terça-feira, 24 de abril de 2012

Karate: ensinar ou vender?

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Em se tratando da arte marcial Karate, inúmeros são os assuntos abordados por especialistas, estudiosos, mestres; por revistas, livros, trabalhos universitários, “sites” e “blogs” na Internet, etc.. Contudo, poucos são aqueles que deixam clara a distinção entre verdadeiramente “ensinar” Karate ou “vender” Karate.
Este problema é tão mais grave à medida que muitos responsáveis e personalidades respeitáveis desta arte permitem uma certa ambiguidade a este respeito sem definir limites ou fronteiras entre o que é ou não eticamente válido na transmissão da arte em si.
Assim sendo, gostaria de introduzir esta matéria para reflexão e, talvez, entendermos o ponto da situação neste preciso momento.
Para começar, precisamos entender qual é a diferença entre “ensinar” Karate e “vender” Karate.
Entende-se por “ensinar” Karate as ações que visam transmitir os conhecimentos teóricos e práticos de um treino com fundamentação tradicional – dando-se uma ênfase particular à formação  cultural dos karateka sob sua responsabilidade – muitas vezes, dado o grau de exigência, registando-se um baixo número de praticantes.
Entende-se por “vender” Karate as ações que visam, muitíssimas vezes em detrimento do conhecimento efetivo, o aumento do número de escolas e alunos a fim de viabilizar economicamente (monetariamente) determinado instrutor, associação ou instituição – geralmente através de um ensino horrivelmente superficial em se tratando da teoria.
Algo que fica bastante evidente à primeira vista deste posicionamento é que – aparentemente – estas duas formas de “ver” o Karate parecem ser bastante divergentes entre si, o que é inegavelmente visível se analisarmos a história japonesa.
É de conhecimento geral que antigamente, no Japão feudal, as classes sociais obedeciam a um sistema rígido e hierárquico denominado Shinôkôshô (literalmente: “Guerreiros, Agricultores, Artesãos e Comerciantes”) – da classe mais alta à classe mais baixa respectivamente. Aos Guerreiros cabia o ofício da guerra, aos comerciantes cabia o ofício da comercialização… bastante básico, não?
Os Guerreiros, naquela época, não “vendiam” as artes que praticavam… não se pode nem imaginar tal coisa! A função da venda de bens e de serviços cabia aos comerciantes – a classe mais baixa do sistema Shinôkôshô…
Naturalmente, estamos a falar de um Japão feudal!
Mas, como também sabemos, tudo evolui… e a sociedade e cultura Japonesas não são exceções à regra: o Japão não é mais um sistema feudal, os Samurai já não existem e muitos conceitos que antigamente eram defendidos com a própria vida (como a “honra” ou o “dever”), hoje em dia, não passam disso mesmo: meros “conceitos”.
Assim, o sistema Shinôkôshô e muitas de suas características acabaram por ser extintos e, hoje em dia, já não somos capazes de definir com clareza onde acaba um guerreiro e onde começa um comerciante – dada a “evolução” normal e natural da história e do desenrolar dos eventos socioculturais.
Neste contexto – um tanto confuso para uns e perfeitamente conveniente para outros – o Karate emerge como uma arte em franco desenvolvimento e difusão. E é também neste contexto que aparece a “venda” da arte com fins socioeconómicos.
Enquanto “ensinar” implica “saber” (para ensinar), “vender” implica, de forma bastante superficial, “apresentar um produto”!
Saber uma arte, dominar os seus ínfimos pormenores é uma tarefa exigente, morosa e muitas vezes – se não na esmagadora maioria das vezes – uma tarefa que consome muito tempo em pesquisas, apontamentos, sistematização, treinos e analises… Tudo que é “monótono” e “enfadonho” é colocado diante de quem “ensina” a arte.
Contos fantásticos, estórias elaboradas, misticismos e explicações obscuras, cerimoniais exagerados, graduações “multicoloridas”, excesso de obras literárias (com o mesmo conteúdo)… tudo serve para “vender o peixinho” chamado Karate!
Sem dúvida, este último é muito mais apelativo! (^_^) Pois necessita apenas de apresentar ao cliente aquilo que ele quer…
Mas sejamos minimamente honestos: o Karate que hoje conhecemos se fosse apenas “ensinado”, teria o impacto mundial sem os “vendedores”?
A resposta é bastante simples: NÃO!
Era e ainda é necessário “incentivar” as pessoas a conhecer, a ter interesse a respeito da arte que se pretende apresentar. Daí o pedagogo, o professor, o mestre ter de assumir o papel de “difusor da arte” e apresentar um produto visualmente aceitável e credível ao público-alvo (basicamente torna-se um vendedor).
Por outro lado, é interessante notar que, nesta sociedade do século XXI com as inúmeras fontes de conhecimento disponíveis, os “clientes” estão a ficar cada vez mais exigentes com o “peixinho” que estão a comprar! Enquanto agora os “mestres” são obrigados a adaptar o ensino às exigências sociais, os “vendedores” são obrigados a saber mais e mais a respeito da arte que estão a divulgar.
Desta forma, alterando apenas um pouco a expressão “vender ou ensinar” (tipicamente feudal) para uma versão mais “evoluída” e contemporânea, eu diria que “recebe-se uma retribuição (monetária ou meritória) por um ensino fornecido”.
A questão que se coloca para reflexão pessoal (e particular) é:
“HONESTAMENTE, quanto vale o “ensino” que eu forneço?” ou
“HONESTAMENTE, eu SEI aquilo que ensino?” ou
“HONESTAMENTE, eu estou a fornecer “qualidade” ou “gato por lebre”?



