Atualmente um dos
tópicos em discussão na net revela a falta de conhecimento que os ocidentais
possuem da cultura oriental (veja-se aqui)...
Verificamos que a todo o momento nos
confrontamos com o dilema das contradições entre a aplicação prática da técnica
(jutsu), as intenções da mesma, e as
motivações últimas da via a seguir (dō). Ratti e Westbrook (1)
salientam que este dilema é facilmente observável historicamente na maioria das
artes marciais do passado e até em muitas disciplinas delas derivadas tal como
se ensinam e praticam atualmente em todo o mundo. Há um contraste entre o
proclamado e o praticado. Daí o facto de podermos ter um desporto perfeitamente
institucionalizado e regulamentado, com um programa técnico codificado, com
elevados princípios filosóficos e com um código ético, mas constatarmos que na
sua prática nem sempre despontam comportamentos éticos e morais.
Se a ética é um conjunto de princípios universalmente aceites, já a moral
se encontra condicionada pela cultura. Logo, também seria difícil fazer
transitar de uma cultura oriental para uma cultura completamente diferente, a
cultura ocidental, a sua moral, até porque “a
difusão, ou seja, o transporte de realidades culturais de uma para outra
cultura, não é um ato, mas sim um processo cujo mecanismo muito se assemelha ao
de qualquer processo evolutivo”, como nos diz Malinowski (2). E como tal, há acomodações
e assimilações, há interpenetrações e interdependências, há progressos mas
também degradações e degenerações, há ganhos mas também perdas.
Por isso mesmo as próprias noções de ética ou de moral nem sempre estão
presentes no Karate-dō e nos comportamentos
adjacentes (mas quase que poderíamos afirmar que o mesmo acontece no desporto
em geral, nomeadamente no profissional).
A transição progressiva de técnicas guerreiras a desporto (jogo)
processa-se através de tempos e de lugares, assim como através de um processo
histórico influenciado por mudanças e movimentações.
A passagem do Karate-dō de arte
marcial a desporto de combate (ou melhor, a desporto de contacto corporal direto) não é uma mutação repentina, mas um processo
gradual (com diversas fases em diferentes contextos históricos) inserido em
modificações socio-culturais e pela aculturação (importação) de uma realidade oriental na
cultura ocidental. Todo este processo originou aquisições e reinterpretações
mas também degenerações, até porque as condições históricas criaram situações
objectivas de desigualdade.
Neste avanço temporal, assim como numa deslocação geográfica e cultural,
há toda a transferência de rituais que perdem os seus significados originais e
ganham outros similares ou diferentes.
Johnson (3) diz que “a atitude
ocidental é principalmente orientada para objectivos, pragmática e
reducionista, apontando para a consideração do produto mais do que do processo,
dos fins mais do que dos meios, e dos objectivos mais do que das experiências
pelo seu próprio mérito. Em contraste, os orientais vêem as oposições como
relação e fundamentalmente harmoniosas. Eles reconhecem uma não-divisão entre
produto e processo, fins e meios, ou objectivos e experiências”.
Daí que, se praticamos algo que é proveniente do oriente e desejamos
preservar a sua originalidade, seja nossa a responsabilidade de a descobrir e a conhecer. Assim como a de a transmitir corretamente...
(1) RATTI, O. &
WESTBROOK, A., 2000, “Secretos de Los
Samurai”, Barcelona, Editorial Paidotribo.
(2) MALINOWSKI, B., 1997, “Uma Teoria Científica da Cultura”, Lisboa, Edições 70.
(3) JOHNSON, C., “Toward a revisionist philosophy of coaching”, in S.
Kleinman, Ed., 1986, “Mind and Body – The East
meets the West”, pp. 149-155, Champaign, Illinois, Human Kinetic
Publishers.
OSS Inocentes Sensei!
ResponderEliminarExcelente texto. Através desta leitura podemos tirar várias linhas de reflexão.
Um grande abraço.
Caro Dr. Armando:
ResponderEliminarHá diferenças entre o Karaté de 1936 e o de 2012 em Okinawa? HÁ!
Há diferenças entre o Karaté de Okinawa e o de Portugal, Espanha, França, Itália, em 2012? Claro que HÁ!
Mas é verdade que se queremos "preservar a sua originalidade" temos a "responsabilidade de a descobrir e a conhecer. Assim como a de a transmitir corretamente..." Logo temos de investigar, de procurar informação, de contactar Mestres que sejam Mestres e aprendermos com eles, de não deturparmos o conhecimento e de não ficarmos com ele no bolso.
Ainda bem que o Dr. Armando vai por esse caminho. Obrigado por este texto. Merece ser lido duas vezes para o entendermos bem e depois reflectirmos sobre ele!
Grande abraço!
JA Neves
Só mais uma achega!
ResponderEliminarO poeta inglês Yates um dia disse: "Os melhores perderam toda a convicção, enquanto os piores estão cheios de intensa paixão".
Felizmente ainda há alguns de entre os melhores que possuem convicções e paixões! O Dr. Sidónio Serpa também nos mostra isso!
Grande abraço
JA Neves
Inocentes Sensei, compreendo o seu ponto de vista e mesmo que eu não tenha o seu alto alcance a nível literário, acredito que temos um grave problema no termo "aculturação".
ResponderEliminarO problema é que, por definição, "aculturação" pode ser entendida como:
- Aculturação, s. f. Processo através do qual um grupo contacta uma cultura diferente e a assimila total ou parcialmente.
