quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Introdução ao Direito do Desporto

A European Law Students' Association (ELSA) em conjunto com a Universidade Católica Portuguesa promove um Curso de Introdução ao Direito do Desporto, a desenrolar-se nas duas primeiras semanas do mês de Março em horário pós-laboral.

Os módulos, os prelectores e as datas do programa são os seguintes:

1 - Introdução ao Direito do Desporto, Professor Doutor José Manuel Meirim, 01/03/2010 pelas 19h00;
2 - Contrato Individual dos Desportistas Profissionais, Mestre António Nunes de Carvalhos, 03/03/2010 pelas 19h00;
3 - Regime Jurídico das Federações Desportivas, Professor Doutor Pedro Machete, 08/03/2010 pelas 19h00;
4 - Sociedades Anónimas Desportivas, Professor Doutor Paulo Olavo Cunha, 09/03/2010 pelas 19h00;
5 - A Justiça no Desporto, Professor Doutor José Manuel Meirim, 10/03/2010 pelas 19h00.

Os interessados em frequentar este curso encontrarão todas as informações em http://elsa-ucplisboa.blogspot.com/.
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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A informação que teima em não chegar...

Há informação que teima em não chegar aos treinadores de Karaté, nem mesmo aos mais interessados nela!

Queixava-me eu, aqui há uns tempos atrás, que a informação que ia para as Associações (na maior parte dos casos, entenda-se!) ficava só na posse de quem recebia a carta ou o e-mail...

Descobri depois que afinal, não era só com as Associações que isto se passava. Por isso queixava-me eu de não saber o que eram as "II Jornadas do Conhecimento Desportivo" ou o "Seminário Internacional do Treino com os Jovens Karatecas", em Itália, (está tudo no relatório e contas de 2008, publicado na net)... pois como pessoa versada e preocupada com a "Ética Desportiva" seriam eventos que me interessariam.

Agora podemos verificar que se realizou um debate promovido pelo «Panathlon» sobre "Fair play no treino" orientado pelo Prof. José Curado.


Souberam as Associações desta iniciativa? Souberam os treinadores deste evento? Se a resposta for negativa, chegamos à conclusão (provável) de que só os Presidentes da Federações é que foram convidados, pois basta ver o "Record" de 20 de Fevereiro e logo vemos o Presidente João Salgado na 1ª fila.
Se a resposta for outra, então a informação continua a teimar em não chegar aos treinadores...
Pobres treinadores... é que amanhã passam-se seis meses sobre a aprovação dos novos estatutos da FNK-P (a tal AG feita a 23 de Agosto) e continuamos sem delegados dos treinadores...
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No melhor pano cai a nódoa...

Recordo-me que por volta de 97 ou 98 rebentou o escândalo no futebol infantil nos Açores...
Recordo-me de Catherine Moyon de Baecque, abusada sexualmente pelos seus colegas masculinos da equipa de França durante um estágio organizado pela federação de atletismo em 1991, o que é descrito pela própria no livro “La Medaille et son Revers” (Paris, Albin Michel, 1997).
No sábado fiquei atónito... Tenho denunciado as perversidades no desporto e até as perversidades ne Karaté. De facto, não me tenho preocupado muito com as perversões, mas que elas existem, lá isso devem existir, porque onde há fumo há fogo...
Os termos perversão e perversidade designam uma anomalia no comportamento, mas é preciso não as confundir porque não têm o mesmo sentido: a perversão designa o desvio de uma tendência fisiológica natural. Falamos de perversão sexual quando a sexualidade se desvia do seu curso normal. A perversidade é mais intelectualizada: supõe uma recusa dos valores morais (corrupção, violência, doping, fraude...). A perversidade é uma atitude associal, que se transforma no comportamento daquele que prefere o mal ao bem em seu proveito próprio, podendo a perversidade não ser senão episódica, e definindo-se esta em relação a uma norma social conhecida. A perversão é patológica...


Basta consultar o Correio da Manha de 20 do corrente!

Sem mais comentários...

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Saifa: romper e esmagar...

