quinta-feira, 5 de maio de 2011

Arte sim, mas «marcial» não! Desporto sim, mas «de combate» não!


Vem este a propósito de dois posts colocados em «Colectividade Desportiva», intitulados "Karaté: arte marcial ou desporto de combate ? (I)" e "Levantar o véu: Karaté, nem arte marcial nem desporto de combate... (II)".

Uma «arte» (do latim ars, "técnica e/ou habilidade") geralmente é entendida como uma actividade humana ligada a manifestações de ordem estética. Ora, abordando nós o Karaté, estamos no domínio das "artes corporais", da intencionalidade, da motricidade humana - logo, o Ballet é arte, tal como é arte o Hip-Hop!

Mas a técnica sinónimo de arte para os latinos, para os gregos (τέχνη - téchne - "arte, técnica, ofício") confundia-se com a arte, tendo sido separada desta ao longo dos tempos.

Numa Sistemática do Karaté, o problema não está na "arte". O problema coloca-se no «marcial» das ditas «artes marciais» - sistemas guerreiros de treino para combate (conflito violento cuja intenção é dominar o inimigo), logo, no próprio combate. Tal como o problema não se coloca no «desporto» do «desporto de combate, mas sim no «combate». Não é por acaso que «Kumite» significa "encontro de mãos".

No Japão, do século XIV ao século XIX foi vigente o paradigma Bujutsu, etimologicamente composto pelas raízes «bu» (em japonês: ) e «jutsu» (em japonês: ) que significa ciência, ofício, ou arte, vigorando o paradigma Budo - composto por «bu» (em japonês:  ), que significa a guerra ou as artes marciais, e por «do» (em japonês:  ), o caminho, a via, sendo este “do” derivado do sânscrito marga budista (e significa o "caminho" para a iluminação) - sensivelmende desde 1868 até 1936, ano em que os japoneses institucionalizaram o termo Karate-Do, tendo a Japan Karaté Association organizado em 1957 a primeira competição formal. Aqui fez-se a transição de «arte marcial» para «desporto de combate»...

Ora, nós temos comprado as coisas ao preço a que elas nos têm sido vendidas. Uma coisa é aquilo em que acreditamos, outra coisa é aquilo que conseguimos fundamentar e provar. Até os cépticos precisam acreditar que em nada acreditam. Dar só uma denominação, qualquer um pode dar a que quiser...

No célebre livro de 1643, escrito por Miyamoto Musashi, “Go Rin No Sho” (Musashi, 2007), o termo heiho é traduzido como «arte marcial» (p. 35). A tradutora, Catarina Fonseca, explica-nos que este termo, escrito com dois caracteres, levanta um problema: o primeiro ideograma pode significar «soldado», «batalha», «arma» ou «estratégia», pelo que defini-lo como «marcial» é correcto, enquanto o segundo é um pouco mais complicado e pode significar «lei», «método», «técnica», «arte», «modelo», «sistema» ou «doutrina».


No budismo, acrescenta ainda a tradutora, no qual Musashi era versado, este segundo ideograma pode significar «verdade» enquanto percepção ou prática do budismo em si e, apesar de existir o termo gei para designar outras artes (tal como a cerimónia do chá, o teatro noh ou a arte do arco – kyudo), Musashi utiliza este termo para descrever o seu «caminho».

Curioso é o facto de na tradução de Luís Serrão, a partir da versão inglesa do livro “The Book of Five Rings”, de Musashi (2002), todos os termos em que na tradução anterior (Musashi, 2007) aparecem como «arte marcial», neste segundo livro aparecem sempre e só traduzidos como «estratégia». Será só uma questão de tradução ou haverá aqui algo de conceptual?

Quando Yonnet (2004) afirma que "é o uso do utensílio que faz a classificação da actividade, não o utensílio por si próprio" refere-se ao «hoje», ao treino civil, e é isso próprio que nos quer transmitir...

Que "uso" fazemos actualmente do utensílio "Karaté"?

Por isso mesmo tenho defendido a classificação taxonomica do Karaté não como «arte marcial» nem como «desporto de combate», mas sim como um desporto de contacto corporal directo...

Outros contentam-se com a divisão entre «Karaté tradicional» e «Karaté desportivo».

O tradere latino significava transmitir ou dar qualquer coisa a guardar a outra pessoa (Giddens, 2006) - e aí estamos mais próximos do que fazemos dentro do dojo, nada tendo a ver com a competição. O problema não está no fazer competição ou não - muitas vezes fazemos mais competição no treino no dojo do que no próprio campeonato formal! O problema está no actual modelo competitivo...  A competição TEM DE SER pedagógica. A actual NÃO É!

