segunda-feira, 10 de maio de 2010

Necessário é criar...

Viver não é necessário;
o que é necessário é criar.”
Fernando Pessoa

Penso que todos estaremos de acordo ao dizermos que os intervenientes directos no espectáculo desportivo são os jogadores e os árbitros. Como intervenientes indirectos teremos os treinadores, os médicos e os espectadores (embora possamos descortinar outros se quisermos ser um pouco mais abrangentes).

Do ponto de vista do praticante/competidor/jogador, o desporto é técnica, táctica, performance, rendimento, tentativa de se ultrapassar a si próprio, hipótese de alcançar a vitória e actividade que se pratica tanto como forma de realização pessoal como até própria profissão.

Para aquele que ajuíza ou avalia, a aplicação das regras com equidade e segundo princípios éticos será a tarefa fundamental.

Para quem assiste, o espectador, o desporto é essencialmente identificação (procura da vitória do «seu clube») e estética (procura da visualização de bonitas jogadas, de belos movimentos corporais).

Como nos diz Olímpio Bento (2009), “os valores pedagógicos do desporto têm o ético e o estético como eixo central. Os outros valores são desdobramentos e articulam-se em torno desses dois vectores basilares.

O que procura o praticante/competidor/jogador e o espectador numa prova de Kata?

Antes de tentarmos responder a esta questão façamos uma pequena reflexão sobre esta prova.

Sabemos que na execução de uma Kata, sendo esta a representação de um “combate real” contra quatro adversários imaginários e sendo uma tarefa fechada, a mesma apela mais à fase execução-controlo e menos à fase percepção-decisão, ou seja, engloba a realização do acto motor e o retorno de informações importantes para a avaliação desse acto. Numa competição, para além da sua própria informação intrínseca sobre a realização da Kata, o competidor recebe a informação extrínseca veiculada pelos avaliadores – os árbitros.

Há na Kata actual uma padronização: o executante realiza comportamentos motores que visam aproximar-se de um modelo de comportamento ideal. Há aqui para além da execução de sequências de técnicas, o recurso a uma percepção espaço-temporal do executante que determina uma precisão espacial para a execução dos movimentos e também uma precisão temporal – quase que podemos falar em trajectórias do corpo e ritmos do mesmo. Isto é o que o árbitro avalia... quando conhece a Kata.

Podendo definir-se a técnica como mínimo de esforço e o máximo de eficácia, verificamos que na Kata a técnica é avaliada comparando-a com um modelo ideal (falamos em técnica correcta, em velocidade de execução da mesma, em equilíbrio, em posições de pernas correctas, em mudanças de direcção perfeitas, e falamos ainda no kime imposto e na atitude de zanshin).

Mas não podemos constatar na Kata a eficácia dessa técnica – daí a necessidade da sua Bunkai, onde poderemos também analisar o “mínimo de esforço” (condicionantes biomecânicas e anatomofisiológicas). Isto é o que não pode ser avaliado por um árbitro durante uma prova (só) de Kata...

E façamos agora uma outra pequena reflexão sobre o conceito de desporto.

Manuel Sérgio (2009), na sua última obra, dá-nos excelente informação sobre este fenómeno, de onde retiramos as seguintes citações: “fazer desporto nada tem a ver com dogmas, mas com a participação num acto criador.” “A qualidade é a proposta de que o desporto (e a vida) continua à espera – é a qualidade que nos distingue das demais criaturas.” “O ser humano só o é, enquanto acto de superação ou de criação.” “(...) treinar não é impor ideias a ninguém, mas dar meios de expressão à capacidade criadora e de transcendência dos jogadores.

É pois imperativo que o Karaté assuma esse acto criador, que dê asas ao sonho e à imaginação e que proporcione aos seus competidores as possibilidades de se libertarem da reprodução que tem existido até agora nos movimentos padronizados das Kata instituídas e de criarem as suas próprias formas de composição livre. A reprodução (não a confundamos com o tradicionalismo) é inimiga da evolução. Mas para isso é necessário que exista uma formação consciente tanto de treinadores, como de praticantes e competidores, como de árbitros. Como já afirmei (Inocentes, 2009), “a formação é antagónica da reprodução. A evolução, no sentido de progresso, é o oposto da rotina e da repetição.

Embora no Karaté ainda exista a dicotomia «arte marcial» – «desporto de combate» (embora eu prefira o «desporto de contacto corporal directo»), segundo Moreira et al. (2008), “o desporto é uma arte e o desportista, um artista que vive para criar novos movimentos, uma invenção, destinado a ajudar o ser humano a fazer-se cultural e moral. Assim, ele cumpre duas funções: a do jogo e a da competição.

Ora, verificamos precisamente que são os adeptos da arte, da «arte marcial», que se opõem à criação de novos movimentos impedindo esse “fazer-se cultural e moral”, que condenam a competição, que rejeitam uma prova de Kata artística, que exigem a existência de um «seleccionador para Kata» mas que nada dizem quanto à necessidade de um psicólogo para acompanhar os trabalhos da selecção nacional. Tudo em nome da essência do Karaté...

E lembramo-nos aqui, quando se criticam aqueles que a par de terem competências técnicas possuem competências académicas e pedagógicas, de Gomes Pereira (2005) quando nos diz que “a par da observação, a avaliação das competições e treinos afigura-se como uma tarefa de tal forma importante, complexa e multifacetada, que não pode ser desempenhada integralmente pelo mesmo indivíduo. De facto, não só a intervenção em treino, como cada modalidade de observação e avaliação requer uma intervenção especializada. Neste âmbito, a formação especializada em Ciências do Desporto, nas suas múltiplas vertentes, desempenha um papel determinante, não só na obtenção de marcas, mas também na formação moral e cívica do cidadão que, talvez por mero acaso, em determinada fase da sua vida, quantas vezes curta mas intensa e marcante, decidiu optar pela «vida de atleta de competição».

