segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O "porquê" de uma teoria

Antes de mais desejo agradecer o contributo daqueles que colaboraram nesta discussão, mas antes de complementar e apresentar os fundamentos daquilo que tenho defendido (como diz o Bruno Afonso tenho-me esforçado por fundamentar as minhas opiniões devidamente, ou, pelo menos, fornecer referências que ajudam a perceber a razão de ser das ditas opiniões) quero deixar aqui algumas considerações. O meu próximo post irá justificar as minhas posições.

Arte Marcial? Desporto de combate? Uma coisa será sempre a designação e outra será sempre a actividade e os fins com que se pratica. Para a prática não é imprescindível a nomenclatura, mas esta é necessária para o estudo daquela. Num contributo para a Sistemática do Desporto tenho apresentado a teoria de que o Karaté deve ser designado como um “desporto de confronto corporal directo”. Mas “uma teoria não é o conhecimento, ela permite o conhecimento. Uma teoria não é uma chegada, é a possibilidade de uma partida. Uma teoria não é uma evolução, é a possibilidade de tratar um problema” (Morin, 2003).

As teorias podem ser apresentadas por quem está no interior do Karaté mas também por quem está no seu exterior. Mas existem diferenças entre:
1. apresentarmos teorias estando no interior da modalidade, praticando e estudando a mesma, e apresentarmos teorias estando só no exterior da mesma;
2. apresentarmos teorias estando no interior da modalidade, praticando e estudando a mesma, e estando só no interior da mesma.

O que quer dizer que também podem ser apresentadas por quem está ao mesmo tempo no interior e exterior do mesmo. Terão estas mais valor que qualquer uma das outras, pois enquanto no primeiro caso a comparação não é feita com base numa praxis, numa vivência, na segunda a comparação é feita com base numa transmissão que não é mais do que uma reprodução. Regresso a Manuel Sérgio (2009) quando afirma que “na motricidade, a teoria é praxis e a praxis é teoria”.

E se uma teoria nos pode conduzir ao conhecimento, quando aliamos a teoria à prática e a prática à teoria “o conhecimento é, se assim se quiser, o produto de uma catalisação da experiência adquirida pela participação observante, em contacto com os recursos oferecidos pelas ciências humanas, as ciências da natureza e as ciências exactas. O conhecimento é assim o produto da incorporação de uma interioridade na exterioridade” (Yonnet, 1998).

Em 1995, num artigo publicado na então revista «Bushido», afirmava eu que se pretendemos “um desporto completo, formativo, não poderá haver dicotomia entre Kata e Kumite (o ginasta faz tapete, argolas, paralelas, etc.)”. Referindo-me à competição, continuava dizendo que “os lugares alcançados pelos atletas deveriam ter em conta estas duas provas, o que passaria por eliminar os especialistas numa só modalidade. Isto pressupõe um novo modelo de competição onde, a nível individual, o lugar alcançado seria o somatório entre as duas provas executadas pelo mesmo atleta. E porque não incluir, à semelhança dos outros desportos (ginástica, patinagem no gelo, etc.) uma prova que seria um misto de Kata e Kumite – talvez um Jyu Ippon Kumite ou uma Bunkai Kata – a que seria atribuída uma nota técnica e uma nota artística que também contribuiriam para esse somatório?” (Inocentes, 1995).

A Federação Mundial de Karaté chegou de facto à Bunkai em Kata, embora só em equipas, uns anos depois...

Boaventura de Sousa Santos (1998) explica-nos que “determinar a diferença prática decorrente da aceitação de uma ou outra teoria não é algo que se possa fazer inequivocamente e sem a mediação das lutas de interpretações”. Por isso as teorias lutam por uma dupla verdade: a verdade científica em sentido restrito e a verdade social. Daí duas consequências ocorrem: a primeira é que a verdade é indirecta e prospectiva (a correspondência às expectativas tem sempre lugar num futuro, mais ou menos distante); a segunda é que a verdade é o efeito do convencimento dos vários discursos de verdade em presença (perante um auditório de participantes competentes e razoáveis e perante um auditório universal). Daí o confronto entre ciência e senso comum, daí o princípio da dupla ruptura epistemológica. Se “deixou de ter sentido criar um conhecimento novo e autónomo em confronto com o senso comum (primeira ruptura) se esse conhecimento não se destinar a transformar o senso comum e a transformar-se nele (segunda ruptura)” (id.), então estão criadas as condições para essa dupla ruptura epistemológica no Karaté.

E se encontramos os «desportos de combate» como Grupo Taxonómico das Actividades Desportivas (Almada, 1992; Peixoto, 1997), tenho esperança que daqui a uns anos exista a possibilidade de lá encontrar os «desportos de confronto corporal directo» para aí colocarmos a nossa modalidade...

Seguir-se-ão os detalhes no próximo post.

ALMADA, F., 1992, “Cadernos da Sistemática das Actividades Desportivas nº 2 - Apresentação da Base Conceptual da Sistemática das Actividades Desportivas - Taxonomia e Modelos de Tratamento do Conhecimento”, Cruz Quebrada, UTL – FMH, Edições FMH.
INOCENTES, A., 1995, “Para uma Pedagogia do Desporto”, Bushido – Artes Marciais e Desportos de Combate, Ano VIII, n.º 68, Nov./95, pp. 9-11.
MORIN, E. & Le MOIGNE, J. L., 2006, “Inteligência da Complexidade – Epistemologia e Pragmática”, Lisboa, Instituto Piaget.
PEIXOTO, C., 1997, “Modelos e Sistemas de Análise do Desempenho Desportivo”, Cruz Quebrada, UTL – FMH, Edições FMH.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 1998, “Introdução a uma Ciência Pós-Moderna”, Porto, Edições Afrontamento.
YONNET, P., 1998, “Système des Sports”, Paris, Éditions Gallimard.
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