segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Karaté: um desporto de confronto corporal directo

Surge este post, como referi, na sequência do anterior, no próprio dia em que publico «o "porquê" de uma teoria».
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Uma actividade onde existe agonística, onde o movimento está presente, na qual a situação motora competitiva designa vencedores e vencidos (mesmo numa prática com mais auto-emulação), que implica jogo – actividade codificada, com regras e regulamentos –, que possui um sistema institucionalizado e que se encontra unida em torno da ideia de projecto tem de ser classificada como desporto e, como tal, um fenómeno social total nos dizeres de Mauss (1989). Fenómeno social constituído por factos sociais. Mas os factos sociais não são coisas: os factos sociais são outra coisa (Yonnet, 1998). Aventurar-nos-íamos a dizer que são processos fluidos...

Uma análise paradigmática permite-nos afirmar, sem dúvida, que no Karaté houve uma transição de arte marcial a desporto de combate. E como já referi, uma coisa será sempre a designação e outra será sempre a actividade e os fins com que se pratica. Para a prática não é imprescindível a nomenclatura, mas esta é necessária para o estudo daquela. Mas não podemos ser reféns de uma denominação reducionista em que se dá mais valor à forma em detrimento do conteúdo...

1. O qualificativo «marcial» é de origem ocidental, vem de «Marte», deus romano da guerra: aplicava-se na civilização romana aos soldados, ao mundo militar e guerreiro. O termo «arte marcial» foi escrito pela primeira vez num poema de Jo. Sotheby introdutório ao livro “The Gentleman’s Armourie”, publicado por Pallas Armata, no ano de 1639 em Inglaterra, e referia-se à “arte marcial da esgrima” (http://www.plumes.org/manuals/PallasArmata/PA-intro.html).

2. Figueiredo (2006) defende na sua tese de doutoramento que “há um certo «orientalismo» na denominação «artes marciais»”. Eu defendo que actualmente a denominação «arte marcial» aplicada ao Karaté é incorrecta, pois ela deixou de o ser (a nossa “arte” deixou de ser “marcial”) e que o próprio Karaté (inicialmente importado) se ocidentalizou (repare-se que de uma língua não acentuada, já adoptámos um estrangeirismo que possui acento na última sílaba).

3. No ocidente, também tivemos as nossas artes marciais. Na Idade Média as justas, os torneios e os páreos começaram a desportivizar essas artes, mas nenhuma delas se transformou em desporto.

4. As então artes marciais, em diferentes momentos temporais das sociedades, tanto ocidentais como orientais influenciadas pela evolução dessas sociedades ou influenciando-as, acabaram por perder as suas características originais de artes da guerra. Em relação ao Karaté teremos ainda de considerar que “a difusão, ou seja, o transporte de realidades culturais de uma para outra cultura, não é um acto, mas sim um processo cujo mecanismo muito se assemelha ao de qualquer processo evolutivo” (Malinowski, 1997). E como tal, há acomodações e assimilações, há interpenetrações e interdependências, há progressos mas também degradações e degenerações, há ganhos mas também perdas.

5. Verificamos assim que “a transição progressiva de técnicas guerreiras a desporto (jogo) processa-se através de tempos e de lugares, assim como através de um processo histórico influenciado por mudanças e movimentações”, o que faz com que “a passagem do Karaté de «arte marcial» a «desporto de combate» não seja uma mutação repentina, mas um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos históricos) inserido em modificações socio-culturais e pela aculturação de uma realidade oriental na cultura ocidental. Todo este processo originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, até porque as condições históricas criaram situações objectivas de desigualdade. Neste avanço temporal, assim como numa deslocação geográfica e cultural, há toda a transferência de rituais que perdem os seus significados originais e ganham outros similares ou diferentes.” Isto afirmei em “Ritos, reproduções e crenças: uma análise socio-pedagógica” (Inocentes, 2009), sétimo capítulo de “Karaté: entre a tradição e a modernidade”, a segunda publicação da nossa federação.

