Os japoneses chamam Sensei aos seus pais, ao seu médico, ao seu professor... e dentro das Artes Marciais o título de Sensei é aplicado àquele que ensina como verdadeiro pedagogo, àquele que forma, àquele que se situa verdadeiramente dentro da via - daí a existência do termo "Do".
Aliás, a legislação portuguesa só reconhece o título de "Treinador", logo não há instrutores, professores nem mestres de Karaté. Há Treinadores de Karaté! Porém, habituámo-nos ao instrutor, ao professor e ao mestre...
Como nos diz Thomas Cleary em «A Arte Japonesa de Criar Estratégias», sabemos "que a forte presença militar que caracteriza a história nacional do Japão imprimiu determinados elementos do ethos guerreiro em importantes esferas do pensamento e da sociedade japonesa, bem além do contexto original". Daí o facto de a sociedade japonesa ser uma sociedade altamente hierarquizada e disciplinarizada (forma civil de militarismo às vezes disfarçada de Zen ou de Artes Marciais, segundo o mesmo autor) - de onde resulta a necessidade de graus, de patamares e de títulos específicos conforme o lugar e as funções que se ocupam na mesma (os kyu, os dan, os senpai, os sensei, os shian, os renshi, os kyoshi, os hanshi...).
Qual o motivo da técnica ser definida como o mínimo de esforço para o máximo de eficácia? Segundo Alan Watts, em «O Espírito Zen nas Artes Marciais», "'a economia de força' é o princípio Zen de ir direito para a frente', e na vida, como na arte, o Zen jamais desperdiça energia parando para explicar; ele somente indica". Tal como o verdadeiro Mestre, ele somente indica...
A idolatria pelo "mestre", o seu endeusamento, pode por vezes tornar-se doentia e fazer-nos cair em fundamentalismos... até porque a mentalidade japonesa é diferente da mentalidade europeia, a cultura ocidental nada tem a ver com a cultura oriental e Florence Braunstein, em «Penser les Arts Martiaux», faz-nos notar que “a oposição fundamentada entre o Ocidente e o Oriente repousa a maior parte das vezes sobre a construção de um eu, a procura fanática de um ego. A compreensão falseada da grande maioria dos praticante de Artes Marciais do contexto cultural destes últimos conduziu-os a comportamentos no limite do patológico sobre o Dojo. A vontade de perder o seu ego conduziu-os a uma vontade de submissão que fazia do Sensei, não um mestre, no sentido do magister latino, pondo de parte a conotação espiritual, mas a um dominus. As respostas oscilam entre a afirmação de si e a negação de si, simultanea e contraditoriamente, num movimento que em cada um dos extremos pode conduzir à transposição para um limiar patológico. O indivíduo pode abandonar a sua solidão na psicose, entre exaltação e depressão, entre a certeza paranóica de ser o único e o centro de tudo e o trabalho esquizofrénico do apagamento de si”.
Enquanto no Japão houve uma evolução socio-historico-cultural, nós ao importarmos o Karaté provocámos uma aculturação - algo se perdeu, algo se modificou, algo se ganhou... Há aqui, portanto, uma transformação temporal e uma transformação geográfica.
Na opinião de Affonso Sant’Anna em «O Homem que Conheceu o Amor», “Mestre é aquele que tem poder e conhecimento. O melhor Mestre é aquele que não tem poder nem conhecimento, mas está disposto a perder poder para desvendar múltiplos conhecimentos. Neste caso, perder é uma maneira de ganhar e conhecer é começar de novo".
E é nesse perder poder e começar de novo em conjunto com outrém que se funda um verdadeiro relacionamento. Essa relação estabelecida entre quem tem conhecimentos e os transmite a alguém que elege para deles ser depositário denomina-se em japonês "giri". Seguindo Maurice Pinguet, em «A Morte Voluntária no Japão», o termo ‘giri’ tem o significado de “obrigação, dever, dívida moral que liga o sujeito a qualquer pessoa da qual tenha recebido benefício ou favor. O giri, não sendo baseado numa lei universal, não é nem a justiça no sentido ocidental nem o contrato precário entre dois indivíduos, que se anula quando o seu objecto é atingido. Os vínculos do giri estabelecem-se entre pessoas concretas, bem determinadas, que podem estar em situações diferentes (pai-filho, mestre-aluno, suserano-vassalo, patrão-empregado) ou equivalentes (vizinhos, aliados, amigos, colegas, camaradas). Essas relações duráveis, irrevogáveis, comportam a ideia que o sujeito faz de si mesmo e a estima que se tem por ele; são confiadas à sua descrição, à sua delicadeza. É preciso devolver um benefício, ou melhor, mostrar que ele não foi esquecido, e o pagamento, que aliás não anula mas alimenta a relação, pode-se revestir das mais diversas formas, na maioria das vezes simbólicas.”
O Mestre não é só pois aquele que unicamente transmite a técnica, aquele que é mais graduado, aquele que se encontra à frente do Dojo ou da Associação, o Mestre é aquele que estabelece laços afectivos com o discípulo e este para com ele fica em dívida, é o indivíduo que para além de ministrar o treino forma e educa para a vida, e, como refere Florence Braunstein em «Les arts Martiaux Aujourd'hui - états des lieux», "le maître, rappelons-le, c'est celui avant tout qui maîtrise et qui se maîtrise".
Daí o facto de instrutores, ou treinadores, haver muitos.... porém, Mestres, poucos há!
Excelente texto, Sensei.
ResponderEliminarJá há alguns anos li algures uma frase de um Mestre Japonês que ao lhe perguntarem sobre o que era principalmente para ele o Karate, ele respondeu "O Karaté é principalmente um estudo sobre relações humanas" tenho pena de já não me lembrar do nome do Mestre mas a frase ficou...há por aí muitos que têm altas graduações(Japoneses e Portugueses) mas que realmente não são Mestres. Eu tenho a sorte de conhecer e conviver com alguns Mestres, porque com os outros tento manter-me afastado. A soberba e a arrogância não são próprias de um Mestre, mas a humildade sim.
Caro Armando !
ResponderEliminarExcelente reflexão, não há muito mais a dizer.
São poucos os Mestres , não tenhamos dúvida.
Grande abraço,
Luís Sérgio
Conheço alguns Mestres - mestres de arrogância, mestres de desonestidade, mestres de conflito, mestres de desrespeito, mestres de insensibilidade, mestres de "aparências". Tu também conheces alguns, que eu sei...
ResponderEliminarEntão e um Mestre que agora se possa designar por "Prof. Dr. Mestre", hum? Já pensaram nisso??? Sim, porque isto não é só ser Mestre, é preciso acrescentar-se mais qualquer coisa, quanto mais não seja a ignorância estampada antes do nome...;)
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