem para atingir resultados nem que seja a qualquer preço (sim, incluindo a fraude, o doping e a corrupção), que aceitem correr riscos e que sejam adeptas da inexistência de limites. Por último, são aliciadas com transferências para clubes de topo, com altos ordenados, com patrocínios fantásticos, com a publicidade e com a venda de direitos de imagem. O problema não reside nos que se esquecem ou desconhecem, o problema reside nos que sabem disso e isso praticam – dos que se servem do desporto! É assim que se constrói a carne para canhão que depois entrará numa enorme máquina ao serviço do capital para após o final de carreira muitos intervenientes ingressarem na mendicidade ou na venda de troféus ganhos durante o percurso (a história do desporto está cheia destes exemplos).

A exploração infantil no desporto é um tema tabu, apesar dos alertas entre nós pelo menos de Jorge Araújo, Mário Moniz Pereira, Paula Brito, Teotónio Lima, Olímpio Bento, José Manuel Meirim e Gustavo Pires. Aqui ao lado, em Espanha, Emilio Calderón fez acesas denúncias. Jacques Villiaumey e Jacques Personne, em França, foram ainda muito mais incisivos.

E embora o documentário “Athlete A” se foque nos abusos sexuais ocorridos na USA Gymnastics, assim como nas situações de protecção corporativista de vários dirigentes, podemos ver nas entrelinhas toda a exploração infantil existente nesta modalidade.

Nádia Comaneci foi campeã da Europa aos 13 anos e campeã olímpica aos 14, em Montreal (1976), enquanto Maria Sharapova fez a sua estreia no circuito profissional de ténis em 2001, com apenas 14 anos, em Indian Wells… Em 2008 Thomas Daley foi medalha de ouro na prova de salto de plataforma de 10 metros no Europeu de natação com 13 anos e em 2019 Chen Yuxi e Lu Wei foram, respectivamente, medalha de ouro e de prata na mesma prova no Mundial de natação, ambas igualmente com 13 anos.

Conseguiremos imaginar o que foi e como foi a vida destas crianças?

Submetidas a treinos bi-diários (ou até mais), com elevadas cargas horárias, com treinos de enorme volume e/ou intensidade, não sobra tempo a estas crianças para serem crianças. E os exemplos não estão só na ginástica, no ténis ou nos saltos para a água. Eles abundam na natação, no atletismo, no futebol…

Se em 2003 tínhamos Tyanna Madsen, uma criança com 6 anos e 28 quilos de peso, a fazer o levantamento de um peso com 46 quilogramas, em 2020 temos Rory van Ulft, com 7 anos, a fazer levantamentos até 80 quilogramas.

Que infância teve Nicolás Millán que aos 14 anos (2006) se estreou na equipa principal de futebol do Colo-Colo, ou Iker Muniain (2007) que com a mesma idade foi chamado à equipa principal do Atlético de Bilbao, ou ainda Maurício Baldivieso (2009) que jogou os últimos 10 minutos do encontro entre o La Paz e o Aurora da I Liga da Bolívia aos 12 anos?

A futebolização da Escola é perigosa. É perigosa por causa da apropriação do futebol assim como da Escola e porque para além de instrumentalizar crianças – relembramos que são crianças dos 6 aos 10 anos – instrumentaliza a própria instituição.

 

33. Medalheiros: a falácia dos números

19.08.2020

 

Realizar-se-ão os Jogos Olímpicos de 2020 em 2021? Ainda não o sabemos. Sabemos no entanto que Portugal terá uma comitiva de cerca de 70 a 80 atletas. Previsões de há um ano estimavam duas medalhas e doze diplomas (lugares entre o quarto e oitavo lugar).

No Rio de Janeiro, em 2016, tivemos 92 atletas (18 eram de futebol). O “projecto” incluía 12 “atletas com potencial de medalha” (aos quais se juntava a selecção de futebol)… Portugal regressou apenas com uma medalha de bronze!

Embora não servindo o medalheiro de uns Jogos Olímpicos como medida da cultura desportiva de um país – já que o COI não reconhece a existência de um quadro de medalhas porque isso criaria uma competição entre países, alegando que não é esse o objetivo dos J. O. – certo é que a comunicação social, nessas alturas, apresenta sempre esses quadros e induz-nos a essa leitura quando nos deveria conduzir para uma análise que se centrasse na razão entre o nosso número de participantes e número de lugares no pódio... correlacionando esta razão com as verbas despendidas para formar os presentes! E talvez fazê-lo também em relação ao número de habitantes do país. Só colocando todas estas variáveis a interagirem entre si poderemos ter uma noção fiável da nossa cultura desportiva. Não sendo assim, o medalheiro só nos mostra a falácia dos números…

Mas o medalheiro é importante – principalmente quando há muitos e bons resultados – para vender a ideia de que o país está bem e de saúde a nível desportivo… quando esses resultados não acontecem o medalheiro cai no esquecimento ou até é escondido. Por vezes até há quem meça com ele o índice da cultura desportiva do país quando o deveria medir por valores mas também por contra-valores, por normas e pelo seu cumprimento mas também pela sua violação, por símbolos e pelo seu enaltecimento (ou não!) e, por fim, por crenças, quer sejam elas positivas ou negativas.

Vejamos um exemplo concreto: no Campeonato da Europa de Atletismo de 2018, em Berlim, Portugal participou com 37 atletas tendo conseguido duas medalhas de ouro (Inês Henriques e Nelson Évora). Um 11º lugar no medalheiro... (28 países medalhados, 50 participantes, ou seja, na metade superior da tabela). No entanto, daremos conta que a Grécia, com o mesmo número de participantes, obteve um 6º lugar no medalheiro graças a 3 medalhas de ouro, 2 de prata e 1 de bronze. Dos países com um número de atletas mais próximo daquele da comitiva portuguesa, 35, só a Hungria ficou depois de Portugal (26º lugar apenas com 1 medalha de bronze), dado que a Bélgica com 3 medalhas de ouro, 2 de prata e 1 de bronze alcançou um 5º lugar. Até a Noruega, com 33 atletas (menos atletas que Portugal), ficou à frente do nosso país: 8º lugar com 3 medalhas de ouro, 1 de prata e 1 de bronze (mais pódios que Portugal).

É este o exercício que faz prova de uma literacia desportiva: a razão entre o número de participantes e o número de medalhas obtido.

É necessário um medalheiro? Vai sendo preciso na sociedade actual… dado o sistema económico vigente e a mercantilização do desporto. Jean-Marie Brohm[99], já em 1993, nos mostrava que “o desporto actual é um subsistema do sistema capitalista do qual ele refracta todos os princípios de funcionamento, todas as tendências, todas as contradições.” É necessário um medalheiro para se manter a reprodução!

Por que motivos? Porque é necessário para os dominantes continuarem a dominar que se forjem os juízos de valor mais sobre os resultados que sobre os processos… Brohm mostra-nos exactamente isso na sua última obra, «Le Sport-Spectacle de Compétiton»[100].

Um país em que os seus habitantes são dos que menos exercício físico fazem a nível europeu não pode ter um elevado índice de cultura desportiva. Quando o desporto revela o que de pior possui o ser humano, em vez de mostrar o seu melhor ou de contribuir para a sua formação, essa montra serve uma certa reprodução e em nada melhora o índice de cultura desportiva do país. Não é só o público que deveria saber ler e interpretar as classificações. Dirigentes e responsáveis, quer sejam de clubes, de federações ou até mesmo do Governo, também o deveriam saber.

Tal como naquele conto oriental em que certo Mestre varria o chão quando um monge lhe perguntou: “Sendo vós o sábio e santo Mestre, dizei-me como se acumula tanto lixo em seu quintal?” Respondeu-lhe o Mestre, apontando para o quintal: “O lixo vem lá de fora.

 

34. E de repente descobriram… a formação!

21.09.2020

 

A pandemia (proveniente do grego «de todo o povo» – restará agora definir o que é «o povo»), com todas as suas restrições, os seus confinamentos, os seus distanciamentos, levou à descoberta de realidades que andavam ou escondidas ou ignoradas.

Temas como “a função educativa do desporto” ou “o carácter educativo do desporto” ou “os valores do desporto” regressaram à ribalta. Clichés como “o desporto é muito mais que saúde, bem-estar e lazer, o desporto é educação” voltam ao nosso quotidiano na tentativa de demover governantes – aqueles que dizem “não temos conhecimento de nenhum clube que tenha fechado portas” – a recolocarem o público nos estádios (recolocado que está na Fórmula Um), a permitirem que as escolas de formação de futebol dêem continuidade ao seu métier, a autorizarem a reabertura de academias e ginásios e a consentirem a prática dos desportos de contacto – não aquele contacto das comemorações do golo do futebol, mas aquele contacto de oposição, de luta, de combate.

Resta discernirmos se esta preocupação se prende de facto com a formação do carácter do ser humano, com a transmissão de valores positivos, com a saúde dos jovens praticantes (não só corporal mas também com a sua saúde social, emocional e mental), se se prende com o desenvolvimento psico e sociomotor da criança, do atleta, do jogador, do desportista, se se relaciona com o aperfeiçoamento do gesto técnico e da preparação táctica com vista à competição, ou se esta preocupação revela outros contornos.

Na página online «fairplay.pt» Francisco Isaac propõe o seguinte exercício matemático “fácil para compreender e perceber o impacto económico e social usando o rugby como exemplo: imaginemos que 50% dos atletas jovens (entre os 6 e 18 anos) deixam de estar ligados à modalidade, perdendo-se quase 3000 inscritos num só ano. Se cada inscrito pagar 350€ ao seu clube – uma média geral para o que os emblemas nacionais aplicam no acto de inscrição no início de época – dá-se uma perda imediata de 1.050,000€ (sim, leram bem… 1 milhão de euros), que significa um buraco na saúde orçamental dos clubes e por conseguinte da federação.

E Francisco Isaac continua o seu exercício: “O mais grave desta matemática é a seguinte equação adicional, que passa pelo abandono de jogadores e a perda total de inteiras gerações, pois mesmo que alguns atletas permaneçam, estes não podem competir e pôr em prova as suas capacidades, sendo testados até ao limite em termos de durabilidade mental para aguentar treinos de distanciamento durante uma época inteira (quando nas actividades escolares vão andar sempre lado-a-lado com os seus colegas…). Se avançarmos três ou quatro anos no tempo, abrem-se consecutivas falhas nas equipas de formação seja nos sub-8/10/12/14/16/18 e seniores, colocando o rugby português no limiar de um abismo que será impossível de evitar. A qualidade individual e de jogo vai cair abruptamente, o rugby (e qualquer outra modalidade afectada pelas “recomendações” da DGS) vai sofrer um retrocesso quase sem precedentes e o apoio estatal será quase zero, independentemente da cor política ou partido que esteja no seu poder (quando actualmente já o é) – desde Março até Agosto de 2020 só por uma vez o primeiro-ministro de Portugal falou sobre a situação desportiva portuguesa.

Desta análise de uma modalidade, e que poderemos extrapolar para muitas outras, retiramos duas ilacções. A primeira, económica. A segunda, social. Seria uma análise completa se da mesma conseguíssemos tirar mais uma ilacção, que passaria necessariamente por ser do foro pedagógico...

Em relação à primeira, recorre-se aos parâmetros educativos do desporto e aos seus valores formativos para se garantir uma subsistência monetária. Releva a fonte de rendimentos de clubes, academias e ginásios, com o subsequente suporte de patrocinadores (em suma, o negócio!).

Em relação à segunda, continua-se a propalar as virtudes da prática desportiva mas o objectivo final é o da competição-espectáculo (que não deixa também de ser económico) a qual nada tem a ver com essas virtudes.

Olvida-se no entanto, aqui, o papel do treinador dos escalões de formação (as suas competências pedagógicas) e a sua subsistência em termos salariais. E se a grande maioria das modalidades competitivas vive para o resultado, se muitas crianças e jovens há a treinar de uma forma desmesurada (treino intensivo precoce), percebe-se a preocupação dos treinadores em termos da sua visibilidade através dos troféus para além do seu ganha-pão. Mas existem modalidades (ou sectores de algumas modalidades) em que a formação é exactamente isso: o desenvolvimento harmonioso do ser humano e o seu apetrechamento de capacidades de resposta a diferentes situações, de esquemas de comportamentos e respectiva associação entre eles. É precisamente nestas que o treinador mais para trás fica, mais ignorado é, quer seja por falta de interacção com os seus colegas dado não se enquadrar num quadro competitivo quer seja pela inexistência – ou inoperância – de estruturas associativas que o possam representar. Encerram-se assim, principalmente, academias e ginásios devido às restrições impostas.

E torna-se irrelevante que o desporto seja incluído na versão final da Visão Estratégica para o Plano de Recuperação de Portugal 2020-2030, apresentado por António Costa Silva. A preocupação somente com desportos náuticos, eventos e estágios internacionais apontados como estratégicos nesse plano só nos mostra o desrespeito pela formação e o acabar com a base da pirâmide, o que implicará que daqui a uns tempos não haja topo. Quando a própria máquina mercantilizada e mercantilizadora é ignorada, mais facilmente são triturados os seus intervenientes directos. Quando a máquina está de tal maneira bem oleada, não é um grão de areia – nem um penedo – que a irá fazer emperrar!

A pandemia (a tal «de todo o povo») leva-nos a um estado de “saber e não saber, ter uma noção de absoluta veracidade enquanto se dizem mentiras cuidadosamente elaboradas, defender simultaneamente duas opiniões que se anulam reciprocamente, sabendo-as contraditórias e acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moral ao mesmo tempo que se reclama a moral (…).” Mil novecentos e oitenta e quatro. George Orwell[101]. Quase quatro décadas de atraso… em relação ao previsto!

 

35. A panaceia dos recordes!

12.11.2020

 

Um estudo realizado em 2008 por Mark W. Denny[102], da Stanford University, usando três modelos matemáticos, estimava os tempos limites do ser humano masculino e feminino, para as várias distâncias das provas de atletismo (excepto para os 3.000, 5.000 e 10.000 metros femininos).

É o único estudo científico predictivo que conhecemos (podendo no entanto existir outros) em que, recorrendo a várias variáveis, limites de velocidades absolutos são definíveis e dos quais os actuais recordes se aproximam dos máximos previstos.

Nenhum dos tempos estimados foi até ao momento alcançado… excepto o da maratona. No mesmo apresentava-se a possibilidade de se estabelecer como recorde humano masculino para a maratona o tempo de 2h 00m 47s. Sensivelmente há um ano (12.10.2019) Eliud Kipchoge estabeleceu um máximo, em Viena, embora não homologado oficialmente, de um tempo para a maratona inferior a duas horas: 1h 59m 40s.

Para além do facto de Kipchoge ser um atleta excepcional – provavelmente seria o único, actualmente, a conseguir esse tempo – este tempo foi possível devido a várias circunstâncias também excepcionais: correu atrás de um carro que para além de funcionar como corta-vento marcava o tempo ideal no piso através de laser (pacemaker); teve a ajuda de mais de 4 dezenas de lebres por turnos; o percurso foi feito em quatro vezes num circuito plano de cerca de um pouco mais de 9Km com um desnível máximo de 2,4 metros; a data do evento foi marcada por meteorologistas que determinaram o momento ideal da prova para garantir que nesse dia o vento iria estar a menos de 14 quilómetros por horas, que a temperatura estaria entre os 10 e 12 graus e que a humidade estaria a menos de 70%; por último, a utilização de sapatilhas estudadas e construídas de propósito para o efeito utilizando placas de carbono por uma marca desportiva que patrocinou a prova.

Este tempo não vem colocar em causa o estudo de Denny dado que o mesmo foi obtido em condições ideais e não com as condições normais de uma competição – sem se retirar o devido valor a Kipchoge, antes pelo contrário. As experiências de “laboratório” mostram até onde o ser humano pode chegar se optimizadas todas as variáveis enquanto a realidade competitiva é muito diferente e provavelmente até com mais variáveis a terem de ser consideradas. Exactamente como quando adquirimos um automóvel novo e nas suas especificações se expressa que consome 4,5 litros aos 100 quilómetros… e nós nunca o conseguimos colocar a gastar esses 4,5 litros nessa distância porque é testado em condições ideais e nós conduzimo-lo em situações normais.

Em Valência, em Outubro de 2020,  foi organizado um evento para se baterem os recordes mundiais de 5.000 metros femininos e 10.000 metros masculinos. Ambos os objectivos foram alcançados. Na primeira prova Letesenbet Gidey bateu o recorde mundial com 14m 06,65m e na segunda Joshua Cheptegei faz cair o anterior recorde (pertença de Kenenisa Bekele com 26m 17,53s desde 2005) com 26m 11,00s – marca que se aproxima dos 25m 03,40s estimados por Denny.

Neste último, com 6 atletas, utilizadas também duas lebres na prova feminina (apesar dos últimos 2.000 metros um solo de eleição de Gidey) e seis lebres na prova masculina, a qual contava com oito atletas. Ainda em comum o uso da wavelight technology, as luzes junto à corda, azuis à frente e logo a seguir verdes, que marcavam o ritmo ideal da corrida para se bater o recorde do mundo.

O que poderemos inferir da realização destes dois eventos? 1º - A contínua batalha do atleta a tentar chegar sempre “mais rápido, mais alto, mais forte”. 2º - A necessidade de se realizarem eventos próprios – o INEOS 1:59 Challenge e o NN Valencia World Record Day – com a finalidade específica de se baterem recordes e com condições optimizadas. 3º - Para além da utilização da “tecnologia humana” (as lebres) acrescentou-se a utilização da última “tecnologia tecnológica” (a motivação para acompanhar o sinal luminoso); 4º - O benefício para as grandes marcas através da publicidade.

Os recordes ao alimentarem-nos o ego com a consequente identificação do comum dos humanos com os seus heróis tornam-se assim uma panaceia difundida pelos mass media. Estes precisam dos mesmos para aumentarem as audiências ou para venderem mais, tal como as grandes marcas e grandes patrocinadores. Sem visibilidade, a quem interessariam os recordes?

Repare-se agora em dois recordes que fizeram notícias, um já atingido outro perseguido. João Almeida, quando se encontrava à frente do Giro em Itália (2020), já tinha batido o recorde de Joaquim Agostinho o qual liderou durante cinco dias a Vuelta, em 1976. Cristiano Ronaldo, com 101 golos marcados pela selecção nacional, encontrava-se nessa altura a oito golos do iraniano Ali Daei. No entanto Cristiano Ronaldo irá a tempo de bater o recorde de média de golos por partida de Ali Daei? Este atingiu uma média de 0,73 (109 golos em 149 jogos) enquanto aquele possui uma média de 0,61 (101 golos em 165 jogos). 

Sergio Ramos ao fazer o seu 177.º jogo oficial com a camisola da seleção A espanhola, tornou-se no jogador europeu mais internacional da história do futebol (Novembro de 2020). Mais um recorde para vir a ser batido por CR7? Mais uma vez, sem dúvida que a questão dos recordes é uma questão de escolha de variáveis…

O recorde é necessário para fomentar o espectáculo. O Homo spectator necessita de alimento. Está criado o círculo vicioso! Escolham-se as variáveis, crie-se o recorde! Mas interroguemo-nos, tal como nos interrogava Marie-José Mondzain[103]: “Quem é este homem espectador que está em vias de se transformar numa partícula elementar de uma massa designada «público», num certo ambiente tecnológico, industrial e financeiro?

 

36. Factos e interpretações!

12.11.2020

 

Num dos módulos do último Curso de Formação de Treinadores de Karate, em que tive a honra de actuar como formador, explorava eu a axiologia e as variáveis sócio-culturais desta modalidade fundamentado em vários factos quando um formando me interpelou: “Por que motivo o professor apresenta sempre os casos relativos ao desporto pela negativa?” Respondi-lhe em três passos: o primeiro, irónico, porque para falar bem do desporto já cá havia muita gente; o segundo, baseado em António Damásio, o qual na sua penúltima obra[104] nos diz que para se saber o que uma coisa é teremos de saber o que ela não é (a citação correcta é: “Para explicar bem o que uma coisa é, convém deixar claro o que a coisa não é.”); o terceiro, elucidando-o que não apresento os casos pela negativa, antes apresento aqueles que menos são conhecidos tanto dos treinadores como dos desportistas e do público em geral – são factos, independentemente das interpretações –, dado que se fala muito em ética no desporto e em valores do desporto mas o resto fica na penumbra e, embora seja normal abordarem-se casos de corrupção, de violência e de doping no desporto, muito fica por apresentar ou por esclarecer em relação às restantes perversidades no desporto. E elas existem…

Mas por que motivos se coloca, e bem, uma questão destas num módulo de Formação de Treinadores que aborda normas, símbolos, valores (éticos, morais, sociais e individuais) e crenças? Exactamente porque o desporto tem sido tratado de uma forma politicamente correcta. A única excepção vem de Jean-Marie Brohm que, apesar de numa perspectiva marxista, desde a sua «Sociologie Politique du Sport»[105] em 1976, tem desenvolvido de uma forma perene a sua Teoria Crítica do Desporto[106].

O desporto tem sido apresentado como uma actividade educativa e formativa imbuída de valores e de pressupostos éticos quando as suas características actuais estão acrescidas de exigências sistemáticas de espectáculo, de interacção com os mass media, de organização através da política e da economia, da presença do negócio, do marketing, da tecnologia, da ciência e de um profissionalismo regulado juridicamente por códigos laborais.

Pretende-se que o desporto, ideologicamente, não se encontre açambarcado pelo capitalismo e pelo mercantilismo quando, na verdade, já o está na prática. Nele, até os humanos são transaccionáveis…

O gosto do adepto ou do espectador pelo jogo ou pelo clube, a dedicação do treinador e o comprometimento do desportista continuam ainda a explorar o ethos do «amor à camisola» – a paixão –, da «verdade desportiva» – a justiça – e do «fair-play» – a equidade. Invocam-se constantemente estes três conceitos, generalizados em clichés, sem se definirem previamente o que são e do que se fala. E ao invocarem-se sem se definirem não poderemos saber do que se está a falar, o que origina falsas interpretações.

O desporto é actualmente um produto manuseado através de campanhas de marketing bem concebidas. Hoje em dia o «amor à camisola» é vendido ao adepto sem disto ele se aperceber… e logo ele corre à loja do seu clube a comprar a camisola (com o patrocinador nas costas), o boné, o cachecol e a bandeira do mesmo – para além do bilhete para assistir ao evento como espectador. Aquilo que o adepto despende para o clube pelo seu «amor à camisola» é uma parte importante dos montantes que o financiamento do clube proporciona a alguns. Afinal, o adepto acaba por comprar a sua própria paixão… Mas no sentido inverso, o adepto – espectador in loco ou espectador no sofá – não absorve só o espectáculo desportivo: ele absorve também, através de imagens subliminares, tudo aquilo a que é exposto. E aí a publicidade faz o seu trabalho. Já não consumimos publicidade! É a publicidade que nos consome!!! E aí somos manipulados… mesmo que tenhamos uma crença contrária!

E o espectador – tal como o próprio jogador, o treinador, o árbitro, o jornalista, o comentador – traz à liça na sua argumentação a «verdade desportiva» e o «fair-play». Peça-se a qualquer um destes intervenientes no fenómeno desportivo para definir qualquer um destes conceitos… (exercício que o próprio leitor poderá executar!) e veja-se qual o resultado.

Como nos diz Manuel Sérgio[107] (4), “são muitos os riscos de alienação, no consumo do desporto, por parte do espectador pois que é tentado a fazer seus alguns valores que o desporto altamente competitivo produz e reproduz: a quantificação do êxito, a exaltação desmedida dos mais capazes e a hierarquização meritocrática – valores que não têm em conta quaisquer critérios pedagógicos e não ajudam por isso, à formação de pessoas livres e libertadoras.

Não se trata de negar a existência de valores no desporto – porque sim, eles existem e estão aí inúmeros factos para os demonstrar. Os valores podem e devem ser apresentados através dos contra-valores e a ética ser apresentada através do seu inverso, mas realcemos que a função formativa do desporto – formação do carácter, inculcação de valores tais como a disciplina, a perseverança, a cooperação, a justiça – está só presente na fase inicial da práctica do indivíduo. Passada esta, o desporto deixa de ser apenas para desportistas e passa a ser só para vencedores.

Será a transparência de métodos e de actuação uma pertença do desporto?

Por que motivos tantos suicídios provocados por condições existentes no desporto? Sim, porque são mais do que imaginamos…

Quais as causas – ou as origens dessas causas (este é o ponto que, de facto, me parece ser mais relevante, embora nunca abordado!) – de tanta morte súbita na competição? Sim, “tanta” porque a maior parte dos casos nem sequer são divulgados ao público em geral. Estatísticas no nosso país são desconhecidas. A própria comunidade médica parece revelar um certo desassossego em explicar cientificamente estes casos.

As circunstâncias em que decorre o treino intensivo precoce nas várias modalidades são explicadas em toda a sua plenitude? Até que ponto não se trata – ou tratará mesmo? – de exploração infantil?

As fraudes cometidas intencionalmente por competidores, treinadores, árbitros e outros agentes desportivos, não só no futebol mas também na ginástica, no atletismo, no ciclismo, na esgrima, no ténis e em muitas outras modalidades fazem ou não parte do desporto?

Os resultados combinados, a manipulação destes por causa das apostas e a movimentação de altas verbas à volta dos mesmos serão variáveis inerentes ao próprio desporto?

E o que dizer sobre os abusos sexuais no desporto? Os detectados e os não detectados… São relatados e/ou participados todos os casos ocorridos? São sancionados? Existem estratégias de prevenção?

No que se refere à morbilidade e às lesões permanentes dos competidores com a consequente interrupção antecipada das suas carreiras desportivas, há medidas para a sua diminuição? Sabemos que o risco e o acaso fazem parte do desporto, mas o sistema desportivo acautelará os interesses e a integridade física (e psicológica) dos desportistas?

São factos existentes, ocorridos, interpretemo-los de um modo ou de outro. Mas o que é feito para serem evitadas ou prevenidas estas situações e as mesmas erradicadas do desporto?

São perguntas demais para tão poucas respostas… e repare-se que sobre corrupção, violência e doping nem sequer aqui deixo uma palavra.

É hora de deixarmos de analisar o desporto de uma forma politicamente correcta. Temos de analisar factos, ponderar diferentes interpretações e conjugar medidas. Já não vamos lá só com campanhas de sensibilização nem só com o agravamento de sanções. Sejamos realistas e tratemos de explicar o desporto através dos seus efeitos para conseguirmos chegar a bom porto. Sim, é isso mesmo: efeitos – e-fei-tos!

 

37. Da apetência pelo recurso à fraude!

04.12.2020

 

A ambição faz parte do ser humano. A ânsia do poder, o desejo da vitória e do sucesso, o almejo da glória e a aspiração ao estrelato levam o mesmo a tentar alcandorar-se ao nível dos deuses – senão tornar-se em próprio deus como nos diz Yuval Harari[108]. O mesmo Harari que também nos diz que a ganância é inerente ao ser humano. Razões suficientes para que quaisquer meios sirvam para alcançar os fins. Os fins justificam então esses meios. Mas sabendo-se que o topo está lá, que é uma realidade atingível, os meios justificam os fins a serem alcançados.

Com o cancelamento de vários eventos competitivos devido à pandemia, as diferentes modalidades criaram competições virtuais – ciclismo, salto com vara, karate e futebol entre outras – apresentando mesmo atletas reais a competir. Daniel Abt, piloto oficial da Audi na Fórmula E, na Race at home Challenge, corrida virtual de automóveis, conseguiu através de vários artifícios fazer-se substituir por um jogador profissional de e-Sports, Lorenz Hoerzing, acabando por se classificar em 3º lugar nesta prova. Daniel Abt foi desclassificado, sancionado com uma coima de 10.000€ (a qual reverteria para fins sociais) e, laboralmente foi suspenso pela própria Audi Sport. Aconteceu em Maio de 2020!

O desporto é palco profícuo para a existência de fraudes. Apesar de presentes em todas as modalidades, são mais frequentes no atletismo, no ciclismo, e no futebol.

No atletismo e no ciclismo o mais frequente é os desportistas tentarem encurtar os percursos por outro meio, repartir a distância por vários estafetas ou usar dorsais e chips alheios ou utilizarem outros artifícios para diminuírem os seus tempos. Frequente também a fraude através da utilização de prémios (ou mesmo compra monetária) a fim de alcançar resultados mais glorificantes (etapas no ciclismo há que foram negociadas).

Se em 1904, nos J. O. de St. Louis, depois do vencedor da maratona ser felicitado pela filha do presidente Roosevelt, os juízes descobriram que ele tinha cumprido parte do percurso de automóvel, em 1980 na maratona de Boston a vencedora ao alcançar o terceiro melhor tempo da história apenas correu cerca de 1,6 quilómetros. A sua imagem não aparece nos vídeos ou nas cerca de dez mil fotos tiradas nos primeiros 40 quilómetros da corrida. Aconteceu!

Se em 1904, no Tour de France, um ciclista viajou de comboio durante uma etapa, em 2015 um outro foi desclassificado depois de ter sido apanhado a agarrar-se a um carro na Vuelta. Também aconteceu!

Na esgrima, conhecemos o caso do atirador que tinha um botão instalado no punho da sua espada para, ao ser accionado, fazer acender a luz do marcador. Aconteceu nos J. O. de Montreal em 1976.

Menos conhecido é aquele caso do membro do júri de atletismo que aproveitou uma cerimónia protocolar realizada antes do último salto de um atleta, para medir e registar em memória, no instrumento de medida, a marca de 8,38 metros, que corresponderia ao terceiro lugar. Quando o atleta saltou, esse juiz apenas enviou para o quadro electrónico o resultado que estava em memória. Aconteceu em Roma nos Campeonatos do Mundo de atletismo, em 1987!

Nos Estados Unidos imensos são os casos em que jogadores de basebol utilizaram tacos viciados. Foram revelados em 1994, em 1996, em 1997, em 2003 e em 2014 pelo menos. Aconteceram!

Nos J.O. de Sydney 2000, a medalha de ouro foi retirada à equipa paralímpica de basquetebol de Espanha após ter sido descoberto que 10 dos 12 basquetebolistas se tinham feito passar por deficientes.

No Mundial de judo de 2003, os adversários de um japonês queixaram-se por não conseguirem efectuar as pegas nos combates que efectuaram com o mesmo dado que o seu fato se encontrava impregnado com algo que tornava essa pega escorregadia. Aconteceu!

Em França, nesse mesmo ano, o pai de dois tenistas franceses introduzia antidepressivos diluídos em garrafas de água dos adversários dos seus filhos que trocava momentos antes dos jogos ou dos treinos. A morte num acidente de viação de um jovem professor de ténis, depois de ter jogado com o filho mais velho, em cujo corpo foi encontrada uma substância que este nunca tinha consumido, veio revelar estas situações. Em 2006 acabou por ser condenado a oito anos de prisão. Também aconteceu!

Em 2004 o Iraklis Clube de Salónica acusou o Akratitos de Atenas de ter juntado uma substância às suas garrafas de água durante um jogo. Facto posteriormente comprovado por análises laboratoriais! 

Em 2007, Walter Schachener reconheceu, 25 anos depois, que existiu fraude no Mundial de futebol de 1982. O resultado do jogo entre a Alemanha e a Áustria, foi combinado (1-0) de modo a seguirem em frente ambas as equipas em detrimento da Argélia. Schachener chamou-lhe fraude, Hans-Peter Briegel preferiu chamar-lhe “pacto tácito de não-agressão”. Aconteceu!

Em 2009 na Fórmula Um e no râguebi foram conhecidos casos de fraudes, tal como em 2012 no badmínton ou em 2015 na NFL[109].

E sobre o Mundial de 1986 – numa altura em que Diego Maradona nos deixa – muitos abordaram o golo da «mão de Deus», nos quartos-de-final no México, entre a Argentina e a Inglaterra – talvez não a maior fraude de sempre, mas a mais conhecida – porque foram obrigados a abordar a genialidade do segundo golo desse encontro. Mas essa obra-prima não elimina a fraude anterior: a mão de Maradona chega mais alto que as mãos de Shilton e Ali Bin Nasser valida o golo. Esta a fraude maior cometida pelo astro. Em 2005, num dos programas «La noche del 10» – apresentado pelo próprio Maradona –, transmitido pelo canal 13 da TV Argentina, com Pelé presente como seu convidado, Maradona afirmou que os jogadores brasileiros tinham bebido água com calmantes, oferecida pelos argentinos no intervalo do jogo do Mundial entre o Brasil e a Argentina, em Itália em 1990, e ganho por estes últimos. Só ele o poderia confirmar… Dois factos que aconteceram!

Em Portugal também já tivemos «a mão de Vata» em 1990, na meia-final da Taça dos Clubes Campeões Europeus entre o Benfica e o Marselha… E aqui aconteceu mais uma fraude! E validada também!

Mas os métodos refinam-se. E refinam-se a par da evolução da civilização e da evolução tecnológica. Se Sorel[110] nos dizia que a ferocidade antiga tendia a ser substituída pela astúcia, por outro lado Foucault[111] afirmava que havia uma passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude. Assim se chega ao «doping mecânico» em que a fraude se consubstancia na introdução de pequenos motores com as respectivas baterias dissimulados nas bicicletas dos ciclistas. Aconteceu com Femke van den Driessche em 2016 e com Cyril Fontaine em 2017.

A competição exacerbada potencia o recurso à fraude. A fraude não é mais do que aquilo que Jack Lewis[112] define como sendo o impulso básico do ser humano: “maximizar os lucros sem olhar ao impacto negativo que isso pode ter nos parceiros.” O desporto desenvolve nos competidores, nos treinadores e nos dirigentes – não em todos felizmente – a apetência pelo recurso à fraude. É uma das facetas do alcançar a vitória a qualquer preço. E a fraude prolifera no desporto mesmo que não detectada, o que não faz com que não deixe de ser fraude. E abstemo-nos de falar em suborno monetário ou em potencialização bioquímica do rendimento

 

38. Sobre as crenças

31.12.2020

 

Explicar uma coisa, é retroceder facilmente aos seus antecedentes;

conhecer uma coisa, é prever facilmente as suas consequências.

(William James, 1842-1910)

A criança é irrequieta: vai para o judo. O jovem não colabora com os colegas: vai para o basquete. O miúdo é hiperactivo: vai para o karate. A criança tem uma má postura: vai para a natação. O petiz é indisciplinado: vai para o aikido. O jovem é obeso: vai para o futebol. Não se mexe: vai para o atletismo. É desatento: mais um para o karate. Afinal o desporto acaba por ser uma clínica… devido a acreditar-se em generalidades.

Vem isto a propósito daquilo em que se acredita sobre o desporto, estando sempre à espera de benefícios por parte deste sem nos interrogarmos se o desporto é neutro ou se o desporto é inócuo.

E se a maioria das pessoas ainda possuem crenças positivas e fundamentadas em relação ao desporto durante a fase de formação de jovens desportistas (mas atenção à deformação!), essas mesmas pessoas e talvez muitas mais possuem crenças erradas em relação ao desporto profissional qualquer que seja a modalidade, dado o actual estado de mercantilização do mesmo.

– Mister, acredita que ainda vai a tempo de ganhar o campeonato? - pergunta o jornalista ao treinador. – Claro que sim, temos de acreditar sempre que estamos sempre a tempo – responde o treinador.

– Com esta sua vinda, acredita que a prestação da equipa vai melhorar? – questiona o comentador desportivo à recente aquisição. – Sim, eu vim para ajudar o clube e prometo trabalhar, trabalhar muito para ajudar o clube a ser campeão. E acredito que vamos ser campeões!

Mais uma vez, a propósito de crenças de jornalistas, de treinadores, de comentadores e de desportistas…

Vivemos desde os primórdios da nossa espécie sujeitos a crenças. A nível social em termos de superstições, de rituais e de opinião pública, a nível individual em termos de convicções. Nos tempos actuais essas crenças são ainda mais instiladas na nossa consciência pelos mass media.

As crenças são opiniões formadas, interiorizadas, provenientes da nossa educação, das nossas vivências, da nossa formação… ou são o impulso para tendências que seguimos devido aos nossos modelos, aos líderes em que depositamos confiança, ou graças à acção da publicidade, do marketing ou da propaganda… Está nos manuais.    

As crenças influênciam os nossos valores, que por sua vez se reflectem nas nossas atitudes e que se demonstram nos nossos comportamentos. Também vem nos manuais.     

Somos influenciáveis e manipuláveis, e mesmo que estejamos a isso atentos as pressões podem ser tantas que delas não conseguimos escapar. E sem darmos conta vamos construindo as nossas crenças, quer sejam baseadas em factos fundamentados quer nos sejam inculcadas pela repetição da apresentação de arquétipos quer de estereótipos.

Em tempos idos havia os que acreditavam na Santa Inquisição, hoje em dia há os que acreditam que a Terra é plana. Havia antigamente os que acreditavam no poder absoluto e agora há os que não acreditam na ciência. Havia os que acreditavam nos ideais da Revolução Francesa agora há os que acreditam nos reality shows. E ainda há aqueles que acreditam que o desporto é o remédio para todos os males.

Segundo Maria Luísa Soares[113], “submetemo-nos às crenças – como seguimos as regras –, sobretudo a essas crenças práticas sobre as quais se funda toda uma forma de vida e de conduta. E aqui dá-se a submissão: à regra, ao hábito, à nossa ‘imagem do mundo’, que não é uma teoria construída por nós, mas que nos é conatural, de certa forma herdada, pertence-nos e possui-nos, dominando-nos inconscientemente.” Há neste pequeno conteúdo três noções fundamentais: a) a nossa submissão àquilo em que acreditamos (porque só vemos aquilo que queremos ver), b) a noção de fazermos nosso aquilo que nos foi inculcado por outros (a nossa disponibilidade para sermos enganados sempre que haja alguém com disponibilidade para nos enganar); c) a noção daquilo que nos domina inconscientemente por não estarmos (nem sermos) preparados a equacionar a realidade dos factos e das suas interpretações por não termos (não nos ter sido) desenvolvido um espírito crítico.

O desporto, submetido às leis do comércio, apresenta-se apenas como espectáculo mas os seus fins últimos são económicos ou políticos. Basta um olhar atento sobre o mesmo e analisarmos criticamente quais os seus efeitos na sociedade e nos indivíduos. Basta não nos esquecermos das elevadas quantidades monetárias que movimenta e pensarmos nos interesses imobiliários dos clubes, no naming dos estádios, na publicidade ostentada pelos competidores, na presente nos painéis publicitários e nas conferências de imprensa dos treinadores de futebol, nos direitos de imagem e nos direitos televisivos. Basta interrogarmo-nos sobre o que produz um jogador de futebol por exemplo!

Como nos diz Manuel Sérgio[114], é necessário reorganizar os fundamentos do Desporto (e repare-se no “D” maiúsculo) através de uma séria crítica epistemológica, lógica e axiológica. E ética e moral, acrescentaríamos nós. De salientar que, segundo o mesmo, na mesma obra, “o Desporto só pode concorrer à transformação do mundo se, primeiro, se transformar a si mesmo.” Para isso não pode ser só um promotor da quantificação do sucesso, da exaltação exacerbada dos mais aptos ou mais capazes, ou do desportista-mercadoria, ou da simples hierarquização meritocrática. Ou ainda do vencer a qualquer preço –  pois o que conta, na realidade, é o resultado. Nem da subserviência ao vil metal onde só o lucro interessa. Ainda estaremos a tempo?

No dealbar de um novo ano, já na terceira década do século XXI, que todos nós esperamos que seja melhor que aquele que termina dadas todas as vicissitudes por que passámos, nada melhor do que nos determos um pouco nas palavras de Augusto Curry[115]: “quem não critica aquilo em que crê não lapidará as suas crenças, quem não lapida as suas crenças será servo das suas verdades. E, se as suas verdades forem doentias, certamente será uma pessoa doente.” Com a implícita consequência de poder fazer outros doentes…

 

39. Acreditem se quiserem!

31.01.2021

 

Os japoneses possuem o provérbio “pouco se aprende com a vitória, mas muito com a derrota.” Ditado que aportuguesámos para algo parecido com “na vitória comemora-se, na derrota aprende-se.” Diferente era a posição de Napoleão Bonaparte, o qual dizia que o vinho na vitória era merecido, na derrota necessário…

Se os provérbios expressam algo que vem de antanho, baseados no senso comum ou na experiência, também dão origem a muitas crenças. Mas se por um lado quem vê caras não vê corações, por outro a cara é o espelho da alma… ou se saber esperar é uma virtude, quem espera desespera…

Ao pretendermos, aqui e agora, complementar o artigo anterior (“Sobre as crenças…”), fazemos esta pequena abordagem inicial porque nas redes sociais proliferam os aconselhamentos sempre aos outros mas relatos na primeira pessoa são quase inexistentes. É a agenda motivacional – "Quando pensar que chegou ao seu limite, irá descobrir que tem forças para ir mais além!"; "O único passo entre o sonho e a realidade é a tua atitude!"; "Nunca é tarde demais para viveres os teus sonhos!". Inexistente algo do género “Vou mudar de mentalidade para mudar o meu comportamento.” Ou “Não farei ao meu vizinho o que não quero que me façam a mim.”

Acreditarmos que seremos infalíveis, que poderemos ultrapassar os nossos limites, que conseguiremos atingir a heroicidade, é um ferrete gravado nos desportistas a fogo desde tenras idades. Ferrete inamovível quando ancorado, como é usual, na pedagogia da dor: “no pain, no gain” ou “a dor é o que diferencia os campeões das pessoas comuns.” Tanto a comunicação social como as redes sociais ampliam a formação destas crenças sem se preocuparem se são produto do nosso conhecimento ou se, efectivamente, são confirmadas pela ciência, isto é, se são verdadeiras.

O ser humano acredita – faz fé – numa ideia em primeira instância e só depois apresenta a justificação para essa crença. E muitas vezes acredita só no que quer acreditar independentemente da sua justificação ou da sua veracidade. Acreditar num conceito, numa ou outra ideia, é um impulso intuitivo e por isso mesmo a ausência de análises, de reflexões e de um espírito crítico geram preconceitos e vieses cognitivos. E deveremos estar atentos porque só há influencers porque há os influenced... ou os idioters

Na esteira de Maria Luísa Soares[116], “embora algumas crenças não estejam sob o domínio da nossa vontade e nos submetamos a elas como a um conjunto de hábitos herdados ou adquiridos mas de um modo quase instintivo, isso não significa que não as possamos reavaliar, rever: elas não são totalmente irreversíveis e a revisibilidade constitui, de facto, um instrumento apropriado para compreender os diferentes tipos de crenças e as diferentes relações entre elas.

A crença de que “pouco se aprende com a vitória, mas muito com a derrota”, não será só uma prerrogativa dos desportistas. Também o é dos dirigentes desportivos e dos políticos. Que o diga Orwell[117] quando afirmou queo segredo da governação consiste em combinar a crença na nossa própria infalibilidade com a capacidade de aprender com os erros cometidos.

Recorrendo ainda a Maria Luísa Soares[118], o desejo humano de que as opiniões coincidam com os factos só pode ser satisfeito pelo método científico. “Só o método científico tem a prerrogativa de fazer com que as nossas opiniões coincidam com os factos, porque não são determinadas por nenhum factor humano, mas por uma ‘permanência externa’, algo sobre o qual o nosso pensamento não tem qualquer efeito, algo que afecta ou pode afectar qualquer ser humano. Essa ‘permanência externa’ garante um consenso, que ultrapassa a fronteira da opinião meramente individual e assume o carácter objectivo da verdade pública.” Verdade pública: uma noção que exige um acordo sobre assuntos concretos e reais com características inteiramente independentes das nossas crenças sobre eles.

Assim, só o método científico – com a dúvida, a incerteza e a falibilidade – poderá produzir conhecimento. Não o poderão produzir crenças injustificadas, infundamentadas ou não apoiadas em evidências verídicas… Ainda segundo a mesma autora[119], “a definição clássica de conhecimento como crença verdadeira justificada aponta para uma dupla relação do conhecimento com a da justificação e com a da verdade.

Se nos preocuparmos em reflectir um pouco sobre o que tem sido a evolução da nossa sociedade somente nas últimas décadas, verificaremos que temos sido objecto de lentas mudanças na nossa forma de vida, imperceptíveis, às quais nos vamos acostumando ou até absorvendo sem delas darmos conta. Factos há que nos poderiam espantar há poucos anos e que aceitamos hoje em dia porque foram pouco a pouco sendo futilizados e hoje apenas incomodam uns poucos e deixam muitos na mais completa indiferença.

Em nome do progresso, da sustentabilidade, da estabilidade económica, da ciência e da tecnologia (normalmente esquece-se o lucro!), são pressionadas e esmagadas as liberdades individuais, a dignidade, a capacidade de raciocinar e de reflectir… e até o objectivo de viver. Estas arremetidas têm sido efectuadas lenta mas inexoravelmente, com a permanente cumplicidade das vítimas, submissas, acríticas, manipuladas, subservientes.

Já não há previsões para o nosso futuro desportivo e ou social e tudo reside numa enorme incógnita. Mas se continuarmos a acreditar no infundado só estaremos a ampliar essa incógnita.

O despejar contínuo de informações pelos mass media – que não é conhecimento –, a desinformação constante, as fake news, o politicamente correcto e as crenças disseminadas pelos discursos que circulam nos meios de comunicação preenchem os cérebros daqueles que, sem uma capacidade de análise crítica, tudo aceitam, tudo absorvem e tolhem-lhes a possibilidade de distinguirem umas coisas de outras e toldam-lhes o raciocínio… Os mass media e as redes sociais fazem o seu papel! Criam crenças injustificadas. Produzem ignorância e obscurantismo. E não é “perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”, porque, recorrendo a  Sophia de Mello Breyner[120], eles sabem exactamente o que fazem.

“Não há impossíveis.” Não há? Não, mas há altamente improváveis. “Ultrapassa os teus limites.” Ultrapassa? Não, os limites existem exactamente para serem limites, para não serem ultrapassados.

Winston, a personagem principal de «Mil novecentos e oitenta e quatro»[121] resolveu, de facto, o enigma: “se ele pensar que paira, e se ao mesmo tempo eu pensar que o vejo pairar, então a coisa de facto acontece.

 

40. Indústria ou comércio?

04.03.2021

 

Sendo o desporto a única actividade mobilizando sem interrupção a atenção dos humanos como nos diz Robert Redeker[122], seria conveniente sabermos – ou tentarmos saber – quais os efeitos que produz na sociedade. Daí o título deste artigo: é o desporto uma indústria ou um comércio?

Quando, falando sobre o futebol e a pandemia, Aleksander Ceferin, Presidente da UEFA, nos dizia que “para ser honesto, o futebol é provavelmente uma das indústrias mais seguras” («O Jogo», 16.11.2020), de imediato nos vem à memória a fábula de Antoine de Bierce[123] intitulada «A ovelha e o leão»:

“– Tu és uma besta de guerra – disse a Ovelha ao Leão – e, no entanto, os homens andam sempre a ver se te conseguem apanhar. A mim, uma crente na não-resistência, não me dão caça. – Não precisam – redarguiu o filho do deserto; – podem criar-te.

Vindo aquela afirmação de quem vem, de imediato se começa a construir dentro de nós, se não analisarmos friamente os conceitos e de um modo crítico, que o desporto actual é uma indústria. Um desporto actual pós-moderno que possui todas as características do desporto moderno, sendo estas acrescidas de exigências sistemáticas de espectáculo, de interacção com os mass media, com a política e com a economia, da presença do negócio, da técnica, da ciência e do profissionalismo, o qual é regulado por mecanismos jurídicos.

Vítimas do cartesianismo, dividimos, compartimentamos e tudo classificamos (ou rotulamos!). Quando somos invadidos por termos como sustentabilidade, estabilidade e crescimento, pandemia, confinamento, reinvenção, resiliência, mitigação, novo normal, estado de emergência, lay off, apoios, linha da frente, restrições, cerco sanitário, desemprego, infectados, internados, casos positivos, casos suspeitos, casos confirmados, casos recuperados, óbitos… o desporto não escapa à banalização da sua classificação. E menos escapa a tentativa de nos fazerem acomodar a certas classificações…

Fernando Seara também alinha por este diapasão («A Bola», 14.02.2021) quando afirmava que “por cá, e no nosso futebol, a incerteza é muita, a angústia financeira imensa e a não proteção da indústria bem perturbante.” Tal como Sónia Carneiro quando também nos dizia que dependem da Liga Portuguesa de Futebol Profissionalclubes, jogadores, treinadores, funcionários e toda uma indústria que tem servido de ópio e de dinamizador para uma população portuguesa” («O Jogo», 05.04.2020) num artigo em que apresenta o futebol como “uma indústria tão importante para a economia do país” e em que apresenta o facto de a mesma estar “a trabalhar no regresso, tão importante que é para esta indústria.” Aliás, foi precisamente Sónia Carneiro («O Jogo», 09.08.2020) que nos revelou que o Ministro da Economia e Transição Digital, Pedro Siza Vieira, reconheceu o futebol como indústria na conferência «O Futebol Profissional e a Economia pós-Covid19».

