Recebi por mail um comentário ao post "Quarteto de cordas...", que por ser extenso, o seu autor - Bruno Afonso - gentilmente decidiu enviá-lo como anexo.
Dada a pertinência do tema, e até porque aqui não se pretende que só se manifestem as opiniões convergentes, transcreve-se na íntegra o referido comentário.
E como dizia aquele no seu mail, "que daqui possa sair uma troca de opiniões interessante e frutuosa"...
"Exmo. Sr. Dr. Armando Inocentes,
Antes de mais, felicito-o pelo seu blogue. É bom termos acesso às opiniões de alguém que se esforça por fundamentá-las devidamente, ou, pelo menos, fornece referências que ajudam a perceber a razão de ser das ditas opiniões.
Devo dizer também que, aquando da minha participação nos 10.º e 11.º cursos de formação de treinadores de Karate de nível I, as suas intervenções foram das que me pareceram mais consistentes.
Isto apenas para esclarecer que respeito os seus pontos de vista e os contributos que tem dado a nível das informações e teorias veiculadas sobre a nossa modalidade.
No entanto, não consigo concordar com muito do que refere neste artigo (peço desculpa se interpretei mal alguma das suas opiniões por não ter lido o resto do seu blogue, mas o tempo não me permitiu ainda fazer a devida análise do mesmo).
Diz-nos então no seu artigo que aquilo que praticamos actualmente é um desporto, que «não treinamos uma "arte marcial" pois não praticamos Karate com o sentido de "ir à guerra"» e que «ninguém pratica Karate para combater (no sentido literal do termo, dado que no combate não há regras, a morte é real)». Admitindo que, para muitos praticantes, tal seja verdade, também é um facto que, para muitos outros, o que os motivou inicialmente a praticarem Karate foi a sua componente de defesa pessoal. Nesses casos, o que as pessoas procuram é algo que as ajude a preservarem a sua integridade física, o que, em casos extremos, poderá equivaler a preservarem a própria vida (pelo que a morte é, sim, uma realidade).
Pessoalmente, desconheço que tipo de promoção faz das suas aulas, mas sei que, na generalidade das artes marciais, um dos «trunfos» que se costumam utilizar é, precisamente, o da defesa pessoal (ainda que muitas também apelem à vertente competitiva). Logo, não vejo como podemos excluir o «marcial» da designação que utilizamos para referir a nossa modalidade. É que, se, por um lado, não andamos pelas ruas de sabre debaixo do sobretudo, «a la» Highlander, o certo é que, por outro, o Karate, seja qual for o estilo, costuma incluir no seu programa o ensino de técnicas de combate que não se limitam à marcação de pontos (chaves de braços/pernas, luxações, estrangulamentos, ataques a pontos vitais, etc.). Se isto não faz com que a nossa modalidade seja marcial só porque não andamos todos no meio da rua a aplicar as técnicas aos incautos transeuntes, então com que propósito no-lo ensinam, com que objectivo o ensinamos, com que fito o treinamos e estudamos? Para a competição não serve, visto que as regras não o permitem. Para a manutenção da condição física não se justifica. Como exercício de desenvolvimento da motricidade não se aplica. Por que o incluímos, então, nos nossos programas? Nalgum momento terá de entrar a vertente de combate real e sem regras (ainda que nós tenhamos as nossas regras morais e éticas, nada nos garante que o nosso agressor as tenha), logo marcial.
Relativamente à competição (em kumite apenas), confesso que, no meu entender, não beneficia em nada a opinião que as pessoas em geral têm do Karate – atrever-me-ia até a dizer que a conotação que o Karate tem com violência poderá ser mais provocada pela competição do que pelo termo «marcial», uma vez que as artes marciais são também conotadas com disciplina (aliás, é geral o conhecimento de que tudo o que é militar – marcial – envolve disciplina) e respeito pelo outro. Não pretendo com isto desancar a competição só porque sim. Acho que, no seu conceito, a competição não terá nada de errado. O problema é a deturpação que várias entidades fazem do objectivo desportivo; o problema é a realidade que vemos nos tatami, com competidores que perdem as estribeiras e treinadores que o incentivam. Isso sim, dá uma péssima imagem do Karate.
E com isto se prende uma questão que aqui gostaria de lançar. Que meta se apresenta a um competidor? A competição é contra quem? É uma competição contra o adversário, ou é uma competição que o atleta tem de fazer contra si mesmo, procurando superar-se em vez de procurar superar o outro?
Se o objectivo apresentado for o de superar o outro, creio que é mais ou menos inevitável haver, cedo ou tarde, episódios de violência dentro do tapete. Senão, vejamos! Um atleta, quando vai para uma competição, tem horas de sacrifício em cima, está com os níveis de testosterona em alta, tem a mente e o corpo totalmente programados para aquele momento, está com a adrenalina a disparar e encontra-se disposto a dar tudo para suplantar o seu adversário, dentro das regras estabelecidas. Ora, dado este enquadramento, até que ponto devemos esperar que um atleta ultrapasse aquilo que já se tornou uma espécie de segunda natureza e encare com serenidade as falhas de controlo técnico do seu adversário, os erros inadvertidos dos árbitros e juízes, bem como a frustração por não conseguir pontuar devidamente? É que, quer queiramos quer não, ao treinar um atleta para uma competição estamos a tornar as reacções dele instintivas (estarei errado?). A juntar a isso, sejamos directos, ninguém gosta de apanhar na cara, mesmo que seja por culpa própria. Quando um atleta é magoado (estamos a falar de dor mesmo), por maldade, incúria, ou nabice do oponente, dificilmente fica impávido e sereno. Mesmo que se controle na altura, o instinto criado pelo treino, juntamente com o próprio instinto de sobrevivência, estarão a dizer-lhe que reaja, que responda, que se defenda de futuras agressões. Combinando todos estes elementos, não me admira que haja, volta e meia, situações de violência em competição.