6. Numa realidade socio-cultural radicalmente diferente, e na tentativa de se conseguir testar o nível dos praticantes num percurso de treino avaliando-os, sem que isso implicasse necessariamente um confronto "real", foram surgindo formas de kumite cada vez mais elaboradas, desde o kumite pré-programado (ippon kumite, sanbon kumite, yakusoku kumite, sandan uke barai, sandangi) até ao kumite livre (jyu kumite, shion kumite e shiai kumite), obrigando esse último a uma regulamentação mais elaborada com vista a proteger a integridade física dos oponentes.

7. Foi este movimento particular que faz com que o Karaté se começasse a orientar em direcção a um fenómeno competitivo institucionalizado. Em 1957 a Japan Karaté Association organiza a sua primeira competição formal. Em 1962 funda-se a Japan Karaté Federation, com características inter-estilos. É este primeiro movimento inter-estilos que provoca a rotura no Karaté, passando-se de uma «arte marcial» a um denominado «desporto de combate», iniciando-se assim o futuro do desenvolvimento competitivo institucionalizado do Karaté moderno. Esta evolução origina em 1965 os primeiros campeonatos japoneses. Em 1966 é fundada a EKU, tendo lugar em Paris os primeiros campeonatos europeus. Em 1970, em Tokyo, funda-se a WUKO e decorrem nesse mesmo ano e nessa cidade os primeiros campeonatos mundiais.

8. Passou-se do termo «Karate-Do» através de um reducionismo para o mais usual «Karaté», abandonando-se o conceito «arte marcial» para se centralizar mais a sua denominação em «desporto de combate» (a qual, como já referi, também não me parece ser actualmente a mais correcta). A utilização ainda da classificação de «arte marcial» não passa de mais uma crença (preocupei-me com as crenças na obra atrás referida) existente no Karaté e “submetemo-nos às crenças – como seguimos as regras –, sobretudo a essas crenças práticas sobre as quais se funda toda uma forma de vida e de conduta. E aqui dá-se a submissão: à regra, ao hábito, à nossa ‘imagem do mundo’, que não é uma teoria construída por nós, mas que nos é conatural, de certa forma herdada, pertence-nos e possui-nos, dominando-nos inconscientemente” (Soares, 2004).

9. A representação (tornar presente) guerreira do «combate» (simbólico), regulamentada, a simulação da violência, e o confronto lúdico levam-nos a conferir hoje em dia ao Karaté o estatuto de desporto. O simbolismo presente no mesmo faz com que tenha mais sentido falar em «jogo» do que propriamente continuar-se a falar em «combate». Defendo que ninguém pratica Karaté para combater (procuremos o significado de combate!). E não estará o kumite, numa aproximação a um conteúdo histórico, mais próximo do «duelo de desagravo» do que propriamente do «combate»? Huizinga (2003) toca no assunto ao distinguir «combate» de «luta» e afirma que em todas as lutas em que há regras a respeitar assumem as características formais de um jogo em consequência dessa limitação.

10. O que é um combate? Façamos o exercício de procurar o termo num dicionário!

11. Reportando-nos a Yonnet (2004), verificamos que “não é a natureza material duma actividade que decide o seu carácter extremo, é o uso feito desse material no quadro de uma actividade possível”. Parece-nos que, de facto, não é aquilo que a modalidade desportiva é em si, ou o que representa e simboliza que importa, mas sim o que fazemos com ela e através dela.

12. Não podemos pois classificar o Karaté “civil” actual, federativo, como uma “arte marcial” nem como um “desporto de combate”, pois “é o uso do utensílio que faz a classificação da actividade, não o utensílio por si próprio” (Yonnet, id.), tal como não podemos chamar futebol aos matraquilhos, embora em ambos o objectivo seja o mesmo: marcar o golo...

13. Sendo o corpo do outro objecto e objectivo da acção, é atingindo ou manipulando directamente o corpo do outro que se ganham pontos e jogos. A intencionalidade verifica-se através de uma técnica – comportamento observável – que pretende acertar (princípio do sundome) num alvo devendo obedecer a certos critérios. No Karaté o contacto corporal é intencional, directo e um fim em si.