Muito basicamente começaremos por definir «indústria» como qualquer actividade que vise a manipulação e a transformação de uma matéria-prima com vista à obtenção de um produto que seja considerado um bem de consumo e «comércio» como toda e qualquer actividade de troca, logo de compra e venda, de mercadorias ou de produtos.

Será, de facto, o desporto uma indústria? Para o ser necessita de matéria-prima, da sua transformação e da obtenção de um produto.

Quando Jorge Bento[124] nos apresenta a proporção de factores pedagógico-didácticos e lógico-objectivos na configuração da matéria de ensino em Educação Física, apresenta um valor de cerca de 85% para os primeiros e cerca de 15% para os segundos na educação motora no ensino pré-escolar, sendo que os primeiros vão progressivamente diminuindo até se chegar ao ensino secundário e ao ensino superior e os segundos vão proporcionalmente aumentando. Poderemos fazer um transfer destes valores para a fase de formação no desporto até se chegar à alta competição, ao rendimento e/ou ao espectáculo. Logo, poderemos considerar que temos aqui numa fase inicial uma matéria-prima que é trabalhada, o formando, transformada mais tarde no produto final – o desportista. Fase que vai desde o início até ao momento em que sensivelmente os factores pedagógico-didácticos e lógico-objectivos se equilibram na ordem dos 50% (após passada a fase de formação, sensivelmente no final da fase de pré-especialização). É o tempo em que as habilidades motoras fundamentais são transformadas em habilidades desportivas. É o tempo em que as potencialidades são transformadas em capacidades, em competências. Portanto, poderemos assim considerar até aqui o desporto, na realidade, como uma indústria. E esta é uma primeira etapa em que os efeitos do desporto se reflectem mais sobre o próprio indivíduo.

E a partir daqui?

A partir daqui entraremos numa etapa em que os efeitos do desporto se reflectem mais sobre a sociedade, influenciando-a no seu aspecto estrutural e económico. Voltando a Redeker[125], “longe de ser um ópio que adormece, o desporto é uma matriz de tipos humanos tanto quanto de tipos de sociedade. Portanto, ele não é um reflexo - segundo a crença de uma sociologia monótona e preguiçosa, o futebol refletirá a sociedade, para o bem e para o mal -, mas o contrário: o desporto estrutura a sociedade, modela-a, força-a a si mesma a parecer-se consigo.” É a face visível do desporto.

E começaremos por recorrer exactamente ao título do artigo de Sónia Carneiro – “Desporto é espetáculo” («O Jogo», 14.07.2021). Se o desporto não existe sem movimento, sem jogo, sem agonística, sem projecto e sem instituições (modelo pentadimensional de Gustavo Pires), ele também não existe sem espectáculo.

Começa-se com a sponsorização do desportista, entra em funções a publicidade, o marketing, o merchandising, os direitos de imagem, as contratações e os salários, as compras e vendas de jogadores, as cláusulas de rescisão, os direitos televisivos, as SAD’s, os investimentos imobiliários… o que vem de imediato demonstrar o fosso existente entre as duas etapas acima referidas.

Interpretar o desporto actual revela-nos que a importância dos resultados é mais económica e política que desportiva e que o lucro constitui a base do seu desenvolvimento, desenvolvimento esse que acaba por gerar novo lucro – é o retorno do investimento –, encontrando-se o corpo do desportista mercantilizado e submetido a uma exploração mecânica e química sendo a saúde humana secundária, com destaque para uma subordinação deste mesmo corpo ao rendimento com uma consequente desvalorização ética, moral e axiológica. E de novo nos vem à lembrança Antoine de Bierce[126]: “Um político que assistia a uma sessão da Câmara de Comércio pediu a palavra, mas viu a sua pretensão negada com base na alegação de nada ter a ver com o comércio. – Senhor Presidente – disse um Membro Idoso, levantando-se: – considero a objecção infundada. Este cavalheiro tem uma estreita e íntima relação com o comércio: ele próprio é uma mercadoria.

O jogador não é mercadoria só ao ser vendido e comprado pelos clubes. Temos de ver mais longe… No final dos jogos, para aplaudir os adeptos, Neymar recebia 375 mil euros… Thiago Silva recebia pelo mesmo 33 mil euros… em 2019. O Bournemouth cobrava 204 euros aos pais de cada criança que entrava em campo de mão dada com um dos jogadores da sua equipa de futebol… o Everton cobrava 790 euros… também em 2019. Exemplos que falam por si!

O desporto actual, na sua máxima expressão, tem de ser encarado como uma actividade económica que não gera nem bens, nem obras, nem cria riqueza – apenas a movimenta em determinados sentidos. Actualmente o desporto não é só consumido pelo espectador em directo: passámos da época do relato radiofónico e do jornal em papel para a época da imagem e, na sociedade actual, o desporto é consumido não só através da TV mas também da internet. A resposta à pergunta “o que produz um jogador de futebol?” é pertinente. Produz espectáculo (e o consumidor desloca-se ao estádio, paga o seu bilhete, leva a sua camisola que já adquiriu antecipadamente, compra o seu cachecol… ou fica sentado no sofá inundado por diversos estímulos… pagando a electricidade e a internet depois de ter adquirido os necessários gadgets) e produz a necessidade do espectador consumir os produtos cujas imagens absorve subliminarmente e expressas na sua camisola, nos calções, os logos das marcas desportivas, nos painéis do estádio, durante o próprio evento na TV e simultaneamente com o mesmo ou ainda nos anúncios no intervalo da transmissão televisiva.

O espectáculo é um argumento de peso e que tem de ser tido em conta para se classificar o desporto como comércio com todas as consequências inerentes. Já em 1925, Pierre de Coubertin[127] no seu discurso de demissão do Comité Olímpico Internacional pedia para o desporto se pôr em guarda contra o profissionalismo, pois “o organizador de espectáculos tende a corromper o atleta para melhor satisfazer o espectador.” Mas em 1999 Juan Antonio Samaranch[128] solta o seu grito do Ipiranga: “We said ‘yes’ to commercialization (…)”!

Por último, e para darmos resposta à pergunta inicial, uma resposta fundamentada que nos leve a uma verdadeira classificação desta actividade, detenhamo-nos no que nos diz Paul Yonnet[129] e façamos a necessária reflexão: “é o uso do utensílio que faz a classificação da actividade, não o utensílio por si próprio.

 

Nota: Já após a publicação deste artigo (04.03.2021), Luís Freitas Lobo, um daqueles jornalistas que sabe analisar factos, escreve no jornal «O Jogo» de 11.04.2021 o seguinte:

"O mundo da formação é hoje um terreno de areias movediças. Eu suspeito de tudo menos dos jogadores. A forma como eles crescem sendo insuflados está diretamente relacionada com a sucessão de casos de carreiras arrancadas pela raiz desde o primeiro momento em que metem um pé no dito futebol adulto/profissional." E termina assim: "O futebol de formação é hoje um mundo capturado pelo negócio insensível e agiota. De forma implacável. Fim da história."

 

41 . Da semântica, da ignorância e do condicionamento

04.04.2021

 

A língua portuguesa é muito traiçoeira, costumamos dizer… Não, a língua portuguesa nem é sequer traiçoeira, nós é que fazemos com que ela se torne traiçoeira. E ao pretendermos que ela seja traiçoeira, atraiçoamo-nos… umas vezes por questões de semântica, outras por simples e mera ignorância. Ou ainda por sermos condicionados.

Recorre-se como justificação à homonímia – «rematar» qualquer actividade ou tarefa, de finalizar, concluir, e «rematar» à baliza (chutar, de shoot, o tiro finalizado em golo) – e a tudo o que é cliché – “vamos deixar tudo em campo”, “vim para ajudar a equipa”, “ganhamos ou… morremos”, “perdemos mas saímos de cabeça erguida”.

Utiliza-se indiscriminadamente vários termos por incúria, provocando um esvaziamento dos conteúdos dos mesmos, vulgarizando-os. Dois exemplos: um deles é «fair-play» (que formas de? Em que circunstâncias?); o outro é «verdade desportiva» (qual é de facto o seu conteúdo?) – veja-se Dias Ferreira e Fernando Seara em «A Bola» (respectivamente 03.04.2021 e 20.03.2021). Banaliza-se a equidade e banaliza-se a justiça. Em inúmeros artigos, textos, livros, crónicas, comentários, estes dois termos desconceituados são utilizados sem os seus utilizadores previamente se preocuparem em defini-los e sem explicarem de que e sobre o que estão a falar. Seguindo uma via normal estes termos completamente inócuos são reproduzidos ao infinito. Tal como o “no pain, no gain”, o expoente máximo da pedagogia da dor, que nos pretende inculcar o princípio de que para vencer é preciso sofrer!

Na maior parte dos estudos, tal como na comunicação social, os termos «agressão» e «violência» no domínio do desporto quase que se confundem, embora o segundo seja mais utilizado para os actos agressivos que são mais desaprovados socialmente… tudo o resto é «agressão». Utilizamos demasiadas vezes o verbo «agredir» e escassas vezes o verbo «violentar».

A ética no deporto vem muitas vezes ao de cimo quando na realidade, em vez de se discutir esta, se deveria debater a moral no desporto.

Misturamos conceitos como «indústria» e «comércio» de tal modo que categorizamos o futebol profissional e todo o desporto espectáculo como indústria quando na realidade são comércio. Há a negação do termo «comércio» por este estar mais associado ao negócio, ao intermediário e ao lucro, em benefício do termo «indústria» (não é por acaso que se vulgarizou a «indústria do espectáculo») dado ligar-se este inconscientemente a um contributo para a economia, a uma promoção do desenvolvimento e do crescimento económico (veja-se aqui o artigo “Desporto: indústria ou comércio?” de 04.03.2021).

Por último, a utilização mais que banalizada do termo «atitude» – “a equipa apresentou em campo uma atitude agressiva” ou “o jogador mostrou uma atitude determinada”.

Quando Jorge Valdano («A Bola», 23.01.2021) diz que “o desejo de culpar fala da falta de atitude” utiliza o termo correctamente. Já não o faz o antigo jogador do Wolverhampton Karl Henry quando se refere ao abruptamente falecido Lee Collins (Sky Sports online, 02.04.2021) e afirma: “lembro-me de Lee como um jovem jogador no Wolves. Ele era um bom rapaz com uma grande atitude.”

Qualquer neófito em psicologia sabe que uma atitude é uma tendência interna do indivíduo, uma propensão para. Não é visível, embora se possa medir (escalas de Thurstone, de Likert, de Guttman ou de Osgood). O que é visível, e como tal observável, é o comportamento do sujeito. As atitudes, tal como os valores, as crenças e as normas são determinantes do comportamento, não são o comportamento. Logo, não se pode – não se deve – utilizar o termo «atitude» em detrimento de «comportamento» como forma de empolgar a acção tornando-a mais relevante ou de a tentar branquear tornando-a mais justificável.

Usando-se este termo, muita tinta que correu nesta última semana sobre a «atitude» de Cristiano Ronaldo por causa de um golo que foi injustamente negado à selecção nacional num jogo contra a Sérvia. O jogador quis abandonar o campo antes do apito final, retirou a braçadeira de capitão e arremessou-a ao chão. Não foi uma questão de «atitude». Foi uma questão de «comportamento».

Acontece que, muitas vezes, senão na maior parte das vezes, temos a convicção que estamos a ser informados quando na verdade estamos a ser manipulados. Temos a convicção que estamos a adquirir conhecimento quando na verdade estamos a ser condicionados. E como nos disse Aldous Huxley[130], “está-se de tal modo condicionado, que ninguém pode deixar de fazer o que tem a fazer.”

 

42. “Liga Bwin”: que significado?

19.04.2021

 

No futebol já tivemos a Liga Sagres e a Liga Vitalis, a Liga Zon Sagres e a Liga Orangina, a Liga CTT, NOS ou MEO… O naming dos estádios é uma realidade (quanto pagará a AXA ao S. C. de Braga pela denominação do seu estádio?)… A cerveja oficial do râguebi português, a Super Bock, patrocinou a selecção nacional designando-a por All-Bocks, enquanto o futebol se fica pela Sagres... Agora temos o Altice Arena – que já foi MEO Arena e Pavilhão Atlântico – e o Super Bock Arena que já foi Pavilhão Rosa Mota e Palácio de Cristal…

Em breve teremos a Liga Portugal Bwin em vez da Liga NOS, aquilo a que, em tempos de antanho, já se chamou de Campeonato Nacional de Futebol da 1ª Divisão…

O contrato de patrocínio com a Entain, empresa detentora da Bwin, passa por uma verba de 7 milhões de euros por ano durante cinco épocas, um contrato muito superior, segundo se diz, ao celebrado com a NOS nos últimos anos.

Pedro Proença e Marcus Silva colocaram as suas assinaturas no referido contrato. Um contrato entre uma Liga Profissional de Futebol e uma uma empresa de jogos online (e apostas desportivas) cotada em bolsa no mercado de Londres. No discurso de celebração do contrato, Marcus Silva disse («A Bola», 17.04.2020): “Vamos enviar uma mensagem positiva ao mercado português: a de que chegámos para ficar e que defendemos os princípios dentro da indústria como o jogo honesto, responsável e com o máximo de atenção pelo cliente.” E assim o grupo Entain prevê que o mercado do jogo online em Portugal registe um crescimento de 70% até 2023 (logo se verá nos anos seguintes), só que talvez não seja dentro da “indústria” mas sim dentro do “comércio”… ou do “negócio”…

Mas a questão que se coloca é a seguinte: se o contrato vale 35 milhões de euros, de onde virão eles? As respostas poderão ser múltiplas, mas chamemos a atenção apenas para alguns pormenores.

De acordo com um estudo realizado por Daniela Vilaverde e Pedro Morgado[131], investigadores da Escola de Medicina da Universidade do Minho e do ICVS, bem como psiquiatras no Hospital de Braga, e publicado em Março de 2020 na «The Lancet Psychiatry», em 2018 o valor das «raspadinhas» vendidas em Portugal foi de 1594 milhões de euros – são mais de quatro milhões de euros por dia –, o que significa que cada pessoa gastou, em média, cerca de 160 euros por ano nas lotarias instantâneas. Em Espanha, no mesmo ano foram vendidas «raspadinhas» no valor de 627,1 milhões de euros, o que equivale a cerca de 14 euros por pessoa e por ano.

Na sua tese de doutoramento de 2015, de Maria João Ribeiro Kaizeler[132], concluiu que em Portugal se consumia, em média, mais jogos de lotaria do que na Europa e no mundo inteiro.

No nosso país apostou-se online cerca de 15 milhões de euros por dia em 2020 e nesse ano mais de 70 mil apostadores solicitaram impedimento para jogar («Diário de Notícias», 02.04.2021, p. 13).

Logo, temos um público propenso para o jogo… num país em que a taxa de pobreza ou exclusão social se fixou nos 19,8% em 2020 e onde são precisamente estes que maior impulsão revelam para a tentativa de ganharem dinheiro através do online.

Quando existem dez sites de apostas desportivas com licença para operar online em Portugal os dados estatísticos comprovam que os jovens entre os 18 e os 24 anos são especialmente sensíveis à adesão a sites de apostas e jogos, todos os dias nos entram visual e acusticamente pela casa dentro através da TV nomes como Betano, Bacanaplay, Esconline e Placard (pelo menos!). Com imagens e sonoridades aliciantes. Com sedução. Com promessas de enriquecimento. E da impulsão à compulsão vai apenas um pequeno passo.

A partir de 2020/2021 teremos essas quatro letras – b, w, i, n – a passarem a invadir-nos de uma forma subliminar (maior quantidade de informação dividida por um menor tempo de exposição) aos domingos e segundas-feiras (e provavelmente até durante toda a semana). Em todos os meios de comunicação social. Será uma forma de publicidade invisível, mas que o nosso cérebro regista, e que, de facto, funciona criando o consumidor. E, segundo Carlos Reis[133] os meios de comunicação social “são hoje o coração da vida política e cultural, cabendo-lhes fixar agendas, produzir significados, formar opiniões e construir identidades.” Em suma, manipular-nos, acomodar-nos, submeter-nos, fazer-nos consumidores, tornar-nos subservientes… Será de admirar depois a manipulação de resultados, ou como se diz na colonização de que somos alvo, do match-fixing?

Regressamos à pergunta acima: se o contrato vale 35 milhões de euros, de onde virão eles? Dos jogadores e dos apostadores online, não temos dúvidas!

Seria conveniente que após termos a Liga Bwin em funcionamento (2021/2022) se realizasse um estudo sério e honesto sobre o aumento de jogadores e/ou apostadores através deste site, das suas idades e dos seus recursos económic

 

43. Superliga: take one

25.04.2021

 

Os últimos tempos foram tempos de todos, desde políticos a apresentadores, desde jornalistas a comentadores, desde treinadores a jogadores, aparecerem a construir uma narrativa em torno da Superliga Europeia de Futebol (em desfavor da mesma, entenda-se!). E quase todos – raras foram as excepções – construíram uma narrativa criando um cenário arreigado de verosimilhanças e de lógicas. Inclusivamente assistimos às chamadas manifestações dos adeptos – chamemos-lhes «adeptos» por enquanto…

Identificam-se de imediato duas falácias: a primeira, produto do veiculado pelos media e transmitida por pseudo-informados, a segunda pelos que revelam falta de um conhecimento mais profundo do fenómeno desportivo.

O melhor exemplo do funcionamento do capitalismo (liberalismo, neoliberalismo ou coloquem-lhe o rótulo que quiserem) é exactamente o desporto. E é à semelhança do desporto que a sociedade se coloca em marcha. Podemos dizer, na senda de Brohm, Perelman e Redeker, que a sociedade actual é um reflexo do desporto: são os rankings das escolas, são as olimpíadas de toda e qualquer disciplina de ensino, é a quantificação de infectados, de internados e de mortos com os consequentes recordes, é a promoção por meritocracia (com a ausência real de igualdade de oportunidades, um dos mitos do desporto)… e até os juízes (e reparemos que os árbitros de futebol ou de outra qualquer modalidade eram os únicos juízes a ser vaiados, insultados ou mesmo agredidos) e até os juízes, dizíamos, são agora contestados nas suas decisões abertamente nas televisões, nos jornais, nas redes sociais, nas petições. O desporto impõe a nossa ocupação do tempo livre, impõe a nossa maneira de vestir, de calçar, e até somos colonizados pelo vocabulário que, linguisticamente, nos obriga a utilizar – vejamos as novas próximas modalidades no programa dos J. O. em Paris 2024: skateboarding, sport climbing, surfing e breaking.

Tudo em prol de uma economia de mercado. E como nos diz Anselm Jaap[134], “a sede de dinheiro nunca pode extinguir-se porque o dinheiro não tem como função satisfazer uma necessidade precisa. A acumulação do valor e, portanto, do dinheiro não se esgota quando a «fome» é saciada, parte de novo e imediatamente para um novo ciclo alargado.

A formação de uma Superliga Europeia de Futebol não é mais do que o arranque de uma actividade económica formada por operadores societários que cada vez mais apostam neste comércio com base em negócios que nem sempre são os mais transparentes. É fruto de uma ideologia que comanda o mundo, em que aqueles que tudo possuem dominam os muitos que se julgam remediados e os muitíssimos que nada têm. Logo, tudo normal para um grupo bilderberguiano com parceiros como o JP Morgan e a Key Capital Partners. 

Vieram a terreiro UEFA e FIFA defender os seus pergaminhos, esquecendo-se que os grandes clubes europeus são controlados por norte-americanos, russos, árabes, chineses, tailandeses e singapurenses, mais interessados no lucro que nos eventuais valores do desporto (Roman Abramovich, Chelsea; Nasser Al-Khelaïfi, Paris Saint-Germain; Sheikh Mansour, Manchester City; Stan Kroenke, Arsenal; Guo Guangchang, Wolverhampton; Vichai Srivaddhanaprabha, Leicester City; Peter Lim, Valência). Mas sobre isto, nada! Sobre os dinheiros associados aos direitos televisivos, nada! Sobre o negócio das apostas desportivas, nada! Sobre os lucros dos intermediários nas transferências dos jogadores, nada! Mas preocupadas com a contrafacção e venda em paralelo de camisolas, cachecóis e bonés dos clubes… Certo é que a Superliga durou apenas dois dias. O caricato, para não dizer a hipocrisia, vem através de Alberto Colombo («O Jogo», 24.04.2021), secretário-geral adjunto da Associação das Ligas Europeias, ao afirmar que “ao longo dos últimos dias temos assistido à união de toda a comunidade do futebol em torno dos princípios e valores da inclusão, do mérito desportivo e solidariedade.

O sistema de ligas fechadas proveniente dos Estados Unidos (o arranque deu-se em 1871 com o basebol) – tal como a NFL e a NBA – tem sido apontado como modelo para esta Superliga Europeia. Nada de mais errado! Se nos EUA os campeonatos são disputados sempre pelas mesmas equipas, todos com muito peso económico e grande adesão por parte do público, uma coisa não pode ser descurada: cada uma delas possui pelo menos um patrocinador de traquejo elevado. Se não há promoções ou descidas (ausência do mérito desportivo), também não há critérios desportivos para a entrada de novas equipas mas há critérios económicos e selectivos. Desse modo há a garantia de que estas equipas terão sempre retorno financeiro dadas as autênticas máquinas montadas ao seu redor. Representam grandes cidades e rejeitam outras equipas da mesma cidade para não haver concorrência interna. Por ultimo, estas ligas procuram estender-se para zonas geográficas ainda não abrangidas pelas mesmas de modo a cobrirem o maior número de regiões dos EUA ou até mesmo do Canadá. A Superliga Europeia de Futebol não era compatível com muitos destes requisitos.

E quando Jorge Valdano («A Bola», 25.04.21) pergunta se “o povo ainda manda?” surge-nos uma terceira falácia, dado que o mesmo considera que “o povo é o único dono do futebol” e que foi graças a manifestações de rua dos “adeptos” (continuemos a chamá-los assim) que se impediu a continuação deste projecto. Não, o futebol já não é do povo, o futebol é do negócio. O povo vai sendo manipulado, o povo vai-se acomodando…

Quando eram exibidos, nessas manifestações, cartazes com palavras como “fans are supporters, not customers”, a perspectiva daqueles que os empunhavam, vítimas já de uma formatação, é exactamente aquela que nos pretendem induzir mas, lamentando desiludi-los, na realidade são consumidores. Consomem ingressos, consomem cachecóis, consomem camisolas, consomem bonés e tarjas, consomem bandeiras, consomem TV, internet e electricidade, consomem publicidade que os faz ainda consumir mais e mais e mais... logo, para o grande capital não há interesse em apresentá-los como consumidores mas sim como adeptos. Que ninguém se iluda com o cliché de que foram os «adeptos que salvaram o futebol» porque, na realidade, não foram e são eles que o estão a pagar.

Mesmo quando se aborda a questão da luta «dos pobres contra os ricos», a questão a ser abordada deveria ser precisamente a «dos consumidores enganados contra os ricos» ou a «dos manipulados contra o capital» o capital precisa deles, o capital forma-os e constrói-os. Logo, a luta «dos pobres contra os ricos» ou os «adeptos, não clientes» não deixa de ser senão uma perpetuação daquilo que nos tem sido inculcado até agora. É a reprodução de que nos falava Bourdieu…

Falácia também quando Daniel Oliveira («Expresso», 23.04.2021) afirma que “o clubismo não é alienação, é comunidade. A racionalidade desalmada dos negócios é que aliena as nossas paixões.” A irracionalidade desalmada do lucro é que aliena as nossas paixões e o clubismo não passa de uma outra forma de fundamentalismo.

Independentemente das esferas económicas, políticas e/ou desportivas, assistimos ao nascimento da Euroleague Basketboll (2000) e da International Swimming League (2019)... ligas fechadas… e a Terra continuou a mover-se... e o capital também! Não deixou de haver desportistas explorados, não deixou de haver casos de morte súbita, a violência no desporto não terminou, a morbilidade dos competidores e o fim precoce de carreiras desportivas não desapareceu, alegadamente o doping, a corrupção e as fraudes desportivas continuaram presentes... e continuaram – e continuam – a necessitar do treino intensivo precoce, o tal que motiva a exploração infantil.

Não, não é necessário formar-se uma Superliga Europeia de Futebol até porque já a teremos aí em 2024/25 dado que a UEFA Champions League irá ter um novo formato com 36 clubes participantes. As alterações que se aproximam irão deixar de promover a desigualdade? Deixarão de privilegiar os clubes habituais? Repartirão mais dinheiro pelos mais pequenos? As verbas das transmissões televisivas serão distribuídas equitativamente? Tememos que não. De facto não será uma liga fechada, mas os maiores proventos serão para a UEFA em vez de para os participantes...

Como nos disse Saramago, é preciso sair da ilha para ver a ilha. É um problema de deslocação, é uma questão de nos colocarmos noutro sistema de referência, mas se observarmos o fenómeno a partir de ambos os sistemas compreenderemos melhor o mesmo. Deveria assim o desporto, na esteira de Michel Foucault[135], ser analisado a partir das técnicas e tácticas de dominação e “mostrar como são as relações efectivas de submissão que os sujeitos constroem.

 

44. Superliga: take two

08.05.2021

 

O povo saiu à rua de norte a sul do país quando centenas de milhares de pessoas se manifestaram no 1º de maio de 1974, apenas uma semana decorrida após o 25 de Abril.

Um ano depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, exactamente um ano depois, o povo voltou a sair à rua desta vez para a primeira votação democrática em Portugal – participação de 92% dos eleitores. Viviam-se ainda as palavras de Zeca Afonso: “o povo é quem mais ordena”.

A 8 de Março de 2008 foi a vez de cerca de 90/100 mil professores saírem à rua na chamada 'marcha pela indignação'. Uma Ministra da Educação conseguiu unir todos os professores…

Pensava e continua a pensar o povo que saindo à rua será ele quem mais ordena… o que se verificou não ser verdade – veja-se o caso dos professores – porque nunca nenhuma das grandes manifestações populares se traduziu em benefícios para o próprio povo. Aliás, Noam Chomski[136] mostrou como é possível controlar-se e manipular-se o chamado «povo» através dos media.

Miguel Poiares Maduro (que passou pelo comité de governação da FIFA) foi um dos que veio a terreiro afirmar que "quem matou a Superliga não foi a UEFA, foram os adeptos e a intervenção política que a mobilização destes gerou" («Expresso», 23.04.2021). Pura ilusão!

João Bonzinho («A Bola», 23.04.2021) também nos veio dizer que “o futebol e os clubes são do povo e não de quem os comanda, mesmo que os compre, ou compre a empresa que integra o clube.” Pura ilusão também!

As cerca de 5 mil pessoas (fãs ou arruaceiros?) que invadiram Old Trafford no dia 2 de Maio e impediram a realização do jogo entre o Liverpool e o Manchester United não demonstraram que são elas que mandam no futebol. Já dias antes tinham invadido o centro de treinos como forma de protesto contra a decisão do clube participar na Superliga Europeia. Ora, se esta já tinha caído, por que motivo tal comportamento? Exigiam tetos salariais para treinadores e jogadores? Exigiam limites nos valores das transferências? Exigiam uma cota para o número de jogadores por equipa? Exigiam menos equipas nos campeonatos? Exigiam maior tempo de recuperação para os jogadores? Exigiam transmissões em canal aberto?

O futebol, inicialmente da burguesia, foi roubado pelos pobres, pelos operários, para depois voltar a ser roubado, mas desta vez pelos ricos. Depois de termos mostrado aqui em “Superliga: take one” (26.04.2021) que fãs ou adeptos não são mais do que meros consumidores, concluímos que o futebol já não pertence ao povo…

E quando pensávamos que estávamos sozinhos nesta cruzada, eis que aparece Álvaro de Magalhães («O Jogo», 02.05.2021) a afirmar que viu os adeptos “todos a lutarem por algo que já perderam há muito tempo” e a referir que, sobre o que se passou, “nada disto teve, tem ou terá que ver com adeptos, que já não têm voto na matéria há muito tempo e são aquilo em que os transformaram: um rebanho dócil de consumidores passivos.

Quererem fazer-nos crer que o futebol é dos “adeptos” ou é um puro exercício de retórica, ou desconhecimento, ou uma tentativa de manipulação.

Aliás a UEFA, ao anunciar o alargamento da Liga dos Campeões de 32 para 36 clubes a partir de 2024/2015, onde cada equipa jogará contra outras dez equipas adversárias com cinco jogos em casa e cinco jogos fora não estará a fazer mais do que a montar uma Superliga dentro da própria UEFA. Logo, o problema não estará no modelo organizacional, mas sim no controlo de um negócio que rende milhões. Como alguém disse, a Superliga já existe e tem nome: chama-se Liga dos Campeões. Aliás, o próprio Ceferin («A Bola» online, 25.04.2021) veio afirmar que “não se pode gerar menos produto e ganhar mais dinheiro ao mesmo tempo” – basta sabermos interpretar! Quando a UEFA decidir vender os direitos de transmissão da Liga dos Campeões a uma plataforma de streaming e quando estabelecer tectos salariais os treinadores irão perceber que o seu papel será ministrar os treinos e orientar jogos e os jogadores irão perceber que o seu papel será jogar e marcar golos – e não, como aconteceu, imiscuírem-se em projectos organizacionais ou em formas de gestão. Quando a UEFA decidir controlar os negócios dos empresários ou agentes (ou intermediários), estes tentarão negociar as condições e sentirão que dependem de alguém. Os adeptos, por seu turno, irão compreender finalmente que o seu papel será o de consumidores. Estando na cauda da cadeia de alimentação, os adeptos (ou fãs, se preferirem) darão conta então que terão de assumir o ónus dos encargos, de todos os encargos…

A evolução mercantilista do desporto, ou o progresso do capitalismo se quiserem, a isso levarão. Nos Estados Unidos há muito que o modelo está em funcionamento: NFL (futebol americano), NBA (basquetebol), MLB (basebol), NHL (hóquei no gelo) e MLS (futebol) são exemplos de ligas fechadas altamente sponsorizadas e altamente lucrativas. No futebol americano há 69 anos que nenhuma equipa abdica da competição e no basquetebol o mesmo acontece, e já lá vão 67 anos. (A propósito, constava-se que as equipas que desistissem da Superliga seriam multadas pela mesma em 150 milhões de euros. As desistentes já foram multadas?)

Restam em aberto algumas questões para as quais não conhecemos respostas, dado estarem mais ligadas ao foro jurídico. Qual o regime jurídico da Superliga Europeia: era uma associação, uma empresa, ou existiam apenas contratos estabelecidos entre os clubes iniciais? Pode a UEFA de facto castigar os fundadores da Superliga? Podem as Federações Nacionais impedir os clubes de participarem em ligas fechadas que nada têm a ver com as competições da UEFA (o que já fez a Federação Italiana)? O que diz o Direito Europeu em relação à livre concorrência no mercado? E, por último, uma outra questão: recordam-se do nome Bosman?

 

45. Risco e acaso

03.06.2021

 

O desporto comporta o factor risco. Tal como comporta o factor acaso. Sendo uma actividade humana, estes dois factores estão e estarão sempre presentes no mesmo. O necessário é que nos compenetremos disso porque só compreenderemos o desporto se reconhecermos a existência do risco e do acaso no mesmo – e sabermos onde e quando nele interferem.

O desporto foi atingido por mais uma morte: factor risco – neste caso, risco máximo. Jason Dupasquier, piloto luso-suíço de apenas 19 anos, foi a vítima em MotoGP – a 26ª vítima nesta modalidade (considerando-se MotoGP uma modalidade desportiva). Morte por acidente, tal como tem acontecido em inúmeras outras modalidades (e separamos já aqui estas mortes dos casos de morte súbita).

Se há modalidades em que o factor risco tem um maior peso – o boxe, onde entre 1945 e 1995 morreram cerca de 500 pugilistas, e as Mixed Martial Arts, em que de 1993 até 2016 morreram 14 competidores, ou a Fórmula Um (em 40 anos, de 1954 a 1994, ano da morte de Ayrton Senna, morreram pelo menos 41 pilotos) – outras há onde nem se equaciona tal… mas no entanto acontecem nas mesmas mortes por acidente: ciclismo, esgrima, desportos na neve, hipismo, futebol, alpinismo, basquetebol e surf entre outras.

Mas não se pense que quando falamos de risco estamos somente a focar esse bem supremo que é a vida, ou que só abordamos a questão em termos de se colocar em perigo a saúde. Risco é fazer uma opção sem se ter a certeza do resultado e depois ter de se viver com ela. Falamos de risco quando conseguimos traduzir uma incerteza que se pode expressar por um número recorrendo a dados empíricos. E sendo o desporto um palco de incertezas, inúmeras vezes estas são controladas pelo acaso.

Na Taça das Confederações de 2017, competição intercontinental realizada na Rússia, no jogo das meias-finais entre Portugal e o Chile chega-se ao final deste sem golos. Parte-se para o prolongamento e aos 119 minutos Arturo Vidal remata a bola ao poste e na recarga Martín Rodríguez acerta na trave. «Sorte» para Rui Patrício, «azar» para os chilenos… mas se fosse na baliza contrária seria «azar» para a selecção portuguesa... Conveniente não esquecermos que os ferros também fazem parte do jogo.

Nas grandes penalidades (0-3 a favor do Chile) «azar» para Quaresma, Moutinho e Nani na marcação das mesmas e «sorte» para o guarda-redes chileno Claudio Bravo… No final do jogo Cédric declara que nos penalties existe sempre “alguma sorte”. Errado!!! O que existe é falta – ou não – de técnica do marcador (ou de concentração… ou de outra coisa qualquer) e mérito – ou não, ou outra coisa qualquer – do guarda-redes. O que existe é acaso! Bernardo Silva, sintonizado pelo mesmo diapasão, afirma também erradamente que “os penalties estão relacionados com a sorte”. A «sorte» ou o «azar», termos banalizados e introduzidos de modo frequente no nosso vocabulário, são termos inventados pelo homem para justificar os sucessos ou os fracassos em que o acaso é determinante. O que prova a necessidade humana de constante atribuição causal…

No futebol americano cerca de 1,5 milhões de jovens praticam esta modalidade e todos os anos ocorrem, em média, 30 acidentes que resultam em morte, invalidez parcial ou total e danos cerebrais irreversíveis. Segundo uma estimativa de 1993, a duração média da carreira destes jogadores está estimada em 3,2 anos[137]. Quanto de risco e quanto de acaso nestas situações?

O desportista, o competidor, é então apresentado à sociedade como um mártir e não como herói. Foi inculcado nele o fazer sacrifícios pelo «jogo», o esforçar-se ao máximo para alcançar pódios tal como atingir prémios e distinções, o aceitar riscos e jogar ou competir através da dor e o aceitar não haver limites na perseguição dos objectivos mesmo que utópicos, porque, para além da vitória ou do ganho pecuniário, é lapidado na crença de que ser um «verdadeiro atleta» significa assumir riscos, fazer sacrifícios e jogar o preço de ser tudo o que se poderá ser.

A mercantilização do desporto transformou a sua matriz inicial e tornou-o numa actividade em que os fins parecem justificar os meios. Como nos dizem Miguel Nery e Carlos Neto[138], “o aumento de competitividade, associado à determinação económica dos objectivos, contribuiu para tornar a acção desportiva incompatível com a ética e fair play nos níveis mais elevados de competição”, o que fez aumentar ainda mais o risco e o acaso no desporto.

 

46. O Karate falará português nos J. O. de Tóquio?

06.07.2021

 

Tóquio 2020 aproxima-se! A estreia do Karate nos Jogos Olímpicos também se aproxima. Uma estreia com uma presença efémera dado que o mesmo já não estará presente nos J. O. de Paris 2024.

Antes de respondermos à questão que encima este artigo, teremos de fazer um enquadramento histórico a fim de se compreender toda a complexidade da mesma, dado que a passagem do Karate de arte marcial a desporto de combate não foi uma mutação repentina, mas um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos históricos e culturais) inserido em modificações sócio-culturais – há uma progressão temporal que determina uma evolução – e pela aculturação de uma realidade oriental na cultura ocidental – há uma difusão geográfica, espacial, que implica um alastramento por todo o mundo. Todo este processo, um lento passo-a-passo, originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, até porque as diferentes condições históricas e a disparidade das diversas culturas criaram situações objectivas de desigualdade[139].

1º parêntesis: a terminologia correcta é «Karate-do» ou «Karatedo». A lei do menor esforço ou outros interesses levam-nos a falar em «Karate» (e quão importantes são esses «interesses»…).

2º parêntesis: apesar de associarmos o conceito de «arte marcial» a técnicas de lutas orientais, este termo provém do nome do deus romano da guerra, Marte, e a notação escrita mais antiga que conhecemos remonta a 1639 no livro “Pallas Armata, The Gentlemans Armorie”, escrito por Sir James Turner, referindo-se à “arte marcial da esgrima”. Logo, é um constructo de origem ocidental.

3º parêntesis: “O Karate não é considerado uma das artes marciais tradicionais japonesas, apesar de algumas vezes ser referido como tal fora do Japão. Após a Restauração Meiji (1868) o conteúdo das artes marciais mudou enormemente, refletindo o fato de que elas não mais deveriam ser utilizadas em combate e que já não eram de treino exclusivo da classe guerreira. Refletindo esta nova circunstância, o termo Bujutsu foi substituído pelo termo Budo, implicando que deveria ser treinado mais sob princípios espirituais do que para o combate.”[140] Apontava-se assim mais para uma codificação de técnicas e para uma forma de realização pessoal através da acção motrícia de combate ritualizado e simbólico, sendo o corpo do outro o objecto e objectivo da acção, e o contacto corporal intencional, directo e um fim em si. “Depois da Segunda Guerra Mundial, houve a necessidade de modificar certas visões das artes marciais e (mudar) a ênfase de artes práticas com objetivo de defesa nacional para desportos que conferem maior harmonia e universalidade.”[141]

4º parêntesis: segundo Patrick McCarthy[142], em 1933 o Dai Nippon Butokukai – organismo do governo nacional do Japão para as artes marciais – lançou um repto aos mestres de Karate da altura em Okinawa a fim de que o então denominado «Tode» ou «Karate-jutsu» fosse reconhecido oficialmente no Japão… Pretendia-se assim não só organizar o ensino desta arte, mas também tornar a mesma pertença original do Japão, por força de um poder nacionalista combinado com um sentimento anti-chinês.  Foram quatro as imposições do Butokukai: desenvolver um uniforme/equipamento standard; adoptar um sistema de graduações «dan/kyu» semelhante ao de Jigoro Kano no Judo; estabelecer um programa/sistema de ensino/avaliação; e mudar o primeiro ideograma de «Tode» e adicionar o sufixo «do», resultando a palavra japonesa «Karatedo». Como se verifica, estas foram imposições políticas. Em 1936, os mestres mais representativos de Okinawa acordaram aceitar estas condições e assim se deu início à institucionalização do Karate. O acto de constituição do Karate foi pois um acto político e podemos dizer que o Karate existe só desde 1936.

A apresentação do Karate como um desporto (a primeira competição formal aconteceu no Japão no já distante ano de 1957 sob a égide da Japan Karate Association) levou a que se formasse uma Federação Europeia em 1963, tendo-se realizado três anos depois o 1º Campeonato Europeu de Karate, e uma Federação Mundial em 1970 (a WUKO, actualmente WKF), a qual realizou o 1º Campeonato Mundial de Karate em Tóquio nesse mesmo ano.

 A World Karate Federation (WKF), a federação internacional mais representativa da comunidade karateka – sim, porque há outras 5 ou 6 federações internacionais – lançou uma enorme campanha (‘The K is on the Way’ era o mote) tendente a que o Karate estivesse presente no programa dos J. O., não conseguindo ter sucesso em relação a 2012 nem a 2016. A hora chegou apenas para os J. O. de 2020.

Exultou-se, dando loas, quando o Karate foi contemplado no programa dos J. O. de 2020, atirando-se foguetes e recolhendo-se as canas. Propalaram-se virtudes e potencialidades, glorificaram-se valores e benefícios, celebrou-se a festa e deram-se hossanas. Realçou-se uma futura via melhor, mais atractiva, mais dinâmica e com maiores virtualidades. Treinadores, competidores e praticantes glorificaram a modalidade… Adeptos do Karate «puro e duro», ou em linguagem corrente, do tradicional, descobriram a fórmula de se projectarem e adquirirem status dedicando-se à competição arrastando para ela aqueles sobre quem tinham responsabilidades. Passaram a ser mais relevantes os lugares no pódio e as medalhas em detrimento de uma formação harmoniosa do indivíduo ou de uma construção do seu carácter.

Apareceram discursos afirmando que finalmente o Karate era um desporto olímpico – quando já o era desde 18 de Março de 1999, desconhecendo-se esse facto ou confundindo-se «desporto olímpico» com «modalidade constante do programa dos J. O.» – surgiram campanhas prometendo uma maior visibilidade da modalidade, um aumento do número de praticantes nos «dojo» (vulgo ginásio ou academia, o lugar onde se pratica a via) – esquecendo o «do», a via, o caminho, (o tal «do» que existe no Kendo, no Judo, no Iaido, no Aikido) a ponto de se retirar este sufixo do termo Karatedo (ou Karate-do) mas continuando a manter o mesmo no início do termo «dojo» (o que seria do local de treino sem um conteúdo para treinar e ser treinado???).

Não podem estes arautos dizer que não foram alertados para o modo de seleccionação dos competidores: só haveria 80 vagas para os karateka participantes nos J. O. – 40 vagas femininas e 40 vagas masculinas, sendo que 60 seriam na prova de kumite (combate) e 40 na prova de kata (formas técnicas) – e a selecção dependeria da contabilização de pontos conquistados num circuito mundial, o qual estabeleceria um ranking. Não seria uma escolha equitativa por países… como julgaram muitos dos que, indocumentadamente, foram induzidos em erro.

E, exactamente para poderem participar nesse circuito, um planeamento bem efectuado alicerçado num bom orçamento teriam de ser bem articulados. O que se verificou? Uns competidores a movimentarem-se por um lado, outros por outro, deixando entregue uma qualificação à última da hora em três eventos: o Karate Premier League em Lisboa, o Campeonato Europeu em Porec, na Croácia, e o Torneio de Qualificação Olímpica em Paris. E se alguns bons resultados faziam alimentar alguma esperança, parece-nos que uma má gestão de recursos fizeram ruir essa esperança. A estratégia da crença e do milagre in extremis resultaram num fracasso. Se um 7º lugar num Campeonato Europeu entre 30 competidoras se pode classificar de bom resultado, dado se encontrar no primeiro quarto da classificação (embora não desse apuramento para os J. O.), o que dizer de um afastamento logo na primeira ronda numa prova de kumite, ou de um 9° lugar em 34 ou de um outro 21° em 35? Quanto a Paris, oito competidores deslocaram-se ao Torneio de Qualificação Olímpica – derradeira hipótese – mas nada conseguiram… Parece-nos que os competidores se aplicaram, se esforçaram, se comprometeram, mas algo falhou. Será objecto de análise pelas entidades responsáveis?

E se a equipa feminina de kata de Portugal conquistou a medalha de bronze no Campeonato Europeu, há que ter a noção de que o fez entre 12 equipas...

Há anos que constatámos que a alta competição não se compadece com amadorismos. Continuamos a constatar…

Regressando à pergunta inicial, não, não teremos Karate a falar português nos J. O. de Tóquio. Provavelmente a modalidade continuará com a mesma visibilidade ou sem ela, os dojo com os mesmos praticantes e os competidores com os mesmos resultados… os selecionadores, os árbitros e os dirigentes com as mesmas saídas lá fora! E os treinadores cá por casa? Deitaram os foguetes e recolheram as canas, agora calados como nunca, não se manifestam. Ahhhh, e como nos dizia Jorge Valdano em «A Bola» (03.07.2021), embora em relação ao futebol, “antes de modificar campeonatos, há que fortalecer o produto com treinadores corajosos. Só assim se aguentará este negócio.” Faça-se o necessário transfer.

Mas alegremo-nos! Valéria Kumizaki e Douglas Brose também não estarão em Tóquio. Aliás, o país irmão também não terá lá ninguém, nem para falar português do Brasil. Vão estar 34 países nos próximos J. O. e nenhum deles falará a nossa língua. Victor Hugo disse algo parecido com isto (e citamos de memória): “a consolação dos infelizes é não estarem sozinhos na sua miséria”.

 

47. Sintomas preocupantes

03.08.2021

 

1

O panorama desportivo actual e todas as suas envolventes, tanto a nível nacional como internacional, mostram-nos grandes mudanças. Umas para melhor, dirão uns, outras para pior, dirão outros… Uns, vítimas de uma ignorância colectiva que alastra cada vez mais, outros desassombrados por análises conscientes e fundamentadas. Uns, louvando perspectivas axiológicas, outros, desassossegados por inquietações éticas e morais. Alguns, mortos na ilusão de continuarem vivos, outros não podendo fazer mais nada do que somente assistir à morte.

E se o desporto evolui a uma velocidade vertiginosa “num mundo em que só a mudança é imutável[143], há que reflectir sobre o passado (o próximo, o recente, e o afastado) e analisá-lo para se construir um novo futuro – não o desgastado futuro todos os dias abordado que não é mais do que o prolongamento desse passado. Para que a história não nos continue a mostrar que nada se aprende com a história. E analisar implica uma crítica fundamentada para que se encontrem soluções, até porque as adaptações (mais as acomodações e menos as assimilações) tendem a ser apreendidas como não-problemáticas e não geram um novo panorama – mais harmonioso e saudável. Os adeptos, conscientes ou não, deliberados ou vítimas do acaso, do «não-problematismo» acabam por se submeter ao sistema. Vivem de clichés que acabam por se transformar em mitos. Rejeitam análises críticas e não buscam o sucesso no diferente… São subservientes, amorfos… O sincretismo é fácil, cómodo, mas cria patologias... A análise dá trabalho, necessita de pesquisa, de bibliografia, de cruzamento de dados… necessita de desmontar factos. Saber analisar é uma competência, pelos vistos, só ao alcance de alguns.

Mas a mudança gera receios e ansiedades. A expectativa do novo – melhor ou pior – revela mais do que preocupação pelo desconhecido, mais do que temor pelas incertezas. A expectativa do novo motiva o medo e gera até o terror. E paralisa. E paralisando, o «novo-novo» só consegue «criar» reproduções, as quais proliferam tanto pelas dúvidas, pelas incógnitas e pelas patologias como pela (des)inovação de situações que, novas só na roupagem, continuam a dar pão a crentes e a crenças. Pão e circo…

2

A teoria da complexidade de Edgar Morin[144] mostra-nos como tem de ser analisado não só o desporto em si mas também a actividade de todos os agentes desportivos: “juntai a causa e o efeito, o efeito voltará sobre a causa, por retroacção, o produto será também produtor”. Demasiada preocupação em determinar as causas reduz a análise sobre os efeitos, até estes se tornarem de novo causas. O mesmo é confirmado por Peter Berger e Thomas Luckmann[145] quando nos dizem que “o produto age sobre o produtor.” E teremos de estar atentos a que se esse produto encerra valores, ele também é comercializável, logo, envolvendo enormes quantias monetárias e estando sujeito à lei da oferta e da procura, ou seja, a uma economia de mercado – com todas as suas implicações. Repare-se que os custos da preparação para os J. O. de Tóquio dos portugueses (dos presentes e do ausentes) cifram-se em 18,5 milhões de euros.Conhecimento é um produto social e conhecimento é um factor na transformação social[146]. A questão surge quando pseudo-conhecimento (mascarado de conhecimento), como produto, retroage sobre o produtor… O produto, ao influenciar o produtor, torna-se assim também um criador de patologias…

3

Em 2018 foi publicado entre nós um livro que passou despercebido, intitulado “A Morte da Competência”[147] (4), de Tom Nichols. Nesta obra o autor mostra-nos que as pessoas não se limitam a acreditar em «verdades» sem nexo, mas resistem ativamente a aprender só para não terem de abdicar das suas crenças, apresentando-nos o facto de todos nós termos problemas como o do viés de confirmação, “que é a tendência natural para aceitarmos apenas as provas que confirmam aquilo em que já acreditamos.” O que nos leva à velha máxima de que não adianta explicar a quem não quer compreender…

Nichols afirma que, em relação à causa e efeito, a natureza das provas e a frequência estatística são demasiada areia para a camioneta do senso comum. E são demasiada areia porque é sempre mais fácil emitir uma opinião não fundamentada recorrendo a estereótipos e a generalizações do que fazer verificações factuais, isto é, “determinar o porquê depois de se ter confirmado o quê.”