As origens da kata Saifa remontam ao estilo chinês da grua branca. Foi trazida para Okinawa pelo Sensei Kanryo Higaonna e era a primeira Kata de Goju-Ryu a ser ensinada pelo Sensei Chojun Miyagi.
Tal era a sua dificuldade de interpretação e execução pelos praticantes iniciados, que este resolveu criar como introdutórias as duas Gekisai. Saifa é uma kata essencialmente de técnicas circulares que utiliza vários tai-sabaki (deslocamento do corpo como esquiva) e é um exemplo de como escapar de muitos adversários ao mesmo tempo.
"Romper e esmagar" é o seu significado, pois aplica várias formas de agarrar e dilacerar tecidos, para de seguida os tornar numa amálgama, segundo um sistema de combate fechado a curta distância.
Esta é uma shitei kata. Kata «maldita» para competição nos nossos campeonatos, por dois motivos essenciais: um, relacionado com os competidores, outro relacionado com os árbitros.
Em relação aos competidores, só um praticante muito experiente em Saifa poderá lograr passar uma eliminatória.
Primeiro porque é uma kata de que não se adquire uma expertise com menos de quatro anos de prática da mesma, pois não basta saber efectuá-la, há que conhecê-la e saber interpretá-la. E falamos não só da sua forma básica, mas também da sua bunkai e das inúmeras técnicas que nela se encontram «escondidas». A sua compreensão não pode ser dissociada da sua forma. Segundo, porque só é bem executada quando, dominado o seu conhecimento total, passa a ser sentida. E terceiro, porque é uma kata muito exigente e com um grau de didiculdade enorme.
Em relação aos nossos árbitros, basta perguntar quantos deles são provenientes do estilo Goju-Ryu. Dois? Três? Não basta recorrer aos parâmetros de avaliação de uma kata para se poder avaliar Saifa. Basta colocá-la ao lado de uma Jion...

Existe um défice de conhecimento desta kata por parte do nosso corpo de arbitragem, não por culpa dele próprio, mas porque tanto Saifa como Sepai deveriam exigir uma outra preparação por parte de quem avalia, a quem deveriam ser dados outros meios para possuir esses conhecimentos. Não há só que conhecer para executar. É necessário sentir para saber avaliar!
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Regional do Centro-Sul - Santarém

Realizou-se a 13 de Fevereiro, em Santarém, o Campeonato Regional da zona Centro/Sul.
Como espectáculo, continuamos a ver a mesma organização de sempre... apesar de poucos competidores, estes sem zona definida passeando pelo pavilhão - alguns colocando-se até à frente dos placards electrónicos - , os treinadores sem identificação passeando-se na mesma por todo o lado. Um amadorismo permanente...
Em contraste, a prestação dos árbitros parece estar a subir de qualidade, o que não acontece por acaso...


Curioso é o facto de termos em Kumite Seniores Feminino, na categoria de -55 Kgs, uma competidora apurada para ir ao Nacional sem efectuar um único combate (claro que a culpa não é dela!). Se eu soubesse, pelo menos tinha inscrito uma atleta para se fazer nesta categoria um "kumitezito" tal como se fez na de -50 Kgs...
Algo se passa com a formação em termos de competição, pois se olharmos para as classificações, os primeiros continuam quase todos a ser os mesmos de sempre (talvez estes sejam profissionais!).
Digam-me agora que o modelo de formação a nível de competição dos mais novos não tem de ser revisto...

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Só mais algumas linhas... as últimas!

Há uma diferença entre aquilo que é formulado de uma forma fundamentada e aquilo que é o senso comum... Foi sobre isto que se discutiu nos últimos posts acerca da taxonomia do Karaté e para o qual tentei dar o meu contributo.

Mas não quero deixar passar aqui algumas afirmações mais directas que me foram dirigidas, desejando desde já agradecer a colaboração do Bruno Afonso, do Carlos Rodrigues, do José Ramalho, do Luís Sérgio, do Nuno Almeida e do João Ramalho.

E vou começar por ordem inversa.

O meu amigo João Ramalho no seu blog "Super-Karate" (http://super-karate.blogspot.com/) fala-nos no BuJutsu, no Budo, e pergunta "onde se encaixa o Karate nesta definição?" e responde logo em seguida "na sua origem, em lado nenhum" para a seguir afirmar que "não seria correcto chamarmos Arte Marcial ao Karate" mas "no entanto para uma maior compreensão do público em geral, compreende-se a utilização da expressão".

O Bruno Afonso afirmava que "um dos «trunfos» que se costumam utilizar é, precisamente, o da defesa pessoal (ainda que muitas também apelem à vertente competitiva). Logo, não vejo como podemos excluir o «marcial» da designação que utilizamos para referir a nossa modalidade".

O Carlos Rodrigues perguntava "como podemos treinar a parte Budo ou seja como acrescentar mais à prática do Karate para além daquilo que é comum aos outros desportos? A parte espiritual? Sim mas como se treina ou trabalha isso?".

