O meu primeiro contacto com o Shodō foi em 1981, quando resolvi perguntar a Onaga Ryōichi Sensei (翁長良一 先生) o que era aquele quadro por cima do altar onde estava o Busāganashī, no seu primeiro Dōjō em Vistalegre, Múrcia.
(À esquerda o primeiro Dōjō, em 1981 - embora não pareça, aquele jovem à sua direita, cinto verde, na altura 4º kyu, sou eu - e repare-se que o mesmo quadro se mantém no seu Dōjō atual - foto da direita, tirada no treino de aniversário de Onaga Sensei em fevereiro deste ano e cortesia do meu amigo Carlos Garcia.)
Após a pergunta, a resposta:
– Shodō! - respondeu-me ele.
– Shodō! - respondeu-me ele.
– Como? - perguntei eu - Se estão lá quatro caracteres e Shodō só possui dois?
– Shodō, é uma Arte, significa "O caminho da escrita". A Arte da caligrafia japonesa. O que tu queres é saber o significado do que está escrito no quadro... foi-me oferecido por um amigo meu, Mestre em Shodō...
– Sim, é isso Sensei...
– O caminho é infinito… o que lá está escrito é Mugen-kudō (pronuncia-se mais ou menos como Munhenkudô) e significa “A via da pesquisa sem limites". Por muito que treines, por muito que estudes ou pesquises, nunca encontrarás um fim… terás sempre algo mais que procurar!
Tinha eu 25 anos e era apenas um 4º kyu…
Graças a Joséverson San, a quem agradeço, fiquei agora a saber o significado concreto de cada um dos ideogramas: 無 MU - "Sem, não existir, inexistência"; 限 GEN - "Limites, restrições"; 究 KYŪ / KU - "Pesquisa, estudo (no sentido de pesquisar)" e 道 DŌ - "Via, caminho"... este já é nosso conhecido.
Daí a importância que sempre dei nos meus treinos em ensinar aos meus alunos as características do estilo e o que quer dizer Gōjū-Ryū Karate-Dō (剛柔流空手道), assim como sempre procurei que soubessem identificar cada ideograma e saber qual o seu significado, tal como conhecerem as suas origens: Okinawa (沖縄), Higaonna Kanryō (東恩納寛量) e Miyagi Chōjun (宮城長順) (1888-1953).
Pouco tempo depois, a pesquisa levou-me a encontrar num livro editado em 1984 pela Penguin Books Ltd. (1), uma explicação mais pormenorizada sobre o que era o Shodō: “O pincel é uma extensão da nossa alma (…). Em Shodō, não importa tanto a qualidade com a qual conseguimos reproduzir o estilo das letras, mas, sim, com que concentração, sinceridade e naturalidade permitimos que o eu interior se expresse através das pinceladas.”
Em 1995 Teruo Chinen Sensei (知念辉夫 先生) demonstrou o seu Shodō quando me dedicou o nosso Dōjōkun (道场训) - as instruções do local do caminho filosófico, ou mais rotineiramente, as regras do Dōjō.
Disse Joséverson San no seu blog: “No caso da escrita dos ideogramas (Shodō) e da arte militar (Budō), só aqueles que buscam o conhecimento tanto teórico como prático - conhecimento conseguido após muitos e muitos anos de estudo e treino - é que são capazes de detectar estas incorreções. Falhas que passariam - de outro modo - como sendo informações fidedignas. Estes Karateka é que são capazes de ver a beleza dos traços dos ideogramas, dos movimentos de um Kata ou das técnicas do Kumite... porque a beleza existe em todas as artes.” Karateka (空手家) que são experts, ou especialistas em Karate-Dō.
No Shodō o traço sublime (escrito ou pintado) é semelhante ao movimento sublime (técnica, kata - 型 ou kumite - 組手) e a beleza só se revela e só existe quando e só quando ambos são corretamente executados e sentidos. Ambos levam o Ser Humano a transcender-se. Isso é Arte! Isso é Estética!