Recorrendo ao efeito Dunning-Kruger, Nichols apresenta-nos os motivos pelos quais as pessoas não são capazes de aceitar as diferenças de conhecimento ou de competência. Numa época em que nos encontramos atolados no meio de muita informação, esta não gera o conhecimento que seria necessário. E se há uma diferença entre o perito e o leigo, este último sente-se com as competências do primeiro dado ter a ‘internet’ à mão: “a internet junta pseudofactos e ideias pouco amadurecidas, e depois espalha essa informação errada e esses raciocínios débeis por todo o mundo electrónico.” E a uma velocidade estonteante. A internet é um ambiente que abre a porta a que sejam o marketing, a política e as decisões fundamentais de outros leigos, e não a avaliação de peritos, a definir os conteúdos.

Neste livro Tom Nichols mostra como a Wikipédia é uma excelente lição sobre os limites da substituição da competência promovida pela internet, até porque para o leigo a Wikipédia serve perfeitamente. Nada melhor do que uma informação instantânea que possa fazer com que uma pessoa sem opinião passe a ter uma opinião errada. Difícil – e trabalhoso – é usar instrumentos rigorosos como a investigação, o recurso a fontes e a verificação de factos.

Os meios de comunicação social também não escapam a uma análise lúcida de Tom Nichols: o entretenimento, a informação, o comentadorismo e a participação cívica são uma mistela caótica que, mais que informar as pessoas, lhes cria a ilusão de estarem informadas. Isto acontece porque a tecnologia se associou ao capitalismo e deu às pessoas aquilo que elas querem, mesmo quando não é o melhor para elas. Duas conclusões retiradas do seu texto são importantes: 1ª – a parcialidade da comunicação social, de várias formas e sobre vários assuntos, é real; 2ª – o crescimento de novos meios de comunicação e o declínio da confiança estão ambos intimamente ligados à morte da competência.

Os atletas e os seus treinadores são peritos, afirma o autor deste livro. Mas também refere que peritos numa matéria são leigos numa outra. Fazemos aqui um parêntesis para referir que desportistas (competidores) e treinadores não são peritos em desporto, em gestão do desporto ou em sociologia do mesmo – logo, não são analistas do fenómeno, a não ser para darem conferências de imprensa ou receberem troféus à frente de painéis publicitários para que os logotipos de várias marcas inundem subliminarmente o nosso cérebro a fim de se criar ou prolongar o consumidor. E, recorrendo de novo à obra mencionada, os peritos não podem garantir resultados, os peritos apenas propõem hipóteses. Contudo, não podem fazer escolhas em relação aos valores. Nichols é peremptório ao afirmar que “os peritos não podem obrigar as pessoas a fazer refeições saudáveis ou a praticar desporto. Não podem arrastar as pessoas para que não vejam o reality show do momento e obrigá-las a olhar para um mapa. Não podem curar por decreto o narcisismo das pessoas.”

O sintoma mais preocupante actualmente não é a ignorância da maior parte dos cidadãos. O mais preocupante é o orgulho nessa ignorância. A morte da competência tem origem em características intrínsecas à natureza humana segundo Nichols, mas também é o resultado inevitável da modernidade e da abundância. E do consumismo, acrescentaríamos nós…

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Em 1948, quando Cândido de Oliveira – então treinador de futebol do Sporting – afirmou no final de um Benfica-Sporting que “somos bestiais quando ganhamos e bestas quando perdemos” estava longe de pensar que um dia estaria errado. Recorrendo tanto à comunicação social escrita como à televisionada, tanto à ‘internet’ como às redes sociais, é-nos dada a oportunidade de vermos que hoje Cândido de Oliveira não teria razão ao constatarmos como pessoas com responsabilidades no desporto (e nos meios de comunicação social) qualificam os nossos resultados, quer sejam eles em campeonatos europeus, campeonatos mundiais ou até mesmo nos J. O. que decorrem. Temos tido bons resultados! Somos bestiais mesmo quando perdemos! O que quer dizer que somos pequeninos! Continuemos a pensar pequenino…

 

48. Analisar os resultados dos J. O.

11.08.2021

 

Após a euforia inicial, a euforia do melhor resultado de sempre de Portugal em J. O., após a exaltação dos objectivos nos Jogos Olímpicos de Tóquio terem sido “plenamente atingidos, senão ultrapassados” *, após se terem lançado os foguetes é necessário apanhar as canas.

"Tínhamos previsto um resultado não inferior a duas posições de pódio, alcançámos quatro. Um resultado não inferior a 12 diplomas, alcançámos 15, nos quais se incluem os quatro pódios” foi o mote. Para reforço acrescentou-se que foram alcançados “três recordes nacionais, cinco recordes pessoais, 17 melhores marcas em Jogos Olímpicos e 26 melhores classificações também em Jogos Olímpicos” conseguidos por atletas portugueses. Alguém que falou em nome de todos os portugueses afirmou que “foram superadas todas as metas contratualizadas e as expectativas dos portugueses.” Afirmações que dão razão a Millôr Fernandes: “o homem é um produto do meio. O meio é um produto do homem. O produto é um homem do meio.”

Olhando para os números a frio, a tirania desses mesmos números na realidade aponta para o melhor resultado de sempre, mas essa mesma tirania cria falácias. Pretendermos só analisar os resultados será redutor, pelo que teremos de recorrer também ao destaque da filáucia de alguns competidores e à ausência de hombridade de outros, onde poderemos também incluir treinadores e dirigentes.

Nuns J. O. onde desfilaram cerca de 11 mil competidores em representação de mais de 200 países, nuns J. O. em que o COP recebeu do Estado 18,5 milhões de euros de 1 de Janeiro de 2018 a 31 de Dezembro de 2021 para a preparação olímpica de desportistas que estiveram presentes em Tóquio – mas também de alguns que não estiveram lá, pois chegaram a ser 141 –, poderíamos analisar os resultados da comitiva portuguesa analisando a classificação dos competidores em relação ao número de presentes em cada uma das provas (rácio classificação/participantes), poderíamos analisar esses resultados comparando-os com as medalhas ganhas por outros países com uma população semelhante a Portugal, ou até em relação a países com PIB parecido com o nosso (Portugal rondará o 49º posto em termos de PIB e é o 38º no Índice de Desenvolvimento da ONU) ou ainda em relação a países com o mesmo número (ou aproximado) de participantes nestes Jogos… alguém mais habilitado o fará! Seguiremos uma outra linha, até porque, como dizem os japoneses, “quando um sábio aponta para o céu, o ignorante olha para o dedo.”

As 4 medalhas conquistadas posicionaram-nos num 56º lugar numa tabela em que apenas 86 países foram medalhados. Logo, abaixo da metade e no limite final dos dois terços. Ahhhh, mas participaram cerca de 200 países! Sim, aí ficamos no início do segundo quarto…

Olhando só para o medalheiro de todos os J. O., Portugal esteve presente em 23 Jogos antes de Tóquio 2020. Em 11 destes Jogos teve um lugar inferior ao 56º lugar obtido nos presentes Jogos. Nos restantes 12 a posição no medalheiro foi superior… E se o esquecimento é próprio da sociedade, ou dos indivíduos, não é por esse motivo que a história é reescrita…

No medalheiro actual, Portugal está a um nível da Etiópia… abaixo da Eslovénia, Grécia, Irlanda, Ucrânia, Bielorússia, Roménia, Eslováquia e Áustria. Longe da Bulgária, da Bélgica, ou da Croácia, e muito longe de países como a Dinamarca, a Suécia, a Suíça, a Espanha, a Noruega, a República Checa ou a Polónia (esqueçamos a Itália, a Alemanha e a Grã-Bretanha). Países europeu depois de Portugal só a Estónia, a Letónia, a Lituânia e a Finlândia. E nem valerá a pena falar dos Países Baixos (36 medalhas, 10 de ouro) ou da Hungria (20 medalhas, 6 de ouro), ou até daqueles que se situam nos antípodas: a Nova Zelândia, um país com metade da nossa população, conquistou 5 vezes mais medalhas (20 medalhas, 7 de ouro).

Esta foi a terceira maior Missão Olímpica de sempre. Noventa e dois desportistas! Não sabemos quantos treinadores, quantos médicos/fisioterapeutas, quantos árbitros/juízes, quantos dirigentes – sim, porque para o cômputo geral todas as presenças implicaram despesas…

O desempenho da Missão Olímpica, que se iniciou com desaires atrás de desaires, logo começou a ser branqueado na comunicação social e nas redes sociais. “O 5º lugar foi o melhor 3º lugar de sempre nos J. O.” ou “o 11.º lugar a 75 centésimos da final, o terceiro melhor resultado olímpico” foram narrativas que nos começaram a inundar. E eram premonitórias…

É difícil falar neste momento porque não me preparei para um discurso de derrota. A única coisa que me cabe dizer é: desculpa. Desculpa, Portugal!” Há, para além da imprevisibilidade do resultado, variáveis que um(a) competidor(a) e um(a) treinador(a) não conseguem dominar, não podem controlar. Os resultados também dependem dessas variáveis. Por isso o acaso, por muito que muitos não o queiram admitir, está presente no desporto. Uma desportista que fica à beira de um lugar de pódio, uma competidora que se preparou a longo prazo para estar no seu pico de forma nos J. O. mas porque devido exactamente a essas variáveis não consegue alcançar o pódio, não tem que pedir desculpa a Portugal. Nem aos portugueses. Mas devido à imprevisibilidade do resultado deveria ter preparado um discurso de derrota. Faz parte do planeamento, principalmente quando sabemos que a este nível os participantes são sempre solicitados no final das suas provas para prestarem declarações à comunicação social. E o planeamento não é da sua responsabilidade. Mas a sinceridade acima de tudo!

E se “não podemos ser esquisitos quanto à cor das medalhas”, quando se possuem responsabilidades no campo do treino de um competidor nos J. O., teremos mesmo de ser esquisitos quanto à cor das medalhas, pois só uma nos interessa: a de ouro. A alta competição não se compadece com amadorismos. Temos de deixar de ser pequeninos, tal como teremos de deixar de ser pequeninos quando um competidor afirma que “é melhor um 10º lugar do que um 11º ou qualquer outro.” É um competidor que está completamente errado no seu modo de ver as coisas, o que influencia a sua prestação psicológica no desenrolar da prova.

Mas de realçar o atleta que reconhece o seu desaire ao afirmar “falhei no dia errado”. Falhar faz parte do desporto… haver dias errados também. E que o erro sirva para ser corrigido para que num próximo dia errado a falha não aconteça.

E também houve quem dissesse que “queria fazê-lo bem e não pude”. Alguém operado a um joelho a três meses de uns J. O. nunca se poderá apresentar nestes na sua melhor forma. Que medidas ditaram a sua presença nos mesmos? Um atleta que, vítima das suas próprias palavras, “aprendeu com a vida”. É de lamentar que quem nos deu tantos resultados, quem nos deu tantas alegrias, saia do circuito olímpico pela porta pequena. Como dizem os japoneses, “quando um olho está fixo no destino, só resta um olho para encontrar o caminho".

E felizmente que existem atletas que são capazes de reconhecer que “estou muito bem mas nem sempre o nosso muito bem sai e se realiza no grande momento. (…) A cabeça manda muito, o corpo manda ainda mais (…).” A desmistificação de que a mente comanda o corpo… ou de que os limites são para se ultrapassarem…

E felizmente também a existência de atletas que dão conta de que “e foi aí que eu cometi a falha – e por isso sim, o erro foi da cavaleira porque o cavalo estava perfeito.” Aqui sim, aprende-se com o erro, mais um que serve para ser corrigido como a própria reconheceu. Recuperar de adversidades é uma coisa, quando elas foram originadas por variáveis que estão - e sempre estiveram - fora do nosso controle. Cair voluntariamente nessas adversidades é outra totalmente diferente!

Se uma competidora não tem noção das possibilidades do seu rendimento isso só se poderá dever a uma de três coisas: mau planeamento do treino com a consequente preparação insuficiente (estratégica, física e psicológica), falta de competências ou irresponsabilidade. Não queremos acreditar que tenha sido alguma destas duas últimas quando uma competidora afirmou: “tinha boas adversárias na minha eliminatória, mas não sei se dei o máximo.”

A deficiente preparação e planeamentos deficitários de alguns competidores ficaram latentes quando foi afirmado o seguinte: “passei uma época muito longa, intensa e desgastante (…). Aqui, estou a pagar a fatura de tudo isso, pois não estou no máximo das minhas capacidades físicas e mentais.” Não são só os que são visíveis que possuem responsabilidades nos resultados dos Jogos. Treinadores e dirigentes, apesar de na sombra, possuem tanta ou mais responsabilidade que os mesmos. É inglório sacrificar-se carne para canhão quando os decisores são os principais responsáveis. “Relativamente às provas, não tivemos provas. Não treinámos para isto, estamos cá a lutar.” Ficou demonstrado que lutar não chega. Como dizem os japoneses, “visão sem ação é um devaneio. Ação sem visão é um pesadelo”. O desporto ignora a igualdade de condições desses mesmos competidores – condições individuais diferentes (quer sejam de ordem genética, anatómica, fisiológica ou psíquica), condições de treino diferentes (no que diz respeito a metodologias, a instalações, a treinadores e a todo o restante apoio, incluindo o económico) e até diferentes condições de participação no momento (tempo) comum a todos os competidores (onde os antecedentes e todos os níveis de preparação emergem tal como as variáveis de circunstância momentâneas).

A paixão pela pista surge “muito por causa da adrenalina e pelo espectáculo” proporcionado. Exactamente! Desporto é espectáculo em que se exploram os corpos e que serve para entretenimento e para criar consumidores. Quem lucra com isso? Motivo para reflexão! (E sobre o «quem lucra com isso», só mais uma questão, embora fora do contexto: a quem interessou o Karate no programa destes J. O?).

E para meditarmos sobre resultados, terminamos com uma interrogação: tem mais significado um 20º lugar quando estão presentes 88 atletas e só 73 chegam ao fim ou um 3º lugar entre apenas 12 concorrentes?

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* Propositadamente não identificamos os autores das declarações que transcrevemos e citamos. Leitor atento facilmente reconhecerá os que as proferiram.

 

49. Da evolução do desporto

30.08.2021

 

O desporto integra situações motoras competitivas, normalmente apelidadas de técnicas e que desembocam em tácticas e estratégias, com competições a todos os níveis (etários, geográficos, por modalidades) designando vencedores e vencidos, comporta actividades codificadas sujeitas a regras e regulamentos, e é estruturado e organizado através de um sistema institucionalizado em torno de clubes, associações, federações e grandes organizações (COI, UEFA, FIFA e muitas outras dependendo das modalidades), apoiando-se em exigências sistemáticas de espectáculo, de interacção com os mass media, com a política e com a economia.

A hierarquização dos competidores (classificações, pódios, medalheiros, campeões disto e daquilo, detentores deste ou daquele recorde) não é mais do que a criação de um conjunto de condições de desigualdades – o desporto descrimina. A intenção de cada desportista (do seu treinador, dos seus dirigentes, e até das mais altas individualidades políticas do seu país) ao desejar ser um vencedor, um campeão ou um recordista, traduz-se, por consequência, na sua transformação de um produtor de derrotados. E se na vitória pouco se aprende, mas muito se aprende com a derrota”, então teremos de reconhecer que o desporto ao criar um maior número de derrotados que de vencedores é de facto uma actividade onde abunda a aprendizagem… só que teremos de conhecer quais os objectivos e quais os conteúdos dessa aprendizagem.

O desporto não evoluiu só da cana de bambu à fibra de carbono, dos quadros de ferro aos de alumínio e titânio e às rodas lenticulares, do cabedal ao kevlar, do algodão à licra ou ao neopreno e ao poliuretano, da cinza ao tartã, do treino em altitude às câmaras isobáricas, do massagista ao fisioterapeuta, do rolamento ventral ao fosbury flop, das travessas aos pitons… o desporto evoluiu também em termos de organização, de regulamentação, de exploração de merchandising e de publicidade, de transmissões e de direitos de imagem, mas também em termos de consciencialização dos competidores – afinal os grandes actores, que, apesar de serem formatados como carne para canhão, se vão lentamente libertando (alguns!) dessas amarras.

A agressão a um cavalo nos J. O. de Tóquio por parte de uma treinadora de pentatlo moderno – a alemã Kim Raisner –,  já deu origem à modificação dos regulamentos no que diz respeito à prova de equitação por parte da Federação Internacional desta modalidade.

A medalha de ouro de um karateka (o iraniano Sajad Ganjzadeh) nos mesmos J. O. por desclassificação do seu adversário (o saudita Tareg Hamedi) na prova de combate – segundo alguns excesso de contacto deste último, segundo outros inexistência deliberada de protecção e «comportamento teatral» do vencedor, mas tudo observações subjectivas – veio equacionar a modificação dos regulamentos nesta prova.

O debate em torno da preparação psicológica de desportistas (assim como do seu acompanhamento) e a prevenção de situações de stress e de depressão, despoletado por Simone Biles, alertou-nos para o facto de que algo terá de ser modificado não só na metodologia de treino mas também em termos organizacionais a fim de evitar a exploração desses desportistas (é urgente debelar-se o treino intensivo precoce!).

A queda do uruguaio Maurício Moreira no contra-relógio final da Volta a Portugal e que lhe retirou a vitória na mesma, veio colocar a nu “métodos e vícios antigos existentes no ciclismo português” (Fernando Emílio, «A Bola», 17.08.2021).

O anúncio da primeira Volta a Portugal feminina em bicicleta vem precisamente demonstrar-nos também que, nos tempos que correm, algo evolui no desporto…

A admissão de boicote à Liga Europeia de hóquei em patins por parte da Associação Europeia de Clubes dado o modelo de 16 equipas em dois grupos ter sido preterido em favor de um formato com 20 equipas e duas fases em que jogariam todas entre si até à final four – com a consequente sobrecarga para os desportistas – veio abanar modelos de organização de competições.

A recusa por parte de clubes espanhóis de futebol em cederem jogadores seus para selecções sul-americanas devido à remarcação de novas datas para as provas de qualificação para o Mundial de 2022 apresenta novos contornos no futebol. Jorge Valdano («A Bola»,28.08.2021) pergunta: “é mais importante a Premier League do que o Mundial?” E ele próprio dá a resposta: “Não, é mais importante o poder económico que o poder simbólico.”

Entre os nossos muros, na nossa quinta, como evolui o desporto? Em que sentido? Deixamos só alguns indicadores: 1 – Portugal não teve ninguém na maratona masculina dos J. O. de Tóquio, o que acontece pela primeira vez desde 1968… há 53 anos… 2 – 92 competidores e 18,5 milhões de euros para 4 medalhas: muito, pouco ou assim-assim? 3 – 33 competidores paralímpicos numa comitiva de 77 elementos… 4 – O Ministério da Educação quer o desporto escolar mais ligado às federações desportivas… vai daí, no próximo ano lectivo, as equipas de alunos técnica e tacticamente mais evoluídas só poderão ter tempo para treinos se estiverem inscritas em federações desportivas…

Um bom slogan seria «acreditem, não precisam analisar nem reflectir!».

E porque os métodos de dopagem também evoluem, assim como os fenómenos de fraude e de corrupção, a grande questão que deveremos colocar é a seguinte: o desporto evolui num sentido de progresso para a humanidade e num sentido de desenvolvimento da civilização?

Atente-se a que dos gabinetes de relações públicas passou-se para os departamentos de marketing e por último para os directores de comunicação… As formas de relacionamento com os consumidores do desporto foram-se modificando… Também aqui o desporto evoluiu.

Parece-nos que a evolução do desporto serve essencialmente o captar vitalício do espectador para o utilizar eternamente, para o cativar de uma forma impessoal deixando-o subjugar-se ao poder da imagem, do espectáculo e da publicidade. Criar o desejo no espectador, torná-lo crente, fazê-lo sentir que reina nesse domínio, que se tornou especialista em técnicas, em tácticas, em modelos de jogo, em constituições de equipas, em analises de faltas e sanções – quando, sem se aperceber, o desporto o está a tornar num sujeito submisso, voyeur, a fim de reforçar e melhor desenvolver “a sua aptidão para consumir, digerir, regurgitar e então reciclar ou substituir” como nos diz Marie-José Mondzain[148]. E, segundo a mesma autora, “no domínio dos reinados, os espectadores formatados afeiçoam-se pela conivência, pelas cumplicidades, pelos índices identitários, pela segurança das reclusões. A verdadeira polícia é a que faz reinar o mercado quando este é o único a reinar.”

A própria evolução do desporto encontra-se refém de uma mercantilização em que, e segundo as leis do mercado, tudo é medido em euros ou em dólares – não tivesse a saída de Messi do Barcelona de ser avaliada de imediato como uma perda de receita para o clube catalão de 137 milhões de euros…

Como disse Carl Sagan (e citamos de memória), “é mais fácil descrever o destino que a viagem”.

 

50. Cooperação, competição, civilização!

24.10.2021

 

Em 2020 Remy Blumenfeld[149] trouxe-nos a história do aluno que teria perguntado à antropóloga Margaret Mead (1901-1978) qual seria o primeiro vestígio da existência da civilização humana. A antropóloga americana teria respondido: “Um fémur com 15 mil anos encontrado numa escavação arqueológica.” E esta ter-lhe-ia explicado que o fémur encontrado revelava indícios de se ter partido e ter cicatrizado, o que implicava que alguém tinha cuidado daquele ser humano, abrigando-o, alimentando-o e protegendo-o, até porque naquela altura aquela recuperação teria demorado provavelmente seis semanas. Segundo o mesmo, Margaret Mead teria acrescentado que, na natureza, no reino animal, a quebra de uma perna implicava a morte. Não se poderia fugir do perigo, não se poderia beber ou procurar comida. Ferido dessa forma, o animal seria carne para os seus predadores. Nenhuma criatura sobreviveria a um fémur quebrado por tempo suficiente para o osso se curar sem auxílio. Seria comida primeiro… Assim, para a antropóloga, cooperar com alguém numa ajuda para ultrapassar dificuldades seria o ponto de partida da civilização.

Considerando este acontecimento como o início da civilização, é no entanto comum considerar-se a Mesopotâmia como berço da civilização ocidental. Se a escrita aí desabrochou (por volta do ano 3200/3100 a.C.), verificamos que entre este acontecimento e o descrito por Mead medeiam cerca de 11.000 anos. E entre o aparecimento da escrita e o relato de Mead estão aproximadamente 5.000 anos.

A civilização, considere-se o que se considere ser o seu início, foi (é) um processo lento e moroso que avançou (avança) passo a passo, ponto a ponto, conto a conto… Tal como o desporto…

Se até à primeira grande guerra mundial se pode dizer que o desporto estava preocupado com objectivos como a educação e a moral, a partir desta a incidência passou a ser no espectáculo e, lentamente, a comunicação social, a economia, a política e a publicidade tomaram conta deste. Durante e após a década de 80 do século passado o desporto foi-se transformando numa actividade que gera comércio, tornando-se ele próprio um comércio – passou-se do ócio ao negócio.

Actualmente o desporto vive do e para o alto rendimento recorrendo ao profissionalismo, é movido pelos mass media e pela publicidade, exige sensacionalismo e recordes, nele tudo é quantificado, idolatra os heróis, é determinado pela ciência e pela tecnologia e é gerido pelo lucro, pela política e pelo direito.

Do amadorismo ao profissionalismo, do livre associativismo à legislação actual, do jogo pelo jogo aos actuais investimentos, o desporto saltou de paradigma em paradigma… Como? Lentamente... sem irmos tendo a percepção de tal. A par de um processo civilizacional temos um processo do fenómeno desportivo. Pequenas alterações vão sendo introduzidas espaçadamente (a árvore), pequenas modificações vão-se interpenetrando e aglomerando ao fim de algum tempo e, sem darmos conta, chegamos ao momento actual (a floresta). De um modelo de competição sem regras chegamos a um modelo de processos de interpenetração com normas que mostra “como a teia de relações humanas muda quando muda a distribuição de poder.”[150] De tal modo que já não é o desporto que é um reflexo da sociedade, mas sim a sociedade que é a imagem do desporto!

Este avanço – processo – não foi no entanto acompanhado pela nossa mente, pelo nosso raciocínio, e por isso mesmo ideologicamente ainda nos encontramos agarrados a ideias que nos foram vendidas e nós comprámos (o espírito desportivo, o espírito olímpico, o amor à camisola, a verdade desportiva, o fair-play, a ética, os valores) noções essas que se utilizam constantemente em discursos de circunstância sem ninguém se preocupar em esclarecer o seu real significado (talvez por já se encontrarem esvaziadas de sentido mas funcionando bem como cliché) quando a realidade actual é bem diferente. Ideias que nos continuam a inculcar sob uma nova roupagem… a roupagem da moda. E se a moda não incomoda, como diz o povo, quando a moda é tóxica incomoda mesmo (pelo menos os mais atentos ou os mais pragmáticos).

A criação dos clubes-empresa, de que Claude Bez foi o impulsionador em 1984, a criação das SAD’s, a acção desenvolvida por Jean-Marc Bosman, e mais recentemente a aquisição do Newcastle por um consórcio liderado pelo Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita isso nos mostram lá fora. Entre nós, o mesmo nos é mostrado pela evolução desde a Lei de Bases do Sistema Desportivo (1990) até à comercialização centralizada dos direitos televisivos dos jogos de futebol (2021), passando pelo Regime Jurídico das Federações Desportivas (2008) e pelo Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online (2014). No desporto, hoje em dia, conta mais o poder económico que o poder organizativo. No desporto, hoje em dia, conta mais o lucro que o resultado desportivo. Não é por acaso que existem gabinetes de marketing nos grandes clubes, tal como não é por acaso os mesmos possuírem canais televisivos. Não é só o espectáculo que vende, a publicidade também vende… e não vende só a mercadoria, vende sonhos, vende esperança.

E, por muito que certas personagens com responsabilidades na sociedade (e no desporto) nos tentem submeter à crença de que o futebol é uma indústria e não um comércio, seria bom que essas mesmas personagens nos explicassem o que é «a transparência, a integridade e a boa governança»”… até porque os estereótipos tendem a transformar-se em mito.

Nos últimos tempos alguns autores (Harari, Damásio, Cregan-Reid) trouxeram-nos de novo o facto de ter sido a cooperação entre seres humanos o grande motor da civilização e não a competição. Muito menos a competição-espectáculo… até porque, nos dizeres de Pier Vincenzo Piazza[151], “todos os seres vivos produzem entropia quase exclusivamente com a finalidade de sobreviverem. O homem é o único que parece gostar de a criar ou de a aumentar apenas para se divertir.” E acrescenta ainda este autor que “quanto mais elevada for a entropia de um recurso, maior a sua abundância e omnipresença.” E aí está o desporto, um recurso extenso, enorme, grandioso (passe o pleonasmo) em abundância e em omnipresença.

A pedagoga Maria Montessori (1870-1952) também nos disse que “as pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e sermos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos a educar para a paz![152]

Mas nós continuamos a comprar (e a acreditar) naquilo que nos vendem… a nossa ingenuidade (ou a forma como somos manipulados) acompanha transgressões a princípios éticos e a normas morais. E quando somos adeptos, quando nos orgulhamos dessas transgressões então estamos de facto condenados…

Post Scriptum: Jorge Valdano escreveu em «A Bola» (16.10.2021) o seguinte: “Há um grande engano cultural em que todos estamos metidos e que diz no seu enunciado mais simples: a vida é uma competição e apenas se salva o vencedor. O futebol envolveu-se nessa dinâmica como se fosse o ‘Squid Game’, embora neste momento as vítimas sejam apenas morais.” Provavelmente uma observação acertada… No mesmo diário, Vítor Serpa (23.10.2021, p. 31) diz-nos que “as mudanças no futebol, no país e no mundo são imparáveis. Não adianta ser contra, porque elas, inevitavelmente, irão seguir o seu caminho.” Uma constatação, provavelmente mais que correcta…

 

51. Do ‘show’ desportivo e da subliminaridade

09.11.2021

 

Quer seja semana após semana, quer seja de quatro em quatro anos, o indivíduo é mobilizado, é convocado, para seguir a sua paixão dando largas ao ardor e ao arrebatamento – há quem lhe chame libertar as emoções, extravasar energias ou procurar a excitação. São manifestações litúrgicas…

Para tal é necessária a existência do show desportivo. Nele se vertem paixões sem se dar conta que as mesmas toldam a razão, não tendo a grande maioria dos apaixonados a capacidade para controlar a simultaneidade da paixão e da razão. Muitas vezes a paixão exacerbada resulta em fundamentalismo, um campo fértil para o desporto.

O espectáculo só produz entretenimento ou divertimento. Não é um bem palpável mas é uma mercadoria que se situa mais na esfera do imaterial. E o entretenimento “é desprovido de qualquer acesso ao conhecimento. Diverte sem aumentar o conhecimento”, como refere Byung-Chul Han[153].

Por seu lado, o espectáculo não existe sem o espectador. A excelência – areté no tempo dos gregos e virtus no tempo dos romanos – sempre foi do domínio público. A validação da acção do indivíduo na qual pretende sobressair e distinguir-se dos outros implica que a mesma fuja à obscuridade ou mesmo à negritude. Como nos disse Hannah Arendt[154], “para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença dos outros, e essa presença requer um público formal.”

O espectador existe desde o início da humanidade, tando talvez nascido com a contemplação das pinturas rupestres, tendo o progresso, ou a civilização, determinado um espectáculo actual muito diferente do espectáculo da Pré-história, mas que aí encontra as suas raízes. A evolução do ser humano acompanhou novas formas de divertimento e este foi-se adaptando aos tempos relativos à sua época histórica. A história do desporto, a história do espectáculo, está registada, mas não a do espectador. É pertinente a questão que nos coloca Marie-José Mondzain[155]: “Será possível fazer-se uma história do espectador sem nela anotar uma história da crença e, logo, de todas as figuras sub-reptícias ou violentas da persuasão e da convicção?” Sem nos preocuparmos com a resposta e quedando-nos apenas pela pergunta verificamos que «espectador», «crença», «violência» e «persuasão» são conceitos que fazem parte da história da humanidade e têm acompanhado o ser humano ao longo dos séculos.

A essência mais profunda do desporto-espectáculo não reside no facto de o desportista procurar superar-se cada vez mais, de optimizar o seu corpo, de se tornar um herói ou um ídolo. Não reside num escalonamento, num ranking e na obtenção de um título. Não reside na meritocracia.

A essência mais profunda do show desportivo assenta sim no facto do espectador poder alimentar o seu ‘ego’ com aquilo que não consegue mas gostaria de conseguir fazer (por isso os psicólogos falam em identificação e em projecção) vivendo, segundo o mesmo, assim, momentos inolvidáveis. A essência mais profunda do show desportivo assenta na criação do consumidor – o adepto foi há muito ultrapassado – tendo o comércio, o negócio, a publicidade e o merchandising tomado conta do desporto.

Por que motivo os logotipos de grandes marcas nos equipamentos, nomes de produtos ou de empresas nos painéis que circundam o campo, nos outdoors, nos painéis por detrás dos pódios e nas conferências de imprensa, nas costas das camisolas, ou até em cartazes e nos bilhetes? Nós não damos conta mas… existe a recepção de mensagens directamente pelo cérebro pela via ocular sem o crivo crítico da consciência, mas que ficam registadas no nosso inconsciente, como refere Flávio Calazans[156]… e as “mensagens que pouco a pouco levam à adesão, inconscientemente reforçando a cognição consciente gerada pela campanha publicitária tradicional, constituem a propaganda subliminar multimídia.”

É essa propaganda que cria o consumidor. E embora a noção de propaganda seja diferente da de publicidade – a primeira é uma forma de transmitir ideias que procuram influenciar o nosso comportamento enquanto a segunda é uma forma de comunicação que procura promover perante o público um serviço ou um produto –, o objectivo é fazer registar uma imagem no nosso cérebro a fim de modificarmos o nosso comportamento consumista e mais tarde adquirirmos esse produto. E quando compramos o produto, não estamos só a pagar o mesmo… estamos a pagar a própria publicidade! O consumidor final, o tal que está na cauda da cadeia alimentar, é o tal que tudo suporta.

Daí o ser importante, para os promotores do espectáculo desportivo, fazer com que a nossa mente inconsciente repare em coisas nas quais a mente consciente não repara mas regista – as imagens subliminares.

 

52. A tirania dos regulamentos

22.11.2021

 

A competição, ou antes, a vitória na competição, mede-se por critérios objectivos e/ou por critérios subjectivos. É uma avaliação. Para designar vencedores e vencidos é imprescindível essa medição. Em relação aos primeiros temos as medidas de comprimento, de peso, de tempo, os golos ou os pontos marcados… No que se refere aos segundos temos a atribuição de notas ou uma pontuação… Tudo isto está plasmado em regulamentos, que muitas vezes não são éticos mas são legais. E quando a lei está em conflito com a ética, é raro prevalecer a ética, até porque se antes os homens necessitavam de panis et circenses, teremos de dizer que actualmente a necessidade se baseia no panis, argentum et circenses...

Se concordamos em atribuir uma maior fiabilidade aos critérios objectivos porque a isso estamos habituados – erros de percepção, enviesamento e ruído são frequentes nos juízos subjectivos – teremos de desmistificar no entanto essa atribuição porque nem sempre é verdadeira.

Vejamos dois casos concretos!

Em 2007 Naide Gomes participou nos Mundiais de atletismo de Osaca. Na sua qualificação fez um salto de 6,96 metros, apurando-se de imediato para a final, pois a marca a ser transposta era de 6,85 metros. Na final, só a vencedora, a russa Tatyana Lebedeva, ultrapassou os 7 metros. Nenhuma das outras medalhadas (2º e 3º lugares) superou aquela marca da atleta portuguesa – a russa Lyudmila Kolchanova saltou 6,92 metros e a sua compatriota, Tatyana Kotova, fez um salto de 6,90 metros. Tendo feito 6,87 metros na final, Naide Gomes ficou-se pelo quarto lugar… mas nas eliminatórias, repetimos, tinha feito 6,96 metros. Tudo isto aconteceu na mesma prova, embora em etapas diferentes: eliminatórias e final. Um salto superior num antes e um inferior num depois… mas decisivo este último.

Nos Mundiais de ginástica artística all around de 2021, em Kitakyushu, Filipa Martins terminou na 7ª posição com 52,199 pontos, muito perto da classificada em 5º lugar com 52,832 pontos. No entanto, esta ginasta na qualificação para a final obteve um 6º lugar com uma pontuação superior à da final: 53.032 pontos. Tudo isto aconteceu também na mesma prova, embora em etapas diferentes: eliminatórias e final. Uma pontuação superior num antes e uma inferior num depois… mas decisiva esta última.

Verificamos assim que os regulamentos desportivos, nas provas com qualificações e final, permitem que um competidor que tem um melhor tempo, uma melhor marca ou uma melhor pontuação numa eliminatória (qualificação para a final), possa ser derrotado na final por outro competidor com um tempo ou uma marca inferior nessa mesma prova.

Detenhamo-nos agora um pouco numa mera hipótese académica…

No ténis se um jogador vencer o primeiro set por 7-5, após empate (5-5), e se perder o segundo por 1-6 terá de disputar um terceiro set. Se neste último o resultado lhe for favorável por 6-4, ele será o vencedor, pois vence dois sets e perde um. Mas se contabilizarmos o número de jogos, verificamos que esse jogador venceu 14 enquanto o derrotado venceu 15 jogos… Por força dos regulamentos, o jogador que ganhou o maior número de jogos acaba por ser o derrotado…

Passemos a um outro campo paralelo, o dos contratos. Porque no desporto tudo se compra e tudo se vende, tudo é regulado pela oferta e pela procura… no desporto tudo se negoceia (grande é o «comércio», apesar de haver muitos – e alguns com responsabilidades educativas, organizacionais, políticas, institucionais – que nos querem instrumentalizar fazendo-nos crer que o desporto é uma «indústria»)… no desporto o «deus dinheiro» é dono e senhor da mercadoria!

Em Dezembro de 2016, no combate de Mixed Martial Arts entre Ronda Rousey e Amanda Nunes, a primeira foi derrotada ao fim de 48 segundos. Nesse combate, a derrota rendeu a Ronda Rousey a quantia de mais de dois milhões e quinhentos mil euros. A vitória rendeu a Amanda Nunes cerca de dois milhões de euros. Um provável título para este evento: quando a derrotada ganha mais do que a vencedora! Questões de negócio… mas que marcam a diferença entre uma vitória e uma derrota.

Numa época de mercantilização do desporto, encontramo-nos na presença de um sistema ilusório embora não um sistema de ideias falsas. Os actuais ideais desportivos tornam-se assim social e politicamente eficazes, todavia os mesmos encontram-se divorciados das suas condições sociais da emergência e da natureza da competição. Parafraseando Ortega y Gasset, poderemos dizer que “o maior crime está não no erro, mas na convicção das pessoas de que o errado está certo”.

 

53. A competência de opinar

20.12.2021

             

Perry limpou a cerveja entornada com um guardanapo.
– Desculpa, mas fico lixado quando os árbitros se põem a decidir quem vai ganhar em vez de os deixarem jogar.
– A vida é cruel e injusta, meu amigo – disse Bill. – Ninguém escapa às injustiças da vida, nem mesmo no mundo do desporto
.[157]

Se a vida é cruel e injusta, se o mundo do desporto não escapa às injustiças da vida, é tudo uma questão de perspectiva. Que o digam grandes administradores desportivos, gestores de topo ou agentes de jogadores de futebol. Principalmente estes últimos com um total pago aos mesmos em comissões pelos clubes no ano de 2021 de 443,5 milhões de euros… mais 0,7% que no ano anterior.

Fomos habituados a olhar para o futebol, e a falar dele, como estando a olhar para o desporto e a dele falar. Nada de mais errado! Somos educados futebolisticamente, somos formatados para darmos um pontapé numa bola e julgarmos que estamos a jogar futebol, crescemos numa cultura em que discutimos futebol estando convencidos que nos encontramos no centro de um debate sobre desporto. E os media possuem a sua quota-parte de responsabilidade neste assunto: na TV o futebol ocupa as transmissões em directo, os programas com painéis de comentadores, os noticiários… 28 de 32 páginas de um diário desportivo são preenchidas com esta modalidade… e as restantes que nem visibilidade possuem também são as que menos espectadores possuem ao vivo e aquelas que menos dinheiro movimentam e menos lucro dão a certos sectores da sociedade. Filhas de deuses menores!

Gabriel Albuquerque sagrou-se campeão mundial de trampolins. Telma Santos foi igualmente campeã mundial de badminton. Uma equipa feminina de goalball portuguesa (SCP) também conquistou o título de campeã do mundo. Não abriram noticiários, não vimos entrevistas, não sabemos se foram ou irão ser condecorados pelo PR, não receberam nenhuma bola de ouro ou qualquer outro prémio badalado na comunicação social! Filhos de deuses menores!

Na infância, inúmeros são os brinquedos com a forma de uma esfera. Talvez por ser o único objecto que não possui vértices e arestas e por isso mesmo ser aquele que menos acidentes poderá suscitar com as crianças. Talvez por ser aquele que com mais facilidade perde o seu equilíbrio estável. Crianças que são as mais propensas para serem influenciadas por pais, familiares e amigos para «darem um pontapé na bola»… e logo de seguida instigadas a «serem» deste ou daquele clube (futebolístico, entenda-se!). Uma questão hereditária e, como tal, transmissível, a qual se vai inculcando no indivíduo.

Passa-se a seguir à fase do «jogar à bola» e depois ao querer ser como este ou como aquele jogador de topo. Daí à escolinha de futebol é só um passo… mas nem todos saem de lá craques. Concomitantemente vai-se formando o espectador, vai-se cultivando a paixão, vai-se exacerbando o fanatismo é a fase em que «os árbitros se põem a decidir quem vai ganhar». E, como disse Denis Diderot (1713-1784), filósofo francês do iluminismo, “do fanatismo à barbárie é só um passo”…

Surge então a etapa em que a narrativa do próprio se circunscreve ao recurso à ética, à verdade desportiva (seja lá o que isso for), à necessidade da prevenção da violência no desporto, à luta contra o doping,à luta contra a corrupção. No entanto olvida inúmeros outros aspectos porque só acredita naquilo em que quer acreditar e, pior que um cego, só vê aquilo que quer ver – é a confirmação do «viés de confirmação».

É este, em traços gerais, o deslocamento do acento tónico na «vida do desportista», quer seja praticante ou não. Há um padrão na construção da «cultura» desportiva do indivíduo e que revela a longo prazo a sua iliteracia neste domínio.

É costume aferir-se o grau de desenvolvimento desportivo ou o nível de cultura desportiva de um país pelo medalheiro nas várias modalidades (e nos J. O.) ou pelos índices de prática desportiva e de actividade física dos seus cidadãos. O «desenvolvimento desportivo» é um conteúdo completamente diferente do conteúdo «cultura desportiva». O primeiro, mais abrangente, tem a ver com instituições e formas organizativas – e, consequentemente com resultados desportivos a nível internacional. O segundo está relacionado com valores e com os conhecimentos que a maioria dos indivíduos possuem sobre o fenómeno desportivo e, como tal, sobre as suas competências para emitirem opiniões sobre o fenómeno desportivo. O problema não está no facto de possuírem opinião… uma opinião especializada sobre um só determinado aspecto do fenómeno desportivo ou uma opinião global e abrangente do mesmo… o problema está no facto de só serem detentores de uma opinião superficializada, de não possuírem uma opinião fundamentada e alicerçada no conhecimento – que normalmente não buscam – pois seria isso que lhes poderia dar a competência de ou para opinarem…

 

54. Ainda sobre a competência de opinar

03.01.2022

             

Ninguém se lembraria de colocar um alcoólico a apresentar um programa de vinhos ou a comentar as suas características e/ou propriedades. Para isso escolheria provavelmente um enólogo ou um escanção. “Tinto ou branco? Cheio!” seria o comentário mais badalado por um comentador cujo estado permanente fosse o de etilizado. E por que motivo? Porque para o alcoólico qualquer vinho é bom: tanto faz tinto como branco, o importante é que lhe tolde os sentidos e que viva uma outra realidade.

Mas lembram-se de colocar «comentaristas?» (sim, nem sequer são comentadores) a debitarem as suas opiniões em programas que possuem público. E o mais curioso é isso mesmo: eles têm quem os ouça! E quem lhes dê crédito! Porque, como firma Alain de Botton[158], a máquina da comunicação social contemporânea tem o poder de esmagar a nossa capacidade para pensar com independência.

A responsabilidade de quem os coloca a debitar opiniões superficiais sobre assuntos mais profundos do que eles próprios imaginam deveria ser auditada. Pior ainda quando acicatam uns contra outros… Mas o problema não reside na existência destes «comentaristas». O problema reside no facto de terem público, de criarem a sua própria imagem, de serem viciados no poder da comunicação. E, segundo o mesmo Alain de Botton, eles possuem “o poder de montar a imagem que os cidadãos acabam por ter uns dos outros; o poder de ditar como será a nossa ideia das «outras pessoas»; o poder de inventar um país nas nossas imaginações." Os formatadores só existem porque há os que querem ser formatados. O problema reside no facto de os receptores destas mensagens se terem habituado a isto e a ir absorvendo – nem sequer assimilam, dado a sua ausência de espírito selectivo ou crítico – aquilo que lhes é impingido. A grande maioria habituou-se, acomodou-se, torna-se moldável, submissa, amorfa, e, como nos disse Friedrich Nietzsche[159], “os povos só são tão enganados porque procuram sempre um enganador, isto é, um vinho excitante para seus sentidos. Contanto que possam obter esse vinho, contentam-se com pão de má qualidade. A embriaguez interessa-lhes mais que a alimentação – esta é a isca com que sempre se deixam pescar! (...) Os povos obedecem sempre e vão mais longe ainda com a condição de poderem-se embriagar!

Mas o contrário, que é de louvar, também existe. Quando um dos «comentaristas» com maior projecção na televisão dizia “esta vinda dos dirigentes do Flamengo a Portugal para tentar contratar Jesus é um disparate… uma falta de respeito… não faz sentido… é uma coisa de terceiro mundo… isto não é futebol profissional nem gente decente…” um jornalista soube, e muito bem, contrapor: “mas o Benfica fez o mesmo para ir buscar JJ!” Resposta comprometida a do «comentarista»: “mas vamos ver… quer dizer… vamos lá ver.” No entanto o «comentarista» tem audiência, tem quem o siga nas suas opiniões – é a reprodução a funcionar…

Mas não é só na TV que isto acontece! Temos comentadores que se batem sistematicamente por apresentar o futebol como sendo uma indústria. Um deles, numa coluna de opinião semanal que ocupa cerca de um terço de página de um diário desportivo, chega a utilizar por três vezes o termo «indústria» para classificar o futebol, tudo na mesma crónica. Não admira pois que os ingénuos vão falando no futebol como uma indústria quando tudo se trata de negócio – e este enquadra-se no comércio, não na transformação de matéria-prima e na elaboração de um produto.

E torna-se excruciante vê-los confundir futebol com desporto, táctica com estratégia e atitude com comportamento…

No entanto há comentadores desassombrados. Felizmente ainda temos um comentador a dizer-nos que “a boa notícia é que, afinal, o futebol é bom negócio. A má também.” Ou um outro a dizer-nos que “o futebol é uma actividade (chamar indústria pouco sentido faz) com regras de monopólio (ou duopólio) básicas”. Ou ainda aquele que declara que se queremos perceber o futebol que estudemos economia… ou que “o jogo da moda não se chama futebol, antes populismo – até os futebolistas já sabem jogá-lo.” E também mais um outro que nos diz que os muitos comentadores que se debruçam, a toda a hora, nos nossos televisores, “não se cansam de dizer que é preciso defender essa indústria, desenvolver o produto (eu sei, parecem estagiários do Jornal de Negócios, não comentadores de futebol)”. E também aquele que afirma que “ainda não foi escrito o livro negro do desporto”… Espíritos lúcidos que não se deixam toldar… seja tinto ou seja branco!

Sobre o ocorrido no Jamor entre o Benfica e o Belenenses SAD muito foi opinado, muito foi adjectivado. Expressões como “vergonhoso quanto indecoroso ataque à dignidade da competição e verdade desportiva”, “atentado ao pudor”, “farsa que envergonha o futebol português”, “vergonha como não há memória”, “desvirtuar a verdade desportiva” foram amplamente utilizadas sem serem fundamentadas e sem se tentar alcançar o âmago da questão ou sugerir soluções (realcemos que temos de distinguir três aspectos: o comentário, a análise e a crítica). E eles fazem a opinião! Uma opinião tóxica e poluente. Todavia eles nunca assumem a posição de não (querer) perceber que eles próprios e muitos dos seus colegas «comentaristas», talvez a maior parte, só debitam comentários para encher chouriços. E o chouriço, acompanhado de um copo vai sempre bem!

Para os comentadores «especialistas em desporto» aqui ficam onze questões para responderem. E bastará acertarem apenas em cinco. Ou então que reconheçam que apenas são (quase) comentadores só de futebol. Ou «comentaristas»! Porque, parafraseando Abel Salazar, quem só percebe de futebol nem de futebol percebe.

1 – Quantas e quais as armas da esgrima?

2 – Que relação há entre os números 732 e 244?

3 – Quem foi a árbitra portuguesa que dirigiu uma final da Taça de Portugal?

4 – Quantos buracos tem um campo de golfe?

5 – Um futebolista, bom futebolista, foi indisciplinado num treino, nas vésperas de uma prova, tendo-se mesmo dirigido ao treinador de forma insultuosa perante os outros colegas. Deverá o treinador colocá-lo a jogar para ter uma equipa mais forte?

6 – No ténis, em que condições o jogador que ganha o maior número de jogos pode ser o derrotado?

7 – A que altura se encontra o aro de um cesto de basquetebol? E quem a determinou?

8 – Na natação, nos J. O., quantas piscinas faz um nadador na prova de 150 metros livres?

9 – No futebol, a marca de grande penalidade situa-se a 11 ou a 11,5 metros da linha de golo?

10 – Qual o diâmetro da trave e dos postes de uma baliza de futebol?