"A resistência à passagem do tempo não é característica fundamental da tradição, nem do seu primo um pouco menos visível, o costume. As características que definem a tradição são o ritual e a repetição. (...) O que torna qualquer tradição diferente é o facto de ela definir uma espécie de verdade. Para alguém que age de acordo com uma prática tradicional, as perguntas sobre a existência de alternativas não fazem sentido. Contudo, por muito que mude, a tradição proporciona meios de acção que são pouco questionáveis. É normal que as tradições possuam guardiões próprios: homens bons, sacerdotes, sábios. Mas ser guardião não é o mesmo que ser especialista." (Giddens, id.). E aqui estamos mais próximos do "nosso" Karaté...

Aquilo que a federação nos dá (ou que nós pagamos!) é desporto, é a competição, a formação para a competição e o seguro desportivo.

O problema reside no que a instituição nos dá (ou não dá!) no aspecto da formação do ser humano integral, no sentido do «caminho», da «via»...
...


8 comentários:

  1. Pois é! Mesmo que se ande constantemente a "bater no ceguinho", os velhos do Restelo vão continuar "ideologica e politicamente" correctos! Aquelas mentalidades não conseguem apreender coisas novas, realidades que se lhes deparam, nem que se encontrem no seu caminho e nelas tropecem... Mas a mudança não se opera num dia e assim como o "cãntaro tantas vezes vai à fonte...", também a "agua mole em pedra dura..."! Costuma dizer-se que "burro velho não aprende língua nova", no entanto neste "nosso" Karate deveria dizer-se "burro velho NÃO QUER aprender língua nova". Enfim,... lá chegaremos! ;) Bjinhos

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  2. O problema é tão simples como isto: Chame-se o que se lhe chame, o karate é complexo. Tão complexo que divide opiniões apenas com a sua designação, e isto sem entrar em divergências de opinião quanto às suas linhas de direcção. Quem prefere competição defense-a com unhas e dentes, e quem prefere a via tradicional faz o mesmo. Quanto à utilidade da federação as opiniões também se dividem. Tão simples era quando o karate servia para a defesa pessoal unicamente... boa dissertação, amigo Armando. Sempre a dar-lhe!

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  3. ESTA É A 2ª VEZ QUE ME DIRIJO AOS ANÓNIMOS...

    É mais do que sabido, pelo menos por aqueles que me conhecem, que costumo fundamentar as minhas posições - até que me demonstrem que estou errado, mas aí sei dar a "mão à palmatória"! - e que é meu hábito assumi-las frontalmente! Não costumo falar (escrever) sobre aquilo que não sei ou que desconheço.

    De facto, um último comentário anónimo é revelador da actualidade do nosso país e da mentalidade do portuguesinho. E a diferença reside na realidade entre os que são indiferentes, os submissos, os subservientes, e aqueles que resistem, que denunciam, que actuam - os que se indignam e manifestam a sua indignação. Do portuguesinho que tem medo de dar a cara para não sofrer represálias... Do portuguesinho que teme assumir as suas responsabilidades (porque se sente inseguro em relação às posições que defende!). Ou do portuguesinho que se diverte a lançar "bitaites" sem saber em que se fundamenta ou sem ter conhecimento de causa...

    Um dos males de quem pratica Karaté é estar confinado a essa prática... Se o anónimo entende que neste blog há muito Karaté de livro e pouco Karaté de dojo, tem abaixo o convite...

    Práxis (do grego πράξις) significa actividade e acção. Foi Aristóteles que consagrou a práxis como um termo filosófico, para assim poder designar as ações intransitivas ou morais que têm em si mesmo um sentido completo ou pleno. Práxis em seu sentido amplo, é a atividade humana em sociedade e na natureza. Teoria (do grego θεωρία), é o conhecimento descritivo que permite especulações, contudo puramente racional. É o estudo para fundamentar a prática... para que a prática fundamente esse estudo... O karateka tem de ser um prático-teórico e um teórico-prático... ou então não será nunca um karateka porque lhe foge o conhecimento (o prático e o teórico!). "Toda a teoria é teoria da práxis. Exprime a unidade dialética do pensar e do ser, sendo ao mesmo tempo saber e prática, conhecimento e ação. É o termo natural da teoria, sem o qual esta seria inútil e ilusória." (Basta consultar o que tem mais à mão: a Infopédia e a Wikipédia).

    Há muitos praticantes de Karaté que sabem fazer Karaté mas não conhecem o «fazer Karaté»... Para além disso nos meus dojo os treinos são de portas abertas e se o anónimo quiser aparecer, está convidado...

    Já dei importância de mais ao anónimo... mas os COMENTÁRIOS ANÓNIMOS continuarão a NÃO ser publicados neste blog!

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  4. É, há por aí umas pessoas que gostam de aprender (não quer dizer que fiquem a saber) a dar uns socos e uns pontapés a que chamam oi-tzukis e mae-geris, para depois cá fora quando se virem à rasca e precisarem puderem dar nos outros! É marcial sim senhor, pois quem vai à guerra dá e leva!

    Porque não vão para o atletismo para aprenderem a fugir quando se metem em confusões?