(^_^)

Texto de Joséverson Goulart, cuja contribuição se agradece.

10 comentários:

  1. Pois é amigo Armando. Esta é a diferença entre "capoeira" e "aviário". Não sou contra a profissionalização do karate - sou é contra a mercantilização do karate. Ensinar dá trabalho...muito trabalho, se quisermos ver resultados. Estudo se quisermos ensinar com algum rigor. Ética se quisermos ensinar com honestidade. Num mundo onde a "moeda" é mais importante, os valores diluem-se até não restar mais nada...Um abraço (espero que este comentário apareça, porque tem estado difícil)

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  2. Não será errado “receber-se uma retribuição (monetária ou meritória) por um ensino fornecido” desde que seja um ensino de qualidade. Daí que o pedagogo-treinador-mestre tenha de ter competências técnicas e pedagógicas e que as saiba aplicar.
    O trabalho de uma pessoa que produz tem de ser remunerado. O problema reside na qualidade dessa "produção" e no seu resultado final... que só sendo avaliado positivamente pelos pares e pela comunidade justifica a remuneração.

    Cumprimentos.
    JA Neves

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  3. Caro Armando:

    Um estudioso da Ética sabe que a maior motivação do homem é maximizar o seu próprio prazer. A Ética surge quando as pessoas compreendem o que têm de fazer para viverem melhor e para garantirem a sua sobrevivência. Será eticamente correto "vender Karaté"? Para uns é, pois compreenderam como podem viver melhor e garantir a sua sobrevivência... mesmo à custa de outros!

    Cumprimentos.

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  4. Caro Armando ,
    Antes de mais, excelente texto, obrigado pela divulgação.
    A questão fundamental, parece-me a da honestidade, da ética. A leadade, o questionamento sincero sobre aquilo que se ensina são fundamentais. José Ramalho tem razão, profissionalização não é problema. Bons profissionais são precisos, necessários e fundamentais. O problema, o verdadeiro problema é o da mercantilização, ligada ao "abandalhamento de valores, à descida da qualidade, à perda de princípios e ao salve-se quem puder.
    Saber bem o que se ensina, estudo, honestidade rigor ,qualidade, transmitir de forma adequada o que sabe, fazem um bom profissional. Embelezar o produto para manter clientela é uma arte, mas a arte da publicidade enganosa.Infelizmente há muita desta última no Karaté e não só.
    Mais uma vez, obrigado a ti e ao Sr.J. Goulart.
    Grande abraço,
    Luís Sérgio

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  5. Após ler mais uma vez o texto do meu amigo Joséverson assim como estes comentários, que agradeço, resolvi fazer uma reflexão pessoal - e, como tal, subjectiva, logo, sujeita a erro!
    Apesar da espécie humana ser na maioria dos casos cooperativa, solidária e em muitos altruísta, a motivação do homem não se prende com o interesse dos outros, mas antes com o seu próprio interesse, o que faz dela, eticamente, uma espécie egoísta.

    Por isso mesmo, dificilmente eu reconhecerei, honestamente, que estou a vender Karaté. Eu ou alguém... qualquer um que assuma as funções de treinador!
    Pessoalmente, sei que forneço pouco, porque o que forneço está ainda muito aquém daquilo que é o verdadeiro Karate-do na sua essência - disso tenho consciência!
    Procuro saber e conhecer aquilo que ensino - técnica e pedagogicamente - e em alguns casos pessoas há (pais de alunos, alguns dos próprios alunos) que me manifestaram que tem havido sucesso - em termos de formação do índividuo, de ajuda comportamental nalguns casos, de vitórias competitivas noutros, de criação e consolidação de amizades... mas também há desaires...
    Honestamente, eu estou a fornecer “qualidade” ou “gato por lebre”? Tento, esforço-me por fornecer "qualidade", mas não sei se a tenho fornecido...
    A instrospeção está feita, outros, com conhecimento de causa, deverão fazer a avaliação.