11 – Qual o clube de futebol que possui no seu emblema uma raquete de ténis?

Sim, o leitor também poderá tentar… atreva-se![160]


55. O vil metal dita a mudança!

08.01.2022

 

Num livro com quase quarenta anos, de autoria de Lawrence Sanders[161], estabelece-se um paralelo entre um cientista e um detective de homicídios.

E para isso faz uma analogia com um homem confrontado com um animal selvagem numa floresta e um cientista num laboratório. Na floresta, um animal selvagem prepara-se para se atirar sobre o homem ameaçando-o de presas arreganhadas e garras prontas. No laboratório, o cientista tem o animal, anestesiado, à sua mercê.

No seu laboratório, o cientista preocupa-se em classificar a fera: família, género, espécie; a sua aparência externa - a sua morfologia –, a sua constituição anatómica e a sua fisiologia; o seu habitat natural, os seus hábitos de alimentação, acasalamento e reprodução. Eventualmente de que anteriores formas animais evoluíra.

Para o homem que se encontra na floresta, ameaçado, tudo isto seria extrínseco, sem significado algum. Tudo quanto ele conheceria seria o medo, o perigo, a ameaça, e a sua preocupação estaria focada na sua sobrevivência.

O detective de homicídios era o homem da floresta. O criminologista, o psicólogo ou o sociólogo era o homem do laboratório. O homem do laboratório interessava-se por causas. O homem da arena interessava-se por factos, pelas provas que conseguiria descobrir e pelos acontecimentos que poderia provar.

Hoje em dia já não é exactamente assim. Diluiu-se a fronteira entre o detective e o criminologista e aquele tornou-se também cientista. E o homem do laboratório, para além da investigação, tem de recorrer aos factos, à pesquisa, ao cruzamento de dados… tem de comprovar hipóteses, tem de inferir soluções.

No desporto também temos de recorrer a factos, a acontecimentos, a fim de testar hipóteses e apresentar conclusões. A análise de um acontecimento terá de ter um suporte, um fundamento, terá de se apoiar em parâmetros de análise e retornar de novo ao acontecimento a fim de chegar a conclusões, estabelecer padrões de conduta ou até analisar e descodificar representações sociais.

No início do presente ano, António Simões – o jornalista, não o ex-futebolista – trouxe-nos em «A Bola» a história de Francisco Ferreira, o primeiro futebolista português a chegar às vinte e cinco internacionalizações.

A 3 de Maio de 1949, o Torino perdeu frente ao Benfica por 4-3, no Estádio do Jamor, no jogo particular de despedida do então capitão da equipa portuguesa, Francisco Ferreira. No regresso da equipa italiana a casa, a catástrofe, a tragédia: o avião embate na Basílica de Superga… vitimando os trinta e um ocupantes, dos quais dezoito jogadores e seis dirigentes do Torino. A federação italiana decidiu atribuir o título ao Torino, que na altura do acidente liderava o campeonato italiano com quatro pontos de avanço sobre o Inter. Nas últimas quatro jornadas, o clube alinhou com a equipa júnior, e, segundo se conta, o mesmo fizeram os seus adversários (a ser verdade, este é um pormenor relevante comparado com o que acontece nos dias que correm).

E António Simões («A Bola», 02.01.2022) diz-nos que Francisco Ferreira “destroçado pela «desgraça», dos seus colhidos ganhos enviou 50 contos aos filhos dos «amigos que a morte levou».” Solidariedade desinteressada: na altura estes actos não faziam manchetes nos jornais, não eram visíveis na TV nem se tornavam virais nas redes sociais!

Virgílio Mendes, antigo futebolista do Porto que terminou a carreira em 1962, falecido em 2009, despertou o interesse do Celta de Vigo em 1951, que lhe ofereceu 15 mil pesetas de salário por mês (uma fortuna nessa época) e um prémio de assinatura de 500 mil pesetas. Recusou a oferta, constando-se que teria dito mais tarde que “trocar de camisola apenas por causa do dinheiro, se não era violentar o coração e o clube, era pelo menos aceitar viver como um mercenário[162]. Era o ethos do amor à camisola…

Em Junho de 2011, David Beckham, que integrou o comité de candidatura inglês ao Campeonato do Mundo de 2022, criticou abertamente a FIFA quando foram conhecidas as primeiras suspeitas de corrupção na atribuição deste ao Qatar. Uma década depois Beckham cede a sua imagem a esta prova, tornando-se embaixador do Campeonato, contra a quantia de 177 milhões de euros («The Guardian», 31.10.2021). Beckham, o qual teve (e nalguns casos ainda tem) contratos com  marcas como a Adidas, a Pepsi, o whisky Haig Club, a Emporio Armani e a Gillette. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…

Para se entender o fenómeno desportivo, para se perceberem as manchetes nos jornais, as notícias na TV e a viralidade nas redes sociais, para se saber porque se perdeu o ethos do amor à camisola e para entendermos a mudança dos tempos e das vontades, não basta conhecer o homem do laboratório e o homem da floresta, o seu trabalho, o seu sentir ou o seu modo de agir.

O fenómeno desportivo e todo o seu peso na sociedade só poderá ser entendido se entendermos que o vil metal dita a mudança…

Ao longo da história as entidades empregadoras sempre apostaram em pagar o salário o mais baixo possível aos seus empregados. Isto fazia com que os trabalhadores não tivessem capacidade para adquirirem toda a produção. Havia excedentes… havia prejuízos… Inventaram-se então os bancos e o crédito ao consumo. Inventou-se a publicidade. O endividamento resolveu a situação! O fenómeno desportivo não foge a esta dinâmica: chama-se a isto capitalismo. Lawrence Sanders dizia que “existe um buraco do caraças entre saber e provar”…

A teoria de que o desporto é o reflexo da sociedade já não tem suporte, porque o que acontece actualmente é exactamente o contrário. É o desporto que molda e gere a sociedade. Esta regula-se à sua imagem. Prova disso está no artigo de José Manuel Meirim intitulado “Um apagão” («Público», 07.01.2022) quando, abordando a aprovação da nova lei antidopagem no desporto, constata o seguinte: “Aí afirma-se sem pudor que a responsabilidade do praticante desportivo é objectiva, não dependendo a responsabilidade pela violação de norma antidopagem da prova da intenção, culpa, negligência, ou da utilização consciente de substâncias ou métodos proibidos por parte do praticante desportivo. Ora, tal proposição encontra-se em flagrante contradição com um princípio fundamental do direito sancionatório português, com suporte constitucional: o princípio da culpa. Neste caso a ordem jurídica nacional não se apaga, sofre um apagão em nome do combate à dopagem.”

Lawrence Sanders diria que “político era fazer as coisas certas pelas razões erradas, e as coisas erradas pelas razões certas”.

 

56. E o prémio vai para…

25.01.2022

 

No distante ano de 1930 a FIFA organizou o primeiro Campeonato Mundial de futebol, no Uruguai. José Nasazzi entrou para a história, embora hoje em dia seja um desconhecido (exceptuando historiadores e pesquisadores), ficando para a posteridade como o melhor jogador deste Mundial.

O primeiro Campeonato Mundial de Futsal da FIFA desenrolou-se em 1989, na então Holanda,  e logo foram instituídos os prémios «bola de ouro» (Victor Hermans) e «chuteira de ouro» (László Zsadányi). Em 2008 aparece o Prémio FIFA Luva de Ouro para o melhor guarda-redes da prova…

A partir de 2005 a FIFA passa a organizar o Campeonato do Mundo de Futebol de Praia. Também aqui se realça o melhor jogador da prova, tendo nesse ano a escolha recaído no português Madjer.

Em 2009 é instituído o Prémio FIFA Ferenc Puskás destinado a galardoar anualmente o melhor – ou o mais espectacular – golo do ano…  

Actualmente os prémios denominados «Bola de Ouro» e «FIFA The Best» são os mais conhecidos no mundo do futebol… Quer sejam atribuídos por jornalistas ou por treinadores e capitães de equipa, sendo certo que os critérios para eleição destes jogadores nunca são divulgados.

A atribuição de todos estes prémios assenta em premissas subjectivas, já que não é possível apresentar dados quantitativos para sustentar os mesmos. Logo, encontram-se longe de constituir consensos, não só entre os elementos que votam, como também entre os votados e o público. Nas semanas seguintes às suas atribuições, a comunicação social possui assunto para dar razão ao “the show must go on”! As pessoas também! Segundo Marc Perelman[163]o desporto gera um sistema de informação único: o que importa não é o que a imprensa, a rádio ou a televisão dizem sobre o desporto; a mensagem do desporto é o desporto. A ideologia desportiva espalha-se pelo seu próprio canal, sem encontrar a menor resistência.”

O acto de premiar no desporto possui as suas próprias correspondentes na sociedade: desde o prémio em que se liga para um número que passa no rodapé da TV ao Prémio Nobel nas diversas categorias, desde os quadros de mérito nas escolas aos títulos de doutoramento ‘honoris causa’, desde os Óscares aos Emmys… e temos ainda, nos anúncios televisivos, o «eleito o carro do ano» ou o azeite ou a cerveja «premiados com a medalha de ouro».

Serge Lebovici[164], psiquiatra e psicanalista francês defendia que, pedagogicamente, a recompensa é, tanto como o castigo, uma sanção. O prémio de uns dita a sanção de outros, assim como a vitória de uns dita a derrota de outros. É a base da meritocracia. E, nos dizeres de Daniel Markovits[165], a meritocracia cria elites (repare-se no vértice da pirâmide desportiva) e bloqueia a igualdade (atente-se na base da mesma).

Qualquer recorde, qualquer título, qualquer ranking desportivo revela uma existência finita, ou por se ter esgotado no tempo (há campeonatos nacionais todos os anos, europeus de dois em dois anos, e campeonatos mundiais e J. O. quadrienalmente) e se reproduzir (recomeço de uma nova competição), ou porque o recorde pode ser ultrapassado, o título conquistado por outro ou a hierarquia ou a classificação ser alterável. Como diz Jean-Marie Brohm[166]o sistema desportivo é uma imensa máquina de produzir o precário, o efémero, o transitório. Nada permanece definitivo nessa rotação acelerada de ciclos competitivos, "heróis", modas, modismos.”

O desporto pressupõe de início a existência de condições de igualdade (pressupõe porque essas condições são ilusórias) finalizando com uma hierarquização que não é mais do que um conjunto de condições de desigualdade. A intenção de cada desportista, ao desejar ser um vencedor, acaba por ser, por consequência, um produtor de derrotados, segundo Michel Caillat[167].

Com efeito, o desporto produz uma inegualdade de status, isto é, o princípio de toda a prática desportiva é com efeito discriminar os competidores através de uma classificação[168].

No corrente ano a FIFA chegou ao ponto de criar um prémio especial, atribuído a Cristiano Ronaldo por ser o jogador com maior número de golos por seleções nacionais, após ter ultrapassado Ali Daei que detinha há vários anos a marca de 109 golos – este sim, um prémio atribuído com parâmetros objectivos. Mas, mais um… e especial…

Qual a função de um prémio? Em relação a quem o recebe, tanto pode servir para o mesmo se sentir realizado (os humildes assim o encararão) como pode servir para alimentar o seu ‘ego’ ou aumentar o seu ‘status’.

O endeusamento de heróis é um fenómeno necessário ao desporto e à sociedade. São realçadas as características técnicas do desportista, as suas performances, as suas exibições, as suas vitórias e os seus recordes por uma questão económica e por uma questão de identificação. Os prémios a isso ajudam. E até o herói se endeusa a si próprio. Mostraram-no[169] não só Pelé (“Nunca haverá outro Pelé. Eu nasci para o futebol como Beethoven para a música e Miguel Ângelo para a pintura.”), Mike Tyson (“Sou uma celebridade!”), LeBron James (“Sou como um super-herói. Chamem-me Homem-Basquetebol.”) mas também Cristiano Ronaldo, (“Sou rico, bonito e um grande jogador.”) e ainda Usain Bolt (“Agora podem parar de falar. Sou uma lenda viva.”) – e todos eles receberam os mais variados prémios.

Em relação à entidade promotora o jogador é sempre «galardoado com o prémio», o “«prémio é concedido a», «atribuído a» ou ainda «conferido a». O jogador é «distinguido com» ou «consagrado como»… Nunca se enuncia a atribuição do prémio como se fosse algo conquistado, alcançado ou perseguido pelo jogador. Assim, a organização que atribui o prémio autopromove-se e publicita-se sempre em detrimento do jogador (não se atribui o prémio sem o respectivo retorno), pormenor ínfimo, mas de peso, que passa despercebido.

Vivemos numa sociedade de prémios. Prémios para insuflar egos, para entreter incautos e para promover beneméritos.

 

57. Está tudo na literatura!   

07.02.2022

 

As pessoas são felizes, conseguem o que querem

e nunca querem aquilo que não podem obter.

(Aldous  Huxley)

 

Está nos manuais que um programa de desenvolvimento estratégico terá de responder às perguntas «o quê?», «como?» e «porquê?», mas que também terá de contemplar o «por quem?», «onde?» e «quando?» para além do «para quem?» e «para quê?». Está nos manuais que uma declaração de intenções não é um programa, porque de boas intenções…

Que desporto teremos nos próximos quatro anos? Quando em relação ao enorme potencial da diáspora portuguesa se pretende “reforçar o apoio ao associativismo e aos projetos de educação, cultura, desporto, apoio social e combate à violência de género desenvolvidos nas comunidades” e quando se pretende “potenciar o contributo do desporto, concentrando a sua atuação em dois objetivos estratégicos principais: a) afirmar Portugal no contexto desportivo internacional e b) colocar o país no lote das quinze nações europeias com cidadãos fisicamente mais ativos, na próxima década” não estamos a passar de uma mera declaração de intenções. «Reforçar», «potenciar», «afirmar» e «colocar» são sintomas a prazo, logo, semântica colocada no capítulo dos objectivos… no âmbito do que se visa (sem se ter a certeza de) atingir…

São objectivos perfeitamente lícitos dentro de uma certa ortodoxia. No entanto George Orwell[170] afirmava que “a ortodoxia significa ausência de pensamento: ausência da necessidade de pensar.” E Ernest Hemingway[171] dizia-nos que “vira o mundo modificar-se tanto! Não apenas em acontecimentos, embora tivesse tomado parte em muitos deles e observado muito gente, mas também assistira a modificações mais subtis e recordava-se de como as pessoas eram diferentes, conforme as ocasiões.

Bons objectivos não salvam a imagem por causa da mulher de César... não lhe basta parecer, tem de ser! Não há ética que vingue sem uma estética em que se apoie e lhe dê guarida, tal como não há estética que não pertença à ética. Não há uma ideologia que singre sem a pragmática correspondente.

E por que motivo? Porque, como também nos diz Eduardo Lourenço[172], "pode discutir-se se a desordem em que estamos mergulhados – desde a económica até à da legalidade e da ética – releva ou não, em sentido próprio, do conceito de caos. Do que não há dúvidas é de que o habitamos como se fosse o próprio esplendor."

Por que pensar o futuro (só sonhos!) enquanto se descura o presente? Responde-nos o Director de Aldous Huxley[173]: “E é aí que está o segredo da felicidade e da virtude: gostar daquilo que se é obrigado a fazer.

E se é premente e salutar conhecermos esses objectivos, não é menos preocupante o facto de não conhecermos o «como»… pois primeiramente teremos de compreender esse «como»… até porque o Winston de Orwell dizia-nos “compreendo COMO; não compreendo PORQUÊ.” Do mesmo modo que o Rubachov de Arthur Kloester[174] primeiramente quis perguntar “porquê” mas decidiu perguntar “COMO?” para logo a seguir lançar a interrogação “PORQUÊ?”

E o «porquê» traz-nos a prerrogativa da validade e da fiabilidade daquilo que se pretende ou daquilo em que se aposta. E ao mesmo tempo não só a sua justificação mas também a sua razão de ser! “Se bastasse fazê-lo… depressa ficaria terminado! Se, ao dar esse golpe, se atalhassem as consequências e o êxito fosse seguro… lançar-me-ia de cabeça do alto do escolho da dúvida para o mar de uma existência nova![175].

Se atentarmos que para alcançar estes dois grandes objetivos atrás enunciados, a) e b), é necessário “elevar os níveis de atividade física e desportiva da população, promovendo o desporto escolar e os índices de bem-estar e saúde de todos os estratos etários; continuar a promover a excelência da prática desportiva (…); impulsionar programas de seleção (…); promover a articulação entre o sistema educativo e o movimento desportivo; promover a conciliação do sucesso académico e desportivo (…); criar instrumentos que garantam a atletas olímpicos e paralímpicos [certas regalias]; promover a cooperação entre autoridades, agentes desportivos e cidadãos, com vista a erradicar comportamentos e atitudes violentas, de racismo, xenofobia e intolerância em contextos de prática desportiva, do desporto de base ao desporto de alto rendimento”… muito trabalho haverá a fazer e muitos meios a mobilizar. Mas terá de haver capacidade e competência para isso! E atente-se que muitos são os «objectivos» (elevar, promover, impulsionar, criar) para alcançar esses dois «objectivos»!

Sempre a corrupção, a violência, o racismo e a xenofobia no desporto (poderemos acrescentar o doping), mas nunca a morbilidade perene, a exploração infantil (mesclada de treino intensivo precoce), o suicídio dos desportistas, a morte súbita, e muito menos o regime dos seguros dos desportistas, a regulação das carreiras duais, o regime fiscal de profissionais de desgaste rápido ou até o próprio Regime Jurídico das Federações Desportivas… E, recorrendo de novo ao Rubachov de Kloester, “ai dos loucos e dos estetas que só perguntam como, e não porquê.

E se se torna premente “continuar a reabilitação do parque desportivo, (…); promover a coesão social e a inclusão, incentivando a generalização de oportunidades de prática desportiva em condições de igualdade, garantindo a acessibilidade a espaços desportivos para pessoas com oportunidades reduzidas, pessoas com deficiência ou incapacidade e grupos de risco social; promover uma estratégia integrada de atração de organizações desportivas internacionais para a realização em Portugal de eventos de pequena e média dimensão (estágios, torneios, conferências) e de promoção de Portugal enquanto destino de Turismo Desportivo, otimizando os recursos existentes e capitalizando as condições privilegiadas do país; continuar o combate à dopagem, à manipulação de resultados ou qualquer outra forma de perverter a verdade desportiva”, «elevar», «impulsionar» e «promover» continuam no âmbito dos objectivos… enquanto o «continuar» pressupõe um passado que tende a projectar-se no futuro…

Hannah Arendt[176] traz-nos Tocqueville através de uma frase que nos faz reflectir: “Desde que o passado deixou de projectar a sua luz sobre o futuro, a mente humana vagueia nas trevas.” O passado tem servido sempre para ser visto como um conjunto de factos ou acontecimentos em que nos devemos basear a fim de que os erros então cometidos sejam corrigidos e não mais repetidos no presente ou no futuro. O passado tem servido sempre para nos aperfeiçoarmos, para evoluirmos. Mais do que projectar a sua luz, o passado tem sido sempre uma sombra que nos tem acompanhado, mas que progressivamente se tem dissipado... “Uns, o medo físico calava-os (…); outros esperavam salvar a cabeça; (…). Os melhores de entre eles mantinham-se calados (…). Estavam emaranhados no seu próprio passado, eram presa da teia que eles mesmo tinham tecido segundo as leis da sua própria ética tortuosa e da sua tortuosa lógica (…)” diz-nos Kloester[177].

Que desporto teremos nos próximos quatro anos? Um desporto em que deveria estar presente a voz do Beduno de João Aguiar[178]: “menos ardor e mais estratégia!”.

Está tudo na literatura, alguém disse! A Oeste nada de novo… e a Leste também não!!!

 

58. Continua a estar tudo na literatura!

12.02.2022

           

Comentava o Cully de Irwin Shaw[179] para o Storr, abanando a cabeça: “ – Há muitos miúdos com talento, mas são de um estofo diferente. Não trabalham, não treinam, não fazem sacrifícios. E, para ser franco, não os censuro. Que tenho eu para mostrar que vale a pena? As minhas pernas têm levado tanta porrada que preciso de vinte minutos para me levantar da cama, de manhã. Três operações aos joelhos. – Mexeu as pernas, debaixo da mesa, e ouviu-se um ruído semelhante ao de ossos a partirem-se. – Estás a ouvir? Às vezes olho para as medalhas e para as taças que tenho em casa, e depois olho para as cicatrizes dos joelhos e penso que trocaria de boa vontade. Devolveria as medalhas se levassem com elas as cicatrizes.

Qualquer comparação entre o descrito por Cully e o apresentado pelo tenista Juan Martín Del Potro no passado dia 5 de Fevereiro não será mera coincidência: “Venho a fazer demasiado esforço para seguir em frente e o joelho está a fazer-me viver um pesadelo. Há muitos anos que estou a tentar, muitas alternativas, tratamentos, médicos, maneiras diferentes de tentar resolver isto, mas não consegui.” Ao anunciar a sua retirada, Del Potro revelou ainda que o pior era que até parado sentia dores, dormindo com dores há dois anos e meio… E “perante a dor não há heróis, não há heróis, pensou ele [o Winston de George Orwell[180]] e tornou a pensar, enquanto se contorcia no chão, agarrando-se inutilmente ao braço esquerdo dorido.

No desporto é inculcado ao praticante desportivo a ideia de esforço, de sacrifício, a fim de se ultrapassar a si próprio. O «no pain no gain» – a pedagogia da dor – ainda se encontra muito presente no mesmo. Ser severo consigo próprio, apreciar quase um masoquismo para se ultrapassar é uma das formas de acondicionar o desportista e é uma das condições inerentes ao próprio desporto. Ou como diria a Meggie de Colleen McCullough[181], “a única coisa que podemos fazer é sofrer a dor e dizer intimamente que valeu a pena.

A lista dos marcados para o resto da vida pelo desporto é longa e não é de agora: Roger Riviére, Yelena Mukhina, Dennis Byrd, Pat Lafontaine, Patrik Sjoberg, Charles Barkley, Van Basten, Brian Laudrup, Vítor Martins, Eusébio, Mantorras, Roy Keane, Cris Pringle, Karen Forkel, Mark McGuire, Jan Zelezny, Sebastian Deisler, Maurice Greene, Yao Ming, Ticha Penicheiro, Na Li, Naide Gomes… entre muitos outros! A morbilidade perene continua a ter as suas vítimas…

Entretanto Gianni Infantino continua a sua cruzada para que a FIFA realize os Campeonatos Mundiais de futebol de dois em dois anos... Entretanto Infantino mudou-se com a família para o Catar – alegando a necessidade dessa mudança para estar mais próximo da organização desse Mundial… Entretanto o Presidente da FIFA continua a pagar os seus impostos na Suíça… Como nos diz Shusaku Endo[182] (4), “quando há chefes incompetentes no campo de batalha, o sangue dos guerreiros é desnecessariamente derramado.

A FIFA, com mais de duas centenas de federações filiadas, pretende tornar o negócio mais atraente e lucrativo em detrimento da saúde dos jogadores e da boa vontade dos consumidores do espectáculo – que já nem adeptos são de tal modo que se encontram subjugados pelos interesses económicos. E recorrendo de novo a Shusaku Endo[183] (5), estes, tal como os seus aldeões japoneses, “acreditaram demasiado tempo, os infelizes, que nasceram para viver resignados.”

Do outro lado do mundo a China leva a cabo os Jogos Olímpicos de Inverno… os primeiros Jogos a terem 100% de neve artificial (que impacto em termos ambientais?), em que há tolerância zero para os protestos (onde está a liberdade de expressão?), em que os espectadores nas bancadas são apenas os convidados pela organização (existe o livre acesso ao espectáculo?), desenrolando-se os mesmos mais sob o signo político e económico do que sobre qualquer desígnio desportivo. Segundo Graham Greene[184], “a desgraça, como a devoção, também pode converter-se em hábito.

Em 1952, em Helsínquia, a China negou-se a comparecer aos J. O., o que sistematicamente aconteceu até 1980, em protesto contra o reconhecimento pelo COI de Taiwan – era o confronto entre a China Popular e a China Nacionalista – e nos J. O. de 1956, em Melbourne, vários países organizam um boicote, entre os quais a Espanha, a Suíça e a Holanda, uns em protesto contra a invasão da Hungria pela União Soviética, outros por causa da crise no Suez e da guerra entre o Egipto e Israel. Se nos Jogos Olímpicos realizados na então URSS (1980, Moscovo) e nos organizados nos EUA (1984, Los Angeles) com os respectivos boicotes de ambos os lados os grandes prejudicados foram os atletas que, tendo-se preparado para ambos, em nenhum deles competiram, actualmente a situação de discórdia assume contornos mais requintados: o boicote passa a ser pura e simplesmente diplomático: Índia, EUA, Austrália, Canadá e Reino Unido não participaram na cerimónia de abertura dos J. O. de Inverno Beijing 2022 apesar dos seus competidores participarem nas devidas provas. Ernest Hemingway[185], ao descrever a Place Conterscape, também nos afirmava que pelas imediações daquela praça havia duas espécies de fauna: os bêbados e os desportistas. Os bêbados matavam a sua pobreza dessa maneira; os desportistas consumiam-na em exercícios.

Caricato (ou então hipocrisia pura) é a Rússia estar impedida de participar nestes J. O., mas 212 concorrentes russos participam debaixo da designação “ROC”, sigla de Russian Olympic Committee… Mário de Carvalho[186] dizia-nos que “se não existisse o exorcista, não existia a exorcização.

Continua a estar tudo na literatura! Por isso, não procurem saber por quem os sinos dobram, nas palavras de John Donne no já distante ano de 1624. Eles dobram por ti, eles dobram por vós! Eles dobram por nós!

 

59. Trova do vento que passa

28.02.2022

 

Pedimos por empréstimo a Adriano Correia de Oliveira o título para este artigo. Porque “Pergunto ao vento que passa / Notícias do meu país / E o vento cala a desgraça / O vento nada me diz.

Fevereiro de 2022 trouxe-nos a morte de um adepto do Palmeiras, no exterior do estádio deste clube, aquando da final do Mundial de Clubes entre este e o Chelsea, em São Paulo.

Fevereiro também nos trouxe a morte de um futebolista grego, de 21 anos, durante um jogo da 3ª divisão do futebol helénico, vítima de uma paragem cardíaca. Tal como nos trouxe, também na Grécia, a morte de um jovem adepto de apenas de 19 anos em confrontos ocorridos em Salónica…

Foi também em Fevereiro que, num jogo do escalão sub-21 entre o Grupo Desportivo Sobreirense e o União Mucifalense, da AF Lisboa, se verificaram comportamentos impensáveis no futebol nesta faixa etária: agressões violentas, enormes desacatos e 21 expulsões – sim, vinte e uma – no final da partida, talvez um reflexo do ocorrido entre os mais velhos no final do Porto-Sporting também neste Fevereiro. O que nos leva a uma interrogação: quais os resultados práticos da existência de um organismo denominado «Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violênia no Desporto» para além da campanha denominada «Violência Zero» lançada em de Abril de 2019?

Foi também neste mês que se realizaram os J. O. de Inverno em Pequim… uns jogos em que vimos uma patinadora russa com apenas 15 anos – a quem em Dezembro tinha sido detectado o uso de doping – falhar uma medalha de ouro à qual era a principal candidata e quedar-se num quarto lugar. Curiosas as competências pedagógicas que a sua treinadora evidenciou no final dessa prova, pois ao invés de tentar consolar ou apoiar a patinadora – Kamila Valieva – revelou um comportamento completamente reprovável. Ficou célebre o “Por que paraste de lutar? Explica-me. Porquê?” Pedagogicamente condenável! Sim, falamos de Eteri Tutberidze. Uma produtora de talentos através de treinos que, em certos casos, vão até às 12 horas. Uma fabricante de vencedoras de medalhas de ouro através de crianças com 15 ou 16 anos mas que descarta aos 18, 19, 20 e 21. Algumas que regressam a casa com lesões para toda a vida. Que o digam Julia Lipnitskaia, Evgenia Medvedeva, Elizabet Tursynbaeva, Darya Usacheva ou Polina Shuboderova. Quando o treinador se centra apenas nas preocupações inerentes aos seus próprios objectivos pessoais, quando esses objectivos se centram na apresentação de um curriculum e na obtenção de um status elevado, quando a valência dos factores pedagógicos é suprimida no alto rendimento em favor única e exclusivamente dos factores lógico-objectivos, o desporto deixa de ser desporto e passa a ser apenas arte circense. O espectáculo assim o exige! Tal como o negócio… “O capitalismo transformou os Jogos olímpicos em vastas operações comerciais e feiras-exposições turísticas. Os Jogos modernos são os Jogos da mercadoria triunfante, as divindades não se chamam mais Zeus e Hera, mas Adidas e Coca-Cola ou Philips e Toyota.” – diz-nos Jean-Marie Brohm[187]. Sacrifiquem-se os atletas, os competidores, os desportistas, mas haja lucro para as grandes marcas! E para o COI!

Fevereiro de 2022 trouxe-nos a UEFA a retirar a final da Liga dos Campeões da Rússia, a qual estava prevista para São Petersburgo. Tal como nos trouxe a FIA a cancelar o Grande Prémio da Rússia de Fórmula Um que se iria realizar em Sochi. E como nos trouxe, do mesmo modo, a FIJ a cancelar o Gram Slam de Judo agendado para Kazan. Este mês mostrou-nos também a UEFA a tentar uma rescisão unilateral do vínculo com a empresa de fornecimento de gás natural Gazprom e a Polónia a rejeitar defrontar a Rússia no playoff de qualificação para o Mundial de 2022, afirmando a Federação Polaca de Futebol que não vai participar no "jogo de aparências" proposto pela FIFA. Decisões tomadas por motivos políticos, por motivos bélicos…

Fevereiro de 2022 mostra-nos decididamente a natureza humana. Bastará reflectirmos nestes factos ocorridos e nos contextos em que os mesmos se situam. O que é bem exemplificado no diálogo seguinte, entre a autora de um projecto para um programa audiovisual e um produtor televisivo[188]:

Isso é tão… nojento.

– Não, sabes o que é, querida? Natureza humana.

Os olhos dela faiscavam.

– Parece-me mais baixeza e ganância.

– Exato. Foi o que eu disse. Natureza humana.

– Isso não é natureza humana! É lixo!

– Deixa-me dizer-te uma coisa. O ser humano é apenas mais um primata. Talvez mesmo o mais nojento e mais imbecil. Essa é a realidade. Eu sou realista. Eu não criei a merda do jardim zoológico. Simplesmente ganho a vida à custa dele. Sabes o que faço? Alimento os animais.

Bastará reflectirmos… porque o vento nada nos diz.

 

60. A falácia da neutralidade

17.03.2022

 

Se podemos considerar os J. O. de Berlim, em 1936, como a primeira grande exploração política do desporto, também teremos de considerar que foi nestes que os atletas foram talvez pela primeira vez politicamente usados. Para lá de Jesse Oewns e de Lutz Long entre outros, e como exemplo, citamos o caso do vencedor da maratona, o coreano Sohn Kee-chung, o qual teve de correr com as cores japonesas e com o nome Kitei Son dado o seu país se encontrar ocupado pelo Japão.

No México, nos J. O. de 1968, o americano Tommie Smith correu pela primeira vez os 200 metros em menos de 20 segundos. Em terceiro lugar ficou o seu compatriota John Carlos. Os três medalhados – em segundo lugar classificara-se o australiano Peter Norman – apresentaram-se no pódio com um crachá ao peito a favor dos direitos humanos. Ao iniciar-se o hino nacional, Smith e Carlos ergueram o punho fechado com uma luva preta, a saudação típica dos Black Panthers, em sinal de protesto contra as desigualdades nos direitos civis nos Estados Unidos. Smith e Carlos terão sido provavelmente os primeiros atletas a trazerem a política para o desporto.

Se o desporto é neutro ou não, ou se o deveria ser ou não, depende da perspectiva de cada um e dependerá principalmente da dimensão, do proveito, da conveniência e das necessidades de organizações, de dirigentes desportivos e de políticos. Há muito que, no desporto, um “sistema de agentes e de instituições começou a funcionar como um campo de concorrência onde se afrontam agentes com interesses específicos ligados à posição que nele ocupam”, como salienta Pierre Bourdieu[189] no seu texto intitulado “Como se pode ser desportista?”.

Os J. O. de Munique, em 1972, foram um marco na intromissão da política na competição desportiva – o boicote da grande maioria das nações africanas à participação da então Rodésia, o que motivou uma decisão repentina do COI: a expulsão da representação rodesiana do evento. Também os boicotes de ambos os lados nos Jogos Olímpicos realizados na então URSS (1980, Moscovo) e nos organizados nos EUA (1984, Los Angeles) nos mostram essa intromissão.

Quem foram os grandes prejudicados com esses boicotes? Sem dúvida os desportistas que se viram impedidos de participar em ambos os J. O., apesar de para eles se terem preparado. No entanto houve excepções por parte daqueles que conseguiram contornar a situação: como refere Olivier Villepreux[190] a sul-africana Zola Budd naturalizou-se britânica para escapar ao boicote do seu país em 1984 em troca de 280.000 dólares pagos pelo «Daily Mail» tendo as formalidades sido resolvidas em apenas dez dias...

No momento em que tanto o COI como a FIFA, a UEFA e as federações internacionais impedem os desportistas da Rússia e da Bielorrússia de participarem em diversas provas internacionais, coloca-se a questão de sabermos se esses impedimentos para além de éticos são lícitos. Que culpa têm os desportistas de terem nascido num país dirigido por este ou por aquele político e por estarem debaixo deste ou daquele regime? Os que escolheram como profissão o desporto dependem deste como do pão para a boca. No entanto nem a URSS foi impedida de disputar competições internacionais aquando da invasão da Hungria em 1956 ou da Checoslováquia em 1968, nem os EUA foram igualmente impedidos de participar em qualquer competição internacional aquando da invasão do Afeganistão em 2001 ou do Iraque em 2003.

No extremo oposto, temos os desportistas ucranianos impedidos de treinarem e competirem por força de terem tido a necessidade de pegar em armas para defenderem o seu território… Que culpa têm os desportistas de terem nascido num país colocado a ferro e fogo? E estes, se escolheram o desporto como profissão, também dependem deste como do pão para a boca…

Mas também temos desportistas autorizados a continuarem a competir sob a chamada «bandeira neutra», como por exemplo a tenista bielorussa Victoria Azarenka… tal como tivemos desportistas russos nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 em Pequim a competirem com a designação ROC (Russian Olympic Committe) e não em representação da Rússia! A Federação Internacional Automóvel (FIA) também permite que pilotos russos e bielorussos continuem a participar em provas de Fórmula Um desde que não usem as cores ou as bandeiras dos respectivos países – era o caso de Nikita Mazepin… entretanto colocado numa lista de sanções aplicadas pela União Europeia e, por isso mesmo, tendo a Haas rescindido o seu contrato.

Perante a actual situação, não mais poderemos reclamar uma neutralidade política do desporto sem cairmos numa hipocrisia mais do que declarada. Não enquanto negociantes de bens e de serviços desportivos, usando as palavras de Bourdieu, continuarem a influenciar e a exercer o seu domínio no desporto.

Uma actividade eminentemente associativa e que se pretendia veículo de valores e unificadora dos povos apresenta-se agora como um instrumento de desígnios que nada deveriam ter a ver com a mesma. Encontra-se contaminada pelo comércio e pela política!

Não falemos mais em valores ou em princípios morais e éticos no e do desporto enquanto os desportistas permanecerem a ser usados para o melhor ou para o pior – enquanto continuarem a ser explorados. Não enquanto os desportistas forem induzidos e tiverem sido preparados para descobrir satisfação no próprio esforço “e para aceitar – é esse o próprio sentido de toda a sua existência – gratificações diferidas em troca do seu sacrifício presente” como nos refere o mesmo Bourdieu. Não falemos mais em valores ou em princípios morais e éticos no e do desporto enquanto os donos do desporto, e recorremos de novo a este autor, “encontrarem nisso uma ocasião de impor os seus serviços políticos de incitamento e de enquadramento e de acumular ou alimentar um capital de notoriedade e de honorabilidade sempre susceptível de ser reconvertido em poder político”.

Os últimos tempos têm sido ricos e exemplificativos deste paradigma não só a nível internacional como também entre nós…

 

61. Desporto: os esqueletos no armário

10.04.2022

 

No passado dia 6 de Abril comemorou-se o Dia Internacional do Desporto ao Serviço do Desenvolvimento e da Paz. Uma data instituída pela ONU e determinada pela primeira edição dos Jogos Olímpicos da era moderna em 1896 e realizados em Atenas.

Uma comemoração mais do que necessária num tempo em que o desporto é, ele próprio, atingido pela guerra. Num tempo em que o desporto é usado como arma de arremesso para combater essa mesma guerra. Cabe-nos, a nós, reflectir sobre a eficácia destas comemorações e sobre as várias e diferentes campanhas de sensibilização que são lançadas utilizando o desporto como meio. Entre nós, e das últimas, recordamo-nos da campanha «Violência Zero», promovida pela Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (lançada a 17 de abril de 2019), assim como da campanha «Start to Talk» desenvolvida pelo IPDJ entre o final de 2018 e o final de 2020 para prevenir e responder ao abuso sexual de crianças e jovens no desporto. Cabe-nos, a nós, reflectir não só sobre a eficácia (resultado) destas comemorações mas também sobre a sua eficiência (processo). Ele é as «virtudes desportivas», ele é os «valores no desporto», ele é «as boas práticas no desporto», ele é a «ética no desporto»… e o que resulta de tudo isto? Já em 1985 Melo de Carvalho[191] nos dizia que “é evidente que estas campanhas não terão qualquer consequência prática, a não ser dar satisfação à «boa consciência» dos dirigentes políticos e calar as críticas mais acérrimas (…)”.

Mas regressemos à paz, à guerra e ao desporto. Num momento em que a FIFA, a UEFA, o COI e inúmeras federações internacionais retiram a Rússia e a Bielorrússia das competições internacionais, num momento em que os ministros do desporto da União Europeia e de outros 11 países - Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos, Islândia, Japão, Liechtenstein, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido e Suíça -, validaram todas as sanções aplicadas a desportistas, clubes ou seleções que representem a Rússia e Bielorrússia, o desporto foi colocado no mapa geostratégico da política internacional deixando de ser «uma guerra por meios pacíficos», excluindo-se a derrota como «morte simbólica» neste substituto do conflito armado entre países e passando a ser instrumento da própria guerra.

Se nos estatutos da FIFA, nos estatutos da UEFA e na Carta Olímpica se vislumbra um suporte jurídico que permita a aplicação destas sanções, não é menos certo que nos mesmos também são plasmados princípios de neutralidade. Mas esta neutralidade cai por terra com a aplicação dessas sanções. É excelente pensarmos a quatro dimensões mas de nada serve se agirmos apenas a três dimensões. O desporto neutro foi uma bandeira agitada ao vento por certos ideais e durante muito tempo mas nunca o foi na realidade. O mote já tinha sido dado há muito e socorremo-nos de novo de Melo de Carvalho quando nos dizia que era “absolutamente necessário liquidar essa velha visão tecnocrática do desporto que afirma que entre os dois (desporto e política) não há qualquer relação, pretendendo fazer daquele uma «ilha» de pureza (considerando que a política é sempre «suja»).” E foi reforçado uns anos mais tarde quando Gustavo Pires[192] falando de Gestão do Desporto nos dizia que o interesse das pessoas por estes processos ficava-se “a dever não só ao seu valor económico como também à sua dimensão política.” E rematava afirmando que neste domínio “a utilização do desporto como um dos instrumentos da política tem vindo a acentuar-se de uma forma cada vez mais acentuada, desde os anos sessenta.”

Nestes tempos conturbados propalaram-se inúmeros e diferentes clichés, banalizaram-se conceitos… O desporto é uma ferramenta que fortalece os laços sociais, promove o desenvolvimento sustentável, fomenta a solidariedade e o respeito… O desporto une e reúne, o desporto favorece e incrementa a aproximação e o bom relacionamento entre os povos… O desporto, para além da manutenção da paz, encontra-se imbuído de valores como o fair-play, a cooperação, a disciplina, a confiança mútua, a superação, o diálogo, a fraternidade… Instaladas num politicamente correcto, estas expressões vulgarizaram-se, revelando-se perigosas como artefactos de uma narrativa única, manipuladora.

Recorreu-se à trégua da guerra no Natal de 1914, na Bélgica, em que soldados alemães e britânicos abandonaram as trincheiras para se defrontarem num jogo de futebol, exemplificando-se assim como o futebol pode interromper uma guerra e gerar momentos de paz. Evocou-se o exemplo do «jogo da morte», entre os ucranianos do Start e os alemães do Flakelf em 1942, e em que, segundo se consta, ao intervalo, no balneário, os jogadores do Start de Kiev foram visitados por um oficial da Gestapo que lhes recomendou perderem o jogo sob pena de perderem a vida – certo é que a equipa ucraniana derrotou os alemães por 5 a 3, que oito jogadores foram detidos pelos nazis, e que um deles foi assassinado após interrogatório dos invasores e outros três foram executados num campo de concentração. Trouxe-se o facto de, em 2018, as duas Coreias competirem sob a mesma bandeira nos J. O. de Inverno (já o tinham feito em Sidney 2000, Atenas 2004 e Turim 2006) em hóquei no gelo…

No entanto ninguém se lembrou das duas partidas entre as selecções de futebol de El Salvador e Honduras, em 1969, e que foram o pontapé inicial para um conflito fora das quatro linhas. Foram quatro dias de batalhas até que a Organização dos Estados Americanos conseguisse negociar uma trégua. No campo desportivo, a guerra foi decidida numa terceira partida, em território neutro, que os salvadorenhos venceram por 3-2. Derrotada saiu a população anónima: entre salvadorenhos e hondurenhos, os números apontam para mais de dois mil mortos. Também se olvidou o encontro de futebol entre o Dínamo de Zagreb e o Estrela Vermelha de Belgrado em 1990 (117 polícias feridos, além de 39 adeptos do Estrela Vermelha e 37 do Dínamo) e que marcou o início dos combates pela independência da Croácia. E por que motivo não se trouxeram estes factos à colação? Porque o desporto também tem esqueletos no armário...

Caiu o pano e, definitivamente, temos de considerar o desporto como uma actividade não-neutral, não apolítica. Em 2004, um Catedrático em Ciências do Desporto, na área de Pedagogia do Desporto – Pedro Sarmento[193] – dizia-nos que o desporto “é um instrumento da política e é fácil constatar como tem sido usado por políticos, ao serviço de ideologias ou de regimes, que se revêem politicamente nos feitos desportivos, servindo estes como orientações individuais e institucionais”. Hoje em dia é o próprio Presidente do COP, José Manuel Constantino («Público», 05.03.2022), a dizer-nos que política e desporto “nunca deixaram de estar misturados. Toda a história do desporto está contaminada por aquilo que é o seu enquadramento político.

Há demasiadas campanhas de sensibilização contra a violência no desporto, a favor do fair-play no mesmo, sobra a ética no desporto, sobre a prevenção e o combate ao bullying no desporto… mas atente-se que a pedagogia é sempre ignorada. E por que motivos? Porque essas campanhas, elas próprias, encontram-se dentro do politicamente correcto, fazem parte do próprio sistema. Actualmente o desporto tem mais a ver com política e com economia do que com educação. Criou-se o mito da formação moral pelo desporto ou da construção do carácter através do mesmo... Pois vivamos com ele e vamos cantando e rindo!

E terminamos com as palavras de Antonino Pereira e de Rui Proença Garcia[194]: “Qualquer desvio axiológico é percebido e combatido mais rapidamente no desporto do que em qualquer outra área da vida humana. Tal ocorre porque o desporto é observado como um oásis no deserto axiológico da sociedade. Nesta atividade não há lugar para a neutralidade axiológica. É a lei do tudo-ou-nada. Não há lugar neste agir para o mais ou menos. A ética é um absoluto ou, por outras palavras, um imperativo categórico.” Saibamos interpretá-las!

 

62. Da instrumentalização do desporto

02.05.2022

Não há desporto apolítico.

Ernst Bloch (1885-1977)

 

Existem os defensores da neutralidade política do desporto – que olhando para leis e regulamentos neles vêem plasmado que a política não se imiscui no desporto – e existem aqueles que, sendo mais pragmáticos, defendem que o desporto para além de depender da política se encontra refém desta.

Há aqueles que olhando para a história encaram os boicotes aos J. O. (1980, Moscovo e 1984, Los Angeles) como perfeitamente legítimos segundo a conjuntura política de então e que os próprios se obrigaram a cumprir… e que olhando para as actuais proibições ou sanções desportivas aplicadas aos desportistas da Rússia e da Bielorrússia (e repare-se que não referimos como proibições ou sanções aos respectivos países) pelas várias Federações Internacionais (FIFA E UEFA incluídas), COI e Comités Olímpicos Nacionais também as caucionam considerando-as lícitas, tendo em conta o actual contexto geopolítico e considerando que as mesmas são um alerta e uma forma de sensibilização internacional para causas sócio-políticas ou eventualmente para a resolução de conflitos bélicos sob a forma de pressão.

Em ambos os casos o desporto e os desportistas – os competidores – foram o instrumento da contestação, embora as duas situações não se comparem nem em natureza nem em grau. Transformou-se o desporto, com o consequente prejuízo dos desportistas, em arma de arremesso pedindo ao mesmo para solucionar questões cujas causas lhe são, ou eram, completamente alheias. Traduzindo, instrumentalizou-se o desporto através do boicote para realçar certas situações de confronto político dando mais visibilidade às mesmas e instrumentalizou-se o desporto usando-o na forma de sanção proibindo a participação de desportistas à espera que isso algo venha a resolver.

A intromissão da política no desporto (e não nos esqueçamos que o desporto é proveniente do livre associativismo) sempre se verificou a três níveis: um nível macro, que se reflecte na legislação oficial que abarca o mesmo; a um nível meso, na regulamentação proveniente das próprias instâncias que regulam o desporto (federações internacionais, nacionais, associações, clubes e até sindicatos de jogadores) – “o desporto é talvez uma das actividades humanas mais regulamentadas e sujeita a um maior número de leis, embora o Direito não tenha muitos amigos no desporto”, na opinião de José Manuel Meirim”[195]; e por último a um nível micro, como forma visível de manifestação por parte de desportistas e por parte do próprio público durante os variados eventos desportivos. Neste momento poderemos dizer que a política se intrometeu no desporto a um outro nível: o nível da instrumentalização do mesmo.

Houve os que concordaram com o boicote aos J. O. de Moscovo e houve os que concordaram com o boicote aos J. O. de Los Angeles… há os que concordam com as sanções aplicadas aos competidores da Rússia e da Bielorrússia e todavia também há os que discordam…

Fomos lestos a caucionar as sanções e proibições actualmente em vigor…

Em Fevereiro de 2022 a selecção ucraniana de esgrima desistiu da Taça do Mundo, no Cairo, para não defrontar a sua congénere russa. Uma opção dos próprios esgrimistas no momento em que se encontravam frente a frente com o adversário… o público presente foi lesto a aplaudir este comportamento (e até alguns dos rivais o saudaram) tal como nós próprios o fomos. No mês seguinte o presidente da federação sueca de basquetebol anunciou o afastamento do jogador Jonas Jerebko da selecção nacional da Suécia após este ter assinado, e por isso, um contrato com o clube russo CSKA Moscovo… e mais uma vez fomos lestos a aplaudir esta decisão… Repare-se na diferença entre as duas situações dada a circunstância (bélica) ser a mesma: a primeira é uma situação auto-imposta pelos próprios desportistas, a segunda é uma situação imposta por um órgão do poder.

No entanto fomos lestos a condenar o comportamento do judoca egípcio Islam El Shehaby, quando se recusou a cumprimentar o adversário Or Sasson, de nacionalidade israelita, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, tal como fomos lestos a condenar o argelino Fethi Nourine quando abdicou dos J. O. de Tóquio para não defrontar o israelita Tohar Butbul, também na mesma modalidade.

Verificamos assim que nós próprios possuímos uma dualidade de critérios. E quem possui uma dualidade de critérios não pode, em verdade, julgar. Quem julga, por definição, tem de ser isento – mesmo não sendo, entretanto, neutro.

É sempre mais fácil, mais bonito e mais apelativo (e talvez mais lucrativo) agitar-se a bandeira do “o desporto constitui um instrumento de paz nas mãos da humanidade”, conforme fez Viviane Reding quando no final do século passado foi nomeada para a Comissão Europeia, sendo encarregada da educação, cultura, juventude, media e desporto. No entanto, como nos diz Stefano Pivato[196], “o desporto não é somente um «jogo», mas um cenário onde se entrelaçam relações internacionais, interesses comerciais e relações políticas, e sobre o qual se apresentam os maiores perigos” – perigos do ponto de vista político e económico mas também perigos na óptica da manipulação de opiniões e da criação de crenças, acrescentaríamos nós.

