Com o devido consentimento de Denis Andretta, que amavelmente autorizou a sua transcrição, replicamos o seu post publicado a 24 do corrente em
http://karatedosaishinnews.blogspot.com/.
A tradição é composta por diversos aspectos e sempre teve um papel muito importante nas centenas de anos de desenvolvimento das artes marciais orientais e ocidentais.
A tradição técnica do KARATE-DŌ [空手道] está, de uma forma geral, baseada no KIHON [基本][1], no KATA [形][2], e no KUMITE [組手][3].
A tradição teórica tem sido deixada de lado ou, na melhor das hipóteses, abordada de forma superficial, nos países ocidentais. Porém, deve ser retomada urgentemente para que as futuras gerações possam vislumbrar um KARATE-DŌ [空手道] global.
O KIHON [基本] tem por objetivo o aprimoramento técnico dos praticantes, pois é através dele que aprendemos as angulações e os pontos importantes dos diversos ataques, chutes, defesas, batidas e posturas.
Geralmente, o KIHON [基本] está dividido em: TSUKI-WAZA [突技][4], KERI-WAZA [蹴技][5], UKE-WAZA [受技][6], UCHI-WAZA [打技][7] e TACHI-KATA [立方][8], ou seja, o KIHON [基本] é a base que dá sustentação para que o praticante possa pouco a pouco ampliar o domínio sobre seu corpo, dando a ele condições para aumentar o grau de dificuldade dos exercícios, sempre com o objetivo de superar suas limitações. Enfim, o KIHON [基本] é o alicerce sobre o qual o KARATE-DŌ [空手道] é construído.
Após praticar inúmeras vezes, os movimentos básicos eles acabam transformando-se em uma espécie de segunda natureza. Além do aperfeiçoamento “mecânico” do exercício, o aumento da estética, a ampliação da força e a melhora velocidade também se tornam evidentes após algum tempo de treinamento.
Tradicionalmente o KIHON [基本] é ensinado de forma rigorosa e exaustiva, pois o aprendizado e aperfeiçoamento destes “fundamentos” são necessários para a evolução do KARATE-KA [空手家][9].
Os KATA [形] são, sem dúvida alguma, uma tradição nas artes marciais, estando presentes nos mais diversos estilos, sejam estes chineses, japoneses, coreanos, etc...
“Muitas são as definições que se fazem a respeito dos KATA [形]. Comumente são definidos como uma seqüência de movimentos de ataque e defesa onde se enfrenta adversários imaginários a partir de uma seqüência predefinida. Tratam-se de uma prática individual cujos resultados se refletem no desenvolvimento de muitas qualidades essenciais, como: força, ritmo, equilíbrio, coordenação entre as técnicas de defesa e ataque, concentração, respiração coordenada com os movimentos, etc. (ARAKAKI, Hélio).
“Os KATA [形] são métodos através dos quais os aspectos da defesa pessoal são transmitidos de geração em geração. Os KATA [形] precisam ser trabalhados, surgindo para nós como uma pedra bruta que precisa ser limada. Isto quer pela prática da forma (execução do KATA [形]), ou pelo entendimento de suas partes (BUNKAI [分解][10])... (para que seja possível a) sua aplicação prática (ŌYŌ [応用][11]). (MAGALHÃES, Mário).
“A propósito dos KATA [形] é necessário treinar repetindo-os muitas vezes. Porém, é absolutamente essencial conhecer o significado (BUNKAI [分解]) e a aplicação (ŌYŌ [応用]) de cada técnica. É necessário saber que existem numerosos ensinamentos teóricos complementares aos KATA [形] para as técnicas de ataque, de defesa, de desprendimento e de agarre” (ITOSU, Ankō).
“Inegavelmente os KATA [形] fazem parte da vida de todos praticantes de Artes Marciais. Eles são os ensinamentos ainda vivos de mestres antigos e, portanto, um legado para as gerações contemporânea e futura. Contudo, devemos ser capazes de entender o contexto em que os KATA [形] estiveram - e estão - inseridos a fim de que possamos entender as suas razões para ainda existirem. São os KATA [形] que ensinam as técnicas de uma determinada escola ou estilo. São o ensinamento das técnicas transmitidas de geração em geração e que mantém as características de terminado estilo, diferenciando os sistemas uns dos outros. Estes KATA [形] são tão válidos hoje como eram a centenas de anos atrás e desenvolvem as aptidões marciais dos seus praticantes. Há, portanto, de praticá-los até que os movimentos tornem-se instintivos, pois esta é a natureza da "técnica"” (GOULART, Joséverson).
O KUMITE [組手] é uma tradição que existe desde o inicio das artes marciais e continua a ser incorporado a cada novo sistema. É a melhor maneira para que o estudante possa testar seus conhecimentos na prática, cometendo erros e corrigindo-os para progredir e se tornar um lutador mais experiente/eficiente, que tenha a possibilidade de dominar seu oponente sem precisar feri-lo gravemente. Assim como acontece com o KIHON [基本] e os KATA [形], o KUMITE [組手] também possui diversas formas de expressão, entre elas: IPPON-KUMITE [一本組手][12], NIHON-KUMITE [二本組手][13], SANBON-KUMITE [三本組手][14], JIYŪ-IPPON-KUMITE [自由一本組手][15], YAKUSOKU-KUMITE [約束組手][16] e SHIAI-KUMITE [試合組手][17], entre outras.