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  6. Antes de mais, depende do ponto onde nos encontramos. É fácil para aqueles cuja subsistência é alimentada por outra profissão condenar os que tentam "vender" o Karate (sendo esta a sua única profissão). Outra questão que me baralha é a convicção de que muitos têm de que eles sabem o que é o "DO" e os outros não. Eles ensinam a verdade e os outros vendem a mentira. Faz-me lembrar um pouco as convicções religiosas que originaram massacres..Aparentemente não vemos este comportamento como um padrão desse tipo. Ninguém sabe o que é o "Do", até porque a realidade não é estática. Antes de mais é necessário abandonar essa noção de que é algo concreto e estático. Em relação ao que o Dr. Armando Inocentes diz, acho apenas produto de uma mente saudável duvidar da sua criação de tempos a tempos. Só pessoas limitadas não se questionam e, assim, não procuram melhorar.
    Dito isto, também eu tenho momentos de raiva. Ora a dirijo contra os "vendedores" ora a dirijo contra os "detentores da verdade original". E sabem a conclusão a que chego?

    - Se nos incomodam é porque em parte invejamos os que ganham mais dinheiro. Achamos que nós é que devíamos ser reconhecidos, não "eles"!
    - Queremos que o Mundo seja como desejamos e não queremos vê-lo pelo que é. A maior parte das pessoas é atraída pelo que brilha e não tem inteligência ou tato para "cheirar" o esturro. Mas nós não as conseguiremos mudar.
    - Que tudo está perfeito como está: quer os "banhas da cobra", quer os "defensores da verdade original" quer a vontade de melhorar isto, quer tudo...Tudo precisa de tudo, e vamos continuar a ser humanos durante muito mais tempo!

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  7. Parabéns Nuno, revejo-me inteiramente no seu comentário. Acrescento só que é uma consequência do mundo de hoje que o Karaté ou qualquer outra Arte Marcial seja um "produto", como tal temos de o "vender" e encontrar as melhores estratégias para que o nosso trabalho seja competitivo no meio em que estamos inseridos. Ninguém é professor sem alunos, nenhuma arte subsiste sem seguidores e entusiastas, por vezes a melhor forma de se chegar até a população em geral é "Vendendo", mas depois é necessário ensinar com pedagogia o melhor que se sabe.

    Dou aulas há 12 anos, hoje dedico-me profissionalmente quase por inteiro às Artes Marciais, sou um instrutor diferente do que quando começei, pois tive a necessidade de crescer tanto ao nivel marcial como académico para fazer crescer os meus alunos. Posso ter ensinado muitas técnicas mal, mas os valores morais sempre estiveram presentes. Hoje quando olho para os meus alunos já adultos sinto orgulho de ver que contribui para que eles se tornassem em cidadãos exemplares que não bebem, que não fumam, que gostam de praticar Karaté e de serem competitivos nas suas atividades profissionais sempre com respeito pelos outros.

    Portanto meus caros colegas se "vendo" faço-o porque amo o que faço e quero estar sempre a faze-lo!
    Filipe Ferreira

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  8. Já disse que não sou católico, mas "valha-me Deus!" Não estarão a msiturar alhos com bugalhos?

    A questão não está em "vender", está em "vender com qualidade"!

    Um abraço aos dois últimos comentadores.
    Pedro Correia

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  9. OSS Inocentes Sensei!

    Ensinar e Vender o Conhecimento. Conceitos tão próximos, porém com significados profundos e distintos.

    Ensinar, significa dedicar a vida em busca do conhecimento. Atualizar-se, ter prazer em retransmitir o conhecimento àqueles que tem o mesmo intuito de um eterno aprendiz. Vai cobrar por isso? É justo? Sim, pois obter conhecimento também requer investimento. É preciso participar constantemente de cursos, estar federado, oferecer condições para que os alunos encontrem portas abertas para o conhecimento onde quer que vão. Principalmente, ter prazer em retransmitir o Karatê.

    Vender o Karatê: Simplesmente abrir uma academia. Caprichar no marketing pessoal, enxendo a própria imagem de pompas colocando cartazes de si mesmo com cara de mal pelas paredes, vestindo trajes japoneses, fazer poses com espadas, colocar algumas delas pela parede do "Dojo". Fingir que ensina enquanto os alunos acreditam que estão aprendendo a Arte através de um grande "mestre".
    Aqui no Brasil, hoje está muito fácil de conseguir um status de grande mestre, pois é só se inscrever na lista do livro: Grandes Mestres das Artes Marciais. Muito fácil através do site da editora. E assim, sair por aí como mais um dos tantos vendedores de karatê.

    Como já foi comentado, a diferença entre Ensinar e Vender está totalmente relacionado à qualidade. Complemento, está relacionado à qualidade do Sensei e principalmente no que reflete à qualidade dos alunos.

    São os alunos que vão mostrar se estão aprendendo, ou comprando o Karatê.

    Um grande abraço!

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  10. Após ler todos os comentários (fui dos primeiros a comentar), saúdo tal como o Nuno Almeida a posição do Dr. Armando e lembro-me que nas suas formações nos dizia sempre qualquer coisa como isto: "levantem sempre dúvidas em relação ao que vos transmito".
    A sua reflexão sobre aquilo que ensina é salutar.Tal como é salutar (e formativo) aquilo que ele ensina.

    Grande abraço.
    JA Neves

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