segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Quarteto de cordas...



“A violência também existe no Karaté” teve três comentários. Comentários de pessoas preocupadas... O primeiro interrogando (Carlos Rodrigues), o segundo afirmando (José Ramalho) e o último confirmando através de novas interrogações (Luís Sérgio).

Ainda bem que existem pessoas preocupadas com estas preocupações... Seremos quatro, daí o quarteto... veremos que tipo de cordas e para que servem!

Mas convém primeiramente fazer aqui algumas destrinças, segundo a minha modesta opinião, pelo que vou ousar dar o meu contributo tentado responder ou complementar esses comentários.

A primeira, relacionada com aquilo que nos foi inculcado durante muito tempo, o que nalguns casos ainda continua a acontecer.

Aquilo que treinamos actualmente é um desporto, um desporto que, como tal, possui competição formalizada; não treinamos uma «arte marcial» pois não praticamos Karaté com o sentido de «ir à guerra»; ninguém faz tiro com arco pata atirar umas flechas ao seu vizinho quando se incompatibiliza com ele, nem tiro aos pratos para acertar da janela do andar do seu apartamento nos ladrões que lhe estão a tentar roubar o carro. Militares ou forças paramilitares podem treinar Karaté como «arte marcial», nós, praticantes civis, competidores ou não, não é essa a via que seguimos.

Chamar «arte marcial» à modalidade desportiva que praticamos não é, neste momento, nesta sociedade, o mais correcto. Nem sequer praticamos um «desporto de combate», mas sim um “desporto de confronto corporal directo” (veja-se o post que deu início a este blog). Graças à denominação «marcial» muito do que o Karaté tem é e tem sido conotado com violência...

Ninguém pratica Karaté para combater (no sentido literal do termo, dado que no combate não há regras, a morte é real) com o adversário, pois este não é o inimigo. Pratica-se Karaté para competir... mesmo na kata, um “aforismo” do kumite, estilização do mesmo, ou sua forma estética. A kata é simbolicamente um «combate real» contra «inimigos» hipotéticos, e não, como nos venderam durante muito tempo, um «combate imaginário contra quatro adversários».

Se a arte marcial estava ligada ao Budo, neste momento o nosso treino pode incluir princípios que são daí originários, mas nada tem a ver com a parte espiritual. O dojo não é um lugar de culto, como a igreja ou a mesquita... Apesar do desporto conter rituais e poder haver certas afinidades com uma “religião” (ir à “catedral” ver jogar “a nossa” equipa tem algo a ver com isso!).

Estarmos preocupados (como treinadores) em transmitir valores através do treino deveria ser uma das nossas preocupações. O comportamento do atleta adulto reflecte sempre a sua formação anterior – e quem foi responsável por ela? O treinador. Mas a acção do treinador sobre a criança e/ou o jovem não é condição única pois há inúmeros outros factores que se interagem sobre o indivíduo e levam o competidor a apresentar um comportamento de violência, nomeadamente as circunstâncias ou a situação na qual esse comportamento é despoletado.

Treinar a concentração, o cumprimento das regras, o respeito pelo colega e pelo adversário, a responsabilidade do comportamento apresentado e o controlo (quer seja o sundome quer seja o controlo emocional), devem estar nos nossos horizontes. Devemos ensinar os competidores a “aprender a ganhar” ao invés de os levar a “saber perder” (mais uma em que sempre se bateu, para não falar daquela célebre “o que interessa é participar”).

O que tem o Karaté para além daquilo que é comum aos outros desportos? Nada! O Karaté é um desporto precisamente igual aos outros (reparem que até no ténis ou no basquetebol o kiai existe!). De que falamos quando falamos na parte espiritual do treino? Não estaremos fazer alguma confusão com o desenvolvimento moral do praticante? Tal como quando falamos da parte mental, não estaremos a fazer alguma confusão com a parte psicológica?

Um segundo aspecto tem a ver com o facto de qualquer ser humano ser um homicida em potência, muitas vezes dependendo da situação, segundo dizem os entendidos na matéria. Mas há que destrinçar aquilo a que chamamos combatividade (persistência, perseverança, vontade de vencer) de agressividade (tendência para...) e ainda de violência, que não é o mesmo que agressão (os compêndios dizem que há cerca de uma dúzia de teorias que explicam por que motivos o homem pode ser violento, umas divergentes de outras, outras ainda complementando-se).

Uma terceira destrinça refere-se às competências do treinador: as competências técnicas, que são apresentadas pela sua graduação, e as suas competências pedagógicas, que lhe são conferidas através da sua formação numa carreira de treinador. Muitos possuem boas competências técnicas, mas de pedagogia nada percebem... alguns até possuem algumas qualidades pedagógicas inata, mas ainda lhes falta o background técnico e formativo – nem os primeiros nem os segundos deveriam ser treinadores! A própria formação de treinadores, daqui para a frente escalonada em GI, GII, GIII e GIV faria muito mais sentido se tivéssemos os especialistas em escalões de formação, os especialistas em pré-competição e/ou competição e os especialistas em alto rendimento.