No que diz respeito à filosofia e a disciplina, algumas tradições foram preservadas através dos anos e sobreviveram ao tempo.
Embora o KARATE-DŌ [空手道] não seja autenticamente japonês, com o passar dos anos algumas influências da cultura japonesa foram inculcadas nesta arte marcial. A influência do BUDŌ [武道][19], por exemplo, se torna evidente no REISHIKI [礼式][20].
No estilo SHITŌRYŪ [糸東流][21], por exemplo, um aluno curva-se inúmeras vezes durante uma sessão de treinamento, demonstrando assim seu respeito à memória dos mestres que nos precederam, ao KARATE-DŌ [空手道], ao DŌJŌ [道場][22], a seu SENSEI [先生][23] e a seus companheiros de treinamento.
Outra tradição que nos remete ao BUDŌ [武道] e nos recorda os costumes dos SAMURAI [侍] é o ZAREI [座礼][24], ou saudação em SEIZA [正座] [25], onde nos colocamos de joelhos e curvamos o corpo à frente levando primeiramente a mão esquerda ao chão e realizamos uma saudação. Esta ordem existe devido ao fato de que todo o SAMURAI [侍] empunhava sua espada com a mão direita, e sendo assim, se fosse atacado estaria com a mão livre para empunhar a espada e contra atacar se necessário. Ao levantar-se o SAMURAI [侍] utilizava primeiro sua perna direita, pois se fosse necessário desembainhar sua espada poderia fazê-lo sem a possibilidade de cortar-se.
O uso do KARATEGI [空手衣][26] (erroneamente chamado de KIMONO [着物][27] pelos ocidentais) e da OBI [帯][28] são indumentárias que tornaram-se uma tradição no KARATE-DŌ [空手道] com o passar dos anos, pois antigamente não havia um uniforme padrão utilizado para o treinamento. A roupa usada durante os treinos foi implementada no KARATE-DŌ [空手道] por GICHIN FUNAKOSHI [義珍船越][29] que adaptou o JŪDŌGI [柔道着][30] para este fim.
O sistema de graduação do KARATE-DŌ [空手道] segue a mesma lógica do uniforme e também foi “importado” do JŪDŌ [柔道][31], aliás este sistema foi “copiado” por quase todas vias marciais japonesas (BUDŌ [武道][32]).
No Japão, originalmente, eram usadas somente duas cores de faixas para designar a graduação do praticante: branca e preta. Algum tempo depois, a faixa marrom foi adicionada para distinguir um meio termo entre a faixa branca e a faixa preta. Logo após, surgiu a faixa verde... e assim por diante.
Paralelamente, surgiu no ocidente um sistema de faixas coloridas (branca, amarela, laranja, verde, azul e marrom) elaborada pelo mestre de JŪDŌ [柔道] MINOSUKE KAWAISHI [酒造之助川石], que define de forma mais detalhada o nível em que o praticante se encontra.
Antes do KARATE-DŌ [空手道] ter sido “exportado” existiam somente cinco níveis de faixa preta, do SHODAN [初段] ao GODAN [五段] (do nível inicial ao 5º nível). Alguns anos mais tarde, foram acrescidos mais cinco níveis, chegando ao JŪDAN [十段] (10º nível) em nossos dias. Mesmo que o sistema de graduação e as normas para concessão de faixas tenham mudado ligeiramente com a passar dos anos, permanece uma importante tradição no KARATE-DŌ [空手道].
Socos, chutes e bloqueios também fazem parte da tradição do KARATE-DŌ [空手道], porém machucar alguém é relativamente fácil, conseguir controlar seu movimento, desferindo-o com máxima potência e parando-o a alguns centímetros do oponente é extremamente difícil. Este conceito de “controle de movimento”, conhecido pelos japoneses como SUN-DOME [寸止め][34], também faz parte da longa tradição do KARATE-DŌ [空手道]... foi este princípio que tornou possível a realização de competições de KARATE-DŌ [空手道].
O uso do KIAI [気合][35] (vulgarmente conhecido como “grito” entre os ocidentais) também é uma tradição importante, que se segue desde os primórdios da arte.
Diz-se que alguém que domina o KIAI [気合] tem o poder de vida e de morte, porém a respeito disto nossa ignorância não permite comentar. Entretanto, utilizar o KIAI [気合] focalizando potência e energia e também para intimidar o adversário é uma tradição marcial utilizada em todo o mundo.
Enquanto surgem novas tradições, algumas são perpetuadas e passadas de mestre para discípulo e outras, (in)felizmente, se perdem.
