terça-feira, 22 de maio de 2012

Oriente e Ocidente: um dilema? (I)


Atualmente um dos tópicos em discussão na net revela a falta de conhecimento que os ocidentais possuem da cultura oriental (veja-se aqui)...
Verificamos que a todo o momento nos confrontamos com o dilema das contradições entre a aplicação prática da técnica (jutsu), as intenções da mesma, e as motivações últimas da via a seguir (). Ratti e Westbrook (1) salientam que este dilema é facilmente observável historicamente na maioria das artes marciais do passado e até em muitas disciplinas delas derivadas tal como se ensinam e praticam atualmente em todo o mundo. Há um contraste entre o proclamado e o praticado. Daí o facto de podermos ter um desporto perfeitamente institucionalizado e regulamentado, com um programa técnico codificado, com elevados princípios filosóficos e com um código ético, mas constatarmos que na sua prática nem sempre despontam comportamentos éticos e morais.
Se a ética é um conjunto de princípios universalmente aceites, já a moral se encontra condicionada pela cultura. Logo, também seria difícil fazer transitar de uma cultura oriental para uma cultura completamente diferente, a cultura ocidental, a sua moral, até porque “a difusão, ou seja, o transporte de realidades culturais de uma para outra cultura, não é um ato, mas sim um processo cujo mecanismo muito se assemelha ao de qualquer processo evolutivo”, como nos diz Malinowski (2). E como tal, há acomodações e assimilações, há interpenetrações e interdependências, há progressos mas também degradações e degenerações, há ganhos mas também perdas.
Por isso mesmo as próprias noções de ética ou de moral nem sempre estão presentes no Karate- e nos comportamentos adjacentes (mas quase que poderíamos afirmar que o mesmo acontece no desporto em geral, nomeadamente no profissional).


A transição progressiva de técnicas guerreiras a desporto (jogo) processa-se através de tempos e de lugares, assim como através de um processo histórico influenciado por mudanças e movimentações.
A passagem do Karate- de arte marcial a desporto de combate (ou melhor, a desporto de contacto corporal direto) não é uma mutação repentina, mas um processo gradual (com diversas fases em diferentes contextos históricos) inserido em modificações socio-culturais e pela aculturação (importação) de uma realidade oriental na cultura ocidental. Todo este processo originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, até porque as condições históricas criaram situações objectivas de desigualdade.
Neste avanço temporal, assim como numa deslocação geográfica e cultural, há toda a transferência de rituais que perdem os seus significados originais e ganham outros similares ou diferentes.
Johnson (3) diz que “a atitude ocidental é principalmente orientada para objectivos, pragmática e reducionista, apontando para a consideração do produto mais do que do processo, dos fins mais do que dos meios, e dos objectivos mais do que das experiências pelo seu próprio mérito. Em contraste, os orientais vêem as oposições como relação e fundamentalmente harmoniosas. Eles reconhecem uma não-divisão entre produto e processo, fins e meios, ou objectivos e experiências”.
Daí que, se praticamos algo que é proveniente do oriente e desejamos preservar a sua originalidade, seja nossa a responsabilidade de a descobrir e a conhecer. Assim como a de a transmitir corretamente...



(1) RATTI, O. & WESTBROOK, A., 2000, “Secretos de Los Samurai”, Barcelona, Editorial Paidotribo.
(2) MALINOWSKI, B., 1997, “Uma Teoria Científica da Cultura”, Lisboa, Edições 70.
(3) JOHNSON, C., “Toward a revisionist philosophy of coaching”, in S. Kleinman, Ed., 1986, “Mind and Body – The East meets the West”, pp. 149-155, Champaign, Illinois, Human Kinetic Publishers.


8 comentários:

  1. OSS Inocentes Sensei!

    Excelente texto. Através desta leitura podemos tirar várias linhas de reflexão.

    Um grande abraço.

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  2. Caro Dr. Armando:

    Há diferenças entre o Karaté de 1936 e o de 2012 em Okinawa? HÁ!

    Há diferenças entre o Karaté de Okinawa e o de Portugal, Espanha, França, Itália, em 2012? Claro que HÁ!

    Mas é verdade que se queremos "preservar a sua originalidade" temos a "responsabilidade de a descobrir e a conhecer. Assim como a de a transmitir corretamente..." Logo temos de investigar, de procurar informação, de contactar Mestres que sejam Mestres e aprendermos com eles, de não deturparmos o conhecimento e de não ficarmos com ele no bolso.

    Ainda bem que o Dr. Armando vai por esse caminho. Obrigado por este texto. Merece ser lido duas vezes para o entendermos bem e depois reflectirmos sobre ele!

    Grande abraço!
    JA Neves

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  3. Só mais uma achega!

    O poeta inglês Yates um dia disse: "Os melhores perderam toda a convicção, enquanto os piores estão cheios de intensa paixão".

    Felizmente ainda há alguns de entre os melhores que possuem convicções e paixões! O Dr. Sidónio Serpa também nos mostra isso!