Acredito que este termo possa ser usado no caso do "Brazilian Jiu Jitsu" ou das "novas artes", onde elementos de uma cultura original deram origem a uma outra cultura, um novo sistema.
Contudo esta "aculturação" NÃO é válida para o Karate, porque este mantém os mesmos princípios originais. Não podemos assimilar um Karate "parcialmente", porque deixaria de ser - simplesmente - Karate. Poderíamos até chamar Inocentes Ryû, XPTO-Ryû etc., mas nunca Karate!
Naturalmente, podemos sempre optar em criar um estilo novo, entitularmo-nos "Sôke", "Grão-mestre", "o supra-sumo"... de um novo sistema qualquer e continuar a difundir as nossas novas ideias, mas isso faria com que a arte deixasse de seguir a tradição estabelecida Era justificar a abandalhação do estudo e da pesquisa.
A degradação dos comportamentos éticos e morais de uma cultura - referenciados por Ratti e Westbrook - podem realmente existir, mesmo que "“a difusão, ou seja, o transporte de realidades culturais de uma para outra cultura, não é um ato, mas sim um processo cujo mecanismo muito se assemelha ao de qualquer processo evolutivo”, como nos diz Malinowski, apenas reforçam a necessidade de ESTUDAR e PESQUISAR, buscando novamente os conceitos elementares.
"A passagem do Karate-dō de arte marcial a desporto de combate (...) não é uma mutação repentina, mas um processo gradual (...) inserido em modificações socio-culturais e pela aculturação (importação) de uma realidade oriental na cultura ocidental." seria absolutamente correto se não tivéssemos a capacidade de aceder à informação original, o que não é o nosso caso. Podemos sempre alterar ou adaptar o conhecimento original à nossa realidade, mas - ao fazermos isto - quanto da arte, da ética e da moral originais permanecem?
"Todo este processo originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, (...)" Eu acredito que as degenerações e as desigualdades no ensino das artes marciais japonesas só surgiram por acomodação ao erro transmitido. Uma busca sistemática e fundamentada seria suficiente para que a informação correta não se perdesse.
"Johnson (3) diz que “a atitude ocidental é principalmente orientada para objectivos, pragmática e reducionista, apontando para a consideração do produto mais do que do processo, dos fins mais do que dos meios, e dos objectivos mais do que das experiências pelo seu próprio mérito. Em contraste, os orientais vêem as oposições como relação e fundamentalmente harmoniosas. Eles reconhecem uma não-divisão entre produto e processo, fins e meios, ou objectivos e experiências”." Concordo plenamente! E por transmitirmos a arte oriental, acho que eu não temos o direito a alterar algo que já foi previamente codificado e que posso ter acesso mesmo nos dias de hoje.
"Daí que, se praticamos algo que é proveniente do oriente e desejamos preservar a sua originalidade, seja nossa a responsabilidade de a descobrir e a conhecer. Assim como a de a transmitir corretamente...". Concluímos que devemos "perder tempo" em resgatar aquilo que foi deturpado ou perdido ao longo dos anos. Devemos pesquisar, estudar, questionar e aprender aquilo que temos praticado.
Basicamente, Inocentes Sensei, usamos várias palavras para dizer aquilo que aparentemente é bastante óbvio: a deturpação, a perda, a "aculturação" realmente existem, mas as fontes de pesquisa e a informação verificável também podem ser encontradas e fundamentadas.
Não há desculpas que justifiquem a nossa real acomodação e retransmissão da informação errada.
Um Abraço!
Joséverson San:
EliminarObrigado por este seu comentário colocado a 22 de Maio em http://jojimonogatari.blogspot.pt/2012/05/72-uma-linha-tenue.html
Aconselho a todos a leitura deste post e comentários seguintes ao mesmo.
Grande abraço!
Caro Armando !
ResponderEliminarObrigado, por mais este post, obrigado também ,mais uma vez,ao Sr. Joséverson Goulart pelo seu excelente contributo.
"Daí que, se praticamos algo que é proveniente do oriente e desejamos preservar a sua originalidade, seja nossa a responsabilidade de a descobrir e a conhecer. Assim como a de a transmitir corretamente... Concluímos que devemos "perder tempo" em resgatar aquilo que foi deturpado ou perdido ao longo dos anos. Devemos pesquisar, estudar, questionar e aprender aquilo que temos praticado."
Transcrevi estas palavras, pois, de toda a " discussão, é com elas que me identifico em absoluto.
Abraço,
Luís Sérgio
La corriente de Karate se distorsiona! Y mucho más ... Karateka raton siempre tiene la razón ...
ResponderEliminarSi, si, tudo se distorciona, incluso el Karaté...
ResponderEliminarMudam-se os tempos mudam-se as vontades, dizia Camões! É natural que no Karaté também haja modificações para melhor: chama-se a isso evolução. Mas se se perderem valores, o melhor é a evolução ir à fava e ficarmos na mesma... até porque essa evolução permite o enriquecimento das fábricas de tatamis, de protecções para pernas, mãos, peito, cabeça e outras mais obrigatórias por lei... permite a entrada de verbas nas federações... movimenta verbas de publicidade...
Ora aqui está um post que nos mostra como as coisas se processam, mas que nos diz também que é nossa a responsabilidade de descobrirmos e conhecermos o Karaté a fundo, tal como a de o transmitirmos correctamente...
Penso que o Sensei Armando e Joseverson San dizem a mesma coisa embora um pouco de maneira diferente, pois este último afirma que "não há desculpas que justifiquem a nossa real acomodação e retransmissão da informação errada."
Cumprimentos aos dois.
Pedro Correia