sábado, 31 de julho de 2010

E as garras transformaram-se em unhas...

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Diz o meu amigo José Jordão que «com o passar dos anos e com a prática da nossa arte passamos a ser pessoas mais calmas, tolerantes e humildes». Eu acrescentaria «alguns...»! É a minha opinião e vale o que vale!

A ser verdade, para uns isso deve-se à prática do Karaté, quando a transportam para as suas vivências diárias. Para outros, como diz o Prof. Olímpio Bento, "a idade amolece-nos"!

No entanto para esses «alguns» que eu acrescentaria, a prática do Karaté torna-os tudo menos humildes ou honestos. Como afirma o também meu amigo José Ramalho, «conheço alguns Mestres - mestres de arrogância, mestres de desonestidade, mestres de conflito, mestres de desrespeito, mestres de insensibilidade, mestres de "aparências".» E provavelmente eu também ... agora imaginemos se em vez de «alguns Mestres» tivermos de passar a dizer «alguns praticantes»! Será que eventualmente teremos de substituir o «alguns» por «muitos»? Mas se o fizermos teremos de nos interrogar sobre as causas disso... e se não estarão elas a montante...

«Apesar de todas as condicionantes existentes e das milhentas razões que estamos sempre arranjar uma justificação para os nossos erros, cabe-nos sempre a nós escolher quem queremos ser!» conclui o José Jordão. É bem verdade, pois já Ortega y Gasset dizia "Eu sou eu e as minhas circunstâncias. Se não as salvo a elas, não me salvo a mim" (e cito de memória). Por vezes conseguimos escolher o que queremos ser, mas por vezes somos condicionados e acabamos por ser aquilo que fazem de nós – é a célebre teoria da submissão à autoridade, de Stanley Milgram.

O que também me faz recordar aquele velho provérbio árabe: "Quem quiser fazer algo encontra um meio. Quem não quiser fazer nada arranja uma desculpa."

O Karaté é uma modalidade conotada com valores, com o respeito e a disciplina, onde o fim último não é a vitória ou a derrota mas sim o aperfeiçoamento do carácter dos seus praticantes, conforme afirmou um dos maiores Mestres desta modalidade. Mas há por aí alguns mitos... e os mitos não são eternos!

A agressividade (combatividade, persistência) faz parte da condição humana. O desporto é uma representação do combate, uma sublimação da violência, onde a derrota é a “morte simbólica” segundo o processo civilizacional de Norbert Elias e “qualquer jogo é um simulacro de combate em que não há derramamento de sangue”, conforme sustenta o meu amigo Joaquim Gonçalves. Uma evolução cultural comparável com o facto de ao longo da filógenese humana as garras se terem transformarado em unhas…

Cada estilo possui o seu dojokun – conjunto de normas que procura reger o comportamento dos praticantes dentro e fora do dojo –, sendo o mesmo o “não desaparecimento” do Bushido, a réstia do espírito do Budo que perpassou para o Karaté. Normas que pretendem transpor os valores da prática desportiva para a vida diária.

Procura-se assim ter presente em cada local de prática a existência de um Código Ético.

Mas também toda a modalidade é regida pelo “Código Ético do Karaté” emanado da Federação Mundial. Curiosamente, durante a época desportiva de 2007/08, verifiquei que dos Treinadores de Karaté participantes nas cinco acções de formação promovidas em todo o país pela FNK-P sob a denominação “Ética, Desporto e Karaté”, somente cerca de 1,6% conhecia o referido Código. Na última acção de formação, já em 2008/09, dos 48 participantes nenhum o conhecia.

Diz-nos esse Código Ético do Karaté o seguinte:

O Karaté é fundamentalmente BUDO e assim sendo, o seu código ético é inspirado pelo do BUSHIDO. Neste código, a honra e a lealdade são dois dos seus princípios mais importantes. Mas, não menos significativos, temos também: justiça, coragem, bondade e benevolência, sinceridade, correcção e respeito, humildade e modéstia e especialmente auto-controlo em todas as circunstâncias.

Estes valores são necessários para a vida em comunidade. No entanto, apesar de representarem a arquitectura espiritual do Homem, tendem a desaparecer nas sociedades modernas. Assim, a primeira grande missão de qualquer Cinto Negro é a de renovar estes princípios, tornando-os vivos com o seu comportamento exemplar.