A instrumentalização política do desporto foi definitivamente mais que confirmada quando o Comité Nacional Olímpico e Desportivo da França – o organizador dos próximos J. O. em 2024 – acabou por apelar ao público francês [197] que votasse em Emmanuel Macron na segunda volta das eleições presidenciais francesas…

Encerremos o assunto e deixemo-nos de ilusões: já não restam dúvidas que se instrumentalizou politicamente o desporto e que o mesmo acabou por se transformar num terreno de lutas políticas!

 

63. Da pedagogia – ou da falta dela

27.05.2022

 

Na Grécia Clássica, o escravo que conduzia a criança até à palestra era denominado de pedagogo. Era aquele que a acompanhava e aproveitava o caminho para a ir educando…

Genericamente, a pedagogia é definida como a ciência que tem por objecto o estudo da educação. Ela fornece-nos os métodos e os meios para atingirmos resultados que beneficiem e valorizem o ser humano, tanto individual como colectivamente.

A pedagogia aplicada ao desporto resulta num campo do conhecimento que investiga a prática educativa pela atividade desportiva. A abordagem pedagógica do desporto releva questões não só de educação, mas também de formação e desenvolvimento. Falamos então de «pedagogia do desporto».

Mas mais importante do que abordarmos a pedagogia do desporto seria abordarmos a pedagogia no desporto. Porque para além de métodos e procedimentos, a pedagogia no desporto é acima de tudo uma ética pedagógica.

No momento em que o desporto é atravessado todos os dias por factos que nos mostram violência, xenofobia, fraude, corrupção e muitos outros comportamentos desviantes e disruptivos, mais do que nos preocuparmos com as causas deveríamos preocupar-nos com as consequências. Mais do que andarmos preocupados com a sensibilização, deveríamos andar preocupados com a formação. Com a formação integral do ser humano… Mais do que recorrermos à ética, ao cartão branco ou ao cartão do adepto (já em desuso), a mais legislação e a mais sanções, deveríamos recorrer à pedagogia.

Sabemos e conhecemos da fragilidade e da imperfeição do ser humano. Sabemos e conhecemos da incompletude da democracia. Sabemos e conhecemos como o sistema económico submete, aprisiona, tritura e elimina.

O próprio desporto – a actividade em si – colocou-se a jeito (ou foi colocado a jeito, talvez com intenções mercantilistas já na sua génese) e não esqueçamos que é uma actividade criada, desenvolvida e gerida pelo ser humano. Para além de muitas modalidades desportivas serem originárias das chamadas «artes da guerra» (salto com vara, lançamento do dardo, tiro com arco, judo, esgrima, tiro olímpico) o desporto assumiu um vocabulário castrense (ataque, defesa, tiro, lançamento, simulação, estratégia, contra-ataque). Os próprios J. O. da era moderna, que desde o seu início representaram o confronto entre as várias nações, adoptaram muitos dos elementos simbólicos da guerra (os desfiles com as bandeiras nacionais, as equipas uniformizadas, a atribuição de medalhas, a entoação dos hinos nacionais).

Dever-se-ia pedir aos jogadores que jogassem demonstrando pedagogia. Aos treinadores que fossem pedagogos. Aos árbitros que julgassem pedagogicamente. Aos dirigentes que executassem a sua gestão com uma base pedagógica. Aos políticos que actuassem dando exemplo de pedagogia. Tal desiderato não nos é no entanto possível dada a nossa imperfeição. Pior ainda quando não estamos preocupados com a verticalidade da nossa coluna vertebral. Recorremos muito ao chavão «é preciso mudar mentalidades», sim, mas sempre a dos outros, nunca a nossa. Esquecemo-nos amiúde que não é a doença que temos de tratar. É o doente que tem de ser tratado!

Portugal não vai ter nenhum árbitro no Mundial de futebol no Catar. Tendo sido escolhidos 36 árbitros, 69 árbitros assistentes e 24 para operarem o VAR, Pierluigi Collina, presidente do Comité de Árbitros da FIFA declarou que o critério utilizado foi o da qualidade. Informa-nos Duarte Gomes, através da sua página pessoal do Facebook (21.05.2022), que um dos árbitros assistentes seleccionado foi Tevita Makasini, do Tonga (arquipélago nos arredores da Polinésia), que, no entanto, nesta época não fez um único jogo no campeonato local. Triste pedagogia esta!

Disse o Presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol: “Ficamos tristes por não termos nenhum representante no Mundial”. Antes pelo contrário, deveríamos estar contentes, alegres por não termos ninguém num Mundial de futebol que vai ser realizado num país em que se questionam os direitos humanos, entre eles o da igualdade de género, mas para o qual foram escolhidas três senhoras – pela primeira vez – para arbitrarem no mesmo. Escolha pela qualidade, pela competência, ou por motivos políticos? Deveríamos estar felizes por os nossos árbitros não fazerem parte de um quadro de uma organização quando a Human Rights Watch exige que a FIFA indemnize (consta-se que são 418 milhões de euros) as famílias dos cerca de mais de seis milhares e meio de trabalhadores mortos na construção dos estádios e respectivas infraestruturas. Por aqui se vê por onde anda a pedagogia…

Exemplos flagrantes também a decisão do TIC do Porto de levar a julgamento dois empresários de futebol e um funcionário de um clube acusados do crime de corrupção por, alegadamente, tentarem favorecer esse clube não só nos resultados dos jogos de futebol mas também nos de andebol, assim como a irradiação de um árbitro português de ténis por manipulação de pontuações introduzidas num evento em 2020 e que facilitou ganhos a vários apostadores.

Entretanto a Federação Portuguesa de Futebol recebeu 400 mil euros da União Europeia para financiar o programa ‘Sport Against Match-Fixing’ a fim de combater a viciação de resultados… Segundo a sua pedagogia, e de acordo com a nota divulgada no site da FPF, o projecto pretende “sensibilizar atletas da formação de várias modalidades desportivas para os perigos do ‘match-fixing’ e o impacto negativo que a associação a este fenómeno tem nas suas carreiras”. Mais uma campanha de sensibilização? E será a entidade que gere o futebol que se irá dedicar a outras modalidades desportivas?

Vivemos numa sociedade em que o superficialismo e o facilitismo são pedra de toque para muitas realizações. Com a consequente projecção mediática. Vivemos numa sociedade em que uns pedem mais armas, alguns mais sanções e outros pedem mais financiamento. Mas, tal como nos perguntava Jorge Valdano («A Bola», 21.05.2022), “por que razão nos custa tanto reconhecer a honra e a ética?”. Questão que poderemos reformular com um pequeno acrescento: por que razão nos custa tanto reconhecer a honra, a ética, a moral e a pedagogia? Porque se a ética é prescritiva e a moral normativa, é a pedagogia que é actuante!

Exemplo pedagógico foi o protagonizado por Steve Kerr, treinador dos Warriors na NBA e adjunto da selecção norte-americana, na conferência de imprensa que antecedeu o jogo com os Mavericks. “Hoje não vou falar de basquetebol. Não quero responder a perguntas sobre basquetebol, o basquetebol hoje não interessa.” Referia-se ao massacre em Uvalde, no Texas, em que foram assassinadas dezanove crianças e duas professoras. “Quando vamos fazer alguma coisa? Isto é patético. Estou cansado dos minutos de silêncio. Basta!

 

64. Imagens do desporto

24.06.2022

 

1

No final dos anos 90, quando o FC do Porto foi a San Ciro defrontar o AC  Milan para a Liga dos Campeões, Jorge Costa pisou a mão de George Weah quando este se encontrava no chão, num lance dividido entre ambos. No jogo da segunda volta, o AC Milan foi às Antas empatar por uma bola. No final do encontro, já nos balneários, Weah, que ainda tinha a mão engessada, deu uma forte cabeçada a Jorge Costa deixando-o coberto de sangue. Curioso, ou talvez não, o facto de na época anterior, em 1996, ter sido Weah o jogador a receber o prémio «FIFA fair-play»... George Weah, eleito em 2017, é actualmente o Presidente da República da Libéria…

2

José Luis Chilavert guarda-redes da selecção de futebol do Paraguai desde 1989 até 2003, em tempos disse:O que opinem sobre mim pouco me importa. No papel de ‘mau da fita’, ganhei tudo. Dizem que não respeito os códigos do futebol?! Para mim não existem! O que existe são as leis da vida. Sendo como sou, cheguei onde cheguei.” Condenado num processo movido pelo presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, por calúnia e difamação, cumpre pena de um ano revertida em medidas alternativas. Neste momento anuncia que será candidato à Presidência da República do seu país em 2023…

3

Natela Dzalamidze, tenista, é a atual 44.ª classificada no ranking mundial de pares. Sendo de nacionalidade russa, e de acordo com as sanções impostas, não se poderia apresentar no torneio de Wimbledon. No entanto, a moscovita contornou a situação naturalizando-se pela Geórgia. Para além de Natela Dzalamidze, vários desportistas russos optaram por outras nacionalidades nos últimos meses. Foram os casos do ciclista Pavel Sivakov (França), assim como dos xadrezistas Evgeny Romanov  (Noruega) e Alina Kashlinskaya (Polónia) entre outros…

Entretanto o defesa Maciej Rybus foi excluído da selecção nacional de futebol da Polónia e vai falhar o Mundial por continuar a competir no campeonato russo: foi anunciado na semana passada que, após cinco temporadas ao serviço do Lokomotiv de Moscovo, seria reforço do Spartak de Moscovo para a próxima época desportiva.

Já em Fevereiro o presidente da federação sueca de basquetebol tinha anunciado o afastamento do jogador Jonas Jerebko da selecção nacional do seu país por este ter assinado contrato com o clube russo CSKA Moscovo…

4

Notícias que nos chegam do Japão dizem-nos que a All Japan Judo Federation decidiu cancelar um seu prestigiado torneio nacional para crianças com idades entre os 10 e os 12 anos. Yasuhiro Yamashita, presidente desta associação e também presidente do Comité Olímpico Japonês diz que a eliminação desta competição colocou em evidência "um problema que envolve a sociedade japonesa". E realça que "o judo é um desporto que enfatiza o sentimento de humanidade. Se só a vitória tem valor, se só o resultado conta, então a filosofia do judo está deformada". Casos de crianças forçadas a perder peso, levadas até ao limite nos treinos ou sujeitas a castigos corporais têm sido revelados. A existência de uma associação japonesa de vítimas do judo revela a contabilização de 121 mortes atribuídas à prática do desporto nas escolas entre 1983 e 2016…

5

A nadadora artística norte-americana Anita Álvarez foi resgatada do fundo da piscina pela treinadora, Andrea Fuentes, depois de desmaiar no final da sua prova a solo no Campeonato Mundial de Natação, em Budapeste, na Hungria. Ao ver que a jovem não vinha à tona, a treinadora espanhola saltou para a piscina. Só quando já estava a trazer a jovem para fora um nadador-salvador da organização foi ajudar a treinadora a tirar Álvarez da água. Andrea Fuentes, quatro vezes medalhada olímpica, declarou ter saltado para a piscina "porque os nadadores-salvadores não o faziam". Em comunicado, a FINA revelou que os salva-vidas contratados para trabalhar em campeonatos mundiais de natação só podem entrar em acção após autorização dos árbitros… e admite rever os regulamentos…

 

65. Pedagogia do e no desporto

20.07.2022

 

O judo português esteve presente no Grand Slam de Budapeste com a sua competidora mais medalhada de sempre: Telma Monteiro. Não lhe tendo corrido da melhor feição a prova – ficou-se por um 5º lugar – declarou no final da mesma: “O combate para o 3º lugar foi uma derrota pesada e é sempre desagradável terminar a prova assim”. Sem desculpas, sem auto-recriminações, sem auto-comiserações, ainda disse: “não estou satisfeita como o dia acabou”. Telma Monteiro não se veio vangloriar de ter alcançado um quinto lugar… Telma Monteiro não se mostrou eufórica ou esfusiante por ter conquistado um quinto lugar… Porque não se ganha um quinto lugar, antes se perde um terceiro. Perde-se uma medalha de bronze!

 

E se Roger Federer, após a final olímpica com Andy Murray no Rio de Janeiro, em 2016, ao sair derrotado afirmou “não perdi o ouro, ganhei a prata” há que analisar esta declaração à luz de questões relacionadas com poder, com status e com retribuições económicas. Federer subiu ao pódio… e numa sociedade onde a meritocracia continua a fazer escola, numa sociedade onde se medem os êxitos pelos ‘rankings’ ou pelos medalheiros, “como acontece em todas as éticas meritocráticas, a sua exaltada conceção de responsabilidade individual é gratificante desde que as coisas corram bem, mas desmoralizante, e mesmo punitiva, quando as coisas correm mal”, como nos diz Michael Sandel[198].

A diferença entre estes dois exemplos reside no facto de Telma Monteiro ter feito pedagogia. E fez pedagogia no desporto. Porque há uma diferença entre «pedagogia do desporto» e «pedagogia no desporto»…

Se a pedagogia do desporto nos dá o “como”, o “porquê”, o “quando”, o “onde”, o “a quem” e o “por quem”, como nos refere Gaston Mialaret[199], a pedagogia no desporto transporta-nos para comportamentos éticos e morais eivados de valores. Se a pedagogia do desporto assume um carácter exclusivamente científico, exercer a pedagogia no desporto é uma arte inerente ao indivíduo digno, responsável, decente, com coluna vertebral vertical. Maria Teresa Pimenta[200], quando nos fala do pedagogo que foi Sebastião da Gama (1924-1952), declara que “é importante que alguém nos venha lembrar que, para lá da utilização das técnicas, é a educação essencial que conta e que ela depende da concretização de uma certa maneira de pensar e realizar a vida”.

O realce dado aos aspectos lógico-objectivos no desporto de alto rendimento (ou alta competição) em detrimento dos factores pedagógico-didácticos (com uma maior valência nas etapas de iniciação e de formação) indicam-nos a utilização e a aplicação de métodos pedagógicos que vão sendo progressivamente abandonados ao longo da vida do desportista. A pedagogia do desporto tem um papel fundamental na construção do carácter e da personalidade do jovem desportista. Se bem aplicada torna-se uma ferramenta extremamente útil, se desbaratada poderá ser até um instrumento criador de contra-valores. No primeiro caso verificar-se-á em anos vindouros a existência de uma pedagogia no desporto, no segundo a sua ausência. A pedagogia no desporto não nos dá métodos nem meios, antes pelo contrário, é um comprovante da existência anterior de uma pedagogia do desporto bem praticada e alicerçada.

A pedagogia do desporto assume-se num eixo vertical entre o desportista e o treinador numa relação contratual e afectiva (relação pedagógica), enquanto a pedagogia no desporto, ou a falta dela, é transversal a todos os intervenientes no sistema desportivo e a todas as profissões que gravitam à volta deste.

Nada há de pedagógico em sancionar um jogador de futebol que já terminou a sua carreira. É o caso de Fábio Coentrão, que já se retirou dos relvados, alvo um processo disciplinar do Conselho de Disciplina da FPF em 2022/23 mas referente a um jogo da 1.ª Liga de 2020/21. Sanção extemporânea que só terá aplicação prática se o jogador decidir voltar às lides do futebol… Um mau exemplo de pedagogia no desporto.

Não existe pedagogia no desporto quando pouco antes do início da terceira etapa do segundo Grande Prémio Douro Internacional, um contra-relógio, oito ciclistas da W52-FC Porto recebem a notícia da sua suspensão por 120 dias. Oito ciclistas suspensos preventivamente na sequência de uma operação para detecção do uso de métodos proibidos e substâncias ilícitas em provas de ciclismo… Oito ciclistas que já tinham cumprido duas etapas…

Pedagogia no desporto fez Jonas Vinegaard, o camisola amarela no Tour de France, quando desvalorizou a pressão de envergar a mesma e declarou: “É o que é. Se ganhar, ganhei, se não, não posso fazer nada. Enquanto eu fizer o meu melhor…” Felizmente ainda existem pessoas que vão fazendo pedagogia no desporto!

 

66. Algumas interrogações

12.09.2022

 

1

Antes da Volta a Portugal em bicicleta o doping esteve na ordem do dia. Suspensão de oito ciclistas, detenção de um director e de um massagista...Em relação a este tema, "alguém acredita que um ciclista, para fazer 200 ou 300 quilómetros, sob sol, chuva, subindo, descendo, fazendo médias verdadeiramente impressionantes de 40 ou 50 quilómetros hora, não necessita de alguma coisa que o ajude a suportar todo esse esforço? Responda quem quiser, ou então que se submetam a esforços semelhantes e depois digam se têm de tomar ou não estimulantes..."

A pergunta foi feita por Joaquim Agostinho em 1982...

2

A tenista ucraniana Marta Kostyuk recusou-se a cumprimentar a adversária bielorrussa Victoria Azarenka no final do encontro entre ambas no US Open de ténis, por considerar que a antiga número um do mundo não tomou uma posição relativamente à guerra na Ucrânia. 

Os que condenaram o comportamento do judoca egípcio Islam El Shehaby, quando se recusou a cumprimentar o adversário israelita Or Sasson, nos J. O. do Rio de Janeiro, assim como os que condenaram o judoca argelino Fethi Nourine quando abdicou dos J. O. de Tóquio para não defrontar o israelita Tohar Butbul, também condenaram Marta Kostyuk?

3

Oito medalhas nos Europeus de 2022 parecem mostrar que a nível desportivo Portugal respira saúde… Mas só no atletismo foram 43 atletas para 2 medalhas (façam a conta: dá 0,047)… Pela primeira vez, Portugal apresentou-se sem um atleta que fosse para as maratonas. A questão que se coloca é: o que é feito do meio-fundo e do fundo português?

4

No norte do país disputou-se a 31ª edição do grande Prémio Jornal de Notícias–Leilosoc em ciclismo… Sem se consultar o Google, alguém saberá o que é, para que serve, ou o que quer dizer «Leilosoc»?

5

Foi preciso uma jornalista colocar a um treinador uma pergunta não relacionada com o jogo de futebol que tinha terminado para se descobrir que um artigo de um regulamento é inconstitucional. Foi preciso o Conselho de Disciplina da FPF instaurar um processo disciplinar a uma jornalista (porque os jornalistas são incluídos na condição de «agentes desportivos») para se descobrir que um artigo de um regulamento é inconstitucional. E se o artigo 91º do regulamento das competições organizadas pela Liga de Futebol Profissional é inconstitucional, isso não torna todo o regulamento inconstitucional? Ou chega decidir-se «desaplicar o artigo 91.º »?

6

O Conselho de Ministros aprovou uma verba de 31,2 milhões de Euros para Portugal preparar e estar presente nos J. O. de Paris 2024. Face a um aumento de cerca de 17,15% em relação a Tóquio, o aumento de medalhas será proporcional?

7

Por cá, Gabriel Silva, do Santa Clara, lançou a bola para fora de campo depois de esta ter acertado em cheio na cara de André Amaro, do Guimarães, para que este pudesse receber assistência de imediato. Por Espanha, no Cádiz – Barcelona, o guarda-redes do Cádiz, Ledesma, apercebeu-se que um espectador estava em dificuldades na bancada e, lesto, correu atravessando o campo para levar um desfibrilhador (que lhe foi facultado por um elemento do departamento médico do Barcelona) para que aquele pudesse ser assistido. Por cá uma criança foi obrigada a assistir a um encontro de futebol em tronco nu porque o clube não permite a utilização de adereços do clube visitante nas zonas das bancadas destinadas aos apoiantes da equipa da casa.

Quando teremos dirigentes (alguns) com posturas iguais às de (alguns) jogadores?

9

Beatriz Fernandes, campeã mundial de C1200 metros júnior (canoagem), 18 anos. Diogo Ribeiro, três medalhas de ouro no mundial júnior de natação e recorde do mundo nos 50 metros mariposa, 17 anos. Irão ter os apoios necessários e suficientes para se afirmarem na alta-roda dos seniores?

10

A 24 de Novembro de 2009, um jornalista desta casa, António Simões, na versão em papel de «A Bola», na página 39, trazia-nos a parábola da vaca:

"Profeta e discípulo em peregrinação perderam-se na negrura de uma montanha rude, descobriram cabana com gente pobre dentro. Deram-lhes o que tinham: o calor da fogueira, o leite que lhes sobrara do jantar, contaram-lhes que a vaca era o que os sustentava. Dormitaram, partiram. Era de madrugada, a vaca pastava à beira de um precipício – e o profeta ordenou ao discípulo, desconcertando-o:

– Atira-a para o penhasco!

– A vaca morre, a família fica sem alimento, balbuciou.

O profeta insistiu, o discípulo cumpriu a ordem em angústia. Várias vezes, culpando-se, lamentou-se, chorou...

Algum tempo depois, voltaram à montanha. Já não era a cabana miserável, havia plantações em redor, animais pastando. Ao jantar, não lhes deram leite, serviram-lhes carnes, frutas, vinhos, licores, tudo da quinta grande, deles. Dormitaram, partiram. E o profeta soltou em brado ao discípulo:

– Se não empurrasses a vaca para o penhasco, continuavam a alimentar-se apenas de leite, não tinham mudado de vida..."

 

Haverá por aí alguma vaca que seja necessário empurrarmos para o penhasco?

 

67. Uma feira em cima de um cemitério

14.11.2022

 

Se parece um pato, caminha como um pato e fala como um pato, cozinha-o.

Michael Palmer[201]

 

No dia 5 de setembro de 1972, em plenos Jogos Olímpicos de Munique, oito elementos palestinianos do grupo "Setembro Negro" invadiram e atacaram as instalações onde se encontrava acomodada a comitiva de Israel na aldeia olímpica. Com duas mortes de imediato, nove israelitas foram feitos reféns, tendo sido os jogos suspensos durante o dia. Às nove da noite, uma intervenção de resgate mal sucedida revelava o resultado: a morte dos nove reféns, de quatro árabes e de um polícia alemão. No dia seguinte os jogos foram reatados. Como teria dito na altura (já lá vão 50 anos!) o campeão olímpico de 1936, Jesse Owens, “montou-se uma feira em cima de um cemitério”!

Vem este episódio a propósito de uma nova feira montada em cima de um outro cemitério...

Há doze anos que o Qatar foi escolhido pela FIFA para organizar o Campeonato do Mundo de Futebol de 2022. Um país sem tradições no futebol, colocado em 50º lugar no ranking das selecções nacionais da FIFA (num Mundial com 32 países representados) e em que a mesma é uma manta de retalhos de jogadores naturalizados, nunca chegaria a um Mundial… a não ser que fosse o país organizador. Uma demonstração do poder do dinheiro!

Envolta a atribuição deste Mundial em acusações de corrupção desde o início – o New York Times chegou a citar uma testemunha que afirmou que o presidente da Federação Argentina de Futebol se queixou de não ter recebido os 80 milhões prometidos para votar a favor da candidatura deste país ao Mundial de 2022 («Público», 21.10.2022) –, o próprio Joseph Blatter admitiu que a escolha do Qatar como país organizador do Mundial 2022 “teve influências políticas directas”, acrescentando que Chefes de Governo europeus aconselharam os representantes dos seus países com direito de voto a pronunciarem-se a favor do Qatar, porque estavam ligados a esse país por interesses económicos importantes” («Público», 18.09.2013). Joseph Blatter que veio agora admitir que a escolha do Qatar foi um erro…

Presume-se que rondem os 220 mil milhões de dólares o custo da construção dos oito estádios (com sistemas de ar condicionado devido ao clima desértico do país, o que também impôs a realização do campeonato no Inverno e não, como é costume, no Verão) e de todas as infraestruturas necessárias envolventes. Mais uma vez, o poder do dinheiro…

 

Este é o campeonato que vai ficar conhecido pelo Mundial da hipocrisia. Ou pelo Mundial da vergonha. Ou pelo “campeonato que não deveria realizar-se[202].

Maurizio Sarri, treinador da Lázio, declarou o seguinte: “O Mundial no Qatar é um insulto ao futebol. Gostaria que alguém explicasse o que o Qatar pode trazer para o futebol, excluindo o dinheiro para o Manchester City e o Paris Saint-Germain” («A Bola», 12.11.2022).

Mas uma sociedade que não respeita os direitos humanos, em que a dignidade é retirada aos trabalhadores, em que só se pode consumir bebidas alcoólicas no recato da privacidade, em que manifestações de afecto não são permitidas em locais públicos, que discrimina negativamente as mulheres, em que os direitos dos homossexuais não são reconhecidos, em que fotografias só são permitidas com permissão e em que jornalistas não podem fazer livremente as suas reportagens acaba por ter os seus aliados no ocidente: a Dinamarca solicitou à FIFA autorização para treinar no Qatar, durante o Mundial 2022, com os jogadores envergando camisolas com o slogan «Direitos Humanos Para Todos». Resposta da FIFA: negada a pretensão! Por que terá sido? Talvez porque a FIFA preveja que vá arrecadar a quantia de 5,9 mil milhões de euros… De novo o poder do dinheiro!

O jornal britânico «The Guardian» revelou que mais de 6.500 migrantes do sul da Ásia morreram no Qatar na última década[203] no que tem sido secundado pela Amnistia Internacional… São mais do dobro dos mortos no atentado de 11 de Setembro. São 813 mortos por cada estádio. São 203 mortos por cada país participante. São 9 mortos por cada um dos jogadores seleccionados. Temos, de facto, uma nova feira montada em cima de um outro cemitério...

O que fazer? O que fazermos? Uns propõem um boicote ao Mundial (os adeptos do Bayern, do Dortmund e do Porto já se manifestaram publicamente). Outros propõem uma discussão sobre o assunto (Jorge Valdano, em «A Bola» de 29.10.2022, avança com uma televisão na sala de aula, argumentando que “trinta e duas selecções dão para falar muito de Geografia e de História: um Mundial no Qatar poderia abrir um debate interessante sobre direitos humanos…”). No mínimo, ignorarmos, não divulgarmos ou não condenarmos será sermos coniventes! Será irmos à feira sobre esse cemitério!

Jurgen Klopp, treinador do Liverpool, foi bastante lúcido quando declarou que “todos sabemos como aconteceu e todos deixámos acontecer” («O Jogo», 06.11.2022). Todos somos culpados, principalmente aqueles que vão suportar este mundial através da sua presença (estima-se que já se tenham vendido três milhões de bilhetes) e aqueles que vão publicitar a sua empresa ou o seu produto no mesmo patrocinando o evento ou as selecções nacionais. Principalmente os adeptos do espectáculo, os defensores da paixão.

O que nos faz lembrar o seguinte conto oriental:

“Um discípulo queria reduzir tudo ao entendimento. Só confiava na razão e estava preso na jaula da sua própria lógica asfixiante. Visitou um sábio e perguntou-lhe:

– Mestre, o que é que sustém o mundo?

E o mestre respondeu-lhe:

– Oito elefantes brancos.

– E quem suporta esses oito elefantes brancos? Inquiriu de novo o discípulo intrigado.

O mestre respondeu-lhe então:

– Outros oito elefantes brancos.”

 

68. O que faz o futebol pelos direitos humanos?

19.01.2023

 

Reflectir sobre um Mundial de futebol em que os oitavos de final renderam cerca de 16,4 milhões de Euros à Federação Portuguesa de Futebol e uma indeminização de 4,5 milhões de Euros a Fernando Santos será reflectir não só sobre economia mas também sobre política.

Mas para levarmos a cabo este exercício teremos de ter em conta aquilo que ele poderia ter sido – o possível – e aquilo que foi na realidade – o real. “(…) o possível é quase infinito, ao passo que o real possui fronteiras rigorosamente delimitadas. O real é sempre um possível único, eleito numa série de possíveis. Um caso particular do possível. Esta a razão por que o pensamento pode abordá-lo de várias maneiras. Ingressar no possível corresponde a modificar a nossa perspectiva do real.[204]

Tudo começou, apesar de todas as objecções que já foram apresentadas, com a atribuição do Mundial ao Qatar. No campo do possível, seria mais bonito (talvez até politicamente mais correcto) organizar o Mundial de futebol de 2022 nos Estados Unidos porque seria logo a seguir ao Mundial organizado na Rússia – tal como desejava Blatter, presidente da FIFA na altura. No campo do real, Platini, presidente da UEFA, foi chamado ao Eliseu (estávamos em 2010) e de lá saiu já com o voto pronto para o Qatar… porque o presidente Sarkozy necessitava de vender cerca de 14,6 mil milhões de Euros em caças Mirage ao Qatar (o que veio a acontecer algum tempo depois).

A partir daqui foi tudo aquilo que se sabe e já foi denunciado. A partir daqui tudo foi uma bola de neve até se chegar ao ponto – real – do Qatar seduzir 34 parlamentares britânicos e com eles ter gasto cerca de 300 mil Euros a fim dos mesmos promoverem uma imagem positiva deste país. De tal maneira real que dentro dos muitos possíveis, um veio à luz do dia: a Vice-Presidente do Parlamento Europeu, Eva Kaili, foi detida em flagrante delito em Bruxelas e acusada de branqueamento de capitais, corrupção e participação em organização criminosa (“o Qatar está entre os países líderes na defesa dos direitos dos trabalhadores” é uma frase sua!).

É facto assente que o futebol não sai da política, nem a política sai do futebol. Tal como a economia. A economia não sai do futebol nem o futebol sai da economia. Ou o negócio… diríamos nós!

De 20 de Novembro a 18 de dezembro estivemos hipnotizados, apesar de todo o anátema deste Mundial, por aquilo a que alguns autores franceses chamam o «ópio do povo» num duplo sentido, como refere Pierre Laguillaumie[205]: “por um lado, obscurantismo das faculdades críticas (evasão, fuga, êxtase); por outro lado, compensação, substituição e esquecimento das reais infelicidades”. Apesar de todos os atropelos do Qatar aos direitos humanos denunciados, o espectáculo e o consumismo levaram-nos a uma trégua tornando-nos cúmplices desses atropelos. A melhor confirmação vem precisamente de uma jogadora de futebol: Já que, infelizmente o país organizador não promove a normalização dos direitos humanos, o que é habitual do campeonato do Mundo, estejamos cá para desfrutar de um bom espectáculo de futebol”. Afirmação de Madalena Marau, defesa do Lank Vilaverdense («O Jogo», 27.11.2022).

No jogo entre Portugal e o Uruguai o italiano Mário Ferri invadiu o campo tendo na parte de trás da t-shirt escrita a frase «respeito pelas mulheres iranianas» e na parte da frente «salvem a Ucrânia», ao mesmo tempo que transportava na mão uma bandeira LGBTQIA+… O marroquino Jawad El Yamiq celebrou a passagem aos oitavos de final com a bandeira da Palestina dentro de campo… Nas bancadas múltiplas manifestações estiveram presentes… Uma adepta do Irão foi expulsa do Estádio Ahmed Ben Ali por ter homenageado Mahsa Amini apresentando a imagem desta numa t-shirt… 

Jogadores e adeptos do Irão permaneceram calados durante o seu hino no jogo contra a Inglaterra enquanto antes do pontapé de saída os jogadores ingleses colocaram um joelho no chão para assinalarem a importância de se respeitarem os direitos humanos… Jogadores alemães, antes de jogo com o Japão, protestaram contra a decisão da FIFA de impedir uso da braçadeira «One Love» deixando-se fotografar com a mão sobre a boca…

Como respondeu Portugal? Depois de altos dignatários terem estado presentes como forma de apoio aos nossos jogadores, só depois da eliminação da nossa selecção nacional o nosso Parlamento aprovou um projecto de resolução que propunha a condenação da realização do Mundial 2022 no Qatar… Só depois!

Como respondeu a FIFA? Alargando o Mundial de Clubes para 32 equipas e o Mundial de futebol em 2026 para 48 selecções nacionais sem ter em conta o desgaste dos jogadores ou os calendários nacionais.

Entretanto a Supertaça de Espanha vai para Riade, na Arábia Saudita, tal como a Supertaça de Itália. País em que entre 10 e 23 de novembro foram executadas 17 pessoas (das quais 4 sírias, 3 paquistanesas e 3 jordanas). País em que ao todo houve 144 execuções em 2022 de acordo com uma contagem da Agence France-Presse, mais do que o dobro de todo o ano anterior. E em Março do ano findo, num único dia, 81 pessoas acusadas de terrorismo foram executadas. Grandes competições saem dos seus próprios países para se realizarem num país que não respeita os direitos humanos… Motivos? O negócio!

Agora temos, também na Arábia Saudita, o encontro entre o Paris Saint-Germain e uma selecção do próprio país naquilo que se designa como o encontro entre Messi e Cristiano Ronaldo. É o poder do dinheiro!

Já em 1976 – ano em que Carlos Lopes venceu o Campeonato do Mundo de corta-mato e conquistou a medalha de prata nos J. O de Montreal –, Brohm[206] nos dizia que o desporto é “em todas as áreas, uma empresa florescente, um «big business» capitalista, que incentiva numerosos grupos financeiros, empresas industriais, entidades comerciais, públicas ou privadas, municípios, até países, a envolverem-se na organização de grandes eventos desportivos, torneios, competições e Jogos Olímpicos, cujas repercussões económicas são enormes.” Quase há cinquenta anos!

Talvez o título deste artigo não devesse ser o que o encima. Porque a questão é: o que fazem os dirigentes desportivos pelos direitos humanos?

 

69. Consciencializemo-nos!

01.03.2023

 

Quando Lev Tolstói iniciou o seu «Anna Karénina» –Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é-o à sua maneira” – de certeza que não estaria a pensar no desporto, mesmo que de uma forma metafórica se tratasse. Isto até porque em 1877 este se encontrava nos seus primórdios…

O desporto actual já não é o «deportatre» latino, porque a sua prática já nada tem de distracção ou de divertimento, e nele estão presentes todas as situações, desde as mais exemplares às mais ignóbeis, desde as portadoras de valores às detentoras das maiores perversidades. Nele, neste momento, a vitória e a acumulação de riqueza têm um mais do que importante papel – já não é tanto o «interessa participar»...  E sim, parafraseando Tolstói, todos os que se servem do desporto são parecidos; os que o servem são ignorados, relegados para segundo ou terceiro plano, mas felizes à sua maneira e consigo próprios.

Actualmente o desporto pós-moderno tem de ser encarado como uma actividade que possui valores intrínsecos ao ser humano mas também tem valores (preço) económicos. Tem de ser visto como uma actividade que não gera nem bens nem obras, e, mesmo criando postos de trabalho em inúmeras áreas, não cria riqueza, embora a movimente em determinados sentidos. Actualmente o desporto assenta em dois intervenientes: o praticante (desportista, competidor) e o consumidor (espectador). E não é só consumido pelo espectador em directo: passámos da época do relato radiofónico para a época da imagem e, na sociedade actual, como nos diz Manuel Sérgio[207], a educação desportiva chega às pessoas pelos media e pela internet, destituída de preocupações éticas, bem mais do que pela escola e pela família. Não há desporto sem competidor e sem espectáculo (o que implica a existência do espectador).

O desporto pós-moderno é essencialmente alta competição e profissionalismo, é fundamentalmente espectáculo, é movido pelos ‘media’ e pela publicidade, exige sensacionalismo e impõe heróis, é determinado pela ciência e pela tecnologia e nele tudo é quantificado (em termos de comprimentos, pesos, tempos, pontos, golos, recordes, bolas de ouro, cartões vermelhos e amarelos, número de jogos jogados, ‘performances’, etc.). Por último, e talvez mais importante, com mais peso, mas menos consciencializado, o desporto pós-moderno é gerido pela economia e pela política.

Robert Redeker[208] parte da hipótese de que “o desportista é um mutante submetido ao imperativo da comercialização” para chegar à conclusão que o desporto é um eugenismo despolitizado.

E mostra-nos[209], fazendo cair o mito de que o desporto é um reflexo da sociedade, como o desporto estrutura essa mesma sociedade, a modela, como a força para se parecer com ele. “O desporto é uma ideologia” afirma ainda, apresentado o desporto-espectáculo como um transfundir, dia após dia, do culto da performance, do amor pela lei do mais forte, do fanatismo da avaliação e da legitimação da fraude (não visto, não acontecido).

Quando nos dizem que não devemos esquecer ou ter dúvidas dos valores que a prática desportiva generalizada, mas sobretudo a competitiva, incute no desenvolvimento de seres humanos como motivação para enfrentarem quaisquer desafios que a vida lhes apresente e da relevância que tem em termos de saúde em geral, com os hábitos saudáveis que garante a todos os seus praticantes, e saúde mental, devendo ser o principal aliado na sua preservação” (Carlos Paula Cardoso, Presidente da Confederação do Desporto de Portugal, em «A Bola», 28.12.2022), nós duvidamos. Duvidamos porque os comportamentos de violência, a corrupção, a fraude, o treino intensivo precoce, a morbilidade, a dopagem, o suicídio, a morte súbita, os abusos sexuais e o treino intensivo precoce estão cada vez mais presentes (e em maior número) no seio do desporto.

E duvidar é não nos enganarmos a nós próprios.

Deixemos de encarar o desporto como uma indústria quando na realidade é um comércio com muito negócio à mistura.

Consciencializemo-nos pois que no desporto a vítima é o desportista e o grande responsável é o consumidor – ou seja, nós! Os políticos (governos, deputados e partidos), as instituições (federações, associações e clubes) e os dirigentes desportivos são só efeitos colaterais…

 

70. Factos e interpretações! (De novo!)

06.04.2023

 

Não existem factos, apenas interpretações.

Friedrich Nietzsche (1844-1900)

 

Assistimos recentemente a um despique verbal entre Nelson Évora e Pablo Pichardo. Cada um esgrimindo os seus argumentos… alguns muito centrados em si próprios, outros centrados em feridas mal saradas…

No entanto, o cerne da questão passou ao lado porque ambos foram instrumentalizados tanto pela comunicação social como pelas próprias instituições que tutelam a actividade desportiva de ambos.

Nelson Évora tinha 6 anos quando chegou a Portugal. Em 2001, apesar de ainda não ter nacionalidade portuguesa, a Federação Portuguesa de Atletismo conseguiu que participasse nas Jornadas Olímpicas da Juventude Europeia, sendo medalha de ouro no salto em comprimento (representou Portugal sem ser português!). Em 2002, naturalizou-se português, depois de completar 18 anos. Segundo as suas próprias palavras, teve de esperar 11 anos para obter a nacionalidade portuguesa. Ora, e sem conhecermos o processo de tramitação, a legislação da altura dizia que a nacionalidade portuguesa poderia ser obtida por cidadãos estrangeiros que fossem maiores ou emancipados à face da lei portuguesa, que residissem legalmente em território português há pelo menos cinco anos e que, entre outros requisitos, conhecessem suficientemente a língua portuguesa.

Pedro Pichardo chegou a Portugal em 2017 com o estatuto de refugiado. A lei portuguesa também contempla casos especiais em que pode ser concedida a naturalização (Decreto-Lei n.º 237-A/2006, artigo 24.º):O membro do Governo responsável pela área da justiça pode conceder a nacionalidade portuguesa, por naturalização, (…) aos estrangeiros que tenham prestado ou sejam chamados a prestar serviços relevantes ao Estado português.” E foi, em pouco tempo, por motivos baseados neste aspecto legal, que se desenvolveu o processo de naturalização de Pedro Pichardo. O próprio Presidente da FPA, Jorge Vieira, afirmou que “houve tratamento diferente. Nelson Évora vem para Portugal com nove anos [Évora diz que chegou com seis], não colhia nenhum argumento dentro da lei, não se esperava de uma criança de nove anos ou até ser júnior… não se poderia alegar neste período qualquer argumento para acelerar a naturalização. Teve de se esperar pela maioridade." E, segundo parece, tanto a Federação Portuguesa de Atletismo como o Comité Olímpico de Portugal, emitiram um parecer (chamam-lhe «carta de conforto»), que, com base no currículo desportivo de Pichardo, justificaria futuros serviços relevantes ao país, fechando-se a naturalização deste em Dezembro de 2017.

Falou-se em polémica… no entanto não houve polémica quando a velejadora Vasileia Karachaliou, nascida na Grécia (e que aguarda naturalização), em representação de Portugal se sagrou vice-campeã da Europa da classe olímpica ILCA 6, nos Campeonatos da Europa em Andorra, Itália, recentemente disputados («Público», 17.03.2023).

Fazem-nos lembrar aquela embalagem de carne de um hipermercado em que consta no rótulo o produto «lombinhos de porco nacional» e, se nos debruçarmos um pouco mais sobre o mesmo, poderemos ver para além do número do lote a especificação em relação à criação (Espanha), ao abate do animal (Espanha) e a sua origem (Espanha). No entanto, são «lombinhos nacionais»!

 

71. Questão ética, questão legal

16.05.2023

 

Somos responsáveis por aquilo que fazemos,

o que não fazemos e o que impedimos de ser feito.

Albert Camus(1913-1960)

 

1

Pessoa amiga fez-nos chegar um vídeo que circula pelas redes sociais. Um vídeo de um desporto de combate… poderá ser um vídeo de ‘professional wrestling’, poderá ser de luta livre olímpica, mas também poderia ser de luta greco-romana, ou de judo, ou de jiu-jitsu, ou de karate… O árbitro dá início ao combate, os competidores vão-se cumprimentar e, neste exacto momento, um deles aplica uma técnica de prisão de pernas ao adversário colocando-o no chão e ganhando assim o combate. Curiosamente o competidor que ganhou o combate foi aquele que avançou com a proposta de cumprimento com toque de mãos aproveitando-se disso para atacar de surpresa. Questão técnica? Sem dúvida, tecnicamente uma boa aplicação. Questão táctica? Sim, uma opção táctica que revela o carácter do competidor. Questão ética? Questão legal?

Sem dúvida que há um aproveitamento técnico nesta acção. O combate inicia-se à voz do árbitro, pelo que tanto a aplicação da técnica como ela própria são perfeitamente legais. Vitória justa? Sim, do ponto de vista legal, não do ponto de vista ético. É uma situação que tem a ver com a falta de cavalheirismo do competidor que distrai o adversário com um pseudo-cumprimento aproveitando-se deste momento para dar início à acção.

Uma acção que nada tem a ver com falta de fair-play, como muitos vieram reclamar…

2

Em «A Bola» online, de 30.04.23, podemos ver um vídeo em que Mvogo, guarda-redes do Lorient, coloca a bola no chão dentro da grande área tencionando marcar um livre indirecto pois tinha ficado com a sensação que o árbitro tinha interrompido o jogo, quando, de repente, Mbappé, que se encontrava perto, dá meia volta e atira a bola para o fundo da baliza. Golo do empate para o Paris Saint-Germain validado pelo árbitro pois este não tinha sancionado qualquer infracção… Legal? Sim! Ético? Não! E mais uma vez, uma acção que nada tem a ver com ausência de fair-play, como muitos defenderam…

3

Outro vídeo que circula pelas redes sociais mostra-nos um futebolista percorrendo calmamente a linha de golo da baliza da equipa adversária enquanto o guarda-redes vai fazer a reposição do esférico não se apercebendo da sua presença atrás de si. Ao colocar a bola no chão aquele arranca, domina a bola retirando-a do campo de acção do guarda-redes e marca golo. Legal? Sim! Ético? Não! Falta de fair-play? Mais uma vez nada a ver com essa noção.


Estes são alguns exemplos, apenas alguns exemplos que observados pelos mais jovens lhes mostram que o oportunismo no desporto é válido e legal. Que por vezes a vitória pode ser obtida a qualquer preço e legalmente. São modelos perigosos… Por que motivo? Porque quando lei e ética estão em conflito prevalece a lei” como nos diz Ronald Francis[210]. De facto, “nem sempre o legal coincide com o justo, e se obedecer à lei é um imperativo cívico, ser justo é um imperativo ético”, como refere João Baptista Magalhães[211]. É necessário discutir a ética? Sem dúvida que sim. As campanhas de sensibilização ética no desporto que resultados produziram até agora? Seria conveniente encontrarmos resposta para esta pergunta a não ser que essas mesmas sejam pura e simplesmente estéreis. E recorrendo de novo a Francis, “os argumentos éticos, podem, contudo, formar uma parte significativa da contestação à lei e actuar como forte argumento para a alteração legal.” Têm actuado? A não ser que tenhamos de dar razão a Forrest Atlee, personagem de John Grisham[212] na sua obra “A Convocatória”, quando, ao dirigir-se ao seu irmão Ray lhe diz: “ – Já não há ética, mano. Andas na lua. A ética é para pessoas como tu ensinarem aos alunos que nunca irão usá-la.”

4

No futsal, recentemente, o Vitória de Santarém encontrava-se em primeiro lugar antes do último jogo do campeonato com 33 golos de vantagem sobre o Mação, ambos com os mesmos pontos. No entanto o Mação conseguiu ultrapassá-lo pois venceu o último jogo contra o Benavente por 60-0 (e sagrar-se campeão distrital embora a Associação de Futebol de Santarém não tenha homologado o resultado e abrindo um processo disciplinar) … enquanto o Vitória venceu o Ribeira Fárrio apenas por 7-5.

No jogo em causa, o Benavente apresentou-se na partida apenas com três jogadores (um guarda-redes e dois jogadores de campo). Alega este clube em comunicado oficial que tinha informado a Associação de Futebol de Santarém (AFS) que só teria três jogadores disponíveis para o encontro, uma vez que o horário da partida tinha sido alterado. E que, “ainda na sequência deste tema, o Benavente questionou a AFS sobre quais as implicações de uma falta de comparência, tendo a AFS respondido apresentando os vários valores de multas que constam no artigo 49º”.

No comunicado oficial do Benavente ainda se pode ler que este "apresentou-se ao jogo com os três jogadores, como tinha sido comunicado à AFS, sendo que no decorrer do jogo o treinador se dirigiu à equipa de arbitragem solicitando que a outra equipa jogasse apenas com três jogadores. Tal facto foi negado pela equipa de arbitragem alegando que não tinham poder para o fazer ficando essa decisão ao critério da equipa adversária". Aqui sim, e caso o treinador do Mação tivesse acedido a esta pretensão e se apresentasse a jogo apenas com três jogadores, existiria uma situação de ‘fair-play’. Porque existindo uma omissão nas regras em relação a essa possível decisão o treinador do Mação procuraria uma certa equidade, tentando adaptar essa omissão existente à situação do momento, pretendendo aplicar um critério de justiça e igualdade, abdicando de uma vantagem.

Portanto, e apesar do processo disciplinar aberto, e estando nós na posse apenas destes elementos, parece-nos que tudo decorreu dentro da legalidade. Mais uma vez se coloca a questão: correu dentro de padrões éticos?

Mas como a memória é curta, e para que a admiração não seja tão grande, aqui ficam alguns resultados parecidos no futebol: 73-0, em Achay, em 1999, no Paraguai; em Calcutá, na Índia, 114-0, em 2002;  55-1 e 61-1, também na Índia, em 2004; 95-0 e 91-1 na Serra Leoa, em 2022.

5

Olímpio Bento[213] pergunta-nos se “poderá o fair-play ser hoje o princípio moral mais importante do desporto quando o não é da sociedade?” Pelo que nos atrevemos a perguntar: poderá a ética ser o mais importante no desporto quando o não é na sociedade?

 

 

Conclusão

“A ignorância não é inocência, mas pecado.

Robert Browning (1812-1889)

 

A partir deste momento e deste local a ignorância deixa de ser plausível. Porque os nossos comportamentos anti-sociais presentes no desporto – “aqueles categorizados como pecados pela religião e como vícios pelos filósofos[214] – não podem ser a regra em vez da excepção. E acentuamos «nossos comportamentos» dado que não são só os comportamentos dos outros… Nós estamos implicados no processo e teremos de começar a analisar o desporto mais na primeira pessoa.

A maior parte dos «fazedores» e dos consumidores de desporto – e aqui generalizamos conscientemente – se não transportam consigo próprio uma ignorância profunda sobre o fenómeno desportivo, revelam pelo menos uma iliteracia notória. São avessos à mudança. O próprio desporto o é. Tal como a própria sociedade. Tal como eles, quando o «eles» somos nós!

E, terminamos voltando a Graham Greene[215]: “a desgraça, como a devoção, também pode converter-se em hábito.

 



Referências


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[81] Brohm, J-M., 2017. “Théorie Critique du Sport”. Alboussière: QS? Éditions.

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[84] Disponível online em https://www.totalsportek.com/most-popular-sports/

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[116] Soares, M. L. Couto, 2004. “O Que É o Conhecimento? - Introdução à Epistemologia”. Porto: Campo das Letras.