Aqui residem duas questões fulcrais: a primeira refere-se ao términus da época do Budo - este acabou com o seppuku de Yukio Mishima, a 25 de Novembro de 1970... a segunda tem a ver com a publicidade que fazemos para atrair mais praticantes. Não devemos estar preocupados em ensinar Budo (que penso que nem o sabemos fazer) mas devemos estar preocupados com a publicidade enganosa.

Muita e grande razão tem o João Ramalho quando diz que "uma das grandes lacunas em Portugal, prende-se com o facto de não haver grande formação na área do Karate Infantil". Nem formação «formativa» nem formação competitiva, acrescentaria eu. Formação implica trans-formação... coisa que é rara hoje em dia, pois o que mais existe é reprodução, ou re-produção...

Para o Bruno Afonso, "seja qual for o estilo, costuma incluir no seu programa o ensino de técnicas de combate que não se limitam à marcação de pontos (chaves de braços/pernas, luxações, estrangulamentos, ataques a pontos vitais, etc.). Se isto não faz com que a nossa modalidade seja marcial só porque não andamos todos no meio da rua a aplicar as técnicas aos incautos transeuntes, então com que propósito no-lo ensinam, com que objectivo o ensinamos, com que fito o treinamos e estudamos? Para a competição não serve, visto que as regras não o permitem. Para a manutenção da condição física não se justifica. Como exercício de desenvolvimento da motricidade não se aplica. Por que o incluímos, então, nos nossos programas? Nalgum momento terá de entrar a vertente de combate real e sem regras (ainda que nós tenhamos as nossas regras morais e éticas, nada nos garante que o nosso agressor as tenha), logo marcial." Então eu pergunto: mesmo com esses conteúdos nesses programas, esse tal momento em que terá de entrar a vertente de combate real e sem regras terá sempre obrigatoriamente de existir, tanto mais que não seja uma vez na vida? Ou são complementos que podem servir para... se eventualmente... O Cristiano Ronaldo pega na bola e faz a “volta ao mundo”, o “cabritinho” e mais meia dúzia de malabarismos, mas depois não são aplicados durante o jogo...

Acredito que o João Ramalho, devido à sua profissão (e até porque é um expert em kyusho e em defesa pessoal), pratique Karaté como arte marcial, mas não é só por haver competição numa determinada actividade que ela é considerada desporto. É preciso muito mais do que isso (e os especialistas identificam mais quatro parâmetros). Em 1997 as danças de salão tentaram ser modalidade olímpica. Se o tivessem conseguido, já seriam desporto?

"Faz parte da natureza humana competir. Competimos para ser mais fortes, mais rápidos, etc...." No entanto há sociedades onde a competição não existe! Talvez esta faça mais parte da condição humana do que da sua própria natureza... E discordo de competimos para ser mais fortes ou mais rápidos, ou etc.... para isso treinamos! - competimos porque queremos vencer quando nos queremos medir ou comparar com alguém ou com algum instrumento de medida.

Caro João, dizes que o "o Karate tem em comum com as modalidades desportivas, é nada, niente, nothing, rien, néstum." Nada mais falacioso, pois entre o Karaté e as outras modalidades desportivas as diferenças não são nenhumas, diferentes são as formas e os conteúdos - um dia haveremos de falar sobre isto!

O Carlos Rodrigues diz que "sendo o Dojo Kun muito importante um "Bushido" dos tempos modernos, como fazer as crianças interiorizarem isso? É o grande desafio..." Toca aqui na Pedagogia do Karaté, aquilo que falta a muitos treinadores, pois são transmitidas qualidades físicas e técnicas mas não são transmitidas qualidades axiológicas, éticas ou morais... É o grande desafio porque são esses valores que devemos transmitir como treinadores! Mas volto a acrescentar que não é com um “Bushido” dos tempos modernos que devemos estar preocupados, nem em fazer as crianças interiorizarem isso. Recitar de memória o Doju Kun ou o qualquer uma outra oração não faz o monge. Devemos estar principalmente preocupados com o desenvolvimento integral e harmonioso das crianças, com o saberem cumprir regras, com o serem responsáveis, com o respeitarem o colega e/ou o adversário...

