quarta-feira, 14 de julho de 2010

Instrutores há muitos... Mestres poucos há!

Ao contrário do que a maior parte de nós imagina, o termo "Sensei" não significa "mestre". Decompondo etimologicamente a palavra, "Sen" significa "antigo, que se antecipou", enquanto "sei" está imbuído do conceito de "existência, pureza". Logo, "Sensei" é aquele que existe antes de nós em determinado campo e que detém uma existência pura, exemplar.

Os japoneses chamam Sensei aos seus pais, ao seu médico, ao seu professor... e dentro das Artes Marciais o título de Sensei é aplicado àquele que ensina como verdadeiro pedagogo, àquele que forma, àquele que se situa verdadeiramente dentro da via - daí a existência do termo "Do".


"Mestre" não é um título, é uma relação que se estabelece entre o que compartilha os seus ensinamentos com outro, é a criação de uma empatia entre dois seres humanos, é a partilha de conhecimentos mas também de sentimentos, de vivências e de ideais.

Aliás, a legislação portuguesa só reconhece o título de "Treinador", logo não há instrutores, professores nem mestres de Karaté. Há Treinadores de Karaté! Porém, habituámo-nos ao instrutor, ao professor e ao mestre...

Como nos diz Thomas Cleary em «A Arte Japonesa de Criar Estratégias», sabemos "que a forte presença militar que caracteriza a história nacional do Japão imprimiu determinados elementos do ethos guerreiro em importantes esferas do pensamento e da sociedade japonesa, bem além do contexto original". Daí o facto de a sociedade japonesa ser uma sociedade altamente hierarquizada e disciplinarizada (forma civil de militarismo às vezes disfarçada de Zen ou de Artes Marciais, segundo o mesmo autor) - de onde resulta a necessidade de graus, de patamares e de títulos específicos conforme o lugar e as funções que se ocupam na mesma (os kyu, os dan, os senpai, os sensei, os shian, os renshi, os kyoshi, os hanshi...).

Qual o motivo da técnica ser definida como o mínimo de esforço para o máximo de eficácia? Segundo Alan Watts, em «O Espírito Zen nas Artes Marciais», "'a economia de força' é o princípio Zen de ir direito para a frente', e na vida, como na arte, o Zen jamais desperdiça energia parando para explicar; ele somente indica". Tal como o verdadeiro Mestre, ele somente indica...

A idolatria pelo "mestre", o seu endeusamento, pode por vezes tornar-se doentia e fazer-nos cair em fundamentalismos... até porque a mentalidade japonesa é diferente da mentalidade europeia, a cultura ocidental nada tem a ver com a cultura oriental e Florence Braunstein, em «Penser les Arts Martiaux», faz-nos notar que “a oposição fundamentada entre o Ocidente e o Oriente repousa a maior parte das vezes sobre a construção de um eu, a procura fanática de um ego. A compreensão falseada da grande maioria dos praticante de Artes Marciais do contexto cultural destes últimos conduziu-os a comportamentos no limite do patológico sobre o Dojo. A vontade de perder o seu ego conduziu-os a uma vontade de submissão que fazia do Sensei, não um mestre, no sentido do magister latino, pondo de parte a conotação espiritual, mas a um dominus. As respostas oscilam entre a afirmação de si e a negação de si, simultanea e contraditoriamente, num movimento que em cada um dos extremos pode conduzir à transposição para um limiar patológico. O indivíduo pode abandonar a sua solidão na psicose, entre exaltação e depressão, entre a certeza paranóica de ser o único e o centro de tudo e o trabalho esquizofrénico do apagamento de si”.

Enquanto no Japão houve uma evolução socio-historico-cultural, nós ao importarmos o Karaté provocámos uma aculturação - algo se perdeu, algo se modificou, algo se ganhou... Há aqui, portanto, uma transformação temporal e uma transformação geográfica.

Na opinião de Affonso Sant’Anna em «O Homem que Conheceu o Amor», “Mestre é aquele que tem poder e conhecimento. O melhor Mestre é aquele que não tem poder nem conhecimento, mas está disposto a perder poder para desvendar múltiplos conhecimentos. Neste caso, perder é uma maneira de ganhar e conhecer é começar de novo".

E é nesse perder poder e começar de novo em conjunto com outrém que se funda um verdadeiro relacionamento. Essa relação estabelecida entre quem tem conhecimentos e os transmite a alguém que elege para deles ser depositário denomina-se em japonês "giri". Seguindo Maurice Pinguet, em «A Morte Voluntária no Japão», o termo ‘giri’ tem o significado de “obrigação, dever, dívida moral que liga o sujeito a qualquer pessoa da qual tenha recebido benefício ou favor. O giri, não sendo baseado numa lei universal, não é nem a justiça no sentido ocidental nem o contrato precário entre dois indivíduos, que se anula quando o seu objecto é atingido. Os vínculos do giri estabelecem-se entre pessoas concretas, bem determinadas, que podem estar em situações diferentes (pai-filho, mestre-aluno, suserano-vassalo, patrão-empregado) ou equivalentes (vizinhos, aliados, amigos, colegas, camaradas). Essas relações duráveis, irrevogáveis, comportam a ideia que o sujeito faz de si mesmo e a estima que se tem por ele; são confiadas à sua descrição, à sua delicadeza. É preciso devolver um benefício, ou melhor, mostrar que ele não foi esquecido, e o pagamento, que aliás não anula mas alimenta a relação, pode-se revestir das mais diversas formas, na maioria das vezes simbólicas.”

O Mestre não é só pois aquele que unicamente transmite a técnica, aquele que é mais graduado, aquele que se encontra à frente do Dojo ou da Associação, o Mestre é aquele que estabelece laços afectivos com o discípulo e este para com ele fica em dívida, é o indivíduo que para além de ministrar o treino forma e educa para a vida, e, como refere Florence Braunstein em «Les arts Martiaux Aujourd'hui - états des lieux», "le maître, rappelons-le, c'est celui avant tout qui maîtrise et qui se maîtrise".

Daí o facto de instrutores, ou treinadores, haver muitos.... porém, Mestres, poucos há!

4 comentários:

  1. Excelente texto, Sensei.
    Já há alguns anos li algures uma frase de um Mestre Japonês que ao lhe perguntarem sobre o que era principalmente para ele o Karate, ele respondeu "O Karaté é principalmente um estudo sobre relações humanas" tenho pena de já não me lembrar do nome do Mestre mas a frase ficou...há por aí muitos que têm altas graduações(Japoneses e Portugueses) mas que realmente não são Mestres. Eu tenho a sorte de conhecer e conviver com alguns Mestres, porque com os outros tento manter-me afastado. A soberba e a arrogância não são próprias de um Mestre, mas a humildade sim.

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  2. Caro Armando !

    Excelente reflexão, não há muito mais a dizer.

    São poucos os Mestres , não tenhamos dúvida.

    Grande abraço,

    Luís Sérgio

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  3. Conheço alguns Mestres - mestres de arrogância, mestres de desonestidade, mestres de conflito, mestres de desrespeito, mestres de insensibilidade, mestres de "aparências". Tu também conheces alguns, que eu sei...

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  4. Então e um Mestre que agora se possa designar por "Prof. Dr. Mestre", hum? Já pensaram nisso??? Sim, porque isto não é só ser Mestre, é preciso acrescentar-se mais qualquer coisa, quanto mais não seja a ignorância estampada antes do nome...;)

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