sábado, 28 de janeiro de 2012

A Tradição no KARATE-DŌ [空手道]


O KARATE-DŌ [空手道] é tradição... ouve-se muitas vezes. Chega-se a falar num KARATE-DŌ [空手道] tradicional e num moderno... num marcial e num desportivo...



Como prometido, aqui fica uma reflexão!

Amiúde confundimos tradição com costumes. Vamos tentar clarificar estes conceitos.
Costume é o conjunto de normas de comportamento a que todos nós obedecemos de um modo uniforme e contínuo, omnipresentes, às quais obedecemos porque acreditamos e estamos convictos da sua obrigatoriedade jurídica. Refira-se já aqui que uma norma não é o mesmo que uma lei - a norma é algo não escrito, comumente aceite e que rege o chamado "comportamento normal"*, proveniente do senso comum de justiça de uma determinada sociedade, sendo na maioria das vezes proibitiva e não prescritiva. Dizer-se que «não podemos utilizar o Karaté a não ser numa situação de legítima defesa» é um costume e nada tem a ver com tradição.
Os costumes são assim regras sociais que resultam de uma prática reiterada, exercida de forma generalizada e prolongada, às quais pensamos estar sujeitos por uma certa obrigatoriedade, de acordo com a sociedade e a cultura em que estamos inseridos. Para Nader (1) "a lei é Direito que aspira a efetividade e o Costume a norma efetiva que aspira a validade." Só ser possível treinarmos com o KARATEGI [空手衣] é um costume, não uma tradição.
O que é a tradição? Segundo Giddens (2), a tradição é algo que une as ordens sociais pré-modernas e que envolve controle do tempo. "A tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência para o presente."
Verificamos assim que a tradição é parte da organização espacio-temporal do conteúdo em que milita. Ela é parte do passado, encontra-se no presente e perspectiva o futuro. Há uma continuidade... constantemente adaptada a cada geração, sem no entanto haver uma rotura profunda entre o passado, o presente e o futuro... continuidade essa que para ser preservada envolve um ritual. O ritual preserva a memória coletiva e possui uma verdade inquestionável, ao mesmo tempo que detém uma linguagem própria e específica.
Giddens (2) diz-nos que “a linguagem ritual é performativa, e às vezes pode conter palavras ou práticas que os falantes ou os ouvintes mal conseguem compreender. (...) A fala ritual é aquela da qual não faz sentido discordar nem contradizer – e por isso contém um meio poderoso de redução da possibilidade de dissenção”. Os termos técnicos de língua japonesa, o ritual da saudação...
Repare-se agora, na pós-modernidade, no perigo que representa haver verdades inquestionáveis (Giddens chama-lhe «verdade formular») ou discursos que não se devem questionar ou contradizer... na limitação de ideias e de liberdades que pressupõem...
É precisamente Giddens (3) que afirma que "o conceito de tradição não passa de uma criação da modernidade." E que é um erro absoluto supor que caracterizar algo como tradição significa falar em algo "velho de séculos" ou que se mantém apesar do decorrer dos anos.
E Giddens continua explicando que "a resistência à passagem do tempo não é a característica fundamental da tradição, nem do seu primo um pouco menos visível, o costume. As características que definem a tradição são o ritual e a repetição. As tradições são sempre pertença de grupos, comunidades ou colectividades. (...) O que torna qualquer tradição diferente é o facto de ela definir uma espécie de verdade. Para alguém que age de acordo com uma prática tradicional, as perguntas sobre a existência de alternativas não fazem sentido. Contudo, por muito que mude, a tradição proporciona meios de acção que são pouco questionáveis. É normal que as tradições possuam guardiões próprios: homens bons, sacerdotes, sábios. Mas ser guardião não é o mesmo que ser especialista." Aqui encontramos a semelhança com a quem denominamos muitas vezes de «mestre», pois "a posição e o poder dos guardiões deriva do facto de só eles serem capazes de interpretar a verdade ritual das tradições." Daí o «treina e não peguntes»... daí o «no pain no gain»...
Já em 1997 Giddens (2) afirmava que "a tradição é impensável sem guardiães, porque estes têm um acesso privilegiado à verdade; a verdade não pode ser demonstrada, salvo na medida em que se manifesta nas interpretações e práticas dos guardiães."
Ora, a evolução do KARATE-DŌ [空手道] é fruto de, primeiro, um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos históricos em Okinawa) inserido em modificações socio-culturais e, segundo, pela aculturação de uma realidade oriental na cultura ocidental. Todo este processo originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, até porque as condições históricas criaram situações objectivas de desigualdade.
Neste avanço temporal, assim como nesta deslocação geográfica e cultural, há toda a transferência de rituais que perdem os seus significados originais e ganham outros similares ou diferentes.
O que não não quer dizer que a tradição acabe - ainda segundo Giddens (3) "o fim da tradição não significa que a tradição vá desaparecer."
A globalização, o acesso cada vez maior à informação e ao conhecimento, acabará por fazer questionar as tais verdades dos guardiães e a convocar mais os experts na matéria... acabará por obrigar aqueles que têm responsabilidades na transmissão do KARATE-DŌ [空手道] a pesquisarem e a estudarem o mesmo...
Concluímos, tal como Giddens (3), que, apesar de verificarmos que a tradição existe no KARATE-DŌ [空手道], "um mundo em que a modernização se não confina a uma área geográfica, que em vez disso se faz sentir a nível global, traz um certo número de consequências para a tradição."