    E depois andam todos os dias a rezar aos Santos carácter, esforço, controlo, sinceridade e etiqueta (deve ser a dos supermercados com uma data de barras paralelas).

    Eu pelo menos tenho aprendido alguma coisa neste blog.

    Obrigado amigo Armando.

    PC Correia

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  5. Caros amigos: os meus agradecimentos a todos pela Vossa colaboração.

    De facto, «burro velho não quer aprender língua nova»... Obrigado Cristina!

    Chame-se o que se lhe chame, o Karaté é complexo e muito, mas, caro Ramalho, convém saber onde se situa a nossa modalidade em relação às outras e o que andamos na realidade a praticar. Obrigado pela tua achega!

    Ao anónimo não agradeço porque nem costumo agradecer a pessoas que desconheço...

    Ao Pedro Asso o meu obrigado porque a partir de agora vou começar a aprender a tal "etiqueta" do Karaté nos supermercados...

    Um abraço a todos e bom fim-de-semana (e entretanto treinem muito mas leiam pouco, o pessoal do Karaté o que precisa é de saber truques (de magia!) e golpes (usem pensos rápidos!) mesmo que o cérebro seja pequeno...).

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  6. Caro Armando (permita-me os formalismos de lado):

    Chego atrasado mas penso que a tempo. As vezes tem vantagens, após post e comentários.

    Cada um tem as suas convicções e a liberdade de um acaba onde começa a liberdade do outro - são chavões mas quero tê-los presentes ao longo deste comentário!
    Como disse na «Colectividade Desportiva», temos comprado as coisas ao preço a que elas nos têm sido vendidas. Por vezes o preço varia consoante a qualidade (lá está ele na etiqueta no código de barras), por vezes somos enganados. Umas vezes enganam-nos deliberadamente mas outras não, por vezes compramos acertadamente mas às vezes temos azar.
    E se cada um tem as suas crenças, cada um tem a liberdade de acreditar naquilo que quiser. "Até os cépticos precisam acreditar que em nada acreditam." - gostei dessa, pois muitos de nós acreditamos que praticamos uma arte marcial, tal como os do judo ou os da luta olímpica ou os do tiro com arco.
    Fui seu formando em dois cursos e o que admirei em si foi a sua forma de estar, a sua sinceridade, a sua abertura, o seu modo de comunicar. Não vou falar do seu backgroud... penso ser desnecessário, pois este blog mostra isso.
    Quanto a este tema, apresentou ideias, explicou-as, disse onde as foi buscar, mostrou o seu porquê e justificou-se. Não o vi obrigar ninguém a aceitá-las. Mas a grande virtude que teve foi dar novas pistas, alargar horizontes. Também eu concordo com algumas e com outras não, mas fez-me pensar. Obrigado por isso.
    Só me resta dizer que se o "penso, logo existo" está ultrapassado, talvez não esteja o "finjo que penso, logo existo".

    Continue que, quer eu concorde consigo ou não, cá estarei para ler o que escreve.

    José Neves

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  7. À parte das discussões antecedentes, permitam-me deixar a minha humilde opinião, certa ou errada, após duas afirmações:

    - Na minha vida de estudante/atleta de Karate (tradicional/desportivo), tive apenas um mestre/treinador.

    - Nunca precisei, para assuntos de grande importância, da Federação de Karate, mas quando precisei não respondeu da forma mais eficaz. No entanto quando necessitei do meu Dojo ou da minha Associação, esta nunca me faltou.

    Na dicotomia apresentada na primeira afirmação gostava de salientar que, para mim, é o responsável pelo treino que toma uma decisão sobre que caminho seguir e, com esta, levar os que o acompanham.

    Questiono agora: Terão mesmo de ser dois caminhos diferentes, aparentemente antagonistas?

    Custa-me tanto ver grandes atletas de Kumite que não sabem executar decentemente uma Kata, ou sequer perceberem o que esta é na sua essência... De quem será a "culpa"? Haverá "culpa"? Será este o preço a pagar pela separação do "Karate desportivo" e "Karate tradicional"?

    Quanto à segunda afirmação, penso que não necessite de grandes explicações.
    Creio que, e até não levo com grande pesar, o facto da Federação apoiar o desporto e não a tradição, pois tenho a sorte de ser um mestre que nos leva num equilíbrio perfeito por ambos os caminhos.

    Como costumo dizer: "Quem faz o Karate são os que ensinam (uns bem e outros, infelizmente, menos bem)."

    Cumprimentos,
    Rui

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  8. Apenas uns pontinhos a comentar:

    1. Correcção: BU-JUTSU em japonês é 武術.
    O ideograma indicado no artigo para a palavra JUTSU 術 não é japonês.

    2. 兵法 Heihô - nunca foi, nen nunca será "Arte marcial".
    De facto, a tradução para Heihô é "estratégia", que é "a doutrina do soldado".
    兵 HEI - Soldado
    法 HÔ - Doutrina, lei, regra.

    (^_^)

    押忍!Osu!

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