HONRA - MEIYO
A dignidade fatal. Sem honra não poderá haver combate. Tudo depende disto. Significa possuir e respeitar o código ético de forma justa e dignificante.
"A honra é a poesia do dever." /Alfred de Vigny/

LEALDADE - CHUJITSU
A honra não pode ser usada sem sinceridade para com determinados ideais e para com as pessoas que a possuem. Ela é imprescindível para cumprirmos a nossa obrigação e mantermos a nossa palavra.
"A lealdade é necessária no bem-estar, é imprescindível na desgraça." /Séneca/

SINCERIDADE - SEIJITSU
A lealdade necessita de sinceridade nas nossas palavras e acções, porque a intimidade não pode existir sem ela. A mentira e a ambiguidade produzem a suspeita que é fonte de disputas e rixas.
A saudação no Karaté é uma expressão desta sinceridade. Ela é um sinal daquele que não oculta os seus ideais e sentimentos e consegue ser ele próprio.
"As palavras sinceras não são elegantes, as palavras elegantes não são sinceras." /Lao c'/

CORAGEM - YUUKI
A força de espírito que nos faz resistentes ao perigo e sofrimento chama-se coragem. Significa respeitar, sob todas as circunstâncias, tudo o que nos possa parecer bem e ser capaz de ultrapassar os nossos receios e medos. Valentia, entusiasmo e, sobretudo, vontade, são pilares de coragem.
"É preferível viver um dia como um leão do que 100 anos como um carneiro." /provérbio/

BONDADE e BENEVOLÊNCIA - SHINSETSU
A bondade e a benevolência são sinais de coragem e revelam um alto grau de humanismo. Dispõem-nos num estado de espírito que nos conduz à ajuda mútua e com a atenção dirigida aos outros, ao futuro, ao ambiente e ao respeito pela vida.
"A benevolência encontra-se no caminho dos deveres." /Mencius/

MODÉSTIA e HUMILDADE - KEN
A bondade e benevolência não podem ser expressas sem moderação na autoavaliação. A única garantia de modéstia é a capacidade de ser humilde, sem orgulho ou vaidade. Quer dizer, ser autêntico e real sem falsas imagens de si mesmo.
"Se os rios e os mares imperam sobre todos os riachos, é só porque eles se mantêm abaixo do nível destes." /Lao c'/

JUSTIÇA - TADASHI
Justiça significa seguir e cumprir deveres e nunca se afastar deles ou deixá-los. Lealdade, honra e sinceridade são pilares da justiça, capacitando-a de sensatez para as decisões correctas.
"Ninguém perderá no caminho correcto." /Goethe/

RESPEITO - SONCHOO
A justiça evoca o respeito aos olhos daqueles que nos rodeiam. Caracteriza a capacidade de tratar as pessoas e as coisas com consideração, não olhando à sua idade, mérito ou religião.
Correcção no comportamento é expressão do respeito pelos Homens sem reparar nas suas riquezas, fraquezas e posição social.
Etiqueta e cerimonial são a expressão do respeito e da correcção.
"Aquele que não respeita a Deus e a si próprio, embora respire, não vive." /Provérbio Sânscrito/

AUTO-CONTROLO - SEIGO
Esta deveria ser a característica incondicional de todos os Karatecas. Significa o perfeito controlo dos nossos instintos e sentimentos, sendo um dos alvos na prática de uma Arte Marcial. Além de tudo mais, os nossos sucessos estão dependentes disso. O dever e a honra na moral tradicional estabelecida para o Karate-Do são a base para conseguir esta perfeição.
"Um lago reflecte as estrelas melhor do que um rio." /Th. Jouffroy/

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Temos assim em cada dojo um código a nível micro e um código a nível macro para a modalidade desportiva. Mas atente-se que "a primeira grande missão de qualquer Cinto Negro é a de renovar estes princípios, tornando-os vivos com o seu comportamento exemplar".

Comparado com outras modalidades desportivas, seria motivo para alegarmos que, sendo o Karaté proveniente de uma arte marcial ancestral imbuída de valores, nesta modalidade encontrar-se-iam maiores e mais exemplos de «fair-play» e seriam mais frequentes comportamentos éticos e morais. Encontrariamos na nossa modalidade mais justiça e humildade, mais respeito e sinceridade...

Será isso verdade? Será isso uma realidade actualmente?


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