E o Bruno Afonso diz ainda que "ao treinar um atleta para uma competição estamos a tornar as reacções dele instintivas (estarei errado?). A juntar a isso, sejamos directos, ninguém gosta de apanhar na cara, mesmo que seja por culpa própria. Quando um atleta é magoado (estamos a falar de dor mesmo), por maldade, incúria, ou nabice do oponente, dificilmente fica impávido e sereno. Mesmo que se controle na altura, o instinto criado pelo treino, juntamente com o próprio instinto de sobrevivência, estarão a dizer-lhe que reaja, que responda, que se defenda de futuras agressões. Combinando todos estes elementos, não me admira que haja, volta e meia, situações de violência em competição." Comportamentos automatizados sim, instintivos não: instinto é aquilo que chamamos à réstia de inteligência dos animais (discutirmos instintos levar-nos-ia longe demais...). E mesmo se admitirmos que existe o “instinto de sobrevivência”, este não é característico da competição. Mas aqui temos uma prova de que nada há de diferente entre o Karaté e os outros desportos. Qual o praticante que ao levar numa face dá a outra?

Deixemo-nos então de arvorar em defensores do auto-controle, da disciplina e de todas as outras virtudes que proclamamos serem só dignas do Karaté.
Obrigado a todos pela Vossa colaboração.
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Do marcial... às coincidências!

Será a esgrima uma arte marcial?


Estes comportamentos "desportivos" serão coincidências?


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Karaté: um desporto de confronto corporal directo

Surge este post, como referi, na sequência do anterior, no próprio dia em que publico «o "porquê" de uma teoria».
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Uma actividade onde existe agonística, onde o movimento está presente, na qual a situação motora competitiva designa vencedores e vencidos (mesmo numa prática com mais auto-emulação), que implica jogo – actividade codificada, com regras e regulamentos –, que possui um sistema institucionalizado e que se encontra unida em torno da ideia de projecto tem de ser classificada como desporto e, como tal, um fenómeno social total nos dizeres de Mauss (1989). Fenómeno social constituído por factos sociais. Mas os factos sociais não são coisas: os factos sociais são outra coisa (Yonnet, 1998). Aventurar-nos-íamos a dizer que são processos fluidos...

Uma análise paradigmática permite-nos afirmar, sem dúvida, que no Karaté houve uma transição de arte marcial a desporto de combate. E como já referi, uma coisa será sempre a designação e outra será sempre a actividade e os fins com que se pratica. Para a prática não é imprescindível a nomenclatura, mas esta é necessária para o estudo daquela. Mas não podemos ser reféns de uma denominação reducionista em que se dá mais valor à forma em detrimento do conteúdo...

1. O qualificativo «marcial» é de origem ocidental, vem de «Marte», deus romano da guerra: aplicava-se na civilização romana aos soldados, ao mundo militar e guerreiro. O termo «arte marcial» foi escrito pela primeira vez num poema de Jo. Sotheby introdutório ao livro “The Gentleman’s Armourie”, publicado por Pallas Armata, no ano de 1639 em Inglaterra, e referia-se à “arte marcial da esgrima” (http://www.plumes.org/manuals/PallasArmata/PA-intro.html).

2. Figueiredo (2006) defende na sua tese de doutoramento que “há um certo «orientalismo» na denominação «artes marciais»”. Eu defendo que actualmente a denominação «arte marcial» aplicada ao Karaté é incorrecta, pois ela deixou de o ser (a nossa “arte” deixou de ser “marcial”) e que o próprio Karaté (inicialmente importado) se ocidentalizou (repare-se que de uma língua não acentuada, já adoptámos um estrangeirismo que possui acento na última sílaba).

3. No ocidente, também tivemos as nossas artes marciais. Na Idade Média as justas, os torneios e os páreos começaram a desportivizar essas artes, mas nenhuma delas se transformou em desporto.

4. As então artes marciais, em diferentes momentos temporais das sociedades, tanto ocidentais como orientais influenciadas pela evolução dessas sociedades ou influenciando-as, acabaram por perder as suas características originais de artes da guerra. Em relação ao Karaté teremos ainda de considerar que “a difusão, ou seja, o transporte de realidades culturais de uma para outra cultura, não é um acto, mas sim um processo cujo mecanismo muito se assemelha ao de qualquer processo evolutivo” (Malinowski, 1997). E como tal, há acomodações e assimilações, há interpenetrações e interdependências, há progressos mas também degradações e degenerações, há ganhos mas também perdas.