14. Por isso defendo que não praticamos um «desporto de combate», mas sim um “desporto de confronto corporal directo”.

15. Repare-se que no célebre livro de 1643, escrito por Miyamoto Musashi, “Go Rin No Sho” (Musashi, 2007, Edições Europa-América), o termo heiho é traduzido como «arte marcial». A tradutora, Catarina Fonseca, explica-nos que este termo, escrito com dois caracteres, levanta um problema: o primeiro ideograma pode significar «soldado», «batalha», «arma» ou «estratégia», pelo que defini-lo como «marcial» é correcto, enquanto o segundo é um pouco mais complicado e significa «lei», «método», «técnica», «arte», «modelo», «sistema» ou «doutrina». No budismo, acrescenta ainda a tradutora, no qual Musashi era versado, este segundo ideograma pode significar «verdade» enquanto percepção ou prática do budismo em si e, apesar de existir o termo gei para designar outras artes (tal como a cerimónia do chá, o teatro noh ou a arte do arco – kyudo), Musashi utiliza este termo para descrever o seu «caminho».
16. Curioso é o facto de na tradução de Luís Serrão do mesmo livro, a partir da versão inglesa (Musashi, 2002, Coisas de Ler Edições), todos os termos em que na obra referida anteriormente aparecem como «arte marcial», neste segundo livro aparecem sempre e só traduzidos como «estratégia».

17. No quadro de uma Sistemática do Desporto, há de facto a necessidade de criarmos Grupos Taxonómicos das Actividades Desportivas – vítimas ainda que somos do espírito cartesiano... – e lá aparece o Karaté nos denominados «desportos de combate», desportos onde se manipula um objecto (nos outros desportos costuma ser uma bola, quer seja com os pés, as mãos, um stick ou uma raqueta) que é um ser humano – é sujeito e objecto simultaneamente da acção.

18. No 2º Congresso Científico de Artes Marciais e Desportos de Combate defendi exactamente esta posição (Inocentes, 2009). É mais correcto falar num e de um “desporto de contacto corporal directo” (intencional e objectivo), à semelhança do Judo, do Taekwon-do e do Boxe, em alternativa à Esgrima, ao Kendo ou ao “Jogo do Pau” (Esgrima Lusitana), desportos de contacto corporal indirecto.

19. Por que continuamos a insistir em que praticamos uma «arte marcial» ou um «desporto de combate»? Baudrillard (1992) dá-nos a resposta: “quando as coisas, os signos, as acções são libertadas de sua ideia, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, da sua referência, de sua origem e de sua finalidade, entram então numa auto-reprodução ao infinito. As coisas continuam a funcionar ao passo que a ideia delas já desapareceu há muito. Continuam a funcionar numa indiferença total a seu próprio conteúdo. E o paradoxo é que elas funcionam melhor ainda”. Por que praticamos uma «arte marcial» quando não fazemos competição? Ou por que aceitamos que praticamos desporto enquanto fazemos competição e após abandonarmos esta afirmamos praticar uma «arte marcial»? O mesmo Baudrillard (id.) volta a responder-nos: “se o indivíduo já não se confronta com o outro, defronta-se consigo mesmo”.

20. Mas, baseando-nos em Feyerabend (1993), por um lado, poderemos ter várias concepções teóricas («arte marcial» ou «desporto de combate») que são sustentadas com tenacidade, sendo possível escolher a mais adequada em determinada situação e contexto. Por outro lado, poderemos romper com as teorias estabelecidas embora por hipóteses inconsistentes com aquelas ou que as façam parecer absurdas e obrigarmo-nos a um maior esforço de argumentação e de fundamentação – tendo sido este último o caminho que segui, introduzindo uma outra teoria, um outro ponto de vista e uma outra interpretação.

