Apesar de divulgada e difundida a
prática institucional do Karate-dō
entre nós, a mesma tem de ser enquadrada dentro da cultura japonesa de onde é
originária, a qual se encontra profundamente influenciada por valores
histórico-culturais, por valores religiosos (Budismo e Zen), por códigos de
honra (Bushidō), pela sinceridade e lealdade (Makōtō),
assim como pelo sentimento do dever e da obrigação (Giri). Mesmo que outros
argumentos faltassem, bastaria relembrar que a sociedade japonesa é uma
sociedade altamente hierarquizada…
Com o advento da competição em Karate-dō – a primeira competição formal teve lugar em 1958 e os
primeiros campeonatos mundiais realizaram-se em 1970 – e a passagem de uma
arte marcial a desporto, parte dos valores ancestrais foram-se progressivamente
perdendo não só no Ocidente, mas no Oriente também…
Florence Braunstein,
no seu livro “Penser les Arts Martiaux” refere o seguinte: “a oposição fundamentada entre o Ocidente e o
Oriente repousa a maior parte das vezes sobre a construção de um eu,
a procura fanática de um ego. A compreensão falseada da grande maioria dos
praticantes de Artes Marciais do contexto cultural destes últimos conduziu-os a
comportamentos no limite do patológico sobre o Dojo. A vontade de perder o
seu ego conduziu-os a uma vontade de submissão que fazia do Sensei, não um mestre, no sentido do magister
latino, pondo de parte a
conotação espiritual, mas a um dominus. As respostas oscilam entre a afirmação de si
e a negação de si, simultânea e contraditoriamente, num movimento que em cada
um dos extremos pode conduzir à transposição para um limiar patológico”.
A transição de arte marcial a desporto
originou a comercialização do Karate-dō
“acarretando a fragmentação da ciência,
com elaborações nada práticas e movimentos baseados no senso teatral e não na
eficiência da guerra” afirma Thomas Cleary no seu livro “A Arte Japonesa de
Criar Estratégias”. Miyamoto Musashi (1584-1645) muito tempo antes já tinha
predito algo do género ao afirmar que “particularmente
nas artes marciais, existe muita teatralidade e vulgarização de carácter comercial.
O resultado disso tem de ser, como disse alguém: «as artes marciais amadoras são
uma fonte de sérios danos»” (Musashi, 1985).
Verificamos assim que uma verdadeira e
consciente prática do Karate-dō
não pode estar afastada de uma ética – estudo dos conceitos envolvidos no
raciocínio prático: o bem, a ação correta, o dever, a obrigação, a virtude, a
liberdade, a racionalidade, a escolha. Para alguma coisa serve o Dōjōkun…Pretendendo-se com a prática do Karate-dō formar o carácter do seu praticante,
é essencial a criação de hábitos, atitudes e comportamentos, através de
experiências eticamente válidas e corretas, assim como impregnadas de valores
não só morais mas também sociais.
Quando consideramos o Bujutsu na perspetiva de um «como» funcional e
estratégico do combate, estando o Budō relacionado mais exatamente com o último e mais humano «por quê» (ou
seja, com as razões para se enredar num combate), “vemos que só em muitas poucas ocasiões tiveram êxito certos mestres de
Bujutsu ao harmonizar o seu jutsu
com o do mais elevado e com o
imperativo ético até ao ponto de trocar ou transformar substancialmente as
antigas técnicas de artes marciais de eleição (separando-as assim da
especializada e estreita dimensão da experiência militar e transmutando-as em
disciplinas de iluminação e de ganho social e espiritual ”
(Ratti & Westbrook, 2000). Por que
motivos serão tão poucas essas «ocasiões»?
E se há casos em que houve uma harmonização com sucesso do jutsu com o dō na sua transição, Ratti e Westbrook (id.) dizem-nos que “estes
raros casos de êxito, contudo, não justificam a suposição de que esta era a
norma ou que, de um ponto de vista histórico, o jutsu (ou técnica) era o mesmo ou idêntico que o do de exaltada intenção ética”.
Sendo o Bujutsu a arte genérica do combate (com armas ou inerme), “quando falamos de um do universal (de um sistema ético influenciado
pelos conceitos originais do budismo, taoismo, confucionismo e outros, numa
escala verdadeiramente universal e humanitária que só merece o qualificativo de
«moralmente excelente e superior»), consideramos acertado manter esse do separado do Bujutsu na doutrina, tal como
estiveram separados nas suas aplicações históricas” (Ratti &
Westbrook, id.).
Se estiveram
separados nas suas aplicações históricas o jutsu
e o dō, foi porque na realidade houve
essa necessidade (com que fins? Por que motivos?). Mas se houve casos em que o jutsu e o dō se harmonizaram, então, concretamente nestes, estaremos perante uma
evolução… ou talvez uma re-evolução!
Nota:
citações conforme o original, sem transcrição fonética. Negritos da nossa
responsabilidade.
BRAUNSTEIN, F., 1999,
“Penser les Arts Martiaux”, Paris, PUF.
CLEARY,
T, 1991, “A Arte Japonesa de Criar Estratégias ”, São Paulo, Cultrix.
MUSASHI,
M., 1985, “Écrits Sur les Cinq Roues: gorin no sho, le savoir-vaincre japonais”,
Paris, Maisonneuve & Larose.
RATTI, O. &
WESTBROOK, A., 2000, “Secretos de Los
Samurai”, Barcelona, Editorial Paidotribo.
Uma boa reflexão , sem dúvida. Um conjunto de leituras bem organizadas e que poderiam ser um bom ponto de partida sobre ética, arte marcial, desporto, budo, karate e sobre o que alguns fazem de tudo isto.
ResponderEliminarAbraço,
Luís Sérgio
¿Dónde está el Código de Ética para los entrenadores? Karateka raton siempre tiene la razón ...
ResponderEliminarO raio do ratón... Mas vamos ao que interessa: cá está um segundo texto que completa o anterior -havia jutso, passou a haver do (evoluçao), mas em alguns casos até se conciliou o jutsu com o do - e mostra como diz o Sensei Armando uma re-evolução.
ResponderEliminarNão será esta conciliação o verdadeiro âmago daquilo que praticamos? Ou que deveríamos praticar?
Um abraço Sensei!
Pedro Correia