Tanto o traço como o movimento não existem por si sós - ambos possuem uma forma e um conteúdo, um significado, e são produtos do Ser Humano, do corpo que é cérebro e do cérebro que é corpo. Aqui se encontra a noção de motricidade intencional...
Mas esta ligação (simbiose) entre Karate-Dō (空手道) e Shodō (書道) vai muito mais além que essa motricidade intencional, essa arte e essa estética: “diz-se que a ética, a filosofia da prática, a pesquisa e a reflexão sobre o comportamento operativo do homem, quando se junta ao Este transforma-se em Est-ética…” (2).
(1) Jackson S. Morrisawa e «Chozen-Ji/International Zen Dojo», s/d, “O Segredo de Acertar no Alvo”, São Paulo: Editora Pensamento.
(2) Isao Hosoe, in Khân, Gabriele Mandel, 2012, “Alfabeto Japonês”, Lisboa: Público, Comunicação Social, SA, p. 12.
アルマンド イノセンテス
OSS Inocentes Sensei:
ResponderEliminarA Arte do Shodo é fascinante. Espero que em alguma época de minha vida possa ter contato e venha a praticar esta maravilhosa Arte, que assim como a esgrima exige coordenação e suavidade.
Um grande abraço.
Caro Dr. Armando:
ResponderEliminarPor aqui se vê que Karaté só não chega. A escrita japonesa, sendo monosssilábica, possui um significado concreto para cada caractere, dependendo o significado desse do conjunto dos restantes em que está inserido.
Assim, facilita-nos a nossa compreensão em relação ao que praticamos o sabermos qual o significado de cada um. Saber que Go é duro ou forte e Ju suave ou flexível dá-nos uma melhor compreensão de cada momento e do ritmo de cada kata.
E não haja dúvida que "temos sempre algo mais que procurar" como disse Onaga Sensei
Esqueci-me de dizer que Eduardo Lara diz precisamente o mesmo: "assim como a esgrima exige coordenação e suavidade": lá etá o Go e o Ju...
ResponderEliminarAliás a evolução da espada, que era para cortar, ao florete dos duelos, que era só para picar, até à sala de esgrima (só para tocar) tem uma certa comparação com a arte Samurai (até ao Iai-Do e Ken-Do) e até em relação à evolução do karaté até aos nossos dias.
Um abraço e Boa Páscoa
JA Neves
Mais pinceladela, menos pinceladela, em nada isso altera o Karaté. O Karaté faz-se com as mãos e os pés e não com pincéis. Os japoneses podem fazer Karaté e pintar os seus caracteres, mas pintá-los em nada aperfeiçoa a sua técnica de combate. Se eles entendem as coisas assim, no ocidente podemos entendê-las à nossa maneira, ou não?
ResponderEliminarO que me interessa o Dojokun em japonês se eu o souber em português?
Cumprimentos.
Caro António Taborda, permita-me comentar as tuas afirmações:
Eliminar1. "Mais pinceladela, menos pinceladela, em nada isso altera o Karaté. O Karaté faz-se com as mãos e os pés e não com pincéis. "
Não tens o "mínimo conhecimento" sobre este assunto que te permita falar sobre o mesmo de forma fundamentada e, portanto, acho que deverias ouvir aqueles que têm mais experiência do que tu e tentar aprender aquilo que te falta. E por "mínimo conhecimento" eu quero dizer isso mesmo: não sabes absolutamente NADA a respeito de Shodô ou cultura japonesa que te permita validar o que dizes.
A anaologia entre Karate e Shodô não é coisa "inventada" pelo Inocentes Sensei, mas é uma analogia feita por todos os mestres japoneses (e ocidentais) que CONHECEM a cultura na qual o Karate está inserido. É a carga cultural inerente ao próprio Karate... carga cultural que deveria ter sido passada para ti pelo teu instrutor.
2. "Os japoneses podem fazer Karaté e pintar os seus caracteres, mas pintá-los em nada aperfeiçoa a sua técnica de combate. Se eles entendem as coisas assim, no ocidente podemos entendê-las à nossa maneira, ou não?"
Por um erro cultural do teu instrutor, não tens capacidade de entender a cultura japonesa e as analogias que aqui são feitas. Cumpre-me, portanto, explicar as analogias de forma mais fácil sobre o que o Inocentes Sensei está a falar.
