Uma «arte» (do latim ars, "técnica e/ou habilidade") geralmente é entendida como uma actividade humana ligada a manifestações de ordem estética. Ora, abordando nós o Karaté, estamos no domínio das "artes corporais", da intencionalidade, da motricidade humana - logo, o Ballet é arte, tal como é arte o Hip-Hop!
Mas a técnica sinónimo de arte para os latinos, para os gregos (τέχνη - téchne - "arte, técnica, ofício") confundia-se com a arte, tendo sido separada desta ao longo dos tempos.
Numa Sistemática do Karaté, o problema não está na "arte". O problema coloca-se no «marcial» das ditas «artes marciais» - sistemas guerreiros de treino para combate (conflito violento cuja intenção é dominar o inimigo), logo, no próprio combate. Tal como o problema não se coloca no «desporto» do «desporto de combate, mas sim no «combate». Não é por acaso que «Kumite» significa "encontro de mãos".
No Japão, do século XIV ao século XIX foi vigente o paradigma Bujutsu, etimologicamente composto pelas raízes «bu» (em japonês: 武) e «jutsu» (em japonês: 术) que significa ciência, ofício, ou arte, vigorando o paradigma Budo - composto por «bu» (em japonês: 武 ), que significa a guerra ou as artes marciais, e por «do» (em japonês: 道 ), o caminho, a via, sendo este “do” derivado do sânscrito marga budista (e significa o "caminho" para a iluminação) - sensivelmende desde 1868 até 1936, ano em que os japoneses institucionalizaram o termo Karate-Do, tendo a Japan Karaté Association organizado em 1957 a primeira competição formal. Aqui fez-se a transição de «arte marcial» para «desporto de combate»...
Ora, nós temos comprado as coisas ao preço a que elas nos têm sido vendidas. Uma coisa é aquilo em que acreditamos, outra coisa é aquilo que conseguimos fundamentar e provar. Até os cépticos precisam acreditar que em nada acreditam. Dar só uma denominação, qualquer um pode dar a que quiser...
No célebre livro de 1643, escrito por Miyamoto Musashi, “Go Rin No Sho” (Musashi, 2007), o termo heiho é traduzido como «arte marcial» (p. 35). A tradutora, Catarina Fonseca, explica-nos que este termo, escrito com dois caracteres, levanta um problema: o primeiro ideograma pode significar «soldado», «batalha», «arma» ou «estratégia», pelo que defini-lo como «marcial» é correcto, enquanto o segundo é um pouco mais complicado e pode significar «lei», «método», «técnica», «arte», «modelo», «sistema» ou «doutrina».
No budismo, acrescenta ainda a tradutora, no qual Musashi era versado, este segundo ideograma pode significar «verdade» enquanto percepção ou prática do budismo em si e, apesar de existir o termo gei para designar outras artes (tal como a cerimónia do chá, o teatro noh ou a arte do arco – kyudo), Musashi utiliza este termo para descrever o seu «caminho».
Curioso é o facto de na tradução de Luís Serrão, a partir da versão inglesa do livro “The Book of Five Rings”, de Musashi (2002), todos os termos em que na tradução anterior (Musashi, 2007) aparecem como «arte marcial», neste segundo livro aparecem sempre e só traduzidos como «estratégia». Será só uma questão de tradução ou haverá aqui algo de conceptual?
Quando Yonnet (2004) afirma que "é o uso do utensílio que faz a classificação da actividade, não o utensílio por si próprio" refere-se ao «hoje», ao treino civil, e é isso próprio que nos quer transmitir...
Que "uso" fazemos actualmente do utensílio "Karaté"?
Por isso mesmo tenho defendido a classificação taxonomica do Karaté não como «arte marcial» nem como «desporto de combate», mas sim como um desporto de contacto corporal directo...
Outros contentam-se com a divisão entre «Karaté tradicional» e «Karaté desportivo».
O tradere latino significava transmitir ou dar qualquer coisa a guardar a outra pessoa (Giddens, 2006) - e aí estamos mais próximos do que fazemos dentro do dojo, nada tendo a ver com a competição. O problema não está no fazer competição ou não - muitas vezes fazemos mais competição no treino no dojo do que no próprio campeonato formal! O problema está no actual modelo competitivo... A competição TEM DE SER pedagógica. A actual NÃO É!
"A resistência à passagem do tempo não é característica fundamental da tradição, nem do seu primo um pouco menos visível, o costume. As características que definem a tradição são o ritual e a repetição. (...) O que torna qualquer tradição diferente é o facto de ela definir uma espécie de verdade. Para alguém que age de acordo com uma prática tradicional, as perguntas sobre a existência de alternativas não fazem sentido. Contudo, por muito que mude, a tradição proporciona meios de acção que são pouco questionáveis. É normal que as tradições possuam guardiões próprios: homens bons, sacerdotes, sábios. Mas ser guardião não é o mesmo que ser especialista." (Giddens, id.). E aqui estamos mais próximos do "nosso" Karaté...
Aquilo que a federação nos dá (ou que nós pagamos!) é desporto, é a competição, a formação para a competição e o seguro desportivo.
O problema reside no que a instituição nos dá (ou não dá!) no aspecto da formação do ser humano integral, no sentido do «caminho», da «via»...
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