    Grande abraço
    JA Neves

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  4. Joséverson Goulart25 de maio de 2012 às 00:21

    Inocentes Sensei, compreendo o seu ponto de vista e mesmo que eu não tenha o seu alto alcance a nível literário, acredito que temos um grave problema no termo "aculturação".
    O problema é que, por definição, "aculturação" pode ser entendida como:
    - Aculturação, s. f. Processo através do qual um grupo contacta uma cultura diferente e a assimila total ou parcialmente.
    Acredito que este termo possa ser usado no caso do "Brazilian Jiu Jitsu" ou das "novas artes", onde elementos de uma cultura original deram origem a uma outra cultura, um novo sistema.
    Contudo esta "aculturação" NÃO é válida para o Karate, porque este mantém os mesmos princípios originais. Não podemos assimilar um Karate "parcialmente", porque deixaria de ser - simplesmente - Karate. Poderíamos até chamar Inocentes Ryû, XPTO-Ryû etc., mas nunca Karate!
    Naturalmente, podemos sempre optar em criar um estilo novo, entitularmo-nos "Sôke", "Grão-mestre", "o supra-sumo"... de um novo sistema qualquer e continuar a difundir as nossas novas ideias, mas isso faria com que a arte deixasse de seguir a tradição estabelecida Era justificar a abandalhação do estudo e da pesquisa.
    A degradação dos comportamentos éticos e morais de uma cultura - referenciados por Ratti e Westbrook - podem realmente existir, mesmo que "“a difusão, ou seja, o transporte de realidades culturais de uma para outra cultura, não é um ato, mas sim um processo cujo mecanismo muito se assemelha ao de qualquer processo evolutivo”, como nos diz Malinowski, apenas reforçam a necessidade de ESTUDAR e PESQUISAR, buscando novamente os conceitos elementares.
    "A passagem do Karate-dō de arte marcial a desporto de combate (...) não é uma mutação repentina, mas um processo gradual (...) inserido em modificações socio-culturais e pela aculturação (importação) de uma realidade oriental na cultura ocidental." seria absolutamente correto se não tivéssemos a capacidade de aceder à informação original, o que não é o nosso caso. Podemos sempre alterar ou adaptar o conhecimento original à nossa realidade, mas - ao fazermos isto - quanto da arte, da ética e da moral originais permanecem?
    "Todo este processo originou aquisições e reinterpretações mas também degenerações, (...)" Eu acredito que as degenerações e as desigualdades no ensino das artes marciais japonesas só surgiram por acomodação ao erro transmitido. Uma busca sistemática e fundamentada seria suficiente para que a informação correta não se perdesse.
    "Johnson (3) diz que “a atitude ocidental é principalmente orientada para objectivos, pragmática e reducionista, apontando para a consideração do produto mais do que do processo, dos fins mais do que dos meios, e dos objectivos mais do que das experiências pelo seu próprio mérito. Em contraste, os orientais vêem as oposições como relação e fundamentalmente harmoniosas. Eles reconhecem uma não-divisão entre produto e processo, fins e meios, ou objectivos e experiências”." Concordo plenamente! E por transmitirmos a arte oriental, acho que eu não temos o direito a alterar algo que já foi previamente codificado e que posso ter acesso mesmo nos dias de hoje.
    "Daí que, se praticamos algo que é proveniente do oriente e desejamos preservar a sua originalidade, seja nossa a responsabilidade de a descobrir e a conhecer. Assim como a de a transmitir corretamente...". Concluímos que devemos "perder tempo" em resgatar aquilo que foi deturpado ou perdido ao longo dos anos. Devemos pesquisar, estudar, questionar e aprender aquilo que temos praticado.
    Basicamente, Inocentes Sensei, usamos várias palavras para dizer aquilo que aparentemente é bastante óbvio: a deturpação, a perda, a "aculturação" realmente existem, mas as fontes de pesquisa e a informação verificável também podem ser encontradas e fundamentadas.
    Não há desculpas que justifiquem a nossa real acomodação e retransmissão da informação errada.

    Um Abraço!

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    1. Joséverson San:

      Obrigado por este seu comentário colocado a 22 de Maio em http://jojimonogatari.blogspot.pt/2012/05/72-uma-linha-tenue.html

      Aconselho a todos a leitura deste post e comentários seguintes ao mesmo.

      Grande abraço!

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  5. Caro Armando !
    Obrigado, por mais este post, obrigado também ,mais uma vez,ao Sr. Joséverson Goulart pelo seu excelente contributo.
    "Daí que, se praticamos algo que é proveniente do oriente e desejamos preservar a sua originalidade, seja nossa a responsabilidade de a descobrir e a conhecer. Assim como a de a transmitir corretamente... Concluímos que devemos "perder tempo" em resgatar aquilo que foi deturpado ou perdido ao longo dos anos. Devemos pesquisar, estudar, questionar e aprender aquilo que temos praticado."
    Transcrevi estas palavras, pois, de toda a " discussão, é com elas que me identifico em absoluto.
    Abraço,
    Luís Sérgio

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  6. La corriente de Karate se distorsiona! Y mucho más ... Karateka raton siempre tiene la razón ...

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  7. Si, si, tudo se distorciona, incluso el Karaté...

    Mudam-se os tempos mudam-se as vontades, dizia Camões! É natural que no Karaté também haja modificações para melhor: chama-se a isso evolução. Mas se se perderem valores, o melhor é a evolução ir à fava e ficarmos na mesma... até porque essa evolução permite o enriquecimento das fábricas de tatamis, de protecções para pernas, mãos, peito, cabeça e outras mais obrigatórias por lei... permite a entrada de verbas nas federações... movimenta verbas de publicidade...

    Ora aqui está um post que nos mostra como as coisas se processam, mas que nos diz também que é nossa a responsabilidade de descobrirmos e conhecermos o Karaté a fundo, tal como a de o transmitirmos correctamente...

    Penso que o Sensei Armando e Joseverson San dizem a mesma coisa embora um pouco de maneira diferente, pois este último afirma que "não há desculpas que justifiquem a nossa real acomodação e retransmissão da informação errada."

    Cumprimentos aos dois.
    Pedro Correia

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