Analogia 1 - Karate e Ritmo.
Tuas palavras: "Com todo o respeito por Oyama Sensei e pela noção de ritmo, karate é karate e ballet é ballet. Semelhanças fotográficas há com todas as outras modalidades.
Não inventemos nada do que já está inventado! Kumite não é ballet! Kata não é dança!"
Explicação: a analogia feita pelo Mestre Ôyama da Kyokushinkai refere-se ao fato de que no Karate é necessário ter ritmo correto e preciso na execução dos Kata ou na aplicação das técnicas no Kumite. Este ritmo, esta precisão de movimentos vem com anos contínuos de prática, um treino tão exigente e belo como o treino do Ballet.
Este grau de exigência e treino a nível de ritmo é que são o ponto passível de comparação entre as artes: Karate e Ballet. (^_^)
Analogia 2 - Karate e Shodô.
Tuas palavras: "Os japoneses podem fazer Karaté e pintar os seus caracteres, mas pintá-los em nada aperfeiçoa a sua técnica de combate. Se eles entendem as coisas assim, no ocidente podemos entendê-las à nossa maneira, ou não?"
Explicação: a analogia refere-se ao fato de que no Karate é necessário SABER o EXECUTAR os movimentos corretamente. Vou dar um exemplo bastante primário, mas vai servir para que entendas a analogia.
Suponha que ao fazer um Kata, no último movimento, ao invés de fazer o Yame, atiras-te ao solo e começa a cantar! O Kata está correto?! Claro que não! Por quê? Porque o movimento está errado! Da mesma forma, em Shodô, os ideogramas devem obedecer a uma sequencia de movimentos específicos e este conhecimento é adquirido com anos de prática.
Este grau de precisão de movimento e expressão da técnica (marcial ou escrita) é que são o ponto passível de comparação entre as referidas artes: Karate e Shodô. (^_^)
3. "O que me interessa o Dojokun em japonês se eu o souber em português?"
E sabes o Dôjôkun? Realmente? (^_^)
Acho pouco provável que isso seja verdade! Por quê? Porque para saber o Dôjôkun temos que entender a "cultura" a ele associada e, evidentemente, não é isso que temos visto nos dias de hoje na esmagadora maioria das escolas de Karate.
António. Ainda não consegues "visualizar o quadro completo": não é o teu maior ou menor grau de conhecimento sobre o karate que estás a colocar em causa. O que - de fato - estás a por em causa é o conhecimento efetivo de quem te ensinou Karate, porque a carga cultural que deveria ter vindo com o ensino da arte foi, infelizmente, "esquecida" sua totalidade por parte do teu instrutor - por razões que só a ele dizem respeito... daí dizeres o que dizes sobre Karate com a falta de fundamentação já característica.
Cumprimentos.
Caro António Taborda:
ResponderEliminarÉ bom termos entre nós uma pessoa cheia de convicções e que por vezes quase somos levados a crer que "é do contra" - repare que eu escrevi «quase»...
Mas não deve ser isso... o Taborda é mesmo assim! E ainda bem, pois não podemos ser todos iguais - nem parecidos nem semelhantes!
Mas permita-me fazer duas correções ao seu comentário:
1ª - O Karaté não se faz "com as mãos e os pés". O Karaté faz-se com o cérebro utilizando as mãos e os pés (ou melhor, o corpo todo...);
2ª - O Dojukun não é para ser sabido em japonês nem em português: o Dojokun é para ser praticado!
Agradecido pela sua colaboração, as minhas saudações.
Armando Inocentes
A palavra Arte vem do latim "ars", e significa técnica e/ou habilidade. É a representação de uma atividade humana ligada a manifestações de ordem estética ou comunicativa, realizada a partir de emoções e de ideias. Há aqui dois aspetos a considerar: a realização de quem a pratica ao mesmo tempo que pretende transmitir ao outro "o que lhe vai na alma" e a visualização (admiração) pelo outro daquilo que presencia. Pode ter um significado para quem a produz e outro significado para quem a interpreta. Ou o mesmo para ambos...