Talvez a solução esteja em alterarmos a programação mental que incutimos aos competidores e apresentar-lhes como objectivo a auto-superação, por oposição ao que foi referido anteriormente.
Ou então, pura e simplesmente, temos de investir no aspecto mental (do autocontrolo, da cortesia, etc.) do atleta o mesmo que investimos no aspecto físico, e se calhar é essa a principal falha de muitos treinadores.
Estará o problema em se querer transformar em desporto algo que serve, na sua expressão mais básica, para lutar? Eventualmente! Mas não acredito que seja incontornável.
Refere no seu artigo o Budo e o aspecto ritualista e espiritual do mesmo. Não me vou aqui pronunciar sobre o aspecto espiritual pois é um terreno algo pantanoso e passível das mais variadas interpretações.
No entanto, pondo de parte qualquer intenção religiosa que possa estar relacionada com rituais, acho que a não existência dos mesmos no Karate poderá ter como consequência um desrespeito imenso pela modalidade e por tudo o que lhe concerne. Pôr de parte todo o cerimonial a que fomos habituados poderá levar ao desleixo, algo que não pode haver em artes marciais (nem em desportos de confronto corporal directo). Basta ver as vénias que alguns competidores fazem, que são só «para inglês ver» – curiosamente, muitas vezes são esses mesmos competidores que têm depois atitudes impróprias.
Os rituais criados pelos orientais e aplicados ao que hoje conhecemos como artes marciais não foram obra do acaso. Talvez devamos indagar um pouco mais sobre as vantagens e desvantagens dos mesmos antes de os pormos de lado. As coisas evoluíram e o Karate também deve evoluir, é verdade. Por outro lado, se os tempos mudaram, o ser humano não mudou grandemente, e é o ser humano que torna o Karate uma arte, uma actividade marcial, ou um desporto.
Teria ainda outras opiniões a partilhar consigo sobre este artigo, mas já me alonguei muito para além do que esperava... e nem os leitores do blogue nem o seu autor têm culpa de eu ter tanto para dizer.
Ficam aqui os comentários de um karateca de 27 anos, praticante há 13, com toda a inexperiência (relativa e comparativamente falando) que tal acarreta.
Cumprimentos
Bruno Afonso"
...
Concordo com as opiniões aqui expostas pelo Bruno Afonso, como aliás quem for leitor do meu blog logo perceberá,no entanto também sou a favor da componente desporto do Karate, mas para mim será sempre apenas uma componente, e a menos importante, já que o Karate-DO que entendo como via para o auto aperfeiçoamento mental e fisico será para mim sempre mais importante, mais até do que o Karate Marcial o qual foi a genese da modalidade e que nunca podemos esquecer e desprezar. O Karate como desporto para as crianças, penso que deve dar algum valor acrescentado aquilo que é comum a todos os outros desportos, que faça os pais olharem para o Karate como algo mais do que um simples desporto, uma escola de virtudes, sendo o Dojo Kun muito importante um "Bushido" dos tempos modernos, como fazer as crianças interiorizarem isso? é o grande desafio...
ResponderEliminarJá no caso dos adultos, penso que esses valores só poderão ser melhor entendidos através de uma prática mais virada para o DO ou para o Marcial, quando perceberem que não é apenas um jogo como o futebol ou outro desporto mas sim algo que poderá por efectivamente a sua integridade fisica ou a do parceiro de treino em perigo se não houver respeito pelas duas partes, e que a vida inteira será de aprendizagem e de aperfeiçoamento.E isso não acontece numa modalidade desportiva, nem sequer em desportos de combate, é também por isso que o Karate é Arte, é para toda a vida.
Concordo em parte com o nosso colega Bruno, tanto mais que, tanto quanto me é dado saber, este tipo de atitudes só se desenrola na competição. O ambiente "bélico" é criado pela rivalidade pouco saudável incrementada por vezes, pelos treinadores. Sempre que participo em acções de formação em que se discutem aspectos da competição, os próprios formandos vibram de uma forma que eu não entendo. Eu reconheço as virtudes da competição embora, pessoalmente, não tenha grande afeição por esta componente do karaté, no entanto, reconheço que é a competição que promove o karaté e que movimenta os jovens apelando à sua "agressividade" inata. Volto a dizer que, na minha opinião, o descontrole desta agressividade parte dos treinadores que exaltam a sua escola de forma por vezes, doentia. A tensão nervosa e a agressão, são contagiosos - especialmente para as mentes jovens e sedentas de "acção" que veneram o seu treinador de forma perigosa. Compreendo o comentário e revejo-me, um pouco, nesta óptica sem declarar guerra à competição, que faz parte importante do nosso trabalho. Aproveito para saudar a discussão trazida a este blog que ajuda à reflexão e à "iluminação".
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