Gil Vicente é um autor atual, apesar de ter sido representado pela primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior, o seu denominado Auto da Lusitânia. Nele, um rico mercador chamado "Todo o Mundo" e um pobre homem cujo nome é "Ninguém" encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. À sua volta, Belzebu e Dinato, dois demónios, vão tecendo e registando os seus comentários.
"Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este chama-se Ninguém.
Ninguém:
Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo:
Todo o Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém:
Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo:
Todo o Mundo:
Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém:
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém:
Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu:
e busco a consciência.
Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que Ninguém busca consciência
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém:
Belzebu:
Que Ninguém busca consciência
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém:
E agora que buscas lá?
Todo o Mundo:
Todo o Mundo:
Busco honra muito grande.
Ninguém:
Ninguém:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu:
que tope com ela já.
Belzebu:
Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém:
Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo:
Todo o Mundo:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém:
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém:
E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu:
em cada cousa que errasse.
Belzebu:
Escreve mais.
Dinato:
Dinato:
Que tens sabido?
Belzebu:
Belzebu:
Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém:
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém:
Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo:
Todo o Mundo:
Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém:
Ninguém:
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu:
a morte conheço eu.
Belzebu:
Escreve lá outra sorte.
Dinato:
Dinato:
Que sorte?
Belzebu:
Belzebu:
Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo:
E mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém:
sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém:
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu:
quanto devo para isso.
Belzebu:
Escreve com muito aviso.
Dinato:
Dinato:
Que escreverei?
Belzebu:
Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo:
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo:
Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém:
e mentir nasceu comigo.
Ninguém:
Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu:
sem nunca me desviar.
Belzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato:
não sejas tu preguiçoso.
Dinato:
Quê?
Belzebu:
Belzebu:
Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém:
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém:
Que mais buscas?
Todo o Mundo:
Todo o Mundo:
Lisonjear.
Ninguém:
Ninguém:
Eu sou todo desengano.
Belzebu:
Belzebu:
Escreve, ande lá, mano.
Dinato:
Dinato:
Que me mandas assentar?
Belzebu:
Belzebu:
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado."
Na verdade Gil Vicente foi (é) um verdadeiro génio das nossas letras, tudo o que escreveu continua atual. Alguns séculos depois continua a "dizer" verdades que incomodam.
ResponderEliminarSe vivesse nos nossos dias teria que escrever 24 horas por dia para denunciar os diversos podres deste mundo às avessas.
" Ridendo castigat mores", cito de cor, a rir se castigam os costumes, não chegaria, se calhar morria com tanto rir , de tanta malvadez que observaria e não conseguiria descrever.
Grande abraço,
Luís Sérgio
Na realidade Gil Vicente disse tudo:
ResponderEliminarNinguém busca consciência
e Todo o Mundo dinheiro.
Busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Como está actual! Todo o Mundo procura poder e projecção e Ninguém procura trabalhar em prol dos outros.
Reina a mentira, a calúnia, a opressão, a tirania. Querer já não é poder, porque quem pode manda e os outros que se sujeitem! Mas por outro lado também reina a indiferença, o laissez-faire... os que se deixam subjugar. Quando um dia lhes cair em cima o jugo dos tiranos, talvez seja tarde demais para se indignarem.
Indignemo-nos sim, mas sem apatia.
Grande abraço
JA NEVES
Lembro-me deste texto na «Selecta Literária» do 4º ou 5º ano dos Liceus.
ResponderEliminarLia-se literatura de autores portugueses que não escreviam livros a metro...
Aprendiam-se valores, respeito... e agora?
- Romeiro, quem és tu? - NINGUÉM!
Ainda bem que trouxeste aqui Gil Vicente - pode ser que quem o ler comece a acordar.
Um abraço grande.
E é verdade (esqueci-me!):
ResponderEliminarNinguém busca consciência
e Todo o Mundo dinheiro.
Aí está a mola impulsionadora de todo o resto.
Gil Vicente deve andar às voltas na tumba, porque desde o século XVI até agora Todo o Mundo anda à procura de tudo e Ninguém se contenta com o que tem!
ResponderEliminarAté eu rimei!
Grande abraço,
PC Correia