O KARATE-DŌ [空手道] é tradição... ouve-se muitas vezes. Chega-se a falar num KARATE-DŌ [空手道] tradicional e num moderno... num marcial e num desportivo...
Como prometido, aqui fica uma reflexão!
Amiúde
confundimos tradição com costumes. Vamos tentar clarificar estes conceitos.
Costume
é o conjunto de normas de comportamento a que todos nós obedecemos de um modo
uniforme e contínuo, omnipresentes, às quais obedecemos porque acreditamos e
estamos convictos da sua obrigatoriedade jurídica. Refira-se já aqui que uma
norma não é o mesmo que uma lei - a norma é algo não escrito, comumente aceite
e que rege o chamado "comportamento normal"*, proveniente do senso
comum de justiça de uma determinada sociedade, sendo na maioria das vezes
proibitiva e não prescritiva. Dizer-se que «não podemos utilizar o Karaté a não
ser numa situação de legítima defesa» é um costume e nada tem a ver com
tradição.
Os
costumes são assim regras sociais que resultam de uma prática reiterada,
exercida de forma generalizada e prolongada, às quais pensamos estar sujeitos
por uma certa obrigatoriedade, de acordo com a sociedade e a cultura em que
estamos inseridos. Para Nader (1) "a lei é Direito que aspira a
efetividade e o Costume a norma efetiva que aspira a validade."
Só ser possível treinarmos com o KARATEGI [空手衣] é um costume, não
uma tradição.
O
que é a tradição? Segundo Giddens (2), a tradição é algo
que une as ordens sociais pré-modernas e que envolve controle do tempo. "A tradição é uma orientação para o
passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais
precisamente, é constituído para ter uma pesada influência para o presente."
Verificamos
assim que a tradição é parte da organização espacio-temporal do conteúdo em que
milita. Ela é parte do passado, encontra-se no presente e perspectiva o futuro.
Há uma continuidade... constantemente adaptada a cada geração, sem no entanto
haver uma rotura profunda entre o passado, o presente e o futuro...
continuidade essa que para ser preservada envolve um ritual. O ritual preserva
a memória coletiva e possui uma verdade inquestionável, ao mesmo tempo que
detém uma linguagem própria e específica.
Giddens (2) diz-nos que “a linguagem ritual é performativa, e
às vezes pode conter palavras ou práticas que os falantes ou os ouvintes mal
conseguem compreender. (...) A fala ritual é aquela da qual não faz sentido
discordar nem contradizer – e por isso contém um meio poderoso de redução da
possibilidade de dissenção”. Os termos técnicos de língua japonesa,
o ritual da saudação...
Repare-se agora, na pós-modernidade, no perigo que
representa haver verdades inquestionáveis (Giddens chama-lhe «verdade
formular») ou discursos que não se devem questionar ou contradizer... na
limitação de ideias e de liberdades que pressupõem...
É precisamente Giddens (3) que afirma que "o
conceito de tradição não passa de uma criação da modernidade." E que é
um erro absoluto supor que caracterizar algo como tradição significa falar em
algo "velho de séculos"
ou que se mantém apesar do decorrer dos anos.
E Giddens continua explicando que "a resistência à passagem do tempo não é
a característica fundamental da tradição, nem do seu primo um pouco menos
visível, o costume. As características que definem a tradição são o ritual e a
repetição. As tradições são sempre pertença de grupos, comunidades ou
colectividades. (...) O que torna qualquer tradição diferente é o facto de ela
definir uma espécie de verdade. Para alguém que age de acordo com uma prática
tradicional, as perguntas sobre a existência de alternativas não fazem sentido.
Contudo, por muito que mude, a tradição proporciona meios de acção que são
pouco questionáveis. É normal que as tradições possuam guardiões próprios:
homens bons, sacerdotes, sábios. Mas ser guardião não é o mesmo que ser
especialista." Aqui encontramos a semelhança com a quem
denominamos muitas vezes de «mestre», pois "a posição e o poder dos guardiões deriva do facto de só
eles serem capazes de interpretar a verdade ritual das tradições."
Daí o «treina e não peguntes»... daí o «no pain no gain»...
Já em 1997 Giddens (2) afirmava que "a
tradição é impensável sem guardiães, porque estes têm um acesso privilegiado à
verdade; a verdade não pode ser demonstrada, salvo na medida em que se manifesta
nas interpretações e práticas dos guardiães."