[117] Orwell, George, 1999. “Mil novecentos e oitenta e quatro”. Lisboa: Antígona. (1ª Ed. 1949).

[118] Soares, M. L. Couto, 2004. (op. cit.).

[119] Soares, M. L. Couto, 2004. (op. cit.).

[120] Referência ao poema “As pessoas Sensíveis” de Sophia de Mello Breyner Andresen, 1962. “Livro Sexto”. Lisboa: Assírio & Alvim.

[121] Orwell, George, 1999. (op. cit.).

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[125] Redeker, R., 2012. (op. cit.).

[126] Bierce, A., 1996. (op. cit.).

[127] Apud Queval, Isabelle, 2004. “S´accomplir ou se dépasser”. Paris: Gallimard.


[128] Ata da 108ª Sessão do COI, Lausanne, 17 e 18 de março de 1999.


[129] Yonnet, P., 2004. “Huit leçons sur le sport”. Paris: Gallimard.

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[141] Idem.

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[146] Idem.


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[148] Mondzain, M-J., 2015. “Homo Spectator - ver, fazer ver”. Lisboa: Orfeu Negro.

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[159] Nietzsche, F., 2004. “Aurora: Reflexões sobre os preconceitos morais”. São Paulo: Companhia das Letras.

[160] Confira as respostas:

1 – A esgrima tem 3 armas: florete, sabre e espada.

2 – Em centímetros, são a largura e a altura de uma baliza de futebol.

3 – Sandra Bastos.

4 – 9 ou 18 buracos.

5 – Depende. Este é um dos dilemas do treinador…

6 – 7-5, 1-6 e 6-4. Vence o primeiro…

7 – 3,05 metros, determinados pelo inventor do jogo, James Naismit, em 1891.

8 – Não há prova de 150 metros nos J. O.

9 – 11 metros.

10 – 12 centímetros

11 – Leixões Sport Clube.

[161] Sanders, L., 1983. “O Terceiro Pecado Mortal”. Lisboa: Círculo de Leitores.

[162] Inocentes, A. N., 2018. “O desporto debaixo de fogo - entre valores e perversidades”. Lisboa: Prime Books.

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[165] Wong, Bárbara, 2021. “A meritocracia bloqueia a igualdade”, «Público», 19.11.2021.

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[168] Saint-Martin, Jean, 2004. ‘La naissance du sport ou le ramasse-mithes des temps modernes’, in M. Attali, “Le sport et ses valeurs”, pp. 19-65. Paris: La Dispute.

[169] Inocentes, A., 2018. (op. cit.).

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[173] Huxley, A., 2013. “Admirável mundo novo”. Lisboa: Antígona.

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[177] Kloester, A. 1961. (op. cit.)

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[215] Greene, G., 1950. “O Poder e a Glória”. Porto Alegre: Editora Globo.


III
Desporto: tolerar o intelerável?
Armando Inocentes
(Texto apresentado à "IV Edição do Prémio PNED para Investigação sobre Ética no Desporto", 2016, 3º lugar)

  
Decide-se que, por mais que se devam respeitar as opiniões, os costumes, as práticas e a crenças dos outros, há alguma coisa que nos parece intolerável. Temos de assumir a responsabilidade de decidir o que é intolerável e depois agir, preparados para pagar o preço do erro.
(Humberto Eco, 2016)[1]

1 – Pensar pelo contrário
De um desporto onde se jogava o jogo pelo jogo, passou-se para um desporto que não é mais do que negócio em que se trabalha para um espectáculo lucrativo e que coloca quem o pratica ao serviço de uma actividade que pouco tem de humanista. De um desporto em que a competição era um meio passou-se para um desporto em que a competição é um fim. De um desporto feito do «amor à camisola» passou-se para um desporto onde o desportista, o competidor, tem de se sujeitar não só às leis do próprio desporto como aos interesses dos patrocinadores, das entidades patronais e até da comunicação social. Surgem então situações que procuram contornar essas leis ou que até as violam, passando a discursar-se sobre a formação ou a ética como forma de combater futuras situações semelhantes. A ética começa a ser invocada para o desporto numa sociedade ameaçada por inúmeras intolerâncias e onde existe o intolerável no desporto. A palavra «ética», como nos diz Castoriadis (2012), é então “utilizada como estribilho no pior dos casos e, no melhor, é apenas um sinal de um mal-estar e de uma interrogação.
Mas a banalização do termo «ética», usado para tudo e mais alguma coisa, acaba por fazer com que esta perca o seu próprio significado. “A pergunta «o que é a ética?» está para além da capacidade humana de resposta; «ética» é apenas um rótulo. A questão crítica é «como é que deverá o termo ‘ética’ ser usado?». A melhor resposta é provavelmente que deverá ser evitado a todo o custo, uma vez que está irremediavelmente corrupta.” (Meehan, 1998). É a esse rótulo que teremos de dar conteúdo…
Dilthey (2005) é categórico quando refere que não se pode responder a priori à seguinte pergunta: o que é a ética? E afirma que devemos interrogar a própria evolução moral e se a equacionarmos em diferentes épocas ela dará respostas substancialmente distintas. Este alerta, já feito no início do século XIX, coloca qualquer análise sobre a ética num certo contexto histórico e social. E no presente momento estamos num determinado contexto… diferente dos contextos passados.
Heráclito (540-480 a.C.) deixou-nos a ideia de que nada pode ser pensado sem o seu contrárioAnalisarmos a ética no desporto no momento actual pode passar precisamente por o fazermos em sentido contrário, já que Bento (1999, 2004, 2005) nos mostra que no desporto tanto se podem realizar valores de sinal positivo como valores de sinal negativo. Estes últimos originam o intolerável no desporto.
Ao pensar pelo contrário descobrimos esse intolerável – o desporto “não é ninho de virtudes” (Serpa, 2013) – que convém ser conhecido até porque, como evoca Bento (2009a), “num contexto de relativismo ético e legal, os principais políticos e interventores mediáticos surgem apostados em cantar as virtudes da versão prevalecente no mercado, em branquear as suas perversões e esconder que os danos colaterais são calculados, programados e produzidos de modo absolutamente objectivo, frio e racional.
Depende esse intolerável não só de governantes, legisladores, gestores, decisores e agentes desportivos – mas de todos dado que são os homens, e não o Homem, que vivem na Terra e habitam o mundo (Arendt, 2001). Não é um assunto só do desporto ou só de quem pratica desporto. Sérgio (2016) interroga-nos: “Quem duvida que são, sobre o mais, problemas humanos os problemas desportivos?” E acrescenta: “É o homem todo (e não só o físico) que faz desporto. Permitam-me que lastime, por fim, o desprezo pela essência lúdica do desporto. Uma competição, sem ludismo, destrói a riqueza moral do jogo, cria as condições necessárias à violência e à guerra.

2 – A existência de contra-valores
Estuda-se muito a ética no desporto, assim como os valores no mesmo. Já não é tão comum o estudo dos seus contrários embora Inocentes (2007), abordando a ética desportiva, nos mostre casos exemplares mas também perversidades no desporto.
Quando Mendes (2012) afirma que “os valores negativos do desporto estão a ser estendidos à sociedade”, a questão que poderemos colocar é exactamente a inversa: não estarão os valores negativos da sociedade e ser estendidos ao desporto?
Sérgio (2012) defende que “a mercantilização, a burocratização, o uso e o abuso da droga, a corrupção, etc., são provas evidentes que os conceitos fundadores da prática desportiva foram nitidamente postos de lado. É o Desporto uma instância autónoma? Só o é, relativamente. Por isso, a competição desportiva se confunde com a civilização consumista. E em que o desportista também é o hiperconsumidor.” E já Arendt (2006) nos deixou escrito em 1961, ao referir-se à crise na cultura, que “a sociedade de massas não deseja cultura mas entretenimento, e os artigos oferecidos pela indústria são de facto consumidos pela sociedade como quaisquer outros bens de consumo.
Do mesmo modo Marques (2009) refere que o desporto está a ser usado com propósitos condenáveis e a perder as valias educativas e sociais de que sempre foi portador. Na mesma senda, Carvalho (2009), salienta que “não podemos olvidar o facto da prática desportiva profissional constituir um modelo, um referencial, para o bem e para o mal, do panorama desportivo nacional.
Se os comportamentos manifestados pelos desportistas reflectem o seu sistema de valores e a sua adesão aos princípios da ética, os actos intoleráveis por eles praticados revelam a necessidade de tomar consciência da existência de contra-valores como obstáculos à promoção de valores (Pereira, 1997).
O desporto tem uma função social ambivalente, porque ele é susceptível de exercer uma influência seja positiva seja negativa sobre o comportamento dos cidadãos, diz-nos Lassalle (1997).
Attali (2004) apresenta a educação pelo desporto como uma prática com dupla face e Inocentes (2007) mostra a bivalência do desporto, defendendo ambos, assim como Caillat (2008) e Serpa (2013, 2015a, 2015b), que o desporto não é tanto como se propala uma escola de virtudes com carácter formativo e educativo.
Enquanto Saint-Martin (2004) refere que, legitimado pelas performances e pelos recordes, o desporto moderno veicula valores e contra-valores, Liotard (2004) conclui que o desporto educativo mostra também a aprendizagem de princípios postos como contra-valores ou anti-valores.
Em suma, e segundo Bento (2009b), a ambiguidade e a ambivalência tomaram conta de nós. Castoriadis (2012) fala-nos da “duplicidade instituída” nas nossas sociedades… Pires (2016) enfatiza o facto de que “só no dinamismo do conflito positivo da luta de contrários, pode ser encontrada a euritmia do equilíbrio dinâmico do desenvolvimento e do progresso do desporto.
E sendo o desporto utilizado de uma forma educativa e/ou formativa, não podemos ignorar que ele próprio é uma montra onde crianças e jovens admiram os seus modelos. A base da pirâmide tem os olhos postos nos ídolos e “é bem sabido que no desporto de elite há muitos interesses económicos e políticos em jogo que não só afectam o próprio desportista como se repercutem num conjunto variado de pessoas que o rodeiam” (Pérez Triviño, 2011).
No conceito de “gamesmanship” – em oposição ao de “sportsmanship” – está subjacente a ideia da vitória como único objectivo da competição e segundo o qual atletas e treinadores são encorajados a contornar as regras sempre que possível em ordem a ganhar uma vantagem competitiva sobre um oponente e a desconsiderar a segurança e a justiça na competição, conforme nos refere Cruz (2015).
Turró Ortega (2016) mostra-nos um mundo desportivo que é multifacetado, ambivalente e apresenta abundantes claros-escuros, onde demasiadas vezes está presente uma forma de canalizar patologias, disfunções e contra-valores das nossas sociedades pós-modernas. Segundo este autor, examinar as suas misérias permite-nos apreciar a diferença entre o que ele é e o que deveria ser, ao mesmo tempo que analisá-lo do ponto de vista moral deixa-nos identificar tanto os seus problemas como o seu potencial humano.

3 - O intolerável
Tendo em conta todo o meio ambiente envolvente específico – temporal, cultural e social – onde se desenvolve o desporto, teremos de considerar que “a ética, em contraste com a cultura, é a articulação racional do bem. A moral é a incarnação da ética na cultura; ou, de uma forma mais pessimista, é a contaminação da ética pela cultura.” (Cunha, 1996).
É essa contaminação que faz surgir o intolerável no desporto.
Os seus actores, como nos diz Bento (2009a), os principais sujeitos da cegueira e insanidade,são os que usam todos os ardis para encobrir a indecência do modo de ser e de estar, de exercer o poder para impor, por via legal, decisões abjectas e reprováveis pela moral. Os que alargam o fosso da cada vez maior separação entre a lei e a ética.São os que fazem com que se tolere então o intolerável…
Num desporto onde os casos exemplares são cada vez mais divulgados – tal como o recentemente protagonizado por Nikki Hamblin e Abbey D'Agostino nos 5.000 metros femininos dos J. O. do Rio 2016 –, também o intolerável no desporto é cada vez mais mediatizado: atletas que morrem em plena competição, crianças a competirem como adultos, violências, fraudes, corrupções, dopagens, lesões vitalícias e até suicídios de desportistas relacionados com a sua actividade.

3.1 - A morte súbita
Em 1973 Portugal ficou surpreso com a morte de Pavão. Em 2004 a surpresa foi maior dado que a morte de Fehér em pleno relvado foi transmitida em directo pela TV. Entre um e outro caso pelo menos 21 desportistas perderam a vida durante a prática desportiva no nosso país. Futebol (15), basquetebol (3) e ciclismo (3) foram as modalidades onde se registaram esses casos de morte súbita.
Em 2005, José António, ex-defesa central do Belenenses e da selecção nacional, e Hugo Cunha, futebolista do União de Leiria, morreram ambos durante jogos amigáveis e por motivos cardíacos.
Em 2007, em Vila Chã de Ourique, Ricardo Reis, de 15 anos, morreu num treino com a equipa de juvenis do Estrela Ouriquense e Justino Jorge Ferreira, atleta da Associação Académica de Cambra, faleceu num jogo de futsal.
Em 2008 verificamos a morte durante os treinos dos treinadores António Matias (judo) e Mike Plowden (basquetebol). No jogo de andebol entre os juniores do Gaia e da Jobra, Luís Mortágua Silva, guarda-redes desta última, pediu ao árbitro para interromper o jogo por indisposição e caiu inanimado, vítima de morte súbita.
Em 2009, a polaca Kamila Skolimowska, campeã olímpica do lançamento do martelo, em estágio em Vila Real de St.º António, sofreu embolia pulmonar no decorrer de um treino e acabou por falecer. Kevin Widemond, base do Ovarense, caiu inanimado no balneário no intervalo do jogo com a Académica. Francisco Ribeiro, guarda-redes de andebol do Boavista, morreu logo após um treino, no Porto.
O jogador juvenil dos Leões da Citânia, de Paços de Ferreira, Pedro Miguel, com 15 anos, morreu no campo enquanto treinava, em 2010.
Alex Marques, jogador do Tourizense, faleceu de ataque cardíaco durante um jogo com o Carapinheirense em 2013.
O COI registou de 1966 a 2004 a ocorrência de 1101 mortes súbitas (Lima et al., 2010). Em 2012 médicos especialistas da FIFA deram-nos a conhecer que nos últimos cinco anos se tinham contabilizado, em todo o mundo, a morte de 84 jogadores de futebol enquanto treinavam ou disputavam jogos, devido a problemas cardíacos (com base em informações remetidas por 129 das 208 federações).
Em 2016 Eduardo Grilo, durante o 35º Grande Prémio da JOMA, em Queluz, sentiu-se indisposto entrando em paragem cardiorrespiratória e faleceu.
A organização «Médicos de Portugal» (Gomes et al., 2010) afirma que “em Portugal, estima-se que ocorram 250 mortes súbitas por ano em praticantes desportivos.
Pergunta-se: não serão casos a mais?

3.2 - A exploração infantil
O desporto é, conforme nos diz Brito (2001), “uma profissão que pode iniciar-se em idades muito baixas. Haverá, então, trabalho infantil (há obrigações, horários, remunerações) encapotado, disfarçado de recreação, prazer, entusiasmo, paixão, etc. … Mas na realidade, trabalho”.
Aos 12 anos Karen Muir, em 1965, tornou-se na mais nova recordista mundial na natação; aos 13 anos, Maureen Wilton, em 1967, venceu a maratona de Toronto; Nádia Comaneci foi campeã da Europa aos 13 anos e campeã olímpica aos 14, em Montreal, 1976; em 1983, com 16 anos, Naim Suleimanov batia recordes do mundo de halterofilia; Martina Hingis – a mais jovem a atingir o primeiro lugar do ranking mundial de ténis aos 16 anos, em 1997 – profissionalizou-se aos 14 e Kuti Kis aos 12 anos também já era profissional.
Ian Thorpe, aos 14 anos, foi o atleta masculino mais novo a representar a Austrália em 1996 e o mais novo campeão individual de natação nos mundiais de 1998. Maria Sharapova fez a sua estreia no circuito profissional em 2001, com apenas 14 anos, em Indian Wells. Em 2008 Thomas Daley é medalha de ouro na prova de salto de plataforma de 10 metros nos Europeus de natação... aos 13 anos!
O futebol é fértil em casos destes. No Chile, em 2006, Nicolás Millán, de 14 anos, alinha como avançado na equipa principal do Colo-Colo. Em 2007, no Atlético de Bilbao, na equipa principal, alinha o médio Iker Muniain, de 14 anos, e ainda nesse mesmo ano o Bayern recruta um peruano com apenas 13 anos de idade, Pier Larauri. Em 2009 o Liverpool contrata Fernández Sáez, um médio espanhol do Cádiz, com a idade de 16 anos. Em 2009 Maurício Baldivieso jogou os últimos 10 minutos do encontro entre o La Paz e o Aurora da I Liga da Bolívia, apenas com 12 anos… Em 2007 o Sporting contrata o nigeriano Rabiu Ibrahim de 15 anos assim como Bruno Silva e Miguel António, ambos com 8 anos.
E com apenas 10 de idade, Alzain Tareq, do Bahrein, é a mais nova de sempre num Campeonato do Mundo de Natação de 2015… enquanto nos J. O. do Rio 2016 a nadadora mais nova é Gaurika Singh, do Nepal, com 13 anos…
Sendo a infância e a juventude um período em que o ser humano se dedica naturalmente ao jogo com uma grande componente lúdica, e só posteriormente ao treino e competição, “perdendo o seu carácter lúdico, a infância entra em moratória, transformando-se apenas em uma etapa de trabalho” (Bento, 2009b) em que a criança não passa de um objecto mercantil e, sem direito a opção própria, é explorada. Isto porque “na especialização precoce há mais ideologia manipuladora do que ciência emancipadora” (Sérgio, 2012).

3.3 - A violência
Não há modalidade desportiva onde não ocorram comportamentos de violência, quer sejam reactivos quer sejam instrumentais, na prática desportiva, embora em algumas sejam pontuais. Comportamentos que nem sempre envolvem só dois indivíduos e que vão desde os juvenis aos seniores, desde os escalões de formação até aos profissionais.
Até na fórmula um acontecem: recordemos os duelos entre Nelson Piquet e Eliseo Salazar no GP da Alemanha em 1982 ou entre Ayrton Senna e Eddie Irvine logo que terminado o GP do Japão em 1993. Ou na Nascar: em 2014 Matt Kenseth e Brad Keselowski saem dos seus carros e passam a vias de facto.
Em 2006, no futebol americano universitário, no jogo entre o Miami Hurricanes e o Florida International, trinta jogadores foram suspensos para além de um irradiado e, na NBA, dez jogadores foram expulsos no jogo entre os Knicks e os Nuggets disputado no Madison Square Garden.
Caricatas as cenas de violência entre colegas de equipa! No jogo entre o Newcastle e o Aston Villa, em Abril de 2005, agrediram-se mutuamente dois futebolistas: Lee Boyer e Kieron Dyer. Em Março de 2007 acontece o mesmo no jogo Internacional–Vélez Sarsfield, em Porto Alegre: o guarda-redes da equipa argentina, Sessa, também agrediu com um murro o seu colega de equipa Pellegrino. E em Abril de 2009 foi a vez de Lukas Podolski decidir agredir o seu colega Ballack durante o jogo entre a Alemanha e o País de Gales.
Mas que modelos podem ter as nossas crianças e jovens perante a cabeçada de Zidane a Materazzi na final do Mundial de 2006, o soco de Scolari a Dragunitovic (no Sérvia–Portugal em 2007), o apertão de pescoço de Cristiano Ronaldo a Marcelo no particular das selecções Brasil–Portugal em 2008, a agressão de Pepe a Casquero em 2009 ou a pisadela na mão de Messi em 2012 quando são visionados em directo e depois retransmitidos até à exaustão?
Segundo Gutiérrez Sanmartín (1995), há duas razões para a existência da violência no desporto: 1ª) uma parte importante da violência é inerente a todo o desporto de contacto; 2ª) certas práticas agressivas, embora ilegais aos olhos da lei que rege o desporto, chegam a ser toleradas como algo que faz parte do jogo.
No quadro da competição desportiva, para Laure e Falcoz (2004), a violência é facilmente olhada como um factor que contribui para se superar, a chegar mais alto e a transcender-se, e “longe de ser um benefício para o desenvolvimento do indivíduo, ou de restabelecer a sua integridade física ou moral, esta forma de «violência» ser-lhe-á ao contrário benéfica”. Segundo estes autores, a maior parte dos resultados dos estudos sobre violência no desporto “acentuam que o desporto não é nada um mundo virtuoso resistente ou canalisador da violência”. E concluem afirmando que a violência existe no desporto, principalmente a violência física, e “foi mesmo, em parte, graças a ela que o desporto apareceu”, sendo o desporto “também gerador de violência ao invés de si mesmo, através da instrumentalização do seu corpo pelos desportistas”.
Poderão os comportamentos de violência na prática desportiva deixar de existir? A resposta é negativa. Condenamo-los mas admitimo-los… Poderemos eliminar esses comportamentos? Mais uma resposta negativa. Contestamo-los mas aceitamo-los…
E se nenhuma sociedade pode assegurar que não exista nenhum distúrbio e confronto assim como a punição de todos os crimes, de facto “o modo seguro de erradicar a violência desportiva seria acabar com o próprio desporto.[2]

3.4 - A fraude
Desde o atirador que tinha um botão instalado no punho do seu florete para, ao ser accionado, fazer acender a luz do marcador (Boris Onischenko, J. O. de Montreal 1976) ao motor detectado na bicicleta da ciclista belga Femke van den Driessche (Mundial de ciclocrosse de 2016), muitos são os casos de fraude no desporto.
Nos Campeonatos do Mundo de atletismo, Roma 1987, um membro do júri, antes do último salto do italiano Evangelisti, mediu e registou em memória, no instrumento de medida, um salto não efectuado, de 8,38 metros, que corresponderia ao terceiro lugar. Quando Evangelisti saltou, esse juiz só teve de enviar para o quadro electrónico o resultado que estava em memória…
No Campeonato Europeu de hóquei em patins de 2006, no final do jogo entre a Itália e a Áustria, ganho pela selecção italiana por 4-0, em jogo da terceira jornada do grupo B, o italiano Alessandro Bertulucci admitiu um “arranjo” do resultado para que a equipa da Itália não tivesse de defrontar Portugal ou a Espanha nas meias-finais. Bertulucci declarou que tinham instruído a equipa para não marcarem mais de quatro golos: “Não sei porquê, mas foi isso que nos disseram. Deve ter sido por causa dos emparelhamentos. Limitámo-nos a marcar os golos desejados e, depois, optámos por treinar”. Após estar a vencer por quatro golos, a selecção italiana passou quase toda a segunda parte a tentar evitar marcar mais…
Em 2007 Schachener reconheceu – 25 anos depois – que existiu fraude no Mundial de futebol de 1982, pois o jogo Alemanha–Áustria, que permitiu a qualificação das duas equipas para a segunda fase, foi combinado. Bastou o 1-0 a favor da Alemanha para ambas as equipas se apurarem em detrimento da Argélia. E se Walter Schachener lhe chamou fraude, Hans-Peter Briegel preferiu chamar-lhe “pacto tácito de não-agressão”.
Em 2009, na fórmula um, Nelson Piquet Jr. denunciou que a sua equipa, a Renault, lhe tinha ordenado para provocar o seu próprio acidente no Grande Prémio de Singapura em 2008 a fim de poder ser beneficiado Fernando Alonso.
Cruyff (2016), formado no Ajax, clube onde despontou, na sua autobiografia declara, aquando treinador do Barcelona: “Reconheço que fiz o Barça pagar um pouco mais por Witschge para salvar o Ajax dos seus problemas.” Dos seus problemas financeiros…
Vivemos num tempo de fraudes, no qual o delito, se for divertido e entretiver um grande número de pessoas, é perdoado”, diz-nos Llosa (2012).
Inúmeras vezes a fraude invade o desporto. Nem sempre descoberta, quando detectada nem sempre a conhecemos... E se “a fraude é o anti-desportivismo no seu estado mais puro, pois pretende iludir os atletas, os juízes, o público, o resultado e a própria verdade desportiva” (Inocentes, 2006), a existência da mesma demonstra a que meios os interessados na vitória ou no lucro podem aceder…

3.5 - A corrupção
A corrupção, por ser um crime sem vítima e porque “garante normalmente evidentes vantagens, tanto para os corruptores como para os corrompidos, mas raramente para quem os denuncia” (Ferreira, 1998) é um dos crimes mais difíceis de provar.
A corrupção no desporto alastra e a manipulação de resultados é uma outra faceta do fenómeno. Hill (2011) e Kistner (2013) desmontam a indústria das apostas ilegais, da manipulação de resultados e da corrupção no futebol, onde até homicídios ocorrem…
Em Itália, em 1980, rebenta o caso totonero. 36 jogadores de futebol foram detidos pela justiça italiana sendo o mais conhecido Paolo Rossi, que combinara o resultado de um jogo com um apostador profissional. Em 2006, no calciocaos, provada a movimentação de influências no sentido de adulterar resultados.
Na Polónia, em 2008, Dariusz Wdowczyk foi condenado a dois anos e meio de prisão por corrupção tal como Andrej Wozniak, acusados de combinação de resultados, compra de árbitros e suborno a jogadores adversários. Em 2009, foram ambos irradiados do futebol.
Sobre a corrupção no COI, durante o reinado de Antonio Samaranch, muito foi tornado público…
Em 2011 o árbitro ucraniano Oleg Oriekhov foi irradiado do futebol por tentativa de fraude, relacionada com apostas.
Ainda nesse mesmo ano, o árbitro chinês de futebol Lu Jun, o primeiro do seu país a dirigir jogos em Campeonatos Mundiais e J. O., admitiu ter recebido cerca de 98 mil Euros para manipular resultados em 2003… e o tenista sueco Lucas Renard, de 19 anos, foi suspenso por seis meses por corrupção…
A situação repete-se em Itália em 2012 com o calciocomesse
Em França surgem suspeitas de resultados manipulados no andebol ainda em 2012…
A FIFA e a UEFA são um poço sem fundo. Joseph Blatter e Michel Platini são ambos punidos…
Em Julho de 2016, o Comité de Ética da FIFA recomendou a suspensão por quatro anos de Worawi Makudi, por violação das «regras do organismo, contrafação de documentos e falsificação»... Logo no mês seguinte foi a vez de pedir a suspensão por seis anos de Kirsten Nematandani, por «viciação de resultados na preparação do Mundial de 2010»... Em plenos J. O. do Rio, Patrick Hickey, membro do COI e presidente do Comité Olímpico da Irlanda foi preso, acusado de envolvimento num esquema de venda ilegal de bilhetes.
Entre nós, e sem irmos muito atrás, em 2007 dois árbitros de Viseu (José Cunha e Fernando Dias) e dois dirigentes do Sporting Clube de Lamego (Manuel Medeiros e Rodrigues Guedes) foram detidos em flagrante delito. Em 2009 foi detido Pedro Guedes, dirigente de um Clube de Vila Real, no momento em que pagava 250 euros ao árbitro. Em Maio de 2016, foram detidos oito jogadores (quatro do Oriental e quatro da Oliveirense), o presidente e um diretor do Leixões e ainda quatro empresários e um elemento de uma claque suspeitos de viciação de resultados, aliciamento de jogadores e apostas ilegais.
Mas não é só o futebol… Há pouco tempo a Federação Italiana de Ténis suspendeu Marco Cecchinato por 18 meses e multou-o em 40 mil euros por viciação de resultados. Aliás, o ténis é a modalidade onde há maiores suspeitas de viciação de resultados, com 34 casos no segundo trimestre de 2016. E até o torneio de Wimbledon se encontra a ser investigado…
E já não é só Moscovo 2018 ou o Katar 2022: a FIFA anunciou recentemente que iriam ser abertos procedimentos ao presidente do comité organizador do Mundial de 2006, Franz Beckenbauer, e a mais cinco antigos dirigentes alemães.
Nas palavras de Arnold Jabor (apud Bento 2009a), “aprendemos que a corrupção, a farsa e demais iniquidades não são um desvio da norma, um pecado ou crime; são a norma mesmo, entranhada nos códigos, nas línguas, nas almas (…).

3.6 - A dopagem
Um dos mais antigos casos de doping remonta a 1886 e refere-se ao ciclista inglês Arthur Linton, o qual morreu numa Bordéus–Paris por ter tomado trimetil.
Nos J. O. de Roma 1960, o ciclista dinamarquês Knud Jensen desmaiou durante a corrida de cem quilómetros e acabou por morrer. Constatou-se posteriormente que tinha ingerido ronicol.
Tom Simpson, em 1967, morreu de paragem cardíaca no Tour de France. O calor, o esforço e a absorção de uma grande dose de anfetaminas ditaram essa fatalidade.
São três casos de ciclismo… mas sabemos que, conforme refere Luís Horta (2007), “o doping surge em todas as modalidades. Até mesmo no golfe ou no xadrez.” E até no bilhar. O japonês Junsuke Inoue foi impedido de participar nos Jogos Asiáticos em 1998 por ter sido revelado num controlo antidoping que usava metiltestosterona. Em 1997 o francês Djamel Bouras cumpriu a suspensão aplicada pela Federação Internacional de Judo por uso de nandrolona durante o Campeonato Mundial desse ano. Nos J. O. de Sydney 2000, Andreea Raducan, ginasta romena de 17 anos, perdeu a medalha de ouro depois de acusar pseudoefedrina.
Mas o mais lamentável é haver crianças que revelam controlos positivos. Três exemplos: em 1995 a sul-africana Lisa Villiers, no atletismo, com 14 anos, revelou um teste positivo aos esteróides e a nadadora Jessica Foschi, dos Estados Unidos, igualmente com 14 anos, acusou um teste positivo à mesterolona. Em 1999, Nicolette Telo, vencedora dos 200 metros bruços nos Jogos do Sueste Asiático, com 13 anos, também foi controlada positivamente.
Foi a partir do caso Ben Johnson, em 1988, que o problema do doping passou a ter mais visibilidade.
Mas uma dúvida persiste: Florence Griffit-Joyner, nunca detectada positiva, faleceu em 1997. Ataque cardíaco? Ataque epiléptico? Asfixia? Quais as origens do seu falecimento?
Nomes sonantes no desporto como Dwain Chambers, Justin Gaitlin, Tim Montgomery, Chryste Gaines e Trevor Graham (treinador) do atletismo ou Roberto Heras, Ivan Basso, Floyd Landis e Tyler Hamilton do ciclismo, foram condenados por uso de doping.
Marion Jones, em 2007, depois de reconhecer ter-se dopado foi obrigada a restituir as cinco medalhas olímpicas ganhas nos J. O. de Sydney 2000. A seguir, cumpriu pena de seis meses de prisão efectiva, por perjúrio, durante 2008...
E o que dizer da “novela” Lance Armstrong em 2012? Nunca apanhado num controlo antidoping? Albergotti e O’Connell (2014) revelam que a Nike pagou 500 mil dólares à UCI para encobrir uma análise positiva em 1999…
Novo escândalo em 2016: o Relatório McLaren demonstrou a existência de um sistema de dopagem sistemático organizado pelas autoridades russas, de 2011 a 2015, em 30 modalidades desportivas, das quais 20 são disciplinas inscritas nos J. O. de Verão. A IAAF recusou o pedido de 67 atletas russos suspensos para participarem nos J. O. do Rio, tendo igualmente o TAD rejeitado o seu recurso.
Serena e Venus Williams, Rafael Nadal (ténis), Simone Biles, (ginástica), Chris Froome e Bradley Wiggins (ciclismo), Mireia Belmonte (natação), Mo Farah (atletismo) e Alistair Brownlee (triatlo) são nomes divulgados como tendo utilizado substâncias proibidas no desporto para uso terapêutico por prescrição médica. Mesmo que autorizado e justificado o seu uso medicamente, pergunta-se: esses produtos beneficiaram estes competidores em relação aos restantes ou não?
Se há três valores centrais em que se fundamenta a proibição da dopagem (Pérez Triviño, 2011) – protecção da saúde dos desportistas (evitação do dano), no jogo limpo (equidade e evitação do engano) e na integridade e unidade do desporto (valores internos da prática desportiva) – teremos de concluir que são valores que estão progressivamente a ser ignorados. A ânsia da vitória, a perseguição do recorde, a procura da fama, o culto da performance e as pressões contratuais e publicitárias levam a que muitos desportistas aceitem correr o risco. Pires (2014) fala-nos em mais uma mudança de paradigma e afirma que “o efeito mais visível desta mudança de paradigma traduz-se no facto da vitória ter deixado de ter valor exclusivamente desportivo para passar, também e sobretudo, a ter valor económico, social e político.

3.7 - A morbilidade
O ciclista Roger Riviére, no Tour de France de 1960, sofreu uma queda na etapa Millau–Avignon, provocando-lhe a fractura de duas vértebras, tornando-o inválido para sempre.
A ginasta soviética Eléna Mukhina, caiu durante um treino em 1979, quebrou o pescoço e ficou tetraplégica. Numa cadeira de rodas durante 26 anos, faleceu em 2006 aparentemente de complicações provocadas pela sua tetraplegia.
Sang Lan, ginasta chinesa, nos Jogos da Boa Vontade de 1998, caiu no aquecimento para a prova de salto de cavalo, bateu com a cabeça no solo fracturando duas vértebras cervicais e ficando paraplégica.
Em 1998 dois grandes abandonos: Mike Powell anunciou a retirada das pistas devido a uma lesão nos adutores e Jean-Luc Cretien termina a sua carreira após uma aparatosa queda durante a Taça do Mundo de esqui alpino em Itália.
A lançadora de dardo Karen Forkel acaba com a competição em 2000 devido a uma lesão num ombro.
No basebol, Mark McGuire, batedor dos St. Louis Cardinal, decidiu terminar a sua carreira em 2001 devido a lesões consecutivas.   
O chileno Charles Manosalva, de 16 anos, praticante de salto à vara, ficou inválido ao fracturar a coluna quando participava num torneio escolar, em 2002.
Em 2005, Tiago Sousa, atleta de tumbling do Lisboa Ginásio Clube, contrai uma lesão na coluna durante um treino ficando paraplégico.
O checo Jan Zelezny, recordista mundial do dardo, termina a carreira em 2006 por já não poder suportar as dores no tendão de aquiles.
Sebastian Deisler, futebolista do Bayern de Munique, põe um ponto final na sua carreira em 2007 por não conseguir suportar as sucessivas lesões. Palavras suas: “… os últimos anos foram um suplício. Já não jogava futebol com alegria”. Também em 2007 Kevin Everett, jogador de futebol americano dos Buffalo Bills, ficou tetraplégico, vítima de uma grave lesão na medula durante um jogo.
Yao Ming, jogador dos Rockets, retira-se do basquetebol em 2011, pois as lesões ameaçaram tornar-se crónicas e limitativas.
Em 2012 Christian Olsson, campeão olímpico do triplo salto em 2004, decidiu terminar a carreira após uma nova lesão no seu pé direito, ao qual já tinha sido operado seis vezes. Carolina Kluft, campeã olímpica em 2004 no heptatlo e três vezes campeã mundial, aos 29 anos, decidiu deixar de competir na sequência de uma lesão declarando: “o meu corpo está cansado e sinto-me triste por abandonar, mas feliz e orgulhosa por ter feito parte disto”. E Setembro fica marcado pela saída de cena da mais prestigiada basquetebolista portuguesa: Ticha Penicheiro. Um dia após completar os 38 anos revela: “Ganhei tendinites crónicas nos tendões de Aquiles e é-me difícil correr. Quando acordo, para sair da cama estou a sofrer. Nunca na carreira tinha levado uma injeção ou infiltração e nos últimos 12 meses levei dez (!) para jogar”.
"Depois de quatro cirurgias nos joelhos e centenas de injeções semanais para aliviar a dor, meu corpo implora-me para parar!" – palavras da chinesa Na Li. Aos 32 anos, a vencedora do Roland Garros em 2011 e do Australian Open de 2014 abandona os courts nesse mesmo ano.
Aos 35 anos, após quase dois anos de afastamento das provas, Naide Gomes não resiste a lesões crónicas que a impedem de competir. A campeã mundial (2010) e europeia (2005 e 2007) em pista coberta de salto em comprimento, depois de ter sido campeã mundial indoor no pentatlo (2004), anuncia o seu afastamento das pistas em Março de 2015. 
O desporto de alto nível identifica-se com o desempenho, a proeza, assim como com o excesso do limite, a ultrapassagem de si próprio. Que futuro para um humano submetido ao imperativo ideológico e técnico da superação dos seus limites naturais? Questão colocada por Queval (2004).

3.8 - O suicídio
Como diz Marques (2009), “o desportista é cada vez menos sujeito e cada vez mais o objecto numa prática que tem vindo a transgredir os limites da espécie humana”, o que Sérgio (2014) confirma: “no desporto que se deixou tomar pelo capitalismo, hoje imperante no mundo, o praticante é um objecto-coisa-mercadoria e não um sujeito livre e responsável.
Inúmeros casos de suicídio existem no desporto… uns devem-se à pesada máquina que se abate sobre os desportistas e os pressiona, outros às frustrações ou ainda à não adaptação a uma nova e diferente vida após terminarem as suas carreiras.
Abdón Porte em 1918 suicidou-se com um tiro durante a noite em pleno estádio do Nacional do Uruguai, pois após mais de duzentos jogos decaiu o seu rendimento e foi retirado da equipa.
Francisco Stromp, capitão carismático da equipa de futebol do Sporting, em 1930 atravessou-se na frente de um comboio em Sete Rios.
Percy Williams, campeão olímpico em Amesterdão, competiu em Los Angeles 1932 com uma lesão na coxa e foi eliminado. Terminou aí a sua carreira, afirmando: “para mim o atletismo acabou!”. E acabou por se suicidar mais tarde, massacrado pela artrite crónica originada nas pistas…
Nos J. O. de Tóquio 1964, o holandês Anton Geesing derrotou o tri-campeão nacional japonês Akio Kaminaga. Dois anos após a derrota, Kaminaga suicidou-se como forma encontrada para pedir perdão pela derrota. Mas nestes mesmos J. O. o Japão sofreu outro desaire, desta vez na maratona: Kokichi Tsuburaya, favorito na prova, teve de se contentar com a medalha de bronze. Nove meses antes dos J. O. do México, após amiúdes lesões, Tsuburaya decidiu cortar as carótidas com uma lâmina de barbear e deixou escrita uma só frase lacónica: "não posso correr mais".
Luís Ocaña, vencedor do Tour em 1973, da Vuelta em 1970 e do Grande Prémio da Nações em 1971, depois de retirado continuou ligado ao ciclismo. Em 1994 pôs termo à vida com uma bala na cabeça.
Em 2004 Marco Pantani morreu subitamente num hotel de Rimini, tudo levando a crer que se tratou de suicídio. A autópsia revelou que o falecimento se deveu a uma paragem cardíaca provocada por overdose de cocaína.
O futebolista polaco Adam Ledwon cometeu suicídio na sua própria casa, em Klagenfurt, enforcando-se em Junho de 2008. Quatro meses depois, o jogador grego Yiannis Koskiniatis, ao não ser convocado para o jogo Diagoras Rhodes–Olympiakos, atirou-se de um precipício de 12 metros e deixou um bilhete  onde dizia: "Ficar fora da equipa foi uma grande injustiça. Não aguento mais".
Em 2009 o ciclista belga Dimitri de Fauw põe termo à vida. Três anos antes esteve envolvido no acidente em que perdeu a vida o espanhol Isaac Galvez quando os dois corredores embateram a alta velocidade em plena pista do Velódrome de Gante. E verifica-se também o suicídio de Christophe Dupouey, Campeão do Mundo de BTT em 1998, tal como o de Mike Whitmarsh, vice-campeão olímpico de voleibol em Atlanta 1996. Mas menos de quinze dias após a tragédia de Robert Enke suicídio aos 32 anos , o jogador brasileiro Marcelo Moço, do ASK Bruck/Leitha, foi encontrado enforcado no sótão da casa onde vivia, em Pandorf, Viena tal como Enke, sofria de depressão.
O americano Antonio Pettigrew admitiu ter usado doping para melhorar o desempenho entre 1997 e 2001 e foi despojado das suas medalhas de ouro ganhas nos Campeonatos Mundiais de 1999 e 2001 e nos J. O. de 2000. Em 2010 foi encontrado morto no seu carro vítima de uma overdose de comprimidos.
No nosso país, a 28 de Setembro de 2010, um cavaleiro francês de 23 anos enforcou-se numa cavalariça na Herdade da Comporta. O jovem encontrava-se entre nós como participante numa prova de saltos equestre. Nesse mesmo dia é dado a conhecer o suicídio de Terry Newton, jogador de râguebi que estava suspenso. Newton foi encontrado enforcado na garagem de sua casa, em Inglaterra.
O guarda-redes do Cerro Porteños, Martín Cabrera, cometeu suicídio na sua residência em Fevereiro de 2011, aos 21 anos, disparando uma arma contra a sua cabeça. No mês de Março o jogador Roger de Souza foi encontrado morto num quarto de motel em Guarulhos, enforcado num lençol. No mesmo mês em que Cheung Sai-ho, 35 anos, antigo internacional pela selecção de Hong Kong, se atirou de uma janela do 36.º andar, tendo morte imediata. Em Abril, o futebolista brasileiro Pikenes foi encontrado caído na casa de banho de sua casa, inconsciente, com os pulsos cortados, e a judoka austríaca Cláudia Heill, medalha de prata nos J. O. de 2004, morreu após ter caído de um sexto andar em Viena, suspeitando-se de suicídio. Em Setembro, o esquiador e medalhista olímpico Jeret Peterson, medalha de prata nos J. O. de Inverno 2010, foi encontrado morto numa zona remota do estado norte-americano do Utah depois de ter telefonado para a linha de emergência antes de disparar sobre ele próprio. Em Novembro, Gary Speed, treinador da selecção do País de Gales, foi encontrado na garagem da casa onde morava, enforcado.
Ainda em 2011, Alberto León, antigo corredor de BTT, foi encontrado morto por enforcamento na sua casa, nos arredores de Madrid. Leon era um dos implicados na «Operação Galgo» e acusado de traficar produtos dopantes. Na Alemanha, o árbitro Babak Rafati tentou cometer suicídio. Horas antes do encontro Colónia–Mainz foi encontrado na banheira de um quarto de hotel com os pulsos a sangrarem. Um caso semelhante ocorreu na Bélgica com o árbitro auxiliar de uma partida da II Divisão: Chris Schelstraete foi encontrado pouco antes do início de um jogo, no balneário, igualmente com os pulsos cortados.
Em Maio de 2012 e no nosso país, ocorre o suicídio do ciclista Gonçalo Amorim, em Santarém. No mesmo mês a italiana Giulia Albini, jogadora de voleibol da equipa Ornavasso, atirou-se de uma ponte para o rio Bósforo, numa altura de cerca de 70 metros… e o seu compatriota, também voleibolista, Alessio Bisori, logo no mês seguinte, comete suicídio ao atirar-se para a linha de comboio em Bolonha. Numa carta endereçada à família deixou escrito: “Perdoem-me mas não consigo viver mais.
Trágico foi o suicídio do halterofilista russo Igor Tepikin dada a sua tenra idade: 15 anos. Em Moscovo, em 2012, o atleta, campeão russo do seu escalão etário, atirou-se da janela de um 16º andar no prédio onde morava depois de ter perdido uma prova…
Em 2013, o antigo internacional eslovaco Marek Spilar, que alinhou pelos belgas do FC Bruges, suicidou-se ao saltar de um quinto andar de um prédio em Presov.
Tsvetelina Stoyanova, ginasta búlgara quatro vezes medalhada em campeonatos do mundo, saltou do sexto piso de um edifício de Sofia, no que pareceu ser uma tentativa de suicídio, em Junho de 2016. Tinha sido preterida na selecção que iria competir nos Campeonatos Europeus… Tinha 21 anos!
No futebol americano registam-se pelo menos 31 casos de suicídio… no basquetebol 12… 19 no hóquei no gelo…
Serão estes suicídios «danos colaterais» do desporto, de que nos fala Bento (2009a)?

4 - Conclusão
Se é introduzida uma grande mutação no desporto quando aparece o espectador (Renaud, 2014), teremos de considerar que o aparecimento no mesmo da publicidade e dos sponsors introduz uma outra mutação. A mercantilização do desporto transforma a sua matriz inicial e torna-o numa actividade em que os fins parecem justificar os meios: “o aumento de competitividade, associado à determinação económica dos objectivos, contribuiu para tornar a acção desportiva incompatível com a ética e fair play nos níveis mais elevados de competição” (Nery & Neto, 2014).
Outra grande mutação verifica-se na passagem de um amadorismo para um profissionalismo. O próprio COI, sob a liderança de Samaranch, iniciou um processo de erradicação do amadorismo no desporto. Como refere Pires (2014), a este respeito, anos mais tarde, Samaranch explicou que o COI, numa estratégia que viria a mudar radicalmente a face do desporto moderno, proclamou: «yes to commercialisation».
Estas mutações não anularam os valores do desporto mas modificaram-nos… e fizeram aparecer contra-valores…
No desporto há valores formativos, culturais e económicos, mas este tem de ser encarado como um produto que não gera nem bens nem obras; cria postos de trabalho mas não cria riqueza – movimenta-a em determinados sentidos –; o seu principal actor submete-se aos imperativos vigentes no mesmo e aceita o risco, a imprevisibilidade e o acaso; em suma, o desporto é um produto também de si próprio, o que origina a existência do intolerável no seu seio.
E, conforme afirma Eco (2016), “quando surge um intolerável inaudito, o limiar da intolerabilidade já não é o fixado pelas velhas leis. É claro que se precisa de ter a certeza de que o consenso sobre o novo limiar de intolerabilidade será o mais vasto possível, que superará as fronteiras nacionais e será de qualquer modo garantido pela «comunidade» (…). Mas depois tem de se optar.
Para podermos optar temos a interrogação de Renaud (2014): “Como é que os valores éticos do desporto permanecem e permanecerão íntegros sobrevivendo no contexto de uma pura lógica empresarial?” Respondendo, saberemos se devemos continuar a tolerar o intolerável.


Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem, podem vocês dizer.
Mas chega um momento na história em que a ignorância deixa de ser uma ofensa perdoável…
(Dan Brown, 2013)[3]



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[1]Cinco Escritos Morais”, Lisboa, Relógio D’Água.
[2] Segundo Rui Pereira, professor de Direito e presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo de então, posteriormente Ministro da Administração Interna, em Janeiro de 2006, in “A validade das normas”, «Correio da Manhã», Lisboa, 08.Jan.06, p. 12.
[3]Inferno”, Lisboa, Bertrand.