5. Verificamos assim que “a transição progressiva de técnicas guerreiras a desporto (jogo) processa-se através de tempos e de lugares, assim como através de um processo histórico influenciado por mudanças e movimentações”, o que faz com que “a passagem do Karaté de «arte marcial» a «desporto de combate» não seja uma mutação repentina, mas um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos históricos) inserido em modificações socio-culturais e pela aculturação de uma realidade oriental na cultura ocidental. Todo este processo originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, até porque as condições históricas criaram situações objectivas de desigualdade. Neste avanço temporal, assim como numa deslocação geográfica e cultural, há toda a transferência de rituais que perdem os seus significados originais e ganham outros similares ou diferentes.” Isto afirmei em “Ritos, reproduções e crenças: uma análise socio-pedagógica” (Inocentes, 2009), sétimo capítulo de “Karaté: entre a tradição e a modernidade”, a segunda publicação da nossa federação.

6. Numa realidade socio-cultural radicalmente diferente, e na tentativa de se conseguir testar o nível dos praticantes num percurso de treino avaliando-os, sem que isso implicasse necessariamente um confronto "real", foram surgindo formas de kumite cada vez mais elaboradas, desde o kumite pré-programado (ippon kumite, sanbon kumite, yakusoku kumite, sandan uke barai, sandangi) até ao kumite livre (jyu kumite, shion kumite e shiai kumite), obrigando esse último a uma regulamentação mais elaborada com vista a proteger a integridade física dos oponentes.

7. Foi este movimento particular que faz com que o Karaté se começasse a orientar em direcção a um fenómeno competitivo institucionalizado. Em 1957 a Japan Karaté Association organiza a sua primeira competição formal. Em 1962 funda-se a Japan Karaté Federation, com características inter-estilos. É este primeiro movimento inter-estilos que provoca a rotura no Karaté, passando-se de uma «arte marcial» a um denominado «desporto de combate», iniciando-se assim o futuro do desenvolvimento competitivo institucionalizado do Karaté moderno. Esta evolução origina em 1965 os primeiros campeonatos japoneses. Em 1966 é fundada a EKU, tendo lugar em Paris os primeiros campeonatos europeus. Em 1970, em Tokyo, funda-se a WUKO e decorrem nesse mesmo ano e nessa cidade os primeiros campeonatos mundiais.

8. Passou-se do termo «Karate-Do» através de um reducionismo para o mais usual «Karaté», abandonando-se o conceito «arte marcial» para se centralizar mais a sua denominação em «desporto de combate» (a qual, como já referi, também não me parece ser actualmente a mais correcta). A utilização ainda da classificação de «arte marcial» não passa de mais uma crença (preocupei-me com as crenças na obra atrás referida) existente no Karaté e “submetemo-nos às crenças – como seguimos as regras –, sobretudo a essas crenças práticas sobre as quais se funda toda uma forma de vida e de conduta. E aqui dá-se a submissão: à regra, ao hábito, à nossa ‘imagem do mundo’, que não é uma teoria construída por nós, mas que nos é conatural, de certa forma herdada, pertence-nos e possui-nos, dominando-nos inconscientemente” (Soares, 2004).

9. A representação (tornar presente) guerreira do «combate» (simbólico), regulamentada, a simulação da violência, e o confronto lúdico levam-nos a conferir hoje em dia ao Karaté o estatuto de desporto. O simbolismo presente no mesmo faz com que tenha mais sentido falar em «jogo» do que propriamente continuar-se a falar em «combate». Defendo que ninguém pratica Karaté para combater (procuremos o significado de combate!). E não estará o kumite, numa aproximação a um conteúdo histórico, mais próximo do «duelo de desagravo» do que propriamente do «combate»? Huizinga (2003) toca no assunto ao distinguir «combate» de «luta» e afirma que em todas as lutas em que há regras a respeitar assumem as características formais de um jogo em consequência dessa limitação.

10. O que é um combate? Façamos o exercício de procurar o termo num dicionário!

11. Reportando-nos a Yonnet (2004), verificamos que “não é a natureza material duma actividade que decide o seu carácter extremo, é o uso feito desse material no quadro de uma actividade possível”. Parece-nos que, de facto, não é aquilo que a modalidade desportiva é em si, ou o que representa e simboliza que importa, mas sim o que fazemos com ela e através dela.

12. Não podemos pois classificar o Karaté “civil” actual, federativo, como uma “arte marcial” nem como um “desporto de combate”, pois “é o uso do utensílio que faz a classificação da actividade, não o utensílio por si próprio” (Yonnet, id.), tal como não podemos chamar futebol aos matraquilhos, embora em ambos o objectivo seja o mesmo: marcar o golo...