Ora,
a evolução do KARATE-DŌ [空手道] é fruto de,
primeiro, um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos
históricos em Okinawa) inserido em modificações socio-culturais e, segundo,
pela aculturação de uma realidade oriental na cultura ocidental. Todo este
processo originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, até
porque as condições históricas criaram situações objectivas de desigualdade.
Neste
avanço temporal, assim como nesta deslocação geográfica e cultural, há toda a
transferência de rituais que perdem os seus significados originais e ganham
outros similares ou diferentes.
O
que não não quer dizer que a tradição acabe - ainda segundo Giddens (3) "o
fim da tradição não significa que a tradição vá desaparecer."
A
globalização, o acesso cada vez maior à informação e ao conhecimento, acabará
por fazer questionar as tais verdades dos guardiães e a convocar mais os experts na matéria... acabará
por obrigar aqueles que têm responsabilidades na transmissão do KARATE-DŌ [空手道] a pesquisarem e a estudarem o mesmo...
Concluímos,
tal como Giddens (3), que, apesar de
verificarmos que a tradição existe no KARATE-DŌ [空手道],
"um mundo em que a
modernização se não confina a uma área geográfica, que em vez disso se faz
sentir a nível global, traz um certo número de consequências para a tradição."
*Aqui, quase que poderíamos questionar o conceito de "comportamento normal" - Jim Morrisson disse: "loucos são os que chamam loucura à minha normalidade".
(1) NADER, Paulo, 2011, "Filosofia do Direito", Editora Forense Jurídica (Grupo GEN), Brasil, 20ª edição.
(2) GIDDENS, Anthony, 1997, A vida em uma sociedade Pós-Tradicional, in BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony & LASH, Scott (orgs), "Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna", São Paulo, Editora Unesp.
(3) GIDDENS, Anthony, 2006, "O Mundo na Era da Globalização", Barcarena, Editorial Presença, 6ª edição.
Nota: este post provavelmente não interessará aos guardiães. Mas eventualmente não passará despercebido aos experts...
(3) GIDDENS, Anthony, 2006, "O Mundo na Era da Globalização", Barcarena, Editorial Presença, 6ª edição.
Nota: este post provavelmente não interessará aos guardiães. Mas eventualmente não passará despercebido aos experts...
Ora cá está!
ResponderEliminarNão há dúvida - fiquei esclarecido!!!
Há por aí muito Mestre armado em Padre com a mania das religiões. No Japão podia ser assim, cá não é. Ponto final.
O Karaté é um desporto e "mai nada". Acabem com as manias das tradições, das artes marciais e comecem mas é a treinar. Para saberem como são as coisas devem vir aqui e aos blogs que são aconselhados ali ao lado. Os guardiães querem tudo para eles - já parecem o Todo o Mundo - e nós somos Ninguém.
A tradição já não é o que era! Está confirmado. O que não quer dizer que o esforço, o sacrifício e o respeito deixem de existir.
Grande abraço
PC Correia
Com a qualidade de costume, incluindo a transcrição fonética de palavras japonesas de forma correta. Excelente!
ResponderEliminarPreciso responder-lhe ao comentário que fez ao meu penúltimo post... vc me ajudou bastante dizendo que para ser Sensei não precisamod de medalhas (eu já sei disso), mas muito obrigada mesmo assim... o que me incomodou para eu escrever akele post é que a oportunidade que eu tinha de me tornar uma Sensei foi tirada de mim sem que eu tivesse a chance de fazer ou dizer coisa alguma... ainda não consegui entender o que fizeram comigo, não deu ainda para digerir, mas sei que a vida dá voltas e hoje eu estou mais calma ao dizer que não vou desistir, mas meu limite chegou e agora eu só vou fazer o que realmente der para mim... eu prefiro assim... vou estudar e me especializar, quem sabe outra chance melhor não apareça para mim daqui mais algum tempo! Obrigada por suas palavras elas me reergueram neste momento! Muito obrigada mesmo!
ResponderEliminarCaro Dr. Armando:
ResponderEliminarNão é que eu seja expert, mas o post é bastante interessante. Leva-nos a questionar se existe um Karaté tradicional ou se isso será só um rótulo. Existe tradição? Sim, mas quais os motivos para diferenciar com duas classificações a mesma coisa só que praticada com objectivos diferentes?
Do passado, ao presente, para o futuro, treinar Karaté com sinceridade e respeito é o fundamental. Vender Karaté, como muitos fazem e servirem-se dele, talvez justifique o rótulo de tradicional... ou desportivo... A publicidade vende sempre!
Cumprimentos.
JA NEVES