Mas voltemos à pergunta de partida: o que procura o praticante/competidor/jogador e o espectador numa prova de Kata?

O competidor sem dúvida que procura mostrar o que sabe, procura mostrar os seus dotes (as suas competências) e acima de tudo a vitória. Na Kata de composição livre pode mostrar a sua criatividade, a inovação de comportamentos motores e a sua disponibilidade biomecânica e anatomofisiológica. “Ao tentar superar-se continuamente, com o objectivo de ser mais eficazmente activo, o corpo confronta-se com o facto de ser o seu próprio obstáculo” diz-nos Cunha e Silva (2008). O corpo (o indivíduo na sua globalidade) que supera os obstáculos que encontra em termos de velocidade, resistência, força e principalmente flexibilidade não merece ser exibido em movimentos criados por ele próprio e adaptados à sua própria antropomorfologia? Entendemos que sim, pois dá uma outra visibilidade e uma outra qualidade à modalidade.

O espectador sem dúvida que para além da procura da vitória daquele ou daqueles com quem se identifica procura também o estético, o sublime. A Kata de composição livre permite-lhe assistir a uma maior beleza, a uma melhor e mais bonita coordenação espaço-temporal, a um ritmo próprio do competidor, enfim, a uma estética superior do que na Kata clássica. Fernando Savater (1995) diz-nos que “à empresa gestora da sala cinematográfica o que mais interessa são as entradas vendidas e o número de espectadores que vão abandonando a sessão contínua para deixar lugar a outros; mas para os próprios espectadores o que importa é a qualidade do espectáculo a que assistem.” E para o espectador a qualidade não estará também na Kata de composição livre? Não estará presente a qualidade também para quem se quiser dedicar a ela? Para quem quiser revelar novas formas de expressão corporais e rítmicas? Mas com a sua explicação numa Bunkai – isso também será criatividade e inovação – assim como com um júri técnico e um júri artístico e com uma avaliação que seja a média das notas atribuídas por ambos! Aliás, não se faz isto já há muito noutras modalidades desportivas?
Veja-se um pequeno video em http://www.youtube.com/watch?v=EsyY2aOzFvY, ou perca-se ainda mais um pouco a ver outro em http://www.youtube.com/watch?v=-ID7ZGQui2I&feature=related e tirem-se conclusões!
Falam os detractores desta prova em ginástica e em dança. Mas para eles não deixou de haver «arte marcial» quando os japoneses esconderam as técnicas de Karaté nas suas danças tradicionais... Falam sem saber do que falam. Procuram fazer a leitura de um fenómeno sem o saber interpretar. Procuram saber ler a partir do que vêem, mas não sabem ver a partir da leitura que fazem.

Esta prova nada retira ao Karaté, antes pelo contrário: acrescenta, inova, cria. Como dizia o poeta, “viver não é necessário; o que é necessário é criar.


Cunha e Silva, Paulo, 2008, “Corpo, Vigilância, Controle”, in D. Rodrigues (Org.), “Os Valores e as Actividades Corporais”, pp. 113-126, São Paulo, Summus Editorial.

Gomes Pereira, José, 2005, “A superação desportiva: os limites da performance humana. Fabricar Campeões: Treino Desportivo ou o «Mundo do Vale Tudo»?”, in D. Rodrigues (Ed.), “O Corpo que (des)conhecemos”, pp. 109-134, Cruz quebrada, Edições FMH.

Inocentes, Armando, 2009, “Ritos, reproduções e crenças: uma análise socio-pedagógica”, in J. Salgado & L. Pereira, “Karaté: entre a tradição e a modernidade”, Lisboa, Edições FNK-P, pp. 117-158.

Manuel Sérgio, 2009, “Filosofia do Futebol”, Lisboa, Prime Books.

Moreira, Wagner Wey et al., 2008, “Do Corpo à Corporeidade: a arte de viver o movimento no esporte”, in D. Rodrigues (Org.), “Os Valores e as Actividades Corporais”, pp. 127-146, São Paulo, Summus Editorial.

Olímpio Bento, 2009, “Acerca da Conjuntura Corporal: Desporto versus «Actividade Física»”, in J. O. Bento & J. M. Constantino, “O Desporto e o Estado – ideologias e práticas”, p. 161-214, Porto, Edições Afrontamento.

Savater, Fernando, 1995, “O Conteúdo da Felicidade”, Lisboa, Relógio D’Água.

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1 comentário:

  1. Não me choca o facto de haver formas de composição livre, (até porque fazendo um paralelo com o Taekwondo, nesta modalidade é mesmo exigido na graduação para Dan a criação de uma forma livre) por uma questão de respeito e/ou distinção não lhe chamaria era Kata e sim forma livre, e quando em competição gostava de as ver serem executados com um Gi de cor diferente do branco, de resto nada a opor, embora nunca me tenha sentido tentado a criar uma forma livre, acredito que os jovens tenham mais essa necessidade de criar e se expressar livremente desde que executem juntamente com as acrobacias as técnicas de kihon e que o bunkai faça sentido.E desde que depois não comecem a dar aulas dessas mesmas formas e com nomes para cursos usando o nome do Karate com prefixos ou sufixos inventados, tais como Karate Xpto ou Xpto Karate. Ou seja quem as crie que as exiba em competições e as guardem para ele como "patente registada".

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