II
Ritos, Reproduções e Crenças: uma análise socio-pedagógica
Armando Inocentes
(in J. Salgado e L. Pereira, 2009, “Karaté: entre a tradição e a modernidade”, Lisboa, FNK-P, pp. 117-158, autorizado pelo Presidente da FNK-P em 25.01.2011)



Quando há chefes incompetentes no campo de batalha,
o sangue dos guerreiros é desnecessariamente derramado.
Shusako Endo

I – Introdução

Num quadro conceptual dominado actualmente pela Metodologia do Treino, pela Pedagogia e pela Didáctica, verificamos que os vários saltos paradigmáticos na evolução do Karaté não foram acompanhados por uma transição epistémica.
A ética, a moral e a axiologia do ser humano enquanto relacionamento entre este, o outro e o grupo, os aspectos simbólicos do seu comportamento e as micro-relações de ordem ritual, normativa e cultural sob um ponto de vista sociológico, também deverão ser objecto de estudo no Karaté. O enquadramento deste conhecimento com o “quê”, o “como”, o “porquê”, o “quando”, o “onde”, o “a quem” e o “por quem” da Didáctica e da Pedagogia (Mialaret, 1992) permitir-nos-ão uma unificação ao nível da compreensão e da explicação, que em conjunto com uma re-unificação ainda maior a nível da sensação através da prática (pensamento – sensação – acção), na actividade do treinador, torna este último “vítima obrigatória” da dinâmica de uma modalidade.
O Karaté não tem existência para além do indivíduo que o pratica e quando o pratica, pois este utiliza o seu corpo segundo a sua consciência, a sua vontade, com determinados objectivos. Quando se pretende abordar o que é o Karaté sem o sentir não se consegue explicá-lo porque só pensá-lo não basta. Quando se pretende explicar o que é o Karaté após senti-lo, também não se consegue explicá-lo porque só se consegue senti-lo agindo, só se é capaz de o sentir durante a acção. No Karaté o indivíduo exerce a sua motricidade intencional com um fim em vista – sentir o Karaté. A prática e a actividade do treinador têm uma razão de ser que se transporta para lá de si própria.
Uma actividade do homem, qualquer actividade, não tem uma razão de ser e uma justificação em si própria. Os seus objectivos e a sua actuação têm de ser função dos fins que visa, dos contextos em que se situa, dos meios e instrumentos de que dispõe, etc.. Caso contrário não seria mais do que, por exemplo, um desporto pelo desporto, uma dança pela dança, um teatro pelo teatro, o que seria bem pouco, quer olhemos o homem que vive esta situação, quer a sociedade na qual se insere” (Almada, 2008).
O mesmo se passa com o Karaté, pois não é praticado, não é treinado, só por o ser. Uma actividade onde existe agonística, onde o movimento está presente, na qual a situação motora competitiva designa vencedores e vencidos (mesmo numa prática com mais auto-emulação), que implica jogo – actividade codificada, com regras e regulamentos –, que possui um sistema institucionalizado e que se encontra unida em torno da ideia de projecto tem de ser classificada como desporto e, como tal, um fenómeno social total nos dizeres de Mauss (1989).
Uma análise paradigmática permite-nos afirmar que houve uma transição de arte marcial a desporto de combate, embora, actualmente, ainda existam os que continuam arreigados ao conceito de arte marcial, pura e simplesmente porque praticam Karaté embora não tenham abraçado a competição.
Tradicionalmente o ensino era ministrado pelo denominado “mestre”, conceito designado pelo termo japonês “sensei”, onde «sen» significa «antigo, que se antecipou» enquanto «sei» está imbuído do conceito de «existência, pureza». Logo, o sensei é aquele que existe antes de nós em determinado campo e que detém uma existência pura, exemplar.
O termo «treinador» não fazia, até há pouco tempo, parte do vocabulário do Karaté, sendo por vezes até adoptado o termo «professor», ou mais correntemente «instrutor».
Durante anos, o termo que se instituiu para denominar aquele que fazia a transmissão de conhecimentos, aquele que ensinava e que era o detentor da técnica foi «mestre», dirigindo-se a ele os seus alunos utilizando a terminologia japonesa: sensei.
Com o advento da competição – a primeira teve lugar em 1957, os primeiros campeonatos europeus em 1966 e os primeiros mundiais em 1970 – o “mestre” começou em certos casos a ser encarado como um treinador, embora atletas e alunos ainda hoje se dirijam aos seus instrutores utilizando o termo “sensei”. Dentro de cada dojo («do» – a via, «jo» – o local), lugar onde se ensina e onde se estuda a via, a prática é liderada por um instrutor, estando este, conjuntamente com os outros instrutores de outros dojo sob a orientação de um instrutor-chefe, entidade máxima da sua associação, o qual, por sua vez depende do presidente da federação internacional em que essa associação está filiada.
Existe assim uma cadeia hierárquica nos órgãos de transmissão dos conhecimentos e das técnicas referentes ao Karaté, a qual é definida não tanto pelos cargos ocupados ou funções que cada elemento exerce, mas mais pela graduação que cada um deles detém.
Sendo a forma comportamental transmissível, conforme o concluído por Inocentes (2007a) – comportamento treino-instrução, comportamento de suporte social, comportamento de reforço, comportamento democrático, comportamento autocrático e o poder formal do líder –, embora numa pequena amostra, um dos problemas com que nos deparamos implica saber se a forma de ensino dos conhecimentos e das técnicas também é transmissível, e qual o papel da formação na modificação do comportamento dos treinadores.
Se mais motivos não houvesse, bastar-nos-ia citar Tubino (1992), para quem a proliferação de modalidades desportivas derivadas das artes marciais, principalmente no mundo ocidental, é uma das projecções do desporto no início do século XXI, até porque actualmente, o Judo, o Karaté, o Taekwon-do e o Kendo têm mais praticantes que os tradicionais desportos olímpicos.
Mas teremos também de considerar que o Karaté, como modalidade desportiva, continua a ter uma forte ligação afectiva com o Japão. Os praticantes (atletas, competidores e treinadores) ainda se encontram muito dependentes dos mestres japoneses, as associações procuram sempre uma filiação numa associação japonesa, os modelos orientais continuam a influenciar os nossos… e sabemos como a cultura, a organização e a mentalidade deste povo são bastante diferentes das suas congéneres ocidentais…
Cleary (1991) refere que “atributos conhecidos como reserva e mistério do comportamento formal japonês, assim como a humildade e a altivez, estão profundamente arraigados nas estratégias milenares da tradicional arte da guerra. Portanto, para conhecer o Japão e os japoneses em profundidade é fundamental compreender a cultura da estratégia criada pela arte japonesa da guerra”.
A evolução técnica do praticante de Karaté, a sua avaliação e a sua participação competitiva, não se assemelham a nenhuma outra modalidade desportiva. A competição não obriga o atleta a participar simultaneamente nas suas duas provas competitivas – kata (forma) e kumite (combate) –, o que também difere de outras modalidades desportivas. E não há árbitro ou treinador que não tenha sido praticante... porque não o pode ser sem ter sido.
Teremos ainda de salientar alguns elementos específicos desta modalidade e que não se encontram presentes noutras modalidades desportivas (exceptuando talvez o Judo): a ritualização, a disciplina formal e os exames de graduação.
Não estando presentes numa imensidão de outras modalidades, verifica-se uma ausência de reflexão sobre essas componentes, sendo entendidas como únicas e exclusivas, e não se reflectindo sobre elas, não as conhecendo, não se abrem para a diversidade epistemológica existente. Isso mesmo nos diz Boaventura Sousa Santos (2007) ao mesmo tempo que também afirma que a teoria e a prática social se apresentam como discrepantes. A sua «sociologia das ausências» tenta “mostrar que o que não existe é produzido activamente como não existente”, que há coisas que apesar de existirem não as vemos por fugirem à lógica convencional do sistema ou à percepção, à reflexão e à lógica do observador.
Os ritos, as reproduções, as crenças e, consequentemente, a ética e a moral existentes no Karaté também têm sido «ausências»...

II – A ritualização e o dojo

Pela primeira vez aquela criança foi assistir a um campeonato de Karaté.
A certa altura pergunta ao pai:
– Porque é que aqueles senhores de gravata e casaco azul
estão sempre a baixar a cabeça uns para os outros?
– É a saudação meu filho, é um cumprimento.
– Mas eles cumprimentam-se mesmo?

O praticante, ao entrar no dojo, faz uma primeira saudação ao espaço onde vai estudar a via. Saúda os mestres ancestrais, representados em fotografias, que codificaram os estilos que pratica, saúda o seu mestre e os companheiros. Ritual este que se repete no final do treino.
Há aqui uma primeira ritualização em relação ao espaço, uma ritualização histórico-cultural e uma ritualização pessoal.
Esta ritualização é apresentada sob a forma de etiqueta – reikishi – denominada ritsurei quando a saudação é efectuada de pé e zarei se efectuada de joelhos. “A etiqueta constitui um treino necessário à sujeição do seu ego. O choque é ainda maior quando se realiza numa sociedade, como a nossa, onde cumprimentar não assume uma grande importância. Num Dojo, ela é importante, pois permite de imediato determinar o inesperado, o inconveniente” (Braunstein, 1999), ou seja, representando a sujeição de quem efectua a saudação, colocando-se num plano inferior em relação ao saudado.
A função real de um rito consiste, não nos efeitos particulares e definidos que ele parece visar, e através dos quais é geralmente caracterizado, mas numa acção geral que, apesar de continuar sempre e em todo o lado semelhante a si própria, é, no entanto, susceptível de apresentar formas diferentes de acordo com as circunstâncias” (Durkheim, 1912). No Karaté a saudação perpetua-se desde os seus primórdios como uma maneira de mostrar respeito pelo outro. Mas é diferente o significado de uma saudação em ritsurei no início ou no fim de uma kata e do mesmo gesto entre dois adversários em shiai kumite. Tal como assume contornos diferentes a saudação em zarei na circunstância shinzen ni rei ou na circunstância sensei ni rei – a primeira pretendendo uma ligação sagrada, universal e temporal, cultural e histórica, e a segunda uma ligação pessoal, presencial e de subordinação.
Durkheim, (id.) ainda nos diz que “o essencial é que haja indivíduos reunidos, que sentimentos comuns sejam sentidos e se exprimam e actos comuns. Tudo nos leva à mesma ideia: os ritos são, essencialmente, os meios pelos quais o grupo social se reafirma periodicamente”.
Verificamos assim que o rito possui várias funções, sendo as principais as de ligar o presente ao passado e o indivíduo ao grupo, à comunidade.
Ao saudar-se o “local onde se estuda a via”, há uma ritualização em relação ao espaço físico.
O espaço livre, natural, a partir do momento em que é delimitado e serve para determinadas funções torna-se sagrado – tal aconteceu com o dojo, quando se passou da prática do Karaté no jardim das traseiras da casa do mestre (semi-público) para um recinto fechado e protegido, com a prática acessível só aos que se encontrassem no seu interior e longe de olhares indiscretos.
No dojo tradicional, com a entrada virada a sul e a parte principal a norte, o ritual mantém-se sob a forma de cerimónia, estando esta fisicamente de acordo com o espaço. Frontalmente, na parte central, o shinzen, o lugar dos deuses, onde normalmente existe um altar com um sabre (katana), com um arranjo floral ikebana ou com uma estátua representando o deus das artes marciais – Busaganashi. À direita do mesmo, o kamiza, o lugar onde residem os espíritos do fogo e da água («ka» – fogo, «mi» – a água, «za» – sentado). À esquerda, o shimoza, o lugar onde se situam os espíritos dos mestres ancestrais, os codificadores da escola ou do estilo.
Esta divisão tripartida diluiu-se progressivamente para actualmente ser mais comum a existência do shinzen ladeado pelas fotografias dos mestres representativos do estilo praticado no dojo. Em alguns altares é comum um vaso com arroz e outro com sal, simbolizando a prosperidade e o afastamento dos maus espíritos. No Ocidente é rara esta disposição, para além do dojo não ser um lugar de culto, principalmente se o tatami se encontra num ginásio ou num pavilhão gimnodesportivo.
O próprio alinhamento dos praticantes, réstia da disciplina militar, com o mestre à frente da classe, outros mestres logo atrás à sua direita, enquanto os instrutores se colocam à esquerda, alinhando depois os praticantes da direita para a esquerda, do mais graduado para o menos graduado, e dentro da mesma graduação do mais antigo para o mais novo, personifica outro ritual que nos transporta para a disciplina existente – “a disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço” (Foucault, 1996).
Mas mesmo numa modalidade controlada por quem detém o poder técnico e administrativo, e na qual a disciplina serve para exercer esse controlo, “quando os soldados são fortes mas os oficiais fracos, o exército é insubordinado. Quando os oficiais são valentes mas as tropas ineficazes, o exército está em apuros” (Sun Tzu, 1994).
A competição é também uma ritualização, pois simulam-se combates (kumite) esvaziados de toda a violência (o controle da técnica – sundome – é obrigatório) e apresentam-se formas técnicas que representam a defesa de quatro adversários imaginários (kata), ambos iniciando-se e terminando sempre com o cerimonial da saudação, e sujeitos a regras específicas e regulamentos formais e institucionais.
No entanto Baudrillard (1990) alerta-nos para o facto de ser o querer “substituir o arbitrário da regra pela necessidade da Lei que os signos da delicadeza se tornam uma convenção arbitrária [...]. Ora a delicadeza, que acontece numa ordem cerimonial que não é a nossa, não tem sequer como função, tal como a não têm os rituais, temperar a violência original das relações, conjurar a ameaça e a agressividade (estender a mão para mostrar que não se tem arma escondida, etc.). Como se houvesse alguma finalidade na civilidade dos costumes: está aí realmente a nossa hipocrisia, aplicar, por todo o lado e sempre, uma função moralizadora das trocas [...]”.
E se no desporto é utilizada uma terminologia comum a Sun Tzu (1994) e a Clausewitz (1997), também Foucault (1996) a utiliza para nos dizer algo que é inerente ao Karaté: “a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das actividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza «tácticas». A táctica, arte de construir, com os corpos localizados, actividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar”.
Para Cleary (1991) o disciplinarismo, basicamente uma forma civil de militarismo, aparece às vezes disfarçado de zen ou de artes marciais.
O sistema de graduações, atribuído a partir de 1900 (Braunstein, 1999) e baseado num exame é equacionado por Inocentes (1995/96) pois assume um grande relevo em detrimento de uma formação global dos praticantes, o que implica uma avaliação incorrecta proveniente da inexistência de programas concretos, de planificações baseadas em objectivos específicos e de métodos científicos e actividades estrategicamente bem organizadas.
Porquê as graduações, porquê este sistema altamente hierarquizado? Atentemos na opinião de Pinguet (1987): “É com a igualdade que se inquietam os japoneses: ela pode bem depressa levá-los a conflitos de prestígio, dos quais as fórmulas de cortesia são apenas o exorcismo em negativo. É preciso que diferenças de graduação ou de antiguidade venham recobri-la com sua escrita. Eles não podem viver a solidariedade sem se sentirem protegidos por todo um aparelho simbólico de signos, de insígnias – cada indivíduo estando inscrito numa repartição referenciada de tarefas e honras, num equilíbrio global das obrigações e privilégios”.
As graduações, obtidas através desse exame, são apresentadas como sendo uma promoção e uma recompensa. Mas “a recompensa é, tanto como o castigo, uma sanção” (Lebovici, 1976) e como afirma Foucault (1996): “O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimónia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objectos e a objectivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível”.
A examinação de praticantes tendo um critério temporal (fixação ritual), representa o estado actual do Karaté assim como o ponto a que chegou a actuação de certos mestres (Inocentes, 1995/96), bem expresso nas palavras de Sun Tzu (1994): “prémios demasiado frequentes indicam estar o general no termo das suas capacidades; castigos demasiado frequentes indicam estar profundamente aflito”.
Mas o candidato à graduação é examinado por aquilo que sabe, por aquilo que deve saber ou por aquilo que é?
Para além da preocupação japonesa em se estabelecerem graus a nível técnico, verifica-se também uma preocupação semelhante no estabelecimento de graus a nível de quem ministra o treino. Para além da hierarquização segundo os kyu ou os dan ainda constatamos a existência de títulos conferidos àqueles que se dedicam ao ensino, perpetuando essa hierarquização: Renshi (7º dan que revela capacidade e perícia para conduzir o treino), Kioshi (8º dan com mestria técnica e espírito superior) e Hanshi (9º dan, professor modelo, perito “espiritualmente”).
E mais uma vez recorremos a Foucault (1996): “A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar. Funcionamento penal da ordenação e carácter ordinal da sanção. A disciplina recompensa unicamente pelo jogo de promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição”.
Mas poderemos justificar sempre a ritualização, a disciplina formal e os exames de graduação com uma oposição fundamentada entre o Ocidente e o Oriente: a cultura ocidental dá valor aos conhecimentos mas não à sabedoria, à religião mas não à reverência, ao desafio mas não ao sacrifício, ao romance mas não ao amor desinteressado (Pinguet, 1987). Ou ainda poderemos argumentar como Watts (1995), para quem “os sábios do Oriente têm escolhido cuidadosamente seus discípulos, ocultando seus conhecimentos mais profundos com mitos e símbolos que só são compreendidos pelos que eles julgam capacitados a conhecê-los”.
Ou então poderemos sempre apresentar, como faz Forster (1986), as diferenças entre desporto e artes marciais: “os desportos ocidentais estão focados para habilidades, capacidades, e força física os quais conduzem à separação artificial entre corpo e alma. Nas artes marciais, as habilidades técnicas e as capacidades são secundárias; mais exactamente eles são os meios de dar a estabilidade ‘ao caminho’. O exercício está mais enriquecido e satisfaz mais em artes marciais porque é baseado num conceito holístico, isto é, numa unidade de elementos físicos e mentais” (Forster, id.).
Mas, tal como Eduardo Lourenço (1999), não podemos olvidar uma das alegorias que herdámos de Franz Kafka: “Os leopardos invadiram o templo e beberam o vinho dos vasos sagrados. Esse incidente repetiu-se com frequência. Por fim, chegou a calcular-se de antemão a hora exacta do aparecimento das feras. E a invasão dos leopardos foi incorporada no ritual”.

III – A especificidade do Karaté

O passado guerreiro do Japão ainda hoje se reflecte nas artes marciais em geral e no Karaté em particular.
A origem dos profissionais da guerra no Japão remonta ao ano de 792. Por volta do século XII, as famílias guerreiras – os samurais – começaram a desenvolver-se mais organizadamente, opondo-se às famílias nobres, sendo transmitidas de pais para filhos as técnicas e as tradições.
Na época Kamakura (1192-1333) os guerreiros japoneses “viviam num só ímpeto, até às últimas consequências, emoções que eram imediatamente éticas. Eles não distinguiam as paixões e as virtudes” (Pinguet, 1987). O zen impregnava o seu espírito. “Longe de ser irracional, o ensinamento zen aponta a irracionalidade de uma vida dominada por instintos e emoções” (Cleary, 1991). Em 1615 aparece o primeiro código escrito dos samurais – o Bushido – mas, no entanto, só em 1716 é que o verdadeiro sentido do Bushido se transforma num código de honra, com a redacção do livro Hagakure, sob a direcção do samurai Yamamoto (Braunstein, 1999).
No Bushido é posta a tónica no sentimento do dever – giri (Nitobe, 2000; Pinguet, 1987) – e da sinceridade, pureza, autenticidade, lealdade – makoto (Pinguet, id.).
Descobri que a via do Samurai reside na morte. Perante uma crise, quando existem tantas hipóteses de vida como de morte, é necessário escolher imediatamente a morte. Não existe nada de difícil: só é necessário simplesmente armar-se de coragem e agir” (Yamamoto, 2000). Shigesuke (2006) inicia o prefácio do seu livro “Código de Honra do Samurai” com as seguintes palavras: “A primeira preocupação de quem pretende tornar-se guerreiro é ter a morte sempre presente no seu espírito, dia e noite, desde a manhã do primeiro dia até à noite do Ano Novo”.
Verificamos assim que o guerreiro – aquele que dá a morte e a recebe – não se preocupa com ela. A morte é o objecto, a curto ou longo prazo, de todos os seus actos, mas jamais de sua reflexão (Pinguet, 1987).
Sete eram os princípios do Bushido – a justiça, a coragem, a benevolência, a cortesia, a verdade, a honra e a lealdade.
Musashi (2002) no seu tratado sobre estratégia e artes marciais, denominado “O Livro dos Cinco Anéis” elabora as obrigações necessárias à formação da personalidade do guerreiro, a fim de que a mente evolua como um todo:
- Pensar com rectidão e verdade
- Seguir o caminho através da prática
- Familiarizar-se com todas as artes
- Conhecer os caminhos das várias profissões
- Distinguir vantagens e inconvenientes nos assuntos mundanos
- Desenvolver a compreensão intuitiva de todas as coisas
- Perceber aquilo que não é óbvio
- Prestar atenção aos pormenores
- Não fazer coisa alguma que seja inútil
A dedicação, a disciplina e o recorde de vitórias em duelo com o sabre (katana) de Musashi são considerados admiráveis, sendo a vitória, para si, o verdadeiro caminho do guerreiro, representando “a estratégia bélica do militarista, utilizando técnicas zen sem a ética budista” (Cleary, 1991).
O Bushido acabou por impregnar lentamente todas as classes japonesas, incluindo camponeses e pescadores, que para se defenderem de assaltos praticados pelos ronin – samurais errantes, que não se encontravam enquadrados em nenhum grupo guerreiro –, começaram a praticar técnicas de combate sem armas.
No início, o Karaté encontrava-se imbuído de grandes princípios filosóficos, refém do meio em que se desenvolveu. “O fim último do Karate-Do não reside na vitória ou na derrota, mas no aperfeiçoamento do carácter dos seus praticantes” é uma das citações mais conhecidas, atribuídas a Funakoshi, e mostra a colocação da tónica do Karaté na auto-superação e na realização interior do seu praticante. Mas recorrendo a Roland Barthes (2007), não estará aqui presente “o velho mito do «carácter», isto é, do «condicionamento»”?
Proveniente do Japão, considera-se Okinawa, uma ilha situada a sul, no arquipélago Ryukyu, o berço do actual Karaté. A influência das artes marciais chinesas, que se fundiram com as artes de combate locais (Tode), aquando da conquista desta ilha pelos chineses durante a dinastia Ming, a posterior invasão da mesma pelos japoneses do clã Satsuma (século XVII) com a proibição do porte de sabre aos locais, origina um maior aprofundamento do estudo das técnicas de luta sem armas – o Okinawa-te (a mão de Okinawa) praticado secreta e intensamente. O Okinawa-te desenvolveu-se principalmente em duas cidades: Naha e Shuri. Devido à sua maior proximidade do continente, Naha seria a cidade mais influenciada pelas técnicas de combate chinesas, onde se trabalhavam principalmente técnicas de mãos e braços, com respiração ventral profunda, técnicas essas que viriam a ser denominadas Naha-te e dariam origem aos estilos goju-ryu e shito-ryu. Em Shuri, mais afastada da China, as técnicas de pernas tiveram maior preponderância, denominando-se Shuri-te, originando mais tarde os estilos shotokan e shorin-ryu.
Os primórdios do Karate-Do revelam assim um treino muito individualizado – de mestre a discípulo – estabelecendo uma cadeia hierárquica vertical, em que muitas vezes as técnicas mais importantes ou eficazes eram só transmitidas aos eleitos, sendo pertença de uma élite muito reduzida. Nos finais do século XIX o ensino começa a fazer-se com um carácter mais aberto pelos Mestres Higaonna, Itosu e Azato. Com a morte destes, os seus alunos mais avançados deram origem a vários estilos, sendo a designação inicial de «Karate-jutsu» («kara» – vazias, nuas, «te» – mãos, «jutsu» – arte) substituída pela de «Karate-Do» (a via das mãos vazias ou o caminho das mãos nuas), a qual aparece em 1936.
Divergências entre alunos mais graduados e respectivos mestres provocaram cisões dentro de estilos (McCarthy, 1995; Bishop, 1995), dando origem a outros estilos – o shotokan deu origem ao shotokai e ao wado-ryu, o shito-ryu deu origem ao shukokai e ao sankukai … – e mesmo em Okinawa podemos contar actualmente cerca de 24 estilos (Bishop, id.)…
A prática tradicional do Karate-Do tem de ser enquadrada dentro da cultura japonesa, a qual se encontra profundamente influenciada por valores históricos, por valores religiosos (budismo e zen), por códigos de honra (Bushido) e pelo sentimento do dever, da obrigação (giri) (Pinguet, 1987).
Ao estabelecer-se uma relação vertical, o instrutor acaba por ser o detentor de todo o poder dentro do dojo, e o instrutor-chefe (ou, mais modernamente, o director técnico) o detentor do poder sobre os outros instrutores e seus alunos.
Fiadeiro (1989) apresenta os seguintes aspectos característicos das artes marciais:
- as aulas processam-se em ambiente de disciplina rigorosa e os mestres ocupam boa parte do tempo exemplificando os movimentos, e a aprendizagem é normalmente feita por imitação;
- os praticantes são ordenados hierarquicamente, segundo escalas a que correspondem cintos de cor diferente, e a que está associado um estatuto progressivamente mais nobre, o que implica numa autêntica caça ao cinto;
- a cada Arte, ou escola dentro da mesma Arte, está associado “um espírito próprio”, difícil de explicar, mas que se assume invariavelmente como o único legítimo, e que confere a cada grupo características de clã, além de servir bastantes vezes como único argumento para justificar a diferença entre escolas iguais;
- a personalidade do mestre é marcante e toda a actividade gira em seu redor ou dele deriva, existindo um apego emotivo bastante forte;
- a relação dominante é do tipo mestre-discípulo, quebrada normalmente quando o aluno mais adiantado se farta de ser explorado pelo mestre e se afasta para se instalar por conta própria;
- os mestres, e a um escalão menor também normalmente os discípulos, encontram-se filiados em escolas internacionais, as quais representam a fonte de legitimidade para o grupo, fornecendo-lhes padrões técnicos, assim como oportunidades para aperfeiçoamento técnico e a indispensável creditação para as graduações e correspondentes cintos;
- mesmo que associados a nível nacional, o motivo mantém-se na área do aperfeiçoamento técnico e na legitimidade dos cintos, pelo que as suas formas associativas tendem a reflectir esta necessidade, sendo característicos os litígios entre a hierarquia técnica, fonte de legitimidade da escola ou grupo, e a hierarquia dirigente, eleita, e fonte de poder formal;
- a nível internacional, a acumulação de poder no foro técnico, associado ao poder económico dessas autênticas multinacionais das Artes Marciais, levam a que se verifiquem fenómenos de secessão, assim como ao aparecimento de novas artes, resultando numa proliferação de escolas e estilos, cujos reflexos a nível nacional estão à vista”.
Confirmando esta posição, mas pondo a tónica entre duas culturas diferentes, Braunstein (1999) faz notar que: “a oposição fundamentada entre o Ocidente e o Oriente repousa a maior parte das vezes sobre a construção de um eu, a procura fanática de um ego. A compreensão falseada da grande maioria dos praticantes de Artes Marciais do contexto cultural destes últimos conduziu-os a comportamentos no limite do patológico sobre o Dojo. A vontade de perder o seu ego conduziu-os a uma vontade de submissão que fazia do Sensei, não um mestre, no sentido do magister latino, pondo de parte a conotação espiritual, mas a um dominus. As respostas oscilam entre a afirmação de si e a negação de si, simultânea e contraditoriamente, num movimento que em cada um dos extremos pode conduzir à transposição para um limiar patológico. O indivíduo pode abandonar a sua solidão na psicose, entre exaltação e depressão, entre a certeza paranóica de ser o único e o centro de tudo e o trabalho esquizofrénico do apagamento de si”.
Comparando as artes marciais com os desportos de combate, Fiadeiro (1989) continua a sua caracterização centrada na linha de reprodução dos mestres: “A evolução típica do crescimento nas Artes Marciais, começa num mestre que tem discípulos. Ao fim de algum tempo os melhores alunos começam a auxiliar o mestre e a certa altura, ou o mostre abre novo dojo e manda para lá um desses seus auxiliares, ou este o faz por sua iniciativa, mas com subordinação do mestre.
Este processo é inerentemente multiplicativo e assim se cria uma nova escola, estilo ou ryu. Daí às filiais de âmbito regional e depois internacional é um passo, mas o tipo de relação é o mesmo, todos os dojos ostentam as mesmas insígnias, prosseguem o mesmo tipo de ensino, os mesmos termos e técnicas e, as graduações bem controladas, obviamente, pois o laço mais importante para manter a subordinação, é a contribuição financeira, de toda a gente envolvida.
Neste tipo de organização, de cariz totalmente autocrática, em que é o mestre que escolhe os seus auxiliares, a quem delega alguns poderes, e retira a seu belprazer, não há lugar para dirigentes eleitos, obviamente. E isto passa-se a todos os níveis, mesmo internacional, é só ver aí à roda os nossos mestres que aparecem com um certificado de uma escola qualquer, no Japão, Coreia, Tailândia, etc., a nomeá-los representantes dessa escola para Portugal, e lá vem os diplomas cheios de carimbos encarnados a atestar a validade da sua graduação”.
Analisando o Karaté como modalidade desportiva, Inocentes (1995/96) equaciona a prática deste segundo alguns binómios presentes no mesmo, tais como tradicionalismo versus ciência, mestre versus pedagogo, competição versus formação, exames versus avaliação e diplomas versus realidade, realçando características que se perderam quando de uma arte marcial – que visava essencialmente a formação do ser humano – se transitou para uma modalidade desportiva, e mostrando algumas incongruências da estrutura competitiva e da concepção da própria competição quando comparado com outras modalidades desportivas.
No campo da formação, Inocentes (id.) afirma que o ensino do Karaté tem sido “mais simplista que experiente, mais moralista que moral, mais imitador e empírico que criativo, mais demagógico que científico” e que “estamos fartos de ver ‘Mestres’ que não passam de um disco partido e que fazem dos seus alunos papagaios…” sendo necessário que tanto a formação dos treinadores como dos praticantes passe a ter um cariz mais científico, ético e moral.
Ainda confrontando o desporto com as artes marciais, Fiadeiro (1989) apresenta o facto de que “o culto do Mestre é uma das marcas mais características das Artes Marciais”, concluindo nesta comparação que “se o atleta perde, muda-se o treinador, se o discípulo falha, sai e entra outro, mas o Mestre, esse fica”.
A transição de arte marcial a desporto de combate originou a comercialização do Karaté “acarretando a fragmentação da ciência, com elaborações nada práticas e movimentos baseados no senso teatral e não na eficiência da guerra” (Cleary, 1991), o que já havia sido confirmado por Miyamoto Musashi ao afirmar que “particularmente nas artes marciais, existe muita teatralidade e vulgarização de carácter comercial. O resultado disso tem de ser, como disse alguém: «as artes marciais amadoras são uma fonte de sérios danos»” (Musashi, 1985).
Na arte marcial kata e kumite eram praticados como um meio, eram o elemento do ethos guerreiro que o militarismo inculcou na sociedade e no pensamento japoneses. Num desporto institucionalizado kata e kumite são praticados como um fim em si, sendo a vitória num ou noutro, na competição, o objectivo a ser atingido.
A representação guerreira, do combate, regulamentado, a simulação da violência, e o confronto lúdico levam-nos a conferir hoje em dia ao Karaté o estatuto de desporto. O simbolismo presente no mesmo faz com que tenha mais sentido falar em «jogo» do que propriamente continuar-se a falar em «combate».

IV – Formação de treinadores: evolução ou reprodução?

Toda a gente tem vontade de ganhar,
mas muitos poucos têm vontade de se preparar para vencer.
Vince Lombardi

Para compreendermos o contexto em que se desenvolve a formação de um treinador de Karaté teremos de ter presente uma perspectiva histórica no nosso país, pois as “artes marciais” em Portugal sofreram um enorme atraso, dado que o Estado Novo sempre as considerou «perigosas». Um despacho ministerial de 1948 considerava que o Judo não era desporto, o que só seria rectificado em 1957, para dois anos depois ser considerado de «utilidade militar» definindo-se a existência de um «judo marcial» e um «judo desportivo». Em 1968 foi decidido que a prática das artes marciais passava a depender do Ministério da Defesa dada a sua «perigosidade», criando-se a Comissão Directiva das Artes Marciais (CDAM), que, em 1972, foi transferida para o Ministério da Educação e Ciência e, em 1980, para a secretaria de Estado do Desporto, sendo nomeados Presidente o comandante José Monteiro Fiadeiro e Vice-Presidente o capitão Vítor Mota (Correia, 1998). Em Fevereiro de 1987, o então Director-Geral dos Desportos, Mirandela da Costa, extingue a CDAM, dada a existência da Federação Portuguesa de Karaté desde Março de 1985 e da Federação Portuguesa de Karate-Do e Disciplinas Associadas fundada um ano mais tarde, as quais acabam por se unir, em 1992, formando-se a Federação Nacional de Karaté – Portugal, englobando cerca de 70 Associações.
Ao longo destes anos vários e diferentes modelos de formação de treinadores foram adoptados por estas entidades, processo esse iniciado pela CDAM que ao longo de 11 cursos formou 282 treinadores (Madeira, 1985).
Os cursos de treinadores organizados pela CDAM possuíam em média 60 horas e abrangiam disciplinas como Psicologia do Desporto, Psicopedagogia, Metodologia do Treino, Didáctica, Pedagogia do Desporto e Primeiros Socorros (Fiadeiro, 1986) com o suporte de Professores dos então ISEF’s de Lisboa e Porto, enquanto os cursos organizados por qualquer uma das Federações possuíam uma carga horária menor, embora tivessem introduzido uma maior especificidade técnica referente ao Karaté e “novas” disciplinas, tais como Anatomofisiologia, Biomecânica, Sociologia do Desporto, ou ainda Traumatologia e Nutrição.
A par dos cursos federativos, algumas associações tiveram a preocupação de chamar a si académicos e técnicos credenciados e ministrarem aos seus treinadores em início de funções cursos de monitores associativos.
Assim, constatamos que temos em Portugal, na prática, vários tipos de treinadores de Karaté no que se refere à sua formação: a) aqueles que ministram treinos suportados somente pela sua graduação; b) aqueles que, a par da sua graduação, possuem um curso de monitores associativo; c) aqueles que possuem um curso de treinadores da CDAM (entre os quais alguns possuem formação superior em Educação Física); d) aqueles que possuem um curso de treinadores federativo (onde também uns poucos têm formação superior em Educação Física). Enquanto os dois primeiros oficialmente não são treinadores, embora exerçam essas funções dada a inexistência de fiscalização, os seguintes podem solicitar equiparação ou equivalência.
No final de 2007, existiam 791 clubes inscritos na FNK-P, para 14593 praticantes e 678 árbitros. Revelava-se ainda a existência de 1466 treinadores, dos quais 1179 eram treinadores-monitores, sendo 246 treinadores de nível I, 28 de nível II e apenas 13 de nível III. Dados que revelam a aposta federativa na formação de treinadores.
Para Mialaret (1982) a palavra formação pode ter muitos significados:
- estrutura institucional que permite preparar os ensinantes para as suas funções posteriores – organização e funcionamento da formação;
- acção exercida sobre os “aprendizes-ensinantes”, centrada nos métodos utilizados;
- conteúdo da acção exercida – programa, actividades previstas, repartição dos tipos de actividades;
- resultado da acção exercida – estudo do produto final e suas características a curto, médio e longo prazo.
Onofre (1996), define formação “como o processo contínuo e sistemático de aprendizagem no sentido da inovação e aperfeiçoamento de atitudes, saberes e saberes-fazer e da reflexão sobre valores que caracterizam o exercício das funções inerentes à profissão docente”.
Lagrange (1977) entende a formação como possibilidades de adaptação activa, algo muito diferente de «acomodação», ou seja, a oferta de um máximo de esquemas de comportamento possíveis face a novas situações e a condução a prováveis associações dos mesmos.
A investigação em Pedagogia Desportiva vive influenciada, teórica e epistemologicamente, pelos modelos de investigação no sistema educativo, transpostos e implementados no âmbito da actividade física. Deste modo, onde especialmente se analisa e estuda o professor de Educação Física, analisa-se e estuda-se o treinador; e onde particularmente se analisa e estuda o aluno, analisa-se e estuda-se o atleta-jogador” (Tobio, 1998). Daí que, a partir deste momento, passamos a fazer um transfer do professor de Educação Física para o treinador e, mais particularmente, para o treinador de Karaté.
De Landsheere (1978) afirma que “os futuros docentes não serão capazes de educar os seus alunos com a independência e a conquista pessoal do saber, senão na medida em que eles mesmos forem independentes e conquistadores durante e depois da sua formação inicial”.
Jaurés, citado por Mialaret (1992), defende que “não se ensina o que se sabe ou se julga saber; ensina-se o que se é”. Nesta linha, para Mauco (1977) “o educador age não somente por aquilo que diz e faz, mas mais ainda por aquilo que é”, salientando que “qualquer método pedagógico vale o que valer aquele que o aplica”. É exactamente o mesmo que nos diz Feitosa (2008): “aquilo que somos transmite-se de forma muito mais eloquente do que qualquer discurso que possamos proferir”.
Verificamos assim que não é só a formação inicial que pode influenciar um treinador, até porque, segundo Carreiro da Costa (1996), a aprendizagem por observação de um atleta, futuro treinador, praticante num clube desportivo, durante a fase anterior à formação irá ter as suas influências no mesmo. Igualmente o processo de socialização do treinador compreende “diferentes tipos de influência, tais como as primeiras experiências na Educação Física e no desporto, professores, treinadores, pais, companheiros, as ideias dominantes sobre Educação Física e desporto, a formação formal, etc.” (Carreiro da Costa, id.).
Nos dizeres de Carvalho (1996), o conceito de aprendizagem por observação “é utilizado como representação de uma aprendizagem invisível, intuitiva e imitativa, de modelos de ensino, de um conjunto de crenças, conhecimentos e habilidades adquiridos ao longo de uma experiência de longos anos pelos futuros professores, enquanto alunos, que é depois transportada para a formação e para a situação de trabalho. Um fenómeno que permite compreender a manutenção da própria estrutura escolar e dos seus mitos (Britzman, 1986)”, o que nos parece ser aplicável ao Karaté.
Graça (1999) salienta que “quando estamos a considerar o que o professor deve saber, muito frequentemente não entramos em linha de conta com o que ele pensa e sabe sobre o assunto”. Ainda segundo este autor, a introdução do conceito de «aprendizagem por observação» é importante para “se referir a algo que facilmente passa despercebido, e que tem a ver com familiaridade do candidato a professor com o quotidiano da escola”. Reportando-se à longa caminhada do estudante, Graça (id.) refere que “o contacto e a experiência com uma diversidade de professores e práticas de ensino certamente deixam inevitavelmente marcas no entendimento do que é um bom professor, uma boa aula, uma boa relação professor-aluno; em que é que consiste ensinar, o que pretende e trata a matéria da disciplina, o que é suposto ensinar-se e em que é que o professor e os alunos ocupam o tempo nas aulas”. No entanto, este autor sublinha que “aquilo que os estudantes aprendem desta forma é mais intuitivo e imitativo do que explícito e analítico”.
Recorrendo a vários investigadores, Graça (id.) salienta que “este aprendizado pode funcionar como um mecanismo de reprodução das práticas e contribuir para o conservadorismo da escola: os novos professores, na falta de experiência de ensino, recorrem às imagens e recordações das estratégias e procedimentos de ensino de professores com que se identificam, às recordações de si como alunos, dos seus interesses e níveis de habilidade nas actividades, para derivar expectativas para os seus alunos” e deixa presente que “abrangendo esta familiaridade com o ensino, o que lhes pode dar a sensação que ensinar é uma actividade fácil e sem grande coisa para aprender, está todo o conhecimento e as crenças que os formandos trazem para a formação e que se constituem como filtros da informação e das perspectivas veiculadas pela formação inicial”.
No entanto, segundo Rodrigues (1996), a formação inicial, a experiência profissional, as características pessoais do treinador (motivação, valores, personalidade, inteligência, etc.) são capazes de exercer influência no treino e nos seus efeitos.
A formação académica superior em Educação Física e Desporto assim como a habilitação técnica e desportiva, podem permitir um desenvolvimento de um conjunto alargado de conhecimentos e de competências cognitivas, que se podem transferir positivamente para a intervenção pedagógica do treinador (Sarmento, 1987; Rosado, 1988), pois tanto no processo de ensino como no de treino, compete ao professor e ao treinador compreender as necessidades de aprendizagem dos praticantes e saber como transmitir os conhecimentos e as técnicas.
De acordo com Shulman (1986), e à semelhança do professor, tem de se perspectivar o treinador concebendo-o como um indivíduo que reflecte, decide, ajuíza, com crenças e atitudes particulares, o que implica, conforme refere Rosado (1995), que o treinador passe a ser concebido como um profissional activo, inteligente, em que a definição de objectivos, a busca de informação acerca dos praticantes e do currículo, no contexto dos objectivos, faz parte da sua actividade.
Se por um lado, a influência do pensamento dos professores na eficácia de ensino não tem sido evidente, por outro a investigação tem demonstrado que efectivamente o pensamento dos mesmos exerce certa influência sobre os comportamentos interactivos (Januário, 1992; Clark e Peterson, 1986; Clark e Yinger, 1987), o que também se infere para os treinadores de Karaté.
Na opinião de Coelho (1980) a formação do treinador deve assumir um carácter permanente e acompanhar a evolução dos conhecimentos e da própria ciência do treino, pois o trabalho do treinador desportivo exige uma preparação técnica, pedagógica e científica adequada.
Para Araújo (1989) um projecto de formação de treinadores tem de privilegiar uma estratégia de intervenção, em que a importância do seu contributo social esteja perfeitamente clarificada, para além de uma intenção de projectar o sistema desportivo numa via de desenvolvimento. Ainda segundo este autor, uma correcta metodologia a prosseguir nas actividades de formação de treinadores deve implicar preocupações relativas a uma aquisição de conhecimentos (saber), um domínio das técnicas (saber fazer) e uma transformação positiva e continuada das atitudes (saber estar). Saliente-se que Patrício (1993), às três grandes competências – saber, saber-fazer e saber-ser, acrescenta uma outra que considera essencial: saber fazer-ser.
O desempenho da função de treinador subentende uma continuada e profunda aprendizagem, um recurso a apoios pessoais, os «treinadores do treinador» e um maior conhecimento de si próprio e das limitações individuais que afectam o treinador (Araújo, 1987).
A relação pedagógica entre treinador e atleta constitui não só um elemento determinante ao nível da sua prestação e consequente sucesso desportivo, como um dos principais factores que influenciam a decisão dos jovens de abandonarem a prática desportiva, aspecto que assume tanto mais importância quanto menor for a idade do praticante” (Gonçalves, 1987), o que nos leva a reflectir sobre quantos atletas que se iniciam no Karaté (alguns em tenras idades) acompanham ao longo da sua vida os ensinamentos do treinador. Se, de facto, no Karaté, o treinador é um “mestre”, este “mede-se” positivamente pelo número de indivíduos que forma com uma alta craveira técnica, mas “mede-se” também, aqui pela negativa, pelo número desses indivíduos que o vão abandonando ao longo dos anos.
E teremos de salientar as palavras de Olímpio Coelho, actuais volvidos mais de vinte anos, para quem “alguns treinadores falham na sua função e objectivos por deficiente preparação técnica, mas a maior parte falha por uma deficiente preparação psicopedagógica” (Coelho, 1987).
Tobio (1998), estudando o conhecimento didáctico dos conteúdos de ensino de técnicas em treinadores, conclui que: a) parece verificar-se uma contradição entre o que os peritos (formadores) dizem e o que os treinadores manifestam que fazem; b) parece constatar-se que existem diferenças entre o que os treinadores dizem e o que os jogadores manifestam fazer; c) parece verificar-se que as decisões de programação dos treinadores estão marcadas por um elevado carácter autodidacta.
Os estudos sobre a formação de professores em Educação Física que constataram que muitos programas de formação não têm em conta o conhecimento científico disponível neste campo (Bain, 1990) estabelecem um paralelo com a formação de treinadores de Karaté, onde nos parece que a aprendizagem ainda se faz segundo moldes tradicionalistas: aprende-se por imitação, por ensaio-erro-correcção, para mais tarde se transmitir do mesmo modo – a rotina reprodutiva.
Graça (1999) refere um artigo de revisão dedicado ao desenvolvimento profissional durante a formação inicial e nos primeiros anos de docência, onde “Kagan (1992) pôde constatar que, de uma forma geral, as crenças e imagens pessoais sobre o ensino permaneciam inalteradas pelo programa de formação e acompanhavam o formando no estágio e nas práticas de ensino; Anderson e Bird (1995) investigaram o uso de estudos de caso como estratégia para fornecer imagens alternativas de ensino procurando, desta forma, desafiar as crenças dos estudantes acerca do ensino e do processo de aprender e ensinar. Apesar de ter contribuído para aprofundar o conhecimento sobre o ensino, a estratégia não alterou o cerne das perspectivas iniciais dos formandos”.
De Landsheere (1978), equacionando a mudança de valores de uma geração para outra, afirma que “para os docentes contemporâneos que se esforçam por adaptar-se aos novos valores, aderindo ainda aos valores do passado, a situação torna-se cada vez mais aflitiva e ansiogénica. Apesar da sua juventude, os alunos-professores nem sempre escapam a essa dificuldade, longe disso, pois eles fazem evidentemente parte da juventude e partilham portanto mais ou menos – senão totalmente – das suas aspirações dominantes, e tendem contudo a reproduzir comportamentos de ensino que têm profundamente fixados da época dos seus estudos primários e secundários, e que estão frequentemente em contradição com os seus valores actuais”.
O facto da maior parte dos treinadores de Karaté passarem como atletas por uma progressão baseada num sistema de graduações, que ao alcançarem o seu cinto negro lhes abre as portas do ensino, fazendo só muito mais tarde a sua formação “teórica”, coloca-os numa perspectiva tradicional, embora inversa da de Russel (1988, in Carreiro da Costa, 1996) – “formação teórica primeiro e formação prática depois” –, tendo no entanto os mesmos resultados, pois caem numa “prática não reflexiva, imitando as rotinas e os procedimentos dos seus antigos professores” (Carreiro da Costa, id.).
Assim, acreditamos que a visão tradicionalista dos treinadores de Karaté, aos quais na maior parte das vezes é uma graduação (técnica), o dan, que lhes abre a porta do ensino, permite que se possa adaptar ao mesmo “o círculo vicioso do fracasso auto-reprodutor da Educação Física” de Bart Crum (1990, in Carreiro da Costa, id.), até porque, para este autor, “os programas de formação têm geralmente um impacto reduzido, quando comparados com o impacto da aprendizagem por observação” e “mesmo quando o programa da formação transmite com sucesso uma perspectiva de ensino e aprendizagem, a força socializadora da entrada nas escolas trabalha no sentido de apagar esta tendência” (Crum, 1993, in Graça e Januário, 1997).
A este panorama adiciona-se o facto de não existir controle da parte da Federação que rege a modalidade sobre quem ensina, principalmente sobre quem ensina os mais jovens, não lhes sendo exigida nenhum tipo de formação ou de habilitações, dado que cada associação ou clube determina quem são os seus “treinadores”, esquecendo-se muitas vezes os seus responsáveis que um bom atleta não é obrigatoriamente um bom treinador. Isto acontece devido à não obrigatoriedade de inscrição na Federação de clubes e associações e à ausência de competências fiscalizadoras por parte da mesma.
No entanto, realçamos de novo que somente podemos fazer um transfer teórico dos estudos sobre formação dos professores de Educação Física, já que não existem estudos sobre os processos de pensamento dos formadores, sobre a formação dos treinadores de Karaté, os processos de pensamento dos mesmos (concepções e crenças, decisões de programação, relação entre a programação e o comportamento do treinador e dos atletas), ou sobre os processos de pensamento do atleta (percepções pessoais, sobre o comportamento do treinador e processos cognitivos dos atletas durante o processo ensino-aprendizagem).
Parece-nos ainda que o processo de socialização antecipatória é comum no Karaté, pois Carvalho (1996), citando vários autores, em relação aos conceitos atractivos e facilitadores, refere que:
1 – as ocupações possuem recursos de recrutamento, que cumprem a função de atracção dos indivíduos para o seu interior; atractivos e facilitadores são tipos de recursos a considerar;
2 – os atractivos respeitam a potenciais benefícios que a ocupação oferece aos indivíduos, sejam de natureza material (vencimento, segurança de emprego, possibilidades de mobilidade), de natureza simbólica (prestígio, poder), ou de natureza emocional (prazer e satisfação);
3 – os facilitadores respeitam a mecanismos sociais que contribuem para a decisão de entrar numa dada ocupação”.
Em relação a este último ponto, surgem ainda “a certificação subjectiva, a identificação com determinados professores e a continuidade de uma ocupação de família” (Carvalho, id.) como alguns dos mecanismos a considerar.
Como conclusão, Carvalho (id.) faz notar que “esta socialização antecipada para a profissão envolve, portanto, a interiorização de modelos de ensino e, também, uma representação da escolarização, da profissão e do currículo (particularmente da matéria de ensino que vão leccionar)”.
Efectuado o transfer acima referido e após uma equiparação de funções semelhantes, parece-nos assim que, apesar da existência de uma formação científica dirigida a treinadores de Karaté, o peso da aprendizagem segundo moldes tradicionalistas continua a ser muito maior e a técnica (prática) continua a sobrepor-se ao conhecimento. Isto só nos pode levar à conclusão de que se constata uma reprodução do ensino do Karaté, mais do que uma construção ou uma criação cientificada do mesmo, apesar dos esforços desenvolvidos pelas entidades competentes através de cursos de treinadores e de acções de formação dos mesmos.