Um exemplo de tradição que está se perdendo com o passar do tempo é a MAKIWARA [巻藁], ou “palha enrolada” (MAKI [巻]: enrolada; WARA [藁]: palha). Atualmente, são raros os centros de treinamentos que mantém esta técnica de fortalecimento de mãos e pulsos. O uso da TETSU-GETA [鉄下駄], ou “sandálias de ferro”, que era utilizada para o fortalecimento de pés e pernas também está se perdendo com o passar dos anos. As técnicas de fortalecimento das pontas dos dedos, tais como: encher uma espécie de balde de areia (SUNA-BAKO [砂箱]), onde eram “mergulhadas” as mãos, também perderam sua utilidade e são raros os DŌJŌ [道場] que as utilizam... este são apenas pequenos exemplos porque, na realidade todos os HŌJŌ-UNDŌ [補助運動] (exercícios complementares) seguem esta mesma lógica.
Antes de terminar este texto que trata sobre a tradição dentro do KARATE-DŌ [空手道][36] faz-se necessário entender o que é TRADIÇÃO. Isso por que muitos falam sobre ela, porém poucos realmente sabem a que este termo se refere.
“A palavra tradição vem do latim, do verbo "tradere" (traditio, traditionis) que significa trazer, entregar, transmitir, ensinar. Logo, tradição é a transmissão de fatos culturais de um povo, quer de natureza espiritual ou material, ou ainda, é a transmissão dos costumes feita de pais para filhos no decorrer dos tempos, ao sucederem-se as gerações. É a memória cultural de um povo. É um conjunto de idéias, usos, memórias, recordações e símbolos conservados pelos tempos, pelas gerações, sendo assim a eterna vigilância cultural. A tradição e sua presença na sociedade baseiam-se em dois pressupostos antropológicos:
a) As pessoas são mortais;
b) Existe a necessidade de haver um nexo de conhecimento entre as gerações.
Um detalhe importante para o qual pouco atentam e que faz com que muitas pessoas metam os pés pelas mãos... a "tradição não é simplesmente o passado (...) é a continuidade (...), é o fermento que prossegue (...), é a corrente que continua (...), é a dinamização das condições propulsoras de novos fatos (...), é a semente que perpetua (...). Enfim: tradição é tudo aquilo que do passado não morreu". (ROCHA, Hélio)
"Tradição (...) não é o passado, fixação e psicose dos saudosistas. É o presente como fruto sazonado de sementes escolhidas. É o futuro, como árvore frondosa que seguirá dando frutos e sombra amiga às gerações do porvir". (SARAIVA, Glaucus)
Portanto, ser tradicional não significa estar simplesmente apegado a conceitos antigos (muitas vezes equivocados) e, tão pouco, seguir formas de execução técnica do “tempo da pedra”, mas sim “entregar” as demais gerações os ensinamentos (práticos e teóricos) dos antigos mestres (sim, “dos”! por que muito foi acrescido aos diversos estilos depois do falecimento dos fundadores), com todos os agregados e melhorias que porventura a arte tenha adquirido através dos anos.
Há, no entanto, um fator que permanece inalterado através dos tempos: a tradição do treinamento rigoroso, disciplinado e do trabalho duro ainda é, e sempre será, a chave para tornar alguém inábil em um indivíduo mais hábil.
Enfim, a tradição é um dos fatores mais importantes dentro das artes marciais, independentemente do estilo praticado, porque ajuda a preservar as técnicas antigas unido-as com as novas, desta forma tornando a arte cada vez mais eficaz, completa e estética.
É justamente este conjunto de tradições, novas e velhas, que ajudam a manter a existência das artes marciais, tais como o KARATE-DŌ [空手道], por muitos e muitos anos.
Muitas vezes, embora tais tradições possam variar em sua manifestação física fazendo com que apareçam e desapareçam os mais variados estilos, formas e técnicas sua essência é sempre a mesma: a preservação de aspectos importantes para aquela parcela da sociedade que as segue.
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Referências:
ANDRETTA, Denis A. Cordeiro. Minhas Reflexões: A tradição no Karate-dō. Porto Alegre/RS. Junho de 2005.
ANDRETTA, Denis A. Cordeiro. A tradição no Karate-dō. Seidenkai Saishin Nyūsu - Informativo nº 0014 - Junho/2005 - Ano II.
ARAKAKI, Hélio. A respeito dos Kata. Disponível em: http://www.muryokan.com.br. Acesso em: 22 de Fevereiro de 2008.
GOULART, Joséverson. Os Kata. Disponível em: http://groups.msn.com/ShinseiKaiShito-RyuKarate-Do/. Acesso em: 22 de Fevereiro de 2008.
MABUNI, Kenwa. Significado de kata. Disponível em: http://www.shitoryu.com.mx/temas/tema.asp?ID_TEM=2. Acesso em: Setembro de 2006.
MAGALHÃES, Mário. Kata – Conceitos e pensamentos. Disponível em: http://www.cao.pt. Acesso em: 15 de Outubro de 2005.
MURAYAMA, Shito-kai. La importância de la kata. Disponível em: http://www.shitokaimurayama.com/arti.htm. Acesso em: Setembro de 2006.
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Nota: A fim de não tornar este post muito extenso, foram retiradas a 30.12.2011 as notas de rodapé, aconselhando-se os interessados a consultarem o post original no blog de Denis Andretta.
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