13. Sendo o corpo do outro objecto e objectivo da acção, é atingindo ou manipulando directamente o corpo do outro que se ganham pontos e jogos. A intencionalidade verifica-se através de uma técnica – comportamento observável – que pretende acertar (princípio do sundome) num alvo devendo obedecer a certos critérios. No Karaté o contacto corporal é intencional, directo e um fim em si.

14. Por isso defendo que não praticamos um «desporto de combate», mas sim um “desporto de confronto corporal directo”.

15. Repare-se que no célebre livro de 1643, escrito por Miyamoto Musashi, “Go Rin No Sho” (Musashi, 2007, Edições Europa-América), o termo heiho é traduzido como «arte marcial». A tradutora, Catarina Fonseca, explica-nos que este termo, escrito com dois caracteres, levanta um problema: o primeiro ideograma pode significar «soldado», «batalha», «arma» ou «estratégia», pelo que defini-lo como «marcial» é correcto, enquanto o segundo é um pouco mais complicado e significa «lei», «método», «técnica», «arte», «modelo», «sistema» ou «doutrina». No budismo, acrescenta ainda a tradutora, no qual Musashi era versado, este segundo ideograma pode significar «verdade» enquanto percepção ou prática do budismo em si e, apesar de existir o termo gei para designar outras artes (tal como a cerimónia do chá, o teatro noh ou a arte do arco – kyudo), Musashi utiliza este termo para descrever o seu «caminho».
16. Curioso é o facto de na tradução de Luís Serrão do mesmo livro, a partir da versão inglesa (Musashi, 2002, Coisas de Ler Edições), todos os termos em que na obra referida anteriormente aparecem como «arte marcial», neste segundo livro aparecem sempre e só traduzidos como «estratégia».

17. No quadro de uma Sistemática do Desporto, há de facto a necessidade de criarmos Grupos Taxonómicos das Actividades Desportivas – vítimas ainda que somos do espírito cartesiano... – e lá aparece o Karaté nos denominados «desportos de combate», desportos onde se manipula um objecto (nos outros desportos costuma ser uma bola, quer seja com os pés, as mãos, um stick ou uma raqueta) que é um ser humano – é sujeito e objecto simultaneamente da acção.

18. No 2º Congresso Científico de Artes Marciais e Desportos de Combate defendi exactamente esta posição (Inocentes, 2009). É mais correcto falar num e de um “desporto de contacto corporal directo” (intencional e objectivo), à semelhança do Judo, do Taekwon-do e do Boxe, em alternativa à Esgrima, ao Kendo ou ao “Jogo do Pau” (Esgrima Lusitana), desportos de contacto corporal indirecto.

19. Por que continuamos a insistir em que praticamos uma «arte marcial» ou um «desporto de combate»? Baudrillard (1992) dá-nos a resposta: “quando as coisas, os signos, as acções são libertadas de sua ideia, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, da sua referência, de sua origem e de sua finalidade, entram então numa auto-reprodução ao infinito. As coisas continuam a funcionar ao passo que a ideia delas já desapareceu há muito. Continuam a funcionar numa indiferença total a seu próprio conteúdo. E o paradoxo é que elas funcionam melhor ainda”. Por que praticamos uma «arte marcial» quando não fazemos competição? Ou por que aceitamos que praticamos desporto enquanto fazemos competição e após abandonarmos esta afirmamos praticar uma «arte marcial»? O mesmo Baudrillard (id.) volta a responder-nos: “se o indivíduo já não se confronta com o outro, defronta-se consigo mesmo”.

20. Mas, baseando-nos em Feyerabend (1993), por um lado, poderemos ter várias concepções teóricas («arte marcial» ou «desporto de combate») que são sustentadas com tenacidade, sendo possível escolher a mais adequada em determinada situação e contexto. Por outro lado, poderemos romper com as teorias estabelecidas embora por hipóteses inconsistentes com aquelas ou que as façam parecer absurdas e obrigarmo-nos a um maior esforço de argumentação e de fundamentação – tendo sido este último o caminho que segui, introduzindo uma outra teoria, um outro ponto de vista e uma outra interpretação.