*Aqui, quase que poderíamos questionar o conceito de "comportamento normal" - Jim Morrisson disse: "loucos são os que chamam loucura à minha normalidade".





(1) NADER, Paulo, 2011, "Filosofia do Direito", Editora Forense Jurídica (Grupo GEN), Brasil, 20ª edição.
(2) GIDDENS, Anthony, 1997, A vida em uma sociedade Pós-Tradicional, in BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony & LASH, Scott (orgs), "Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna", São Paulo, Editora Unesp.
(3) GIDDENS, Anthony, 2006, "O Mundo na Era da Globalização", Barcarena, Editorial Presença, 6ª edição.



Nota: este post provavelmente não interessará aos guardiães. Mas eventualmente não passará despercebido aos experts...

4 comentários:

  1. Ora cá está!

    Não há dúvida - fiquei esclarecido!!!

    Há por aí muito Mestre armado em Padre com a mania das religiões. No Japão podia ser assim, cá não é. Ponto final.

    O Karaté é um desporto e "mai nada". Acabem com as manias das tradições, das artes marciais e comecem mas é a treinar. Para saberem como são as coisas devem vir aqui e aos blogs que são aconselhados ali ao lado. Os guardiães querem tudo para eles - já parecem o Todo o Mundo - e nós somos Ninguém.

    A tradição já não é o que era! Está confirmado. O que não quer dizer que o esforço, o sacrifício e o respeito deixem de existir.

    Grande abraço
    PC Correia

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  2. Com a qualidade de costume, incluindo a transcrição fonética de palavras japonesas de forma correta. Excelente!

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  3. Preciso responder-lhe ao comentário que fez ao meu penúltimo post... vc me ajudou bastante dizendo que para ser Sensei não precisamod de medalhas (eu já sei disso), mas muito obrigada mesmo assim... o que me incomodou para eu escrever akele post é que a oportunidade que eu tinha de me tornar uma Sensei foi tirada de mim sem que eu tivesse a chance de fazer ou dizer coisa alguma... ainda não consegui entender o que fizeram comigo, não deu ainda para digerir, mas sei que a vida dá voltas e hoje eu estou mais calma ao dizer que não vou desistir, mas meu limite chegou e agora eu só vou fazer o que realmente der para mim... eu prefiro assim... vou estudar e me especializar, quem sabe outra chance melhor não apareça para mim daqui mais algum tempo! Obrigada por suas palavras elas me reergueram neste momento! Muito obrigada mesmo!

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  4. Caro Dr. Armando:

    Não é que eu seja expert, mas o post é bastante interessante. Leva-nos a questionar se existe um Karaté tradicional ou se isso será só um rótulo. Existe tradição? Sim, mas quais os motivos para diferenciar com duas classificações a mesma coisa só que praticada com objectivos diferentes?

    Do passado, ao presente, para o futuro, treinar Karaté com sinceridade e respeito é o fundamental. Vender Karaté, como muitos fazem e servirem-se dele, talvez justifique o rótulo de tradicional... ou desportivo... A publicidade vende sempre!

    Cumprimentos.
    JA NEVES

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