Perguntam-me agora: e o tradicional? O tradicional também tem competição, conforme defendeu Rómulo Machado no 1º Congresso Nacional de Treinadores de Karaté, em Janeiro de 2009, na FMH. Quem quer faz, quem não quer não faz... felizmente! E esta do «tradicional» tem sido outra que nos tem sido impingida...

Como nos mostra Giddens (2006), o tal Karaté tradicional não é tão «tradicional» como isso, pois o conceito de tradição não passa de um conceito da modernidade. “A resistência à passagem do tempo não é a característica fundamental da tradição, nem do seu primo um pouco menos visível, o costume. As características que definem a tradição são o ritual e a repetição. As tradições são sempre pertença de grupos, comunidades ou colectividades. (…) Contudo, por muito que mude, a tradição proporciona meios de acção que são pouco questionáveis. É normal que as tradições possuam guardiões próprios: homens bons, sacerdotes, sábios. Mas ser guardião não é o mesmo que ser especialista”. Convém começarmos a questionar esses meios de acção, investigando, partilhando ideias e dando o benefício da dúvida às nossas próprias convicções e crenças.

Os que treinam crianças e jovens deveriam ser aqueles que mais competências técnicas e pedagógicas tivessem... Acabei de ler o último livro do Prof. Manuel Sérgio onde ele nos diz que “uma coisa é o sábio que domina a ciência criada; outra, o artista que a recria e reproduz”...

Mas na formação de treinadores há uma lacuna: os conhecimentos sobre sociomotricidade, sobre os planos afectivo e relacional... sobre o comportamento motor intencional quando se interage com os seus semelhantes... Ensinar a criança que “se estraga” o adversário fica sem companheiro para poder brincar, ensinar a criança que há uma diferença entre bater e tocar embora ambas impliquem contacto, ensinar a criança que tem de respeitar para ser respeitada, preparar o jovem para competir lealmente, preparar o jovem para fazer competição dentro das regras, preparar o jovem para respeitar as decisões dos árbitros, preparar o jovem para competir com espírito desportivo mesmo que o objectivo final seja a vitória – são funções do treinador (esquecidas... mas que são, lá isso são!).

Mas também há que preparar os árbitros para respeitarem os competidores... Como respeitar um árbitro se ele não está bem preparado (ou nem sequer sabe disso) – não é por acaso que o bom árbitro não é aquele que erra, mas aquele que erra menos vezes.

O competidor desenvolve-se aprendendo, atingindo uma certa maturidade e adaptando-se (daí a tal importância da situação!) A ética desportiva tanto pode ser ensinada e aprendida de uma forma lúdica como competitiva... Há metodologias que apontam para isso, e em vez de termos um Karaté reprodutivo como o que temos, deveríamos ter um Karaté em que se deveriam abrir os horizontes dos treinadores, dos praticantes e dos competidores para esses aspectos. Mais uma vez recorro a Pessoa: “viver não é necessário; o que é necessário é criar”.

E o que acontece com o treinador? Participa em estágios ou outras acções de formação com o gi vestido mas ignora conferências, colóquios e seminários para treinadores, ou outras acções de formação mais teóricas do que práticas. A prática de nada vale sem a teoria e a teoria para nada serve se não for complementada pela prática. Manuel Sérgio (2009) afirma que “na motricidade, a teoria é praxis e a praxis é teoria”. Daí a necessidade do treinador ter também conhecimentos teóricos fundamentados e consolidados que complementem a sua prática.

Tive a feliz oportunidade de orientar uma acção de formação sobre “Ética, Desporto e Karaté” nas seis zonas do país e, para espanto meu, ao chegar a um dos locais onde a mesma se iria desenrolar encontrei alguns treinadores de karategi... quando estavam informados sobre os conteúdos da acção e de que a mesma tinha um cariz teórico didáctico-pedagógico...

Durante a época desportiva de 2007/08, verificámos que dos Treinadores de Karaté participantes nas cinco acções de formação, somente cerca de 1,6% conhecia o referido Código. Na última acção de formação, já em 2008/09, dos 48 participantes nenhum o conhecia.
Será que ao menos conhecem os nomes dos elementos da selecção nacional de Karaté?

E se o hábito não faz nem nunca fez o monge, alguém disse “quando ganhar é tudo, fazemos tudo para ganhar”... correcto ou não tudo depende é do "como"...

GIDDENS, Anthony, 2006, “O Mundo na Era da Globalização”, Barcarena, Editorial Presença.
MANUEL SÉRGIO, 2009, “Filosofia do Futebol”, Lisboa, Prime Books & IDP.

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1 comentário:

  1. Caro Armando !
    Uma excelente reflexão, abordas de facto "temas" muito pertinentes e a merecerem toda a atenção de todos os amantes e praticantes de Karaté.
    Queiram os responsáveis abrir os olhos e aceitar uma discussão franca e leal.
    Continua.

    Grande abraço,

    Luís Sérgio

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