Nietzsche dizia que não há factos, apenas interpretações. A função do investigador é precisamente a de interpretar – foi esse o meu papel. A função do investigador é criticar com fundamentos para reformular rumo ao conhecimento – o que também tenho feito. E se só agora, tardiamente, confesso, li na origem Karl Popper (1992), é de salientar que este frisa que “não existe conhecimento sem crítica racional, crítica ao serviço da busca da verdade”. Com ele coincide o actual Manuel Sérgio (2009) pois para este “a ciência finda, quando a crítica termina, quando o seu objecto de estudo se dilui”. Em palavras anteriores deste mesmo Professor, criticar com ciência e consciência... aquilo que também fiz na primeira publicação da nossa federação, em “Da Ética Desportiva às Perversidades do Desporto” (Inocentes, 2007).

Uma dúzia de anos de prática, outros doze de prática e de ensino, aliados a mais doze de prática, de ensino, de pesquisa e de investigação (e não 36 anos só de prática) conferem-me a legitimidade de contribuir para repensarmos asistemática e a taxonomia do Karaté.


BAUDRILLARD, Jean, 1992, “A Transparência do Mal – ensaio sobre os fenómenos extremos”, São Paulo, Papirus Editora.
FIGUEIREDO, Abel, 2006, “A Institucionalização do Karaté – os modelos organizacionais em Portugal”, Cruz Quebrada, Lisboa, FMH-UTL, Dissertação de Doutoramento, doc. não publicado.
HUIZINGA, Johan, 2003, “Homo Ludens”, Lisboa, Edições 70.
INOCENTES, Armando, 2009, “Da Ética Desportiva às Perversidades no Desporto – ou das virtudes às violências no e do desporto”, Lisboa, edições FNK-P.
INOCENTES, Armando, 2009, “Ritos, reproduções e crenças: uma análise socio-pedagógica”, in J. Salgado & L. Pereira, “Karaté: entre a tradição e a modernidade – ou dos primórdios à contemporaneidade”, Lisboa, edições FNK-P, pp. 117-158.
INOCENTES, Armando, 2009, “Repensar a Sistemática do Karaté”, comunicação apresentada ao 2º Congresso Científico de Artes Marciais e Desportos de Combate, 16 e 17 de Maio de 2009, ESSE-ISPV & ADIV, Viseu, doc. não publicado.
MALINOWSKI, Bronislaw, 1997, “Uma Teoria Científica da Cultura”, Lisboa, Edições 70.
MAUSS, Marcel, 1989, “Sociologie et Anthropologie”, Paris, PUF.
MUSASHI, Miyamoto, 2002, “O Livro dos Cinco Anéis”, Queluz, Coisas de Ler Edições.
MUSASHI, Miyamoto, 2007, “O Livro dos Cinco Anéis”, Mem Martins, Europa-América.
POPPER, Karl R., 1992, “Em Busca de um Mundo Melhor”, Lisboa, Editorial Fragmentos.
SÉRGIO, Manuel, 2009, “Filosofia do Futebol”, Lisboa, Prime Books & IDP.
SOARES, M. Luísa Couto, 2004, “O Que É o Conhecimento? – Introdução à Epistemologia”, Porto, Campo das Letras.
YONNET, Paul, 1998, “Système des Sports”, Paris, Éditions Gallimard.
YONNET, Paul, 2004, “Huit leçons sur le sport”, Paris, Éditions Gallimard.
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3 comentários:

  1. Nuno Almeida disse, via e-mail:

    Viva, Professor!

    Queria agradecer os artigos que tem escrito no seu blog.

    É bom ver que, passo a passo, a perspectiva sobre o Karaté está a ser adaptada de acordo com as novas realidades, uma vez que nada existe de forma estática.

    É também importante haver pessoas que apontam para e partilham com outros os problemas relativos à violência no desporto, quer por parte de atletas, quer por elementos de
    arbitragem.

    Abraço,

    Nuno Almeida

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  2. Uma coisa são as pessoas credenciadas que falam sobre o que sabem e o que conhecem de uma forma fundamentada, outra coisa é aquilo que nos é vendido sem ser explicado como...

    E depois vendemos ao mesmo preço que compramos.

    Um abraço e força para continuar.

    J. G. Ferreira

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  3. Oss Inocentes Sensei!

    Achei o texto simplesmente fantástico. E através deste, pude compreender vários pontos os quais estava encontrando dificuldades para se expressar.

    Obrigado por compartilhar.

    Um grande abraço!

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