ResponderEliminarNa realidade, se um movimento (ou vários) de Karaté é arte (pela sua perfeição, pela sua correção, pela sua beleza – segundo os entendidos nisso! - vejam-se as imagens do ballet noutro post), a pintura de um ideograma com um significado também é arte, tanto mais que não seja pela sua beleza estética. Podem ter interpretações diferentes consoante quem os executa e quem os vê. Por isso para uns Karaté é uma coisa, para outros é outra. Por isso os três ideogramas para uns são uma coisa, para outros são outros...
O que penso estar a ver aqui são duas perspetivas diferentes do Karaté: uma relacionada com o seu aspeto técnico e filosófico. A outra relacionada só com o seu aspeto combativo.
Até parece que eu já começo a aprender algo disto...
Um abraço, Armando e Boa Páscoa! Boa Páscoa também para todos os comentadores!
Luísa
Os melhores karatecas são os karatecas inteligentes. Vejamos, os mestres do passado, Funakoshi, Mabuni , Chojun Miyagi, Ueshiba (no Aikido)eram conhecedores dos clássicos da literatura chinesa, praticavam a caligrafia, a poesia e o "Shodo", como referido no texto. O exemplo clássico (mas muitos haverá) é o do samurai Miyamoto Musashi, autor do famoso tratado de estratégia marcial O Livro dos Cinco Anéis, que não só foi considerado o maior duelista do seu tempo, como também se dedicava à escrita, à poesia, à caligrafia e mesmo à pintura.
ResponderEliminarNas artes marciais é comum depararmo-nos com o conceito de "Bun Bu Ryo Do", um preceito que dita que a arte marcial é indissociável da escrita e da literatura, preceito muitas vezes traduzido como "a via da espada e a via da pena são uma".
Modernamente, falo do nosso século, quantos especialistas em karaté não são licenciados em Ciências do Desporto, em Medicina, quantos não fazem investigação nos campos da Biomecânica - para citar o mais célebre - Pierluigi Ashieri.
O truculento campeão francês dos anos 70, Dominique Valera (homem de muito, treino, de pancada a sério mesmo) tinha este dito "os centímetros mais inportantes num karateca estão entre as orelhas".
Treinar é indispensável, mas o tempo da "brutidade" e do "treinem, treinem" acabou.
Uma boa Páscoa para todos,
Maria Camarão.
Olá, Maria!
EliminarApenas para fundamentar o teu post, aqui vai a expressão em japonês:
文武両道 Bunbu ryôdô.
Onde:
文 BUN - Literatura, estudo literário.
武 BU - Militarismo, estudo militar.
両 RYÔ - Ambos.
道 DÔ - A Via, o Caminho.
"A via da literatura e militarismo". (Ambas as vias)
(^_^)
Caro Armando !
ResponderEliminarO que posso dizer sobre este post ?! apenas e só que ele próprio é arte, na medida em que transcende a simples informação sobre o Shodô , sobre o karaté. Aprendi ao lê-lo. Na verdade, tal como desenho das letras , murros e pontapés sem significado são um mero exercício circense , isso pode ver-se em qualquer lugar. karaté de corpo e alma vai rareando.
Obrigado por este post , obrigado também ao Sr.Joseverton Goulart pelo partilha do seu estudo.
OSS!
Antigamente tínhamos um lutador (chamavam-lhe luta livre, dizia-se que era combinado!) chamado Tarzan Taborda... lembram-se? Mais tarde quando deixou de lutar passou a ser "curador" ou "curandeiro" ou uma espécie de "cura maleitas"... lembram-se? Passou do 8 ao 80 - de pôr os adversários com os olhos negros, a esguichar sangue do nariz, com os lábios rebentados ou luxações nos cotovelos, passou a tratar e a curar pessoas a quem os médicos nada conseguiam fazer... lembram-se?
ResponderEliminarDas duas três: ou o António é da família do Tarzan (se calhar o António até é um Tarzan) ou o António quando abandonar o Karaté vai virar um "endireita".
Aguardemos...