V – A organização e a crença

No clube, ou na associação – relação social regulativamente limitada para fora ou fechada, segundo Weber (1997) – existe quase sempre uma indefinição em termos de atribuição de competências, até porque é comum nos estatutos aparecerem as competências, no geral, de cada órgão gerente, mas normalmente não aparecem as competências individuais ou funções de cada um dos seus membros – o que poderia ser contemplado no regulamento geral interno, caso existisse.
Os poderes concentram-se nos instrutores, no presidente da direcção e no presidente do conselho técnico (o director-técnico, o instrutor-chefe, o “mestre”) – que normalmente, na realidade são uma e a mesma pessoa. E embora o conselho técnico seja um órgão consultivo da direcção, verifica-se na realidade uma sujeição do poder executivo ao poder técnico… dizendo-nos Fiadeiro (1989) que aparecem contradições inevitáveis, pois “no desporto o poder reside na hierarquia dirigente democraticamente eleita, enquanto nas artes marciais ele reside na hierarquia técnica de nomeação e não de eleição”. Verificamos também na organização a eterna possibilidade da justificação de desporto ou de arte marcial.
Por outro lado, sendo a hierarquia vertical uma das características do Karaté, a realização de exames de graduação a atletas dos vários dojo é sempre única e exclusivamente da competência do instrutor-chefe, salvo delegação noutro ou noutros instrutores (normalmente elementos do conselho técnico).
Situação esta que encontra em Foucault (1977) um óptimo intérprete quando nos diz que “o exame como fixação ao mesmo tempo ritual e «científica» das diferenças individuais, como aposição de cada um à sua própria singularidade (em oposição à cerimónia onde se manifestam os status, os nascimentos, os privilégios, as funções, com todo o brilho de suas marcas) indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder [...]”.
A associação é a única entidade competente (com poder) para realizar o exame de graduação – aquilo a que Bourdieu (1982) chamou de ritos de instituição. E ele próprio dá como exemplo o facto da entrega ritual de um diploma, o que cria uma diferença social entre aquele que o confere e quem o recebe. Assume assim este rito a dupla função de defender e separar novas qualificações com a aprovação de todo o grupo, o que só acontece porque quem detém o poder determina a fronteira entre os instituídos e os não aceites.
Actos de magia social [...] apenas podem ser bem sucedidos se a instituição, no sentido activo do acto tendente a instituir alguém ou alguma coisa enquanto dotados deste ou daquele estatuto e desta ou daquela propriedade [...] for um acto garantido por todo o grupo ou por uma instituição reconhecida [...]. Encontra o seu fundamento na crença de todo um grupo (que pode estar fisicamente presente), isto é, nas disposições socialmente habituadas a conhecer e a reconhecer as condições institucionais de um ritual válido (o que implica que a eficácia simbólica do ritual variará – simultânea ou sucessivamente – de acordo com o grau com o qual os destinatários estarão mais ou menos preparados, mais ou menos dispostos a acolhê-lo)” (Bourdieu, id.).
Revela-se aqui a importância de uma primeira crença dos praticantes: crença na organização, no poder da instituição que confere uma graduação ao caucionar um exame aos seus elementos e a disposição dos mesmos em submeterem-se a esse poder.
Elias (1999) diz-nos que o poder de outra pessoa deve ser temido, pois pode obrigar-nos a praticar um determinado acto, quer queiramos quer não; diz-nos que o poder é suspeito, pois as pessoas usam de poder para explorar outras para os seus próprios fins; e diz-nos ainda que o poder parece imoral, dado que todos nós devíamos ter a possibilidade de tomar por nós próprios todas as nossas decisões.
O treinador, enquanto líder, e sendo um interveniente no sistema desportivo, possui poder porque interage e influencia os seus alunos ou atletas, situações e o meio envolvente, assim como é dotado de autoridade em virtude de exercer um poder legítimo, que aceita ao assumir essas funções, implicando agir em conformidade com as concepções e os valores a serem acatados pelos seus subordinados (Inocentes, 2007a).
No Karaté tradicional, o “mestre” é, de facto, o detentor desse poder. No Karaté desportivo, as formas do treinador exercer o seu poder incidem essencialmente no modo de influenciar os seus atletas e na maneira de modificar os seus comportamentos. Recorrendo a Russell (1990, in Inocentes, 2007a), “um indivíduo pode ser influenciado: a) através do poder físico sobre o seu corpo; b) através de recompensas e de punições como incentivos; c) influenciando a opinião”. O esforço e o sacrifício físico exigido ao praticante com vista à superação ou ao rendimento, o conceder ou não uma graduação assim como exercer a prerrogativa de seleccionar ou excluir e o facto de inculcar crenças nos atletas serão os modos de modelar o seu comportamento, instrumentos e meios que o treinador tem à sua disposição graças ao seu poder.
O treinador de Karaté é um líder que detém poder e autoridade sobre os seus alunos ou atletas. O poder traduz-se no facto de atribuir recompensas e/ou aplicar medidas coercivas ou punitivas, ao ser imposto pela estrutura organizacional que representa. A sua autoridade advém dos seus conhecimentos técnicos e pedagógicos, da sua experiência de ensino e até de competidor, assim como das suas habilitações académicas e da sua formação. Outro factor preponderante que cimenta tanto o poder como a autoridade do treinador é a sua graduação, representada pelo dan que possui, a qual determina a sua situação hierárquica (Inocentes, 2007a).
E o rito existe e subsiste no Karaté, quer na sua forma desportiva quer na sua antiga forma “marcial” até porque ele é necessário, como nos diz (Bourdieu, 1998), porque: “surge para garantir o impetrante sobre a sua existência enquanto membro de pleno direito do grupo, sobre a sua legitimidade, mas também para garantir ao grupo a sua própria existência como grupo consagrado e capaz de consagrar, bem como sobre a realidade das ficções sociais que ele produz e reproduz, nomes, títulos, honras, e que o recipendiário faz existir ao aceitar recebê-las. A representação, por meio da qual o grupo se produz, só pode incumbir a agentes que, estando encarregados de simbolizar o grupo que representam no sentido do teatro mas também no sentido do direito, a título de mandatários dotados da procuratio ad omnia facienda, devem cometer-se com o seu corpo e dar a garantia de um habitus credulamente investido numa crença incondicional”.
O agente, o mandatário, é no Karaté o “mestre”, aquele que ao mesmo tempo que transmite o seu conhecimento também disciplina e hierarquiza os seus alunos, aquele que tem o poder e a autoridade. E, no domínio da sociologia, diz-nos ainda Bourdieu (id.), sobre estes, que “enquanto pessoas biológicas, os plenipotenciários, os mandatários, os delegados, os porta-vozes estão sujeitos à imbecilidade ou à paixão, e são mortais. Enquanto representantes, participam na eternidade e na ubiquidade do grupo que contribuem para fazer existir como permanente, omnipresente, transcendente, e que eles temporariamente encarnam, fazendo-o falar pela sua boca e representando-o pelo seu corpo, convertido em símbolo e em emblema mobilizador”.
O detentor do saber e do conhecimento técnico é o representante do grupo, a sua imagem simbólica, presente pelo seu corpo revestido pelo equipamento tradicional – o karategi – e ao mesmo tempo o “carrasco” do mesmo pois exerce sobre ele uma violência.
Neste processo, o praticante ao receber as qualificações que lhe são atribuídas, ao aceitar as convenções, as normas e as simbologias, deixa-se dominar, deixa-se subjugar e submete-se a uma violência simbólica que, segundo apresenta Bourdieu (id.), não é mais do que uma “coerção que só se institui através da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante [...] quando não dispõe, para o pensar e se pensar ou, melhor, para pensar a sua relação com ele, senão de instrumentos de conhecimento que tem em comum com ele e que, não sendo mais que a forma incorporada da estrutura da relação de dominação, fazem aparecer essa relação como natural; ou, noutros termos, quando os esquemas que aplica para se perceber e se apreciar ou para perceber e apreciar os dominantes [...] são o produto da incorporação das classificações assim naturalizadas, das quais o seu ser social é o produto”.
Kihon, kata, bunkai e kumite são os instrumentos de conhecimento no Karaté, sendo as graduações, na forma de kyu e de dan, as classificações – mudansha e yudansha.
Já ao inscrever-se no clube ou na associação o praticante aceita as normas, a autoridade e o poder existente. E não nos esqueçamos que tanto La Boétie (1997) no século XVI, ao falar-nos na servidão voluntária, como Rousseau (1993) no século XVIII, ao abordar a desigualdade entre os homens, colocavam a tónica na aceitação do poder e no fenómeno da obediência consentida, o que viria a ser comprovado pela célebre experiência de Milgram (1975), assuntos mais recentemente reavivados por Romano (2006).
Mas o possuir o poder implica que quem assume a autoridade também é responsável pelas consequências que derivam dos seus actos quando provenientes das ordens que dele emanam (Muñoz, 2008).
E o treinador ao exercer uma actividade pedagógica leva-nos a recordar o axioma que nos foi legado por Bourdieu e Passeron (1975) e que nos diz que “toda a acção pedagógica é objectivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural”. Axioma esse que se desdobra em dois corolários: o primeiro, que afirma que “a acção pedagógica é objectivamente uma violência simbólica, num primeiro sentido, enquanto as relações de força entre os grupos ou as classes constitutivas de uma formação social estão na base do poder arbitrário que é a condição da instauração de uma relação de comunicação pedagógica, isto é, da imposição e da inculcação de um arbitrário cultural segundo um modo arbitrário de imposição e de inculcação (educação)” e o segundo que revela que “a acção pedagógica é objectivamente uma violência simbólica, num segundo sentido, na medida em que a delimitação objectivamente implicada no facto de impor e de inculcar certas significações, convencionadas, pela selecção e a exclusão que lhe é correlativa, como dignas de serem reproduzidas por uma acção pedagógica, reproduz (no duplo sentido do termo) a selecção arbitrária que um grupo ou uma classe opera objectivamente em e por seu arbítrio cultural”.
Por último, a organização que vive para os praticantes só possui esta existência porque existem praticantes. Saliente-se que estes, ao inscreverem-se num clube ou num ginásio particular, têm responsabilidades perante este e, automaticamente, obrigam-se à inscrição na associação e na Federação (caso aquela o deseje). Assim, o atleta suporta monetariamente a inscrição no dojo, a mensalidade do mesmo, a quotização anual para a associação, a correspondente para a Federação e o seguro desportivo. Ao participar num estágio, quer seja regional, nacional ou internacional, o atleta suporta a sua inscrição no mesmo. Quando compete, a taxa de inscrição na prova também fica à responsabilidade do atleta. Ao ser proposto a exame de graduação, a taxa associativa correspondente ao mesmo é igualmente suportada pelo praticante, que também suporta a homologação federativa da sua graduação.
Estamos em presença de um desporto em que, para além do esforço e do sacrifício, o praticante sofre fisicamente, durante a prática, e economicamente, perante o poder da organização. E temos de citar Bourdieu (1998) de novo a fim de compreendermos melhor estes laços: “O poder simbólico só se exerce com a colaboração daqueles que o sofrem porque contribuem para o construir como tal. [...] Esta cumplicidade não é concedida por meio de um acto consciente e deliberado; é ela própria efeito de um poder que se inscreveu duradouramente no corpo dos dominados, sob a forma de esquemas de percepção e de disposições (a respeitar, a admirar, a amar, etc.), quer dizer, de crenças que tornam alguém sensível a certas manifestações simbólicas, como a representações públicas do poder”.
Revela-se agora aqui a importância de uma segunda crença: crença dos praticantes no individuo que é dono do poder, crença na sabedoria e na técnica do “mestre”, esquecendo aqueles que saber executar a técnica não é o mesmo que saber ensinar a técnica ou produzir conhecimento (ou formação) através dessa transmissão. E mais do que uma crença no indivíduo, passa a haver uma crença na forma do acto, na demonstração, no gesto técnico...
Crenças que aliadas a outras, como a redução da agressividade através da prática, se podem revelar perigosas.
Alguém disse um dia, e citamos e memória, que o problema não se encontra no facto das crenças serem ideias que a nossa mente domina. O problema reside no facto das crenças serem ideias que dominam a nossa mente... até porque, como nos diz a sabedoria oriental, não são apenas os que são experientes e sábios que têm mestres, pois os tolos também têm os seus.

VI – Ética e moral

Confirmando a linha que vimos traçando, é Nitobe (2000) quem nos afirma que “o código ético independente do Bushido perecerá talvez, mas o seu poder não desaparecerá jamais da face da terra”. Até porque de um ethos guerreiro – no sentido sociológico de uma ordem normativa interiorizada, um conjunto de princípios sistematizado que orientam o comportamento, que conduzem o modo de estar no mundo – passou-se para um ethos amador e, posteriormente para um ethos desportivo.
O dojokun é o conjunto de normas que procura reger o comportamento dos praticantes dentro e fora do dojo, sendo o “não desaparecimento” do Bushido, a réstia do espírito do Budo que perpassou para o Karaté. Normas que pretendem transpor os valores da prática desportiva para a vida diária.
Procura-se assim ter presente em cada local de prática a existência de um código ético.
Mas também toda a modalidade é regida pelo “Código Ético do Karaté” emanado da Federação Mundial .
Temos assim em cada dojo um código a nível micro e um código a nível macro para a modalidade desportiva.
Comparado com outras modalidades desportivas, seria motivo para alegarmos que, sendo o Karaté proveniente de uma arte marcial ancestral imbuída de valores, nesta modalidade encontrar-se-iam maiores exemplos de «fair-play» e seriam frequentes comportamentos éticos e morais.
Para alguns especialistas, a transição de artes marciais para desportos de combate “provoca um impacto negativo. A especialização suplanta a orientação; o comercialismo constrói o caminho para o show business e o pior resultado é a brutalização das artes marciais” (Forster, 1986).
Mas toda esta transformação não é repentina nem assume um aspecto linear.
Quando em 1933 o Dai Nippon Butokukai – organismo do governo nacional do Japão para as artes marciais – lançou o repto aos mestres de Karaté da altura a fim de que o então denominado Tode ou Karate-jutsu fosse reconhecido oficialmente no Japão, apresentou-lhes os seguintes critérios: desenvolvimento e implantação de um currículo de ensino unificado; adopção de um uniforme de prática estandardizado; criação de um padrão para avaliar com exactidão os vários graus de proficiência; a implementação do sistema de graduações dan-kyu de Jigoro Kano e o desenvolvimento de um formato competitivo seguro através do qual os participantes pudessem testar as suas técnicas e o seu espírito (McCarthy, 1996). Pretendia-se assim não só organizar o ensino desta arte, mas também tornar a mesma sua pertença original, por força de um poder nacionalista combinado com um sentimento anti-chinês. Assim, foi também proposto que se substituísse o primeiro ideograma por um melhor, dado que o mesmo simbolizava a China, e que se abandonasse o sufixo jutsu substituindo-o pelo mais moderno do, tal como no Judo e no Kendo.
McCarthy (id.) diz-nos que kara, que significa vazio, também pode ser pronunciado “ku” (esvaziado) e “sora” (céu), pelo que não representa só o aspecto físico mas também abraça o metafísico; no plano mais profundo de uma doutrina budista de interesse circundante representa a emancipação espiritual e o mundo dentro (vazio interior). Durante a perseguição da descoberta interior, kara representa a transcendência do desejo mundano, da desilusão, do apego. O sufixo do, tal como se encontra nos termos Kendo, Judo e Budo, significa «modo», «via» ou «caminho» e num contexto filosófico tornou-se um «modo de vida», uma «via» em que se viaja perseguindo o objectivo da perfeição no Karaté.
Numa reunião histórica em Outubro de 1936, em que estiveram presentes Shinpan Gusukuma, Tsuyoshi Chintose, Shoshin Shibana, Genwa Nakazone, Chotoku Kyan, Kentsu Yabu, Chomo Hanashiro e Chojun Miyagi, estes adoptam o termo Karate-Do ao mesmo tempo que decidem a manutenção das kata clássicas e a criação de algumas novas de cariz nacional.
Assim, e ainda segundo McCarthy (id.), o novo ideograma proclama que a disciplina plebeia de Okinawa, o Karate-jutsu, ultrapassou os limites físicos do combate e tornou-se num Budo moderno ao abraçar o que era japonês.
Sendo o significado do termo do proveniente do período Kamakura (1192-1333), 1615 é o ano em que um religioso budista escreveu o primeiro código Bushido, o Buke Sho Hatto ou «código das famílias guerreiras» (Braunstein, 1999).
Enquanto o sufixo jutsu significa a técnica, a arte, do é mais uma doutrina, denotando mais crença do que técnica, mais percepção do que execução, mais motivação do que acção (Ratti & Westbrook, 2000).
O Bushido era um código excelente se entendermos a moralidade num sentido estreito e especializado (um sistema ético inspirado no predomínio político e militar das famílias guerreiras). Mas este critério não é aplicável da mesma maneira quando a doutrina do Bujutsu tenta vincular a ética do guerreiro com valores de qualidade mais elevada, válidos à escala universal, para todos, em todas as partes e em todas as épocas, por dois motivos: 1º porque sempre que a doutrina do Bujutsu tenta proclamar as elevadas crenças das doutrinas orientais de iluminação como as motivações inspiradoras subjacentes à prática das artes marciais, deve ter-se em conta que proclamar a adesão a esses valores em teoria e viver segundo eles na prática (como a história dos homens amplamente demonstra) são duas coisas completamente distintas: 2º porque existe um grande contraste entre o carácter universal das doutrinas que suportam o Bushido (tais como o budismo, o taoismo e o confucionismo), tal como se pretendia originalmente, e a natureza do clã no Japão feudal, “particularista e necessariamente sectária da cultura japonesa com o seu conceito central de uma hierarquia vertical que devia impor-se e manter-se para traduzir o carácter universal de certas doutrinas essencialmente equalitárias e não violentas de desenvolvimento espiritual [...] em expressões sociais e políticas concretas” (Ratti & Westbrook, id.).
Verificamos assim que a existência de um código ético que possa colidir, ou pelo menos não se adaptar, com um sistema social altamente hierarquizado terá levado a que na prática ele pudesse não ser eventualmente cumprido.
Ratti e Westbrook (id.) dizem-nos que as originais doutrinas do budismo, e do taoismo, cuja mensagem ética está profundamente arreigada nos seus escritos poéticos, foram afectadas no processo de adaptação e aculturação ao Japão, tendo sido desprovidas dos seus cânones essenciais e simplificadas até se converterem em pouco mais do que formas expressivas de um ascetismo cuidadosamente ritualizado e exteriorizado, sendo uma característica da cultura japonesa até ao período Heian (794-1192) a geral e omnipresente ênfase no pragmático e utilitário mais do que no escolástico e no abstracto. Estes dois autores referem-nos também que, no século XVIII, há indícios da diferença entre a ideia japonesa de moralidade e o correspondente conceito ocidental, tal como um conjunto de normas universais separadas, e às vezes até antagónicas, das normas políticas e sociais particulares.
E quando consideramos o Bujutsu na perspectiva de um «como» funcional e estratégico do combate, estando o Budo relacionado mais exactamente com o último e mais humano «por quê» (ou seja, com as razões para se enredar num combate), “vemos que só em muitas poucas ocasiões tiveram êxito certos mestres de Bujutsu ao harmonizar o seu jutsu com o do mais elevado e com o imperativo ético até ao ponto de trocar ou transformar substancialmente as antigas técnicas de artes marciais de eleição (separando-as assim da especializada e estreita dimensão da experiência militar e transmutando-as em disciplinas de iluminação e de ganho social e espiritual)” (Ratti & Westbrook, id.).
E se há casos em que houve uma harmonização com sucesso do jutsu com o do na sua transição, Ratti e Westbrook (id.) dizem-nos que “estes raros casos de êxito, contudo, não justificam a suposição de que esta era a norma ou que, de um ponto de vista histórico, o jutsu (ou técnica) era o mesmo ou idêntico que o do de exaltada intenção ética”.
É curioso notarmos que, a nível de semiologia, os termos «judo», «kendo» e «iaido» possuem o sufixo apenso ao corpo da palavra, enquanto que no termo «Karate-Do» este se encontra ifenizado.
Sendo o Bujutsu a arte genérica do combate (com armas ou inerme), “quando falamos de um do universal (de um sistema ético influenciado pelos conceitos originais do budismo, taoismo, confucionismo e outros, numa escala verdadeiramente universal e humanitária que só merece o qualificativo de «moralmente excelente e superior»), consideramos acertado manter esse do separado do Bujutsu na doutrina, tal como estiveram separados nas suas aplicações históricas” (Ratti & Westbrook, id.).
Não sendo assim, o que de facto parece acontecer, verificamos que a todo o momento nos confrontamos com o dilema das contradições entre a aplicação prática da técnica (jutsu), as intenções da mesma, e as motivações últimas da via a seguir (do). Ratti e Westbrook (id.) salientam que este dilema é facilmente observável historicamente na maioria das artes marciais do passado e até em muitas disciplinas delas derivadas tal como se ensinam e praticam actualmente em todo o mundo. Há um contraste entre o que se anuncia praticar e o que na realidade se efectua. Daí o facto de podermos ter um desporto perfeitamente institucionalizado e regulamentado, com um programa técnico codificado, com elevados princípios filosóficos e com um código ético, mas verificarmos que na sua prática nem sempre despontam comportamentos éticos e morais.
Se a ética é um conjunto de princípios universalmente aceites, já a moral, prescritiva, se encontra condicionada pela cultura. Logo, também seria difícil fazer transitar de uma cultura oriental para uma cultura completamente diferente, a cultura ocidental, a sua moral, até porque “a difusão, ou seja, o transporte de realidades culturais de uma para outra cultura, não é um acto, mas sim um processo cujo mecanismo muito se assemelha ao de qualquer processo evolutivo” (Malinowski, 1997). E como tal, há acomodações e assimilações, há interpenetrações e interdependências, há progressos mas também degradações e degenerações, há ganhos mas também perdas.
Por isso mesmo as próprias noções de ética, moral ou «fair-play» (poder-se-á também chamar espírito desportivo ou verdade desportiva?) nem sempre estão presentes no Karaté e nos comportamentos adjacentes (mas quase que poderíamos afirmar que o mesmo acontece no desporto em geral, nomeadamente no profissional).
Primeiro, porque se confunde ética com moral. Segundo, porque se julga que aderir a princípios não escritos e cumpri-los é a essência do «fair-play». E terceiro, porque se vive o mito da meritocracia e o da igualdade de oportunidades no desporto (Inocentes, 2007b).
O desporto é talvez uma das actividades humanas mais regulamentadas e sujeita a um maior número de leis na opinião de um conceituado especialista em Direito do Desporto, mas ele próprio também afirma que o Direito não tem muitos amigos no desporto .
O ideal ético sobrepõe-se ao ideal jurídico, mas o mesmo não se pode dizer em relação ao ideal moral.
Há situações em que o moral é ilegal e situações em que o imoral é legal. Mas o ético nunca é ilegal.
A recusa em cumprir o serviço militar obrigatório por uma questão de objecção de consciência é uma questão moral, mas ilegal (Francis, 2004). O criar-se uma associação por um grupo defensor da moral utilizando-a com o objectivo de fugir ao fisco, embora legal, pela utilização sub-reptícia dos seus estatutos é, no entanto, imoral (Francis, id.). Mas se “quando lei e ética estão em conflito prevalece a lei” (Francis, id.), o contornar-se a lei, até por omissão desta, não é em deixa de ser moral, não é ilegal, mas é, isso sim, eticamente condenável.
Tal como é eticamente condenável, também sem ser ilegal, que um treinador que é simultaneamente árbitro ou juiz, em virtude da existência de uma única carreira, assuma uma das duas últimas funções numa competição onde estejam presentes e participem atletas seus, mesmo sem ajuizar nas suas provas.
Os conceitos de “liberdade, igualdade e fraternidade”, bandeira de jacobinos e girondinos na Revolução Francesa de 1789, são conceitos que se pretendem também fazer existir no desporto. Mas tal como constatamos naquilo em que degenerou tal movimento, também constatamos que o desporto se aproxima do seu mais elevado nível de entropia. E como nos diz Boaventura Sousa Santos (2007), as aspirações da modernidade – entre elas a liberdade, a igualdade e a solidariedade – tornam-se impossíveis na contemporaneidade sem sequer terem sido alcançadas.
Quando verificamos que um sociólogo, Edgar Morin, afirma que “nem os discursos da moral nem a educação ou as grandes religiões universais modificaram jamais os comportamentos humanos” (Morin, 2004) e também que um pedagogo, De Landsheere, realça que “o progresso científico está longe de ter estimulado simultaneamente o progresso moral” (De Landsheere, 1986) resta-nos duvidar, ou pelo menos pôr em causa, que o desporto actual possa de facto contribuir para o aperfeiçoamento do carácter dos seus praticantes.
Aliás, a formação e a educação, a par da construção da personalidade, têm sido dois mitos que sempre se encontraram intimamente ligados ao desporto.
Interrogamo-nos se a velha máxima Kantiana, que na sabedoria popular se exprime pelo provérbio «faz o que e digo e não faças o que eu faço» não se aplica ao Karaté, até porque uma das questões a ser investigada nesta modalidade deveria incidir na convergência (ou divergência) entre o proclamado e o efectuado, pois no Judo, Saito e Tavares (2006) concluíram que vem acontecendo uma diminuição gradativa da transmissão dos valores morais, o que indica uma dissonância entre o discurso e a prática.
Mas este pessimismo não deve ser exagerado nem generalizado, até porque já o próprio Musashi (2007) afirmava que “em todas as artes há muitas flores mas pouco fruto”. E o simples facto de haver flores deve alimentar o nosso optimismo...

VII – Conclusão

A transição progressiva de técnicas guerreiras a desporto (jogo) processa-se através de tempos e de lugares, assim como através de um processo histórico influenciado por mudanças e movimentações.
A passagem do Karaté de arte marcial a desporto de combate não é uma mutação repentina, mas um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos históricos) inserido em modificações socio-culturais e pela aculturação de uma realidade oriental na cultura ocidental. Todo este processo originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, até porque as condições históricas criaram situações objectivas de desigualdade.
Neste avanço temporal, assim como numa deslocação geográfica e cultural, há toda a transferência de rituais que perdem os seus significados originais e ganham outros similares ou diferentes.
Johnson (1986) diz que “a atitude ocidental é principalmente orientada para objectivos, pragmática e reducionista, apontando para a consideração do produto mais do que do processo, dos fins mais do que dos meios, e dos objectivos mais do que das experiências pelo seu próprio mérito. Em contraste, os orientais vêem as oposições como relação e fundamentalmente harmoniosas. Eles reconhecem uma não- -divisão entre produto e processo, fins e meios, ou objectivos e experiências”.
A segunda guerra mundial termina um ciclo da evolução do Karaté. Quando em 1945 o Japão se rende incondicionalmente às forças aliadas, a dissolução do Dai Nippon Butokukai faz com que o desenvolvimento unificado do Karaté fosse abandonado (McCarthy, 1996). Recordamo-nos de fotografias onde aparecem lado a lado Miyagi e Funakoshi, Funakoshi e Mabuni... o trabalho que era desenvolvido em conjunto passou a ser mais espartilhado, sem troca de conhecimentos e de experiências. Os estilos originais reproduziram-se em rede... Actualmente, só a institucionalização de modelos competitivos a nível mundial poderá ser um factor de uniformização do Karaté revelando tendências para uma unificação organizacional – mas existe o risco de surgirem/aumentarem as perversidades no seu seio (Inocentes, 2007b).
Do conceito tradicional de “mestre” desponta o conceito de treinador – uma actividade profissional que assenta numa prática essencialmente pedagógica que visa desenvolver competências, habilidades e saberes. Prática essa que faz o seu retorno sobre o próprio treinador – ou não se verificasse, como afirma Morin (2003), que o efeito volta sempre sobre a causa e, por retroacção, o produto é também produtor. Feitosa (2008) diz-nos que “Mestre é aquele que aprende, não aquele que ensina, porque o mais difícil é ensinar a si próprio e ensinar a si próprio é aprender”. E o treinador, sendo de facto treinador, aprende com os seus alunos.
Mas esse treinador não está confinado a um saber e a uma prática técnica e pedagógica porque ele está enquadrado numa realidade social. Daí o estar também ilimitadamente confinado, a um saber ético e moral, deontológicos, a um saber axiológico e a um saber organizacional, todos eles enquadrados globalmente por um saber histórico-cutural e por um saber sociológico porque ele próprio é parte de um contexto socio-histórico-cutural.
Se o treinador de Karaté sabe que, actualmente, já não tem cabimento defender que “as guerras não podem ser disputadas se um general tiver de se preocupar com os sofrimentos dos seus soldados” (Endo, 1987), ele também tem (deve ter!) a noção de que exerce uma actividade que deve encarar com profissionalismo, e sabe (deve saber!) que esta possui muito mais visibilidade e, como tal, deverá possuir mais e maior qualidade – uma qualidade transversal ao próprio modo de vida.
Ele encontra-se, neste momento, perante a necessidade de ver integradamente mais longe. Não pode aguardar para reagir já que não consegue prever e preparar. A incerteza, a indeterminação e o acaso fazem parte do desporto.
A formação é antagónica da reprodução. A evolução, no sentido de progresso, é o oposto da rotina e da repetição. Formação deve ser a procura constante, a inovação – não é difícil ensinar, até porque ensinar por si só não implica provocar «o aprender», difícil é descobrir o que necessita o formando para ser ensinado, para adquirir conhecimentos e como lhos transmitir a fim de os por em prática de modo a obter os melhores resultados, isto é, a realizar-se, a superar-se, a transcender-se. Princípios a ter em conta tanto na formação do treinador, que deverá ser mais cientificada do que experienciada com base na técnica e na graduação, como na formação dos seus formandos – os praticantes, competidores, atletas...
Gerir a formação desportiva é dar-lhe um sentido, um significado, um destino ético e humanístico possível. Reside aí a principal intenção do treinador de Karaté como agente construtor de uma verdadeira realidade social.
Formar não é mais do que um acto de criação apontado para o mais além, para o sublime, em direcção ao infinito.
O respeito que deve existir no Karaté, como princípio ético subjectivo, deve reflectir-se no dever, que no mesmo deverá existir, como principio ético objectivo. Se o Karaté começa e acaba com a saudação, é imprescindível que essa “saudação” exista sempre no espaço (físico e temporal) durante (entre) esse começo e esse términus. E torna-se imprescindível também que essa “saudação” transite para a vida, para o quotidiano.
O treinador de Karaté tem, imperiosamente, de romper com o determinismo, de provocar uma fractura em relação a “verdades imutáveis”, para fazer acontecer o futuro. E para isso tem de possuir uma visão de conjunto sobre cenários ético-socio-histórico-culturais do passado e do presente, assim como tem de conhecer e saber as realidades e as tendências da sociedade actual – centra-se aí o fulcro da sua actividade, uma actividade inter, multi e transdisciplinar, assim como se centra aí o fulcro epistémico da sua modalidade.

Porque o Karaté é muito mais do que Karaté...

Porque no Karaté, a maior parte das vezes, para não dizermos sempre, é a árvore que não nos deixa ver a floresta...

VIII - Bibliografia
A solicitar ao autor



I
Para uma Pedagogia do Karate-Do
Armando Inocentes
(Artigo publicado na revista «Bushido - Artes Marciais e Desportos de Combate», respectivamente no n.º 68 de Novembro de 1995, pp. 9-11, e no n.º 69 de Janeiro de 1996 , pp. 9-11).


1. TRADICIONALISMO VERSUS CIÊNCIA


Originalmente tudo está bem (tal como é)
Originalmente não somos nada (tal como somos)
Hôgen Daidô

No início reinava a magia.
Era o desconhecido, o deslumbrante, o quase impossível: era o reino dos truques, transmitido por uma linguagem espectacular e aliciadora que era apanágio apenas de uma elite.
Era uma imagem sedutora.
A imagem publicitou-se e alastrou captando novos adeptos.
A prática começou a desenvolver-se agarrada a conceitos tradicionalistas e empíricos, ficando por estudar, por definir e até compreender toda a materialidade que une permanentemente o visível - aquilo que se apresenta - e o invisível - o que é necessário para se chegar àquela apresentação - recorrendo somente ao acessível aos sentidos.
Mostrar uma prática que parecia imbuída de forças provenientes do além era suficiente para admitir a sua autenticidade sem se colocarem interrogações sobre os seus antecedentes sobre os mecanismos da sua acção. Realizar essa prática tratou-se de uma experiência que conduziu o pensamento para fora de todo o esquema racional fazendo com que a imitação e a coincidência fossem tomadas como prova de verdade.
A nossa experiência no Karate-Do, devido à acção de alguns neófitos intitulados "Mestres", partiu de verdades reveladas, nunca justificadas, mas em que tínhamos de acreditar. Apresentou-se como uma prática dogmática e intransigente, camuflada aqui e ali por um espírito pseudo-científico, muitas vezes com finalidades utópicas.
A acção desses "Mestres" fez do Karate-Do um exercício lógico sistematizado que avançou através de desenvolvimentos escolásticos. Pretenderam descobrir e evoluir com uma prática demasiado ortodoxa, repetitiva e estagnante. Fizeram com que o Karate-Do adquirisse uma nova roupagem transformando algumas das suas componentes, sujeitando-as a regras para lhe chamarem competição, pressupondo explorá-lo como desporto.
É urgente desmistificar o Karate-Do.
É urgente transformar o Karate-Do num método científico já que o Karate-Do terá de formar homens física, técnica e mentalmente Homens, assim como terá de formar homens humanamente Homens.

2. MESTRE VERSUS PEDAGOGO

Que deve conhecer o professor de latim que ensina o João?
- O professor efectivo responde: o latim;
- Um pedagogo responderia: o João.
Georges Mauco

Ao contrário do que a maior parte de nós imagina, o termo "Sensei" não significa "mestre". Decompondo etimologicamente a palavra, "Sen" significa "antigo, que se antecipou", enquanto "sei" está imbuído do conceito de "existência, pureza". Logo, "Sensei" é aquele que existe antes de nós em determinado campo e que detém uma existência pura, exemplar.
Os japoneses chamam Sensei aos seus pais, ao seu médico, ao seu professor... e dentro das Artes Marciais o título de Sensei é aplicado àquele que ensina como verdadeiro pedagogo, àquele que forma, àquele que se situa verdadeiramente dentro da via - daí a existência do termo "Do".
Entre nós é comum chamar-se "Sensei" ao instrutor que ensina num Dojo e muitas vezes chama-se "mestre" ao todo poderoso da sua Associação.
O estatuto de Sensei não se adquire só no Dojo em relação à prática e ao ensino, nem só por esta ou aquela graduação. O estatuto de Sensei conquista-se principalmente pelas atitudes e experiência de vida no dia a dia. Pelos exemplos que conhecemos de muitos dinossauros do Karaté-Do, concluímos que andamos a chamar erradamente de "Sensei" a muita gente...
Aquele que pura e simplesmente transmite a sua técnica, aquele que ensina o que lhe ensinaram e que faz com que os seus alunos o imitem não é um Sensei. Aquele que não tem um comportamento digno, honesto, ética e deontologicamente exemplar fora do Dojo, não pode ser chamado de Sensei.
No entanto estamos fartos de ver "Mestres" que não passam de discos partidos e que fazem dos seus alunos papagaios... "Não se ensina o que se sabe ou o que se julga saber; ensina-se o que se é". "Qualquer método pedagógico vale o que valer aquele que o aplica."
Os que examinam pelo simples facto de angariarem fundos, para si ou para a sua Associação, ou para justificarem a subida de graduação dos seus subalternos apresentando "quadros" (com progressão rápida dentro da "carreira" ostentando altas graduações) não podem visar o título de Sensei. Muito menos quando examinam e aprovam! Sem esperarem que os examinados adquiram conhecimento e experiência, e façam progressos. De certeza que esses "Mestres" não conhecem a história do rei que sabia esperar a hora apropriada para ordenar ao sol que se escondesse claro que era sempre obedecido!
Aquele que se serve dos alunos em vez de os servir e que sobre eles exerce a sua autoridade, esquecendo-se que "o que a torna válida não é a categoria da pessoa que a exerce, mas o facto de estar ela própria, a despeito, às vezes, das aparências, ao serviço dos interesses daqueles sobre quem se exerce " encontra-se longe de ser um Sensei.
São estes "Mestres" que têm vinculado o ensino do Karaté-Do entre nós. Um ensino mais simplista que experiente, mais moralista que moral, mais imitador e empírico que criativo, mais demagógico que científico.
Isto, porque os "Mestres" que temos são mais pedagogistas que pedagogos, ou talvez pedabobos...
Foram eles que transformaram uma arte de formação integral da personalidade humana numa amálgama de actividades orientadas para dois pólos: competição e exames de graduação.
Pergunta-se: não haveria Mestres sem Dan?.

3. COMPETIÇÃO VERSUS FORMAÇÃO

Desporto e pedagogia se os juntassem como irmão esse conjunto daria verdadeiros cidadãos? Assim, sem darem as mãos o que um faz, outro atrofia.
Sendo a vida diária uma competição, não é desajustada a competição como forma desportiva, mas sim o seu conteúdo e a maneira de se exercer essa competição, assim como o modo de se situar dentro dela.
É necessário transformar a competição num acto pedagógico. É necessário não por em jogo as taças e as medalhas, mas sim o procurar constante do aperfeiçoamento e da superação dos próprios atletas.
E se se pretende um desporto completo, formativo, não poderá haver dicotomia entre Kata e Kumite (o ginasta faz tapete, argolas, paralelas, etc.). Os lugares alcançados pelos atletas deveriam ter em conta estas duas provas, o que passaria por eliminar os especialistas numa só modalidade. Isto pressupõe um novo modelo de competição onde, a nível individual, o lugar alcançado seria o somatório entre as duas provas executadas pelo mesmo atleta. E porque não incluir, à semelhança dos outros desportos (ginástica, patinagem no gelo, etc.) uma prova que seria um misto de Kata e Kumite, talvez um Jyu-Ippon-Kumite ou uma Bunkai Kata, a qual seria atribuída uma nota técnica e uma nota artística que também contribuiriam para esse somatório? A nível de equipas, não poderiam ser os três elementos de Kata os três elementos de Kumite? Não poderia ser a pontuação final da equipa o somatório destas duas provas?
Claro que se pode contestar que haveria uma menor participação de atletas num campeonato, que haveria uma maior sobrecarga dos mesmos, que passaria a haver um elitismo maior do que o que já existe, que no aspecto do treino se teriam de profissionalizar.
Atletas e Treinadores, e mais um sem número de objecções...
Mas pergunta-se: Não haveria atletas mais completos? Não se treinaria com outros métodos o outros objectivos? A nível de público, não seria mais rico o espectáculo? A competição não estaria assim mais perto do verdadeiro espírito do Karate-Do?

4. EXAMES VERSUS AVALIAÇÃO

Três coisas pedimos à vida:
a coragem de mudar o que pode ser mudado;
a humildade de aceitar o que não pode ser mudado;
a inteligência para distinguir uma coisa da outra.

Provérbio Chinês

Todos nós fomos habituados a ver as diversas cores dos cintos dos praticantes de Karate-Do. Sempre nos disseram que foram instituídas porque o espírito ocidental necessitava de um estímulo, de um incentivo... mas poucas vezes as graduações nos foram apresentadas como representando uma competição connosco próprios ou como a superação de determinadas dificuldades e o atingir de certos fins.
Têm sido as graduações apresentadas como sendo uma promoção e uma recompensa esquecendo-nos que "a recompensa é, tanto como o castigo, uma sanção."
Até hoje, nunca vimos um cinto servir senão para manter o casaco do Gi fechado... embora haja pessoas a quem o cinto suba à cabeça! Deveriam usá-lo como um "hachi-maki"...
Há que discernir entre o atribuir-se/conquistar-se uma graduação e o realizar-se um exame de graduação.
"Prémios demasiado frequentes indicam ao general estar no termo das suas capacidades; castigos demasiado frequentes indicam estar profundamente aflito".
Um exame devia pretender ser uma avaliação pontual de conhecimentos técnicos, práticos, físicos e até mentais e éticos e uma observação sobre atitudes e decisões face a novas situações. No entanto os exames não são sequer uma comparação em relação ao caminho percorrido, não só do seu Dojo, mas também da sua Associação e do seu Estilo e muito menos em relação aos praticantes do resto do País.
Os exames, só tem servido para atribuir uma graduação ou passa ou reprova; os exames têm servido só para verificar as aptidões do aluno e para observar e realçar as suas dificuldades e, mediante um juízo, muitas vezes subjectivo, atribuir-se ou não uma graduação.
Há que discernir entre exame e avaliação.
Uma avaliação correcta deverá ser formativa, sistemática e contínua, sendo aferida em relação à planificação elaborada, ao programa existente, ao cumprimento dos objectivos a alcançar e à prática realizada, traduzindo-se essencialmente num juízo globalizante e fundamentado em dados inquestionáveis.
Só depois de uma avaliação correcta se pode aceitar o conceito de graduação e sua validade.
Quantos Mestres conhecemos que foram graduados sem serem submetidos a exame de graduação e sem passarem por todas as graduações? Quem examinou aqueles que detêm actualmente o 10º Dan, ou mesmo o 9º Dan?
A graduação não se dá nem se compra: a graduação conquista-se, mesmo que ela não exista, por mérito próprio.
A graduação é um vínculo que se estabelece entre Mestre e aluno daí o conceito de Giri...
E aqui levanta-se a questão: pode um 5º Dan graduar um aluno 4º Dan ou mesmo 5º Dan? Problema semelhante ao do professor que se recusa a dar um 20, porque se lho der este saberá tanto como ele...
Como dizem os japoneses, pobre do Mestre que não tenta que o aluno o supere, mas ai do aluno que não se esforçar por ser melhor que o seu Mestre duas atitudes raríssimas entre nós! O "Mestre" porque continua sempre a ser o detentor da verdade absoluta, imutável mantendo uma presença omnipotente, no seu pedestal. O aluno, na sua ingenuidade e na sua idolatria pelo "Mestre", basta-lhe ser igual a este. Atitudes, essas sim, que criam um ciclo reprodutivo (o aluno vai-se construindo à imagem do mestre até ser também divinizado) embora de nível decrescente e de qualidade cada vez mais inferior.
Servem então os exames de graduação para criar uma hierarquia onde há dominantes e dominados a qual vai sendo estabelecida em duas ou três horas, de três em três meses muitas vezes à porta fechada e somente para justificar essa hierarquia, espaço de tempo mais que insuficiente para analisar com consciência os principais parâmetros, de cada dos examinados, em que assenta uma graduação: Shin Kororo (espírito, mental), Ghi Waza (técnica, prática) e Tai Harada (corpo, condição física).
Diz-se que a experiência é a madre de toda a sabedoria. Mas com o decorrer dos anos, com a cristalização da massa encefálica, a experiência é muitas vezes, afinal, a madre de todos vícios e de todas as tradições obsoletas. "Quando há chefes incompetentes no campo de batalha, o sangue dos guerreiros é desnecessariamente derramado".
Sem um programa concreto, sem uma planificação baseada em objectivos específicos, métodos científicos e actividades cientificamente organizadas, não poderá haver uma avaliação válida. Sem uma avaliação válida não poderá haver um progresso nem evolução. Chegar-se-á então ao ponto de ruptura, ao descrédito e à frustração, por si difíceis de atingir pois o que é que haja quem acredite no actual sistema... e que continue a haver!
Pague-se o exame e receba-se o diploma!

5. DIPLOMAS VERSUS REALIDADE

"Não são apenas os que são experientes e sábios que têm mestres,
os tolos também têm os seus."

Uma Associação legalmente constituída tem a faculdade de poder emitir diplomas e conferir graduações aos seus associados daí o cada "Mestre" (ou mais humildemente Instrutor-Chefe) ser o patrão da sua própria "Universidade".
E dos muitos que vão "beber" a essa "Universidade", uns ficam de tal maneira etilizados que o melhor remédio que encontram para a ressaca é não saírem da bebedeira; outros, ao constatarem o modo como essas bebidas estão inquinadas e que afinal o "Mestre" não passa de uma "Rainha de baile" resolvem bater com a porta...
O valor desses "Mestres" é confirmado não pelo número de cintos negros que forma (ou disforma) mas sim pelo número daqueles que com ele permanecem desde o início e que consigo continuam.
E aqui se levanta mais uma questão: quando se rompe o Giri, quando há uma cisão, de quem é a responsabilidade? De quem detém o poder ou o dissidente?
O aluno é diplomado de Kyu em Kyu, de Dan em Dan, e mais tarde torna-se o próprio "Mestre". Mas isto aconteceu simultaneamente com mais 7, 8 ou 9 colegas seus. E o ciclo irá repetir-se eternamente... (já imaginámos que se cada 11 jogadores de uma equipa de futebol todos abraçassem a carreira de treinador no fim da sua vida de atletas, teríamos mais treinadores que jogadores?) até que daqui a uns anos, quando desaparecem os barões que polulam no nosso País, esses 7, 8 ou 9 "Mestres" andarão às cabeçadas para saberem afinal qual é o digno sucessor modelo mais uma vez reprodutivo daquilo que se passa no Japão.
Em Roma, os gladiadores dividiam-se em duas espécies: os vitoriosos e os mortos.
Os vitoriosos eram-no apenas até ao combate seguinte, onde tudo se iria jogar de novo. Os derrotados, não tinham sido mortos pelos seus colegas, eles também escravos, mas sim pelos senhores, ávidos de espectáculo, que se sentavam nas bancadas a aplaudir, saboreando em delírio o sangue derramado.
Mas o último gladiador, o vencedor de todos os combates, sabia que se não se pudesse sentar na bancada dos senhores, não teria ganho mais do que a incerteza de novos combates.
Haverá então, para que esses "Mestres" se sentem na bancada dos senhores, o recorrer ao currículo, aos estágios, aos títulos, aos diplomas...
Muitos desses "Mestres" chorariam amargamente o seu infortúnio, se lhes destruíssem os diplomas e os respectivos registos (se é que existem). Se nenhum panfleto comprovativo das suas qualificações pudessem exibir, talvez emoldurado numa parede do Dojo, perante os seus aduladores, os seus súbditos, seria um autêntico desastre.
Contudo, outros haveria a quem isso pouco incomodaria: os verdadeiros Mestres, pedagogos, técnicos e investigadores permanentes. Para estes, o canudo serviu apenas para satisfação de amigos, vizinhos e familiares e para preencher os requisitos de uma sociedade burocratizada. A esses, a ausência de diploma nada significaria. O seu diploma genuíno está dentro do seu cérebro, no seu sangue, na sua prática, no repetir o que sabe e, consequentemente, a ser mais enriquecido e mais qualificado. O pergaminho de caprichosa letra gótica ou de caracteres orientais rendilhados, será mais considerado como uma fronteira, uma metafísica a ultrapassar.
Há praticantes, verdadeiros Mestres, que há muito enriqueceram o que e como lhes foi ensinado, sobrepondo a essa prática e a esses conhecimentos, outros de valor mais profundo, actualizado e eficiente.
Entretanto, existem os que deixam ficar a contemplar, refastelados, o venerado "papiro" encaixilhado com penas de pavão, lisonjeando-se narcisísticos do "esforço dispendioso" (nunca em quantidade investida) para alcançar tão precioso galardão. A diferença entre estas duas classes de técnicos é abissal!
Uns quedam-se satisfeitos com a sua omni-sapiência, com a sua poltrona na bancada dos senhores quando afinal não passam de escravos do diploma!
Os que pretendem evoluir (talvez até nem tenham brilhado muito) possuem em si o dom da persistência indómita e, ao invés dos acomodátícos, praticam, estudam, aperfeiçoam-se, ensinam, trocam experiências, investigam e, ao contribuírem eles próprios para esse avanço técnico, são dignos de serem tratados por Sensei (sem necessitarem do Dr. antes do nome ou de títulos como Renshi, Kyoshi, Hanshi ou Shihan).
Estar preparado para demonstrar as suas aptidões e capacidades, mesmo que esse momento nunca aconteça, é um misticismo superior, que, ou se nasce com ele, ou se alcança após muitos anos de esforço e coloca esses praticantes num estádio superlativo.
Se só raciocinarmos em termos de binómios de trabalho recompensa, mais esforço prémio especial e produção excepcional consagração e glória, então é porque o nosso esquema mental já está petrificado e é de facto o mundo que gira em torno do nosso "Eu".
Um indivíduo que possui os cromossomas do sublime e da busca da verdade procura constantemente evoluir, aplica-se e aperfeiçoa-se para poder contribuir em prol dos que o rodeiam, em oposição aos que, encerrados na sua casca de ostra, esperam obter administrativamente benesses e fama graças aos louros que lhe foram concedidos.
Abstrair-se dos diplomas, despojar-se da graduação, é prova de independência, de uma vivência pura, de uma experiência sã e honesta, de valor intrínseco, mas só pode ser tornado realidade por aqueles que estão constantemente a valorizar o seu arquivo interior e a compartilhá-lo.
O substrato desse activo (o tal que nem a traça corrói, nem os ladrões roubam ou o fogo destrói) avança, ele próprio, rumo ao que é superior e inalienável.
Ignoremos pois os Diplomas! Encaremos a realidade!