Nietzsche dizia que não há factos, apenas interpretações. A função do investigador é precisamente a de interpretar – foi esse o meu papel. A função do investigador é criticar com fundamentos para reformular rumo ao conhecimento – o que também tenho feito. E se só agora, tardiamente, confesso, li na origem Karl Popper (1992), é de salientar que este frisa que “não existe conhecimento sem crítica racional, crítica ao serviço da busca da verdade”. Com ele coincide o actual Manuel Sérgio (2009) pois para este “a ciência finda, quando a crítica termina, quando o seu objecto de estudo se dilui”. Em palavras anteriores deste mesmo Professor, criticar com ciência e consciência... aquilo que também fiz na primeira publicação da nossa federação, em “Da Ética Desportiva às Perversidades do Desporto” (Inocentes, 2007).

Uma dúzia de anos de prática, outros doze de prática e de ensino, aliados a mais doze de prática, de ensino, de pesquisa e de investigação (e não 36 anos só de prática) conferem-me a legitimidade de contribuir para repensarmos asistemática e a taxonomia do Karaté.


BAUDRILLARD, Jean, 1992, “A Transparência do Mal – ensaio sobre os fenómenos extremos”, São Paulo, Papirus Editora.
FIGUEIREDO, Abel, 2006, “A Institucionalização do Karaté – os modelos organizacionais em Portugal”, Cruz Quebrada, Lisboa, FMH-UTL, Dissertação de Doutoramento, doc. não publicado.
HUIZINGA, Johan, 2003, “Homo Ludens”, Lisboa, Edições 70.
INOCENTES, Armando, 2009, “Da Ética Desportiva às Perversidades no Desporto – ou das virtudes às violências no e do desporto”, Lisboa, edições FNK-P.
INOCENTES, Armando, 2009, “Ritos, reproduções e crenças: uma análise socio-pedagógica”, in J. Salgado & L. Pereira, “Karaté: entre a tradição e a modernidade – ou dos primórdios à contemporaneidade”, Lisboa, edições FNK-P, pp. 117-158.
INOCENTES, Armando, 2009, “Repensar a Sistemática do Karaté”, comunicação apresentada ao 2º Congresso Científico de Artes Marciais e Desportos de Combate, 16 e 17 de Maio de 2009, ESSE-ISPV & ADIV, Viseu, doc. não publicado.
MALINOWSKI, Bronislaw, 1997, “Uma Teoria Científica da Cultura”, Lisboa, Edições 70.
MAUSS, Marcel, 1989, “Sociologie et Anthropologie”, Paris, PUF.
MUSASHI, Miyamoto, 2002, “O Livro dos Cinco Anéis”, Queluz, Coisas de Ler Edições.
MUSASHI, Miyamoto, 2007, “O Livro dos Cinco Anéis”, Mem Martins, Europa-América.
POPPER, Karl R., 1992, “Em Busca de um Mundo Melhor”, Lisboa, Editorial Fragmentos.
SÉRGIO, Manuel, 2009, “Filosofia do Futebol”, Lisboa, Prime Books & IDP.
SOARES, M. Luísa Couto, 2004, “O Que É o Conhecimento? – Introdução à Epistemologia”, Porto, Campo das Letras.
YONNET, Paul, 1998, “Système des Sports”, Paris, Éditions Gallimard.
YONNET, Paul, 2004, “Huit leçons sur le sport”, Paris, Éditions Gallimard.
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O "porquê" de uma teoria

Antes de mais desejo agradecer o contributo daqueles que colaboraram nesta discussão, mas antes de complementar e apresentar os fundamentos daquilo que tenho defendido (como diz o Bruno Afonso tenho-me esforçado por fundamentar as minhas opiniões devidamente, ou, pelo menos, fornecer referências que ajudam a perceber a razão de ser das ditas opiniões) quero deixar aqui algumas considerações. O meu próximo post irá justificar as minhas posições.

Arte Marcial? Desporto de combate? Uma coisa será sempre a designação e outra será sempre a actividade e os fins com que se pratica. Para a prática não é imprescindível a nomenclatura, mas esta é necessária para o estudo daquela. Num contributo para a Sistemática do Desporto tenho apresentado a teoria de que o Karaté deve ser designado como um “desporto de confronto corporal directo”. Mas “uma teoria não é o conhecimento, ela permite o conhecimento. Uma teoria não é uma chegada, é a possibilidade de uma partida. Uma teoria não é uma evolução, é a possibilidade de tratar um problema” (Morin, 2003).

As teorias podem ser apresentadas por quem está no interior do Karaté mas também por quem está no seu exterior. Mas existem diferenças entre:
1. apresentarmos teorias estando no interior da modalidade, praticando e estudando a mesma, e apresentarmos teorias estando só no exterior da mesma;
2. apresentarmos teorias estando no interior da modalidade, praticando e estudando a mesma, e estando só no interior da mesma.

O que quer dizer que também podem ser apresentadas por quem está ao mesmo tempo no interior e exterior do mesmo. Terão estas mais valor que qualquer uma das outras, pois enquanto no primeiro caso a comparação não é feita com base numa praxis, numa vivência, na segunda a comparação é feita com base numa transmissão que não é mais do que uma reprodução. Regresso a Manuel Sérgio (2009) quando afirma que “na motricidade, a teoria é praxis e a praxis é teoria”.

E se uma teoria nos pode conduzir ao conhecimento, quando aliamos a teoria à prática e a prática à teoria “o conhecimento é, se assim se quiser, o produto de uma catalisação da experiência adquirida pela participação observante, em contacto com os recursos oferecidos pelas ciências humanas, as ciências da natureza e as ciências exactas. O conhecimento é assim o produto da incorporação de uma interioridade na exterioridade” (Yonnet, 1998).

Em 1995, num artigo publicado na então revista «Bushido», afirmava eu que se pretendemos “um desporto completo, formativo, não poderá haver dicotomia entre Kata e Kumite (o ginasta faz tapete, argolas, paralelas, etc.)”. Referindo-me à competição, continuava dizendo que “os lugares alcançados pelos atletas deveriam ter em conta estas duas provas, o que passaria por eliminar os especialistas numa só modalidade. Isto pressupõe um novo modelo de competição onde, a nível individual, o lugar alcançado seria o somatório entre as duas provas executadas pelo mesmo atleta. E porque não incluir, à semelhança dos outros desportos (ginástica, patinagem no gelo, etc.) uma prova que seria um misto de Kata e Kumite – talvez um Jyu Ippon Kumite ou uma Bunkai Kata – a que seria atribuída uma nota técnica e uma nota artística que também contribuiriam para esse somatório?” (Inocentes, 1995).

A Federação Mundial de Karaté chegou de facto à Bunkai em Kata, embora só em equipas, uns anos depois...

Boaventura de Sousa Santos (1998) explica-nos que “determinar a diferença prática decorrente da aceitação de uma ou outra teoria não é algo que se possa fazer inequivocamente e sem a mediação das lutas de interpretações”. Por isso as teorias lutam por uma dupla verdade: a verdade científica em sentido restrito e a verdade social. Daí duas consequências ocorrem: a primeira é que a verdade é indirecta e prospectiva (a correspondência às expectativas tem sempre lugar num futuro, mais ou menos distante); a segunda é que a verdade é o efeito do convencimento dos vários discursos de verdade em presença (perante um auditório de participantes competentes e razoáveis e perante um auditório universal). Daí o confronto entre ciência e senso comum, daí o princípio da dupla ruptura epistemológica. Se “deixou de ter sentido criar um conhecimento novo e autónomo em confronto com o senso comum (primeira ruptura) se esse conhecimento não se destinar a transformar o senso comum e a transformar-se nele (segunda ruptura)” (id.), então estão criadas as condições para essa dupla ruptura epistemológica no Karaté.

E se encontramos os «desportos de combate» como Grupo Taxonómico das Actividades Desportivas (Almada, 1992; Peixoto, 1997), tenho esperança que daqui a uns anos exista a possibilidade de lá encontrar os «desportos de confronto corporal directo» para aí colocarmos a nossa modalidade...

Seguir-se-ão os detalhes no próximo post.

ALMADA, F., 1992, “Cadernos da Sistemática das Actividades Desportivas nº 2 - Apresentação da Base Conceptual da Sistemática das Actividades Desportivas - Taxonomia e Modelos de Tratamento do Conhecimento”, Cruz Quebrada, UTL – FMH, Edições FMH.
INOCENTES, A., 1995, “Para uma Pedagogia do Desporto”, Bushido – Artes Marciais e Desportos de Combate, Ano VIII, n.º 68, Nov./95, pp. 9-11.
MORIN, E. & Le MOIGNE, J. L., 2006, “Inteligência da Complexidade – Epistemologia e Pragmática”, Lisboa, Instituto Piaget.
PEIXOTO, C., 1997, “Modelos e Sistemas de Análise do Desempenho Desportivo”, Cruz Quebrada, UTL – FMH, Edições FMH.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 1998, “Introdução a uma Ciência Pós-Moderna”, Porto, Edições Afrontamento.
YONNET, P., 1998, “Système des Sports”, Paris